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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.10 no.1 Juiz de Fora June 2016

http://dx.doi.org/10.24879/201600100010046 

ARTIGO ORIGINAL

DOI: 10.24879/201600100010046

 

 

A criança enquanto condição do sujeito em Freud: apontamentos para uma clínica psicanalítica com crianças

 

The child while the subject’s condition in Freud: notes for a psychoanalytic clinic with children

 

 

Jane Mara dos Santos BarbosaI; Wilson Camilo ChavesII

I Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.Mestre e graduada em Psicologia pela UFSJ. Psicóloga da Prefeitura Municipal de São João del-Rei.

II Mestre e Doutor em Filosofia pela UFSCar. Professor na graduação e pós-graduação (mestrado) em Psicologia na UFSJ.

Endereço para Correspondência

 

 


Resumo

Tratamos nesse trabalho da contribuição de Freud para a clínica psicanalítica com crianças ao trazer em sua obra apontamentos essenciais para o atendimento como a saída para as dificuldades da criança associar livremente, bem como a peculiaridade do vínculo transferencial estabelecido por ela. Utilizando a análise do caso Hans, Freud orienta o pai da criança na condução da análise da fobia do filho e em Além do princípio do prazer, Freud acentua a importância do discurso do brincar na elaboração dos conflitos psíquicos apresentados pelo sujeito na condição de criança.

Palavras chave: Psicanálise, clínica e criança.


Summary

The article now present is the result of the master’s thesis entitled: the child and the infant in Freud: psychoanalytic clinic with children and socially imposed ideals. We treat this job of Freud’s contribution to the psychoanalytic clinic with children by bringing in his work notes are essential for service as the output for the hardships of child associate freely, as well as the peculiarity of the transferential relationship established by it. Using the analysis of the case Hans, Freud guides the child’s father in conducting analysis of the son’s phobia and in beyond the pleasure principle, Freud emphasizes the importance of play in the development of the psychic conflicts presented by the subject on condition of child.

Keywords: Psychoanalysis, clinical and child.

 

 

A condição de criança, nos escritos de Freud, é representada com sentidos diferentes nas diversas passagens. Freud traz uma visão de criança afastada da classificação temporal do conceito social marcada por fases de desenvolvimento. O conceito filosófico de Rousseau, de que o homem nasce bom e de que uma criança inocente e ingênua pode ser corrompida pelo mundo, tinha uma influência importante na época de Freud (Moraes, 1999). O que nos faz refletir sobre como a sociedade contemporânea de Freud recebeu um modo de perceber a criança, que não lhe negava as manifestações afetivo-emocionais e afetivo-sexuais.

O ideal social sobre a criança está tomado de expectativas que envolvem características como inocência, pureza e um ser que pode ser corrompido pelo meio em que vive caso não seja “educado”. O sujeito adulto, de maneira geral, ainda mantém um modo idealizado e distante de enxergar o infante, mesmo tendo um dia se encontrado na condição de criança. Freud (1905/1992a), nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, atribui esse comportamento à amnésia, provocada pelo recalque, que impede que o indivíduo se recorde desse período da infância. O conceito de recalque em Freud será apresentado a seguir para compreendermos a distância do sujeito adulto das suas recordações da infância.

Guillerault (1996) afirma que é na prática psicanalítica que podemos pensar numa distinção entre criança e infantil. Para o autor, a criança ainda não possui os meios associativos de transmitir a polifonia pulsional que já se encontra presente. Freud (1918/2010) ressaltava a existência de forças libidinais impulsivamente rejeitadas que não apresentam significado para a criança ou sobre os quais ela nada sabe, portanto, que não sofreram influência ou modificações no período da infância e que se manifestam na vida adulta, forma como compreendemos como infantil. Como veremos, a criança sob o ponto de vista freudiano, refere-se a uma condição do sujeito com suas implicações e peculiaridades que divergem do adulto por se tratar da fase inicial da vida. A “criança psicanalítica” refere-se a um ser que se apresenta orgânica e psiquicamente em construção. Na obra freudiana, encontramos a palavra criança ligada a temas como inconsciente, sexualidade, morte, saber, infantil, entre outros.

Pretendemos, com esse trabalho, ressaltar a origem da clínica psicanalítica com crianças em Freud, destacando os ideais socialmente instituídos como principais motivadores da demanda de atendimeto a crianças. Abordaremos aspectos importantes do atedimento de crianças, presentes na obra de Freud e que orientam a clínica psicanalítica até os dias atuais como o vínculo transferencial e a associação livre presente no discurso da criança por meio dos jogos e brincadeiras.

 

A clínica psicanalítica com crianças em Freud

Freud, em suas obras, foi o primeiro psicanalista a falar sobre o uso do método psicanalítico com crianças. O autor, entretanto, apontou alguns limites no atendimento da criança e afirma, em Análise da fobia de um garoto de cinco anos (1909/2015), que a análise de Hans só foi possível, porque foi conduzida por seu pai. Isso porque, pela posição afetiva que ocupava em relação ao menino, exercia a influência necessária para conduzi-lo à cura da fobia que este apresentava aos cinco anos. A análise que Freud (1909/2015) faz do caso Hans inicia-se através dos relatos do pai que observava o filho desde que o garoto encontrava-se com a idade de 3 anos. O relato desse período é descrito por Freud (1909/2015) como referente ao “desenvolvimento” sexual das crianças quase em sua totalidade. Um dos primeiros relatos do pai de Hans refere-se à repreensão que a mãe do menino faz por seu comportamento de colocar a mão em seu pênis, ameaçando-o de cortar seu pipi. Freud (1909/2015) enfatiza que a criança responde à mãe, sem culpa, que sem o seu pênis faria pipi com seu traseiro. Essa cena lembra o relato de Heroad, médico de Luís XIII, que descreve a experiência do pequeno infante no momento de descoberta de seu pênis. Ao contrário do comportamento de censura da mãe de Hans, o comportamento do pequeno Luís XIII era até mesmo incentivado pelos adultos, sem repreensões. Isso não significa que o infante não tenha vivenciado a angústia de castração que, versa sobre o sentimento inconsciente de ameaça após a constatação da distinção anatômica entre os sexos. Para Freud (1914/2006), o Complexo de Castração pode ser encontrado em todo tipo de neurose. Além disso, é caracrizado pelo sentimento de angústia encontrado no menino em relação à perda de seu pênis e na menina, a inveja do pênis, produzida como resultado associativo com a coerção inicial da atividade sexual. O autor, em nota em 1909, assegura que o Complexo de Castração não é necessariamente causado por uma ameaça casual, mas que a criança constrói para si mesma esse perigo, utilizando indícios indiretos que sempre existirão.

Os pais de Hans, segundo relato analisado por Freud (1909/2015) principalmente no discurso e repreensões da mãe, demonstram que também estavam influenciados pelos ideais instituídos pela moral social. Na primeira vez, Hans, tinha 3 anos e tocava seu pênis, a ameaça de deixá-lo sem seu membro lhe é feita e, num segundo momento, Hans pede que a mãe toque seu pênis, entretanto ela responde que seria “porcaria”. Ademais, ao ser questionada pela criança por que seria porcaria, ela diz que não seria correto, ao que Hans alega ser divertido. Diante disso, tomamos como relevantes argumentos de Freud (1913/2006) em relação à postura da mãe de Hans que leva a crer que há uma repreensão à satisfação sexual do menino e, no segundo exemplo, a mãe manifesta uma referência ao tabu do incesto marcado pela proibição de contato sexual entre mãe e filho. Hans, todavia, demonstra ainda não trazer internalizada a culpa consequente do tabu. Algum tempo depois, o pai de Hans escreve a Freud (1909/2015) sobre suas preocupações com alguns sintomas apresentados pelo filho, fazendo conjecturas sobre o filho ter sido assediado. Finalmente, afirma que não gostaria que Hans apresentasse dificuldades tão cedo. Na colocação do pai, o menino alegre e animado tem apresentado um comportamento receoso ao sair à rua e desanimado à noite. Assim, podemos constatar que mesmo os pais de Hans, que tinham se submetido à certa influência psicanalítica, apresentavam um ideal social instituído sobre o que esperavam do comportamento do filho. O pai de Hans deixa claro que não gostaria de ter um filho que apresentasse esquisitices, algo que não passa dasapercebido à crítica de Freud (1909/2015) que descreve o pai como ansioso. Elas se parecem com esta demanda dirigida à Freud por parte do pai de Hans que deixa transparecer que gostaria que Freud o ajudasse a fazer com que seu filho voltasse a ser aquela criança alegre e animada sem problemas que era antes. A esse tipo de demanda ansiosa dos pais, Freud (1909/2015) recomenda que o analista não aceite nem compreenda. O autor assevera que apenas no a posteriori podemos compreender o que se passa com a criança após a análise de um conteúdo relativamente suficiente. Freud (1909/2015) ainda acentua que o analista deixa em supenso seu julgamento ao manter-se numa atitude atenta e imparcial sobre todo o conteúdo apresentado pela criança e a família. Freud (1909/2015) afirma, categoricamente, que “tudo deve ser observado”.

A partir do caso Hans, constatamos, em nossos atendimentos, a necessidade de um contato com os pais e da coleta de relatos e elementos que envolvem a criança em seu dia-a-dia. Mediante esse relato apresentado pelos familiares e pela criança, o analista tem acesso à posição dos pais frente à criança bem como sua posição frente aos fenômenos apresentados por seu filho. E assim, o analista possibilita que esses sujeitos montem a cena em que se passam os acontecimentos relatados pela família. Para tanto, as recomendações apresentadas por Freud (1909/2015) são essenciais ao analista a quem se dirige a demanda de análise. Diante da afirmação de Freud (1909/2015) de que a análise de Hans só foi possível porque foi conduzida pelo pai, perguntamos se seria possível esperar uma transferência por parte da criança que possibilitasse sua análise.

Freud (1933/2010), na Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica, distingue a criança do adulto ao apontar especificidades, como ausência de supereu e o fato da transferência e a associação livre não se darem nas crianças como se dá com os adultos. O autor afirma que a influência exercida pelos pais “governa” a vida da criança por meio de manifestações de amor ou ameaças de castigo. Isso é entendido pela criança como falta de amor e que a fazem temer por essa falta de amor, o que implica no papel exercido pelos pais como um poder externo ainda não internalizado pela criança como encontramos no adulto.

Contudo, antes de prosseguirmos pela via do tema da criança, é necessário situar a questão do amor transferencial e a forma como esse amor se “aferra” à pessoa do analista para daí compreendermos melhor as peculiaridades no atendimento de crianças. Freud (1912/2010), em Dinâmica da Transferência, expõe como é dada a transferência durante o tratamento psicanalítico, bem como a função que ela desempenha no mesmo. De acordo com o autor, a vida amorosa do sujeito e a forma como este se posiciona frente a ela, sofre influências da disposição inata e das experiências vividas nos primeiros anos de vida. Apenas uma parte dos impulsos e conteúdos libidinais que determinam o curso da vida amorosa ou erótica do sujeito passou por todo o transcurso psíquico. Como assegura Freud (1912/2010), uma parte desses impulsos libidinais está presente na consciência e na realidade da pessoa. Outra parte, no entanto, não se encontra acessível à consciência ou à realidade ou foi impedida de expansão, exceto na fantasia. Há ainda outra parte desse impulso libidinal que se encontra no inconsciente de maneira desconhecida da consciência. Assim, segundo Freud (1912/2010), caso a necessidade que uma pessoa tem de amar não seja inteiramente satisfeita pela realidade, ela estará destinada a antecipar suas ideias libidinais tanto conscientes quanto inconscientes ao se aproximar de cada nova pessoa. A partir disso, Freud (1912/2010) entende que a relação transferencial com o analista não é diferente. A ele podem ser destinados não só os impulsos libidinais conscientes e inconscientes como a cadeia psíquica que o inconsciente já formou com a imago paterna, materna ou fraterna. Para tanto, compreendemos que é necessário que o sujeito apresente mecanismos internalizados para que possa acessar o material inconsciente e estabelecer a transferência. Notamos que a criança que atravessa o romance edípico não estabelece a transferência como o adulto, que já apresenta supereu e mecanismos de acesso ao material inconsciente.

 

O vínculo transferencial e o supereu na condição de criança

A questão transferencial na criança passa pela concepção do conceito de supereu, que segundo Freud (1933/2010), ainda não se encontra constituído. Para o autor, o supereu surge no a posteriori do naufrágio edípico. A criança no início da vida, devido a sua condição de desamparo em que necessita de cuidados para sua sobrevivência, investe seu impulso libidinal no objeto que ela julga que a mantém viva numa condição de maternagem. Esse objeto de amor da criança, a mãe, ocupa um lugar central na vida do infante até que ela constate a presença de um terceiro, o pai. Esse comporta aos olhos da criança o alvo a quem ela investe sentimentos de conteúdo ambivalente. Para a criança, o pai funciona como obstáculo para que ela tenha acesso a esse objeto de amor, que é a mãe. Tal romance familiar é o que consideramos como o Complexo de Édipo. O Complexo edípico, no entanto, declina quando a criança recalca os sentimentos edípicos dirigidos à mãe e coloca seu pai num lugar afetivo e de identificação para ela. A entrada e o declínio edípico dão-se de forma diversa no menino e na menina, como Freud (1925/2011b) esclarece em seu texto Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, texto considerado o seu quarto ensaio sobre a teoria da sexualidade. O que leva o menino ao Complexo de Édipo é sua investigação sobre a origem dos bebês e o que leva a menina ao Édipo é a constatação da presença do pênis no menino e ausência em si desse membro. O declínio do Édipo da menina ocorre também de maneira diferente. Freud enumera três maneiras de a menina enfrentar o sentimento de inveja do pênis que ela desenvolve. Primeiramente, de acordo com Freud (1925/2011b), a menina constata a ausência do pênis e quer tê-lo. Numa dessas formas de enfrentar a inveja do pênis, ela constata que o possui e dá curso à busca pela feminilidade. Outra forma seria a menina não aceitar tão facilmente que não possui o pênis e manter a esperança de algum dia consegui-lo. Dessa forma, ela passa a se parecer com um homem e diante dessa percepção, comporta-se de forma estranha e inexplicável, como descreve Freud (1925/2011b). E ainda, numa terceira forma, a menina rejeitaria a ideia de que não possui um pênis e viveria com a convicção como se tivesse um, agindo como se fosse um homem. O autor esclarece que esse comportamento em uma criança não é raro, nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de uma psicose. Freud (1925/2011b) considera que o fim do Édipo da menina não ocorre como no menino. De acordo com o autor, falta um mobilizador para que naufrague o Complexo de Édipo da menina. O Édipo na menina vai sendo progressivamente abandonado ou sendo elaborado a partir do recalque, ou ainda apresenta influência na vida psíquica da mulher.

Freud (1923/2011) chama a atenção para o final edípico, em que ocorreria uma internalização da identificação do menino com o pai e da menina com a mãe. O autor considera as situações ambivalentes que podem surgir das escolhas objetais e identificações, que devido à rivalidade com genitor de mesmo sexo, possam levar à bissexualidade marcando assim, as disposições sexuais. Mediante o contexto edípico na menina, Freud (1925/2011b) afirma que o supereu nas mulheres é caracterizado como menos exigente do que nos homens em termos da ética, senso de justiça. Entre as características do supereu feminino, também estaria a dificuldade em enfrentar as adversidades da vida. Além disso, a mulher teria sua capacidade de avaliação e julgamento influenciada por sentimentos de afinidade ou antipatia. Freud (1925/2011b), no entanto, retifica que o caráter masculino não deve ser encarado como correspondente ao ideal, pois devemos considerar o aspecto da disposição para a bissexualidade e herança cruzada. Nelas, são aglomeradas tanto características masculinas quanto femininas, de maneira que tanto o caráter masculino quanto o feminino, em estado puro, não passam de constructos teóricos de conteúdo incerto.

Uma pontuação importante é apresentada por Freud (1923/2011) ao fim do Complexo de Édipo. Nela, temos como resultado a formação do que o autor chama de um precipitado no eu, que se compõe desse emaranhado de identificações as quais se opõem aos outros conteúdos do eu e tomam a consistência de um ideal do eu ou supereu. O supereu, desse modo, consiste em um resíduo de escolhas inconscientes primitivas, bem como é composto por uma constituição que reage energicamente essas escolhas. Ao mesmo tempo em que o supereu comporta um imperativo “você deveria ser assim”, essa instância psíquica também comporta um imperativo “você não pode ser assim”. Freud (1923/2011) ressalta que a ação do supereu dá-se de forma mais repressora quanto mais intenso foi o Complexo de Édipo. Também, comporta o caráter do pai, reforçado por alguns elementos da ordem social, como a influência da autoridade do ensino religioso, a educação escolar e a leitura. Com isso, resulta-se em uma precipitação sobre o eu na forma de consciência ou sentimento inconsciente de culpa. Freud (1925/2011b) declara que os resultados que obtemos do Complexo de Édipo são o abandono do incesto e a instituição da consciência e da moralidade, efeitos considerados uma vitória da civilização sobre o indivíduo.

Se tomarmos o supereu como constituído por uma internalização do que ficou do romance edípico, temos um mecanismo utilizado pelo sujeito para resgatar o material infantil tão frequente no discurso dos pacientes em uma análise e ausente em crianças que ainda não trazem constituído o ideal do eu. Na relação transferencial da criança, portanto, há um predomínio dos sentimentos ambivalentes que o infante alimenta em relação aos pais, correspondentes à travessia do romance edípico e, consequentemente, em análise, a criança tende a transferir ao analista esses sentimentos. Além disso, a criança busca respostas para seus enigmas sobre a origem dos bebês e a morte, saber que ela supõe transferencialmente que o analista detenha. Hans manifesta de acordo com Freud (1909/2015), a mesma preocupação diante do enigma da vida, em que investiga a chegada da irmã dentro de “grandes caixas” e, em como se preocupa, se abaixo do lugar onde ele estava na calçada, haveria um homem enterrado ou se isso apenas se daria nos cemitérios. Notamos como esse processo se dá na análise de Hans. De acordo com a análise que Freud (1909/2015) faz do caso, observamos como Hans estabelece o contato com o Professor Freud por meio de seu pai, que afirma que aquele professor saberia dizer algo sobre a “bobagem”, como era chamada por Hans a sua fobia. No encontro entre Freud e Hans, o psicanalista comunica ao menino os motivos de angústia que vinha apresentando relacionada a cavalos e que isso acontecia, porque ele temia o pai por causa do amor que sentia pela mãe. Ao término da consulta, Hans pergunta a seu pai se o professor falava com Deus, pois parece que já sabia tudo previamente. Esse foi o único encontro entre Hans e Freud enquanto a criança apresentava a fobia, mas o menino aparentemente mostrava-se transferido com Freud, pois algumas vezes pedia ao pai que perguntasse ao professor sobre as coisas que se passavam com ele. Constatamos, portanto, que Hans foi capaz de estabelecer um vínculo transferencial com Freud por intermédio de seu pai, que alimenta uma transferência em relação ao professor. Em outro momento, Hans relata a seu pai o temor que tinha de subir numa carroça e ela partir. Quando o pai questiona sobre o motivo do medo dele, ele diz que não sabe, mas talvez o professor saiba. Na prática de nossa clínica, averiguamos essa transferência ambivalente em momentos em que a criança compara, verbalmente, o analista à sua mãe ou a seu pai, “você parece com minha mãe”. Ou, no discurso dos pais quando dizem: “No caminho para o consultório, ela vinha me apressando, dizendo que não poderia se atrasar para a sessão e, ao chegar aqui, diz que não quer entrar”. Esse discurso é da mãe ao se referir ao comportamento da filha de 5 anos. É importante ressaltar que Freud não trabalhou em sua clínica com crianças e, apesar de apresentar tantos exemplos e considerações sobre as crianças em sua obra, ele não se dedicou a encontrar meios na clínica para contornar os problemas que ele apontou no atendimento de crianças, como a questão transferencial e dificuldade com a regra fundamental da associação livre. Podemos considerar que os pressupostos estabelecidos por Freud sobre a criança não apresentavam por parte do autor uma afirmação de um constructo que poderia ser aplicado à clínica com crianças. Mas, muitos desses pressupostos podem ser tomados como legítimas contribuições que auxiliaram os analistas de crianças a construírem uma prática no atendimento clínico, como suas observações sobre o ato do brincar.

 

A regra da associação livre e o brincar da criança como elaboração

A regra da associação livre dá-se quando é ordenado ao paciente que fale livremente, até mesmo o que julgar como desnecessário ou de menor importância. Freud (1914/2006) admite que o discurso produzido quando o paciente associa livremente apresenta-se confuso, sem uma ordenação histórica ou cronológica. Diante desse conceito, como se daria a análise com crianças? Freud (1909/2015) ao comentar o relato do pai de Hans, em certo momento, menciona a tentativa de aplicar a regra da associação livre quando o pai diz ao menino para ele dizer o que lhe vem à cabeça, rapidamente. Freud (1909/2015) considera que o pai não alcança seu objetivo e o discurso produzido por Hans, apesar de não aparentar a apresentação de um sentido, poderia atribuir-se um significado no a posteriori. São os momentos em que Hans, por meio de suas brincadeiras e jogos, demonstra fazer declarações que evidenciam o que ele pensa sobre o que se passa com ele. Em um de seus jogos, Hans brinca imitando ser um cavalo, fazendo uma encenação, utilizando seu corpo como objeto lúdico. Durante a brincadeira ele trota, bate os pés, relincha e deixa-se cair. Em outro momento da brincadeira, Hans simula estar com uma focinheira como a do cavalo, vai em direção ao pai e tenta mordê-lo. Freud (1909/2015) analisa essa brincadeira e considera que Hans estaria manifestando sua identificação com o pai como uma plena realização de desejo e, durante a brincadeira, a interpretação era aceita mais facilmente pelo menino.

Freud (1905/1992b) estima a associação livre como um método mais elaborado quando comparado à técnica utilizada por ele anteriormente, que partia dos sintomas visando esclarecê-los. A livre associação, segundo o autor, permite que o paciente determine o tema do seu cotidiano, propiciando que o paciente manifeste o que se encontra emergente em seu inconsciente. Assim, de acordo com Freud (1905/1992b), com base nessa regra fundamental, a solução dos sintomas é abordada em fragmentos sem obedecer a uma sequência lógica ou cronológica de um contexto. O autor considera a técnica da associação livre como a única possível para a análise de neuróticos, pois opera por meio de representações, cadeias de pensamentos e moções inconscientes. Freud (1905/1992b) acrescenta que a livre associação deve ser operada sob transferência e considera esta como a parte mais difícil do trabalho, pois apenas constatamos o estabelecimento desse vínculo a partir de detalhes ínfimos, observados com o objetivo de se evitar julgamentos arbitrários. O vínculo transferencial proporciona ao paciente o sentimento de maior confiança em relação às associações construídas em análise, como a interpretação de sonhos, por exemplo, que parte das cadeias associativas e recordações inconscientes do paciente.

Quando retornamos à definição freudiana da regra fundamental, constatamos que o que é emitido pelo paciente em meio às palavras, aparece permeado de representações fantasísticas em alguns momentos. Tais representações são descritas na forma de imagens ou figuras utilizadas como representantes simbólicos do que foi experienciado em pensamento e exposto na verbalização. Alonso (1988) comenta como ao ser proposta a regra da livre associação e o seu reverso, um evento que, até então, era imutável e possuía um caráter absoluto, vai se inserindo em figuras sucessivas de múltiplas associações. Essas associações são acentuadas por um conteúdo fonético, caracterizado pelo ritmo, cadência e intensidade maior em determinados pontos. Pode ainda ser manifestada a gagueira, que interrompe uma construção duvidosa a qual é capturada num processo de atenção flutuante bem como ao mesmo tempo em que são escutadas pelo analista, são escutadas pelo próprio paciente que emitiu o discurso. De acordo com a autora, a imagem retorna e manifesta outra imagem a partir da desconstrução do discurso que se apresenta de forma ainda mais definida quando se dá a interpretação.

O discurso que se apresenta em Alonso (1988) aponta, remete a uma elaboração do discurso apresentado pela criança. Freud aponta algumas especificidades da associação livre no atendimento de crianças, que difere da análise de adultos, como o discurso que apresenta-se em meio a brincadeiras e jogos e possibilita o acesso elaboração da criança. Quando retornamos ao comentário que Freud (1909/2015) faz da tentativa do pai de Hans em aplicar a regra fundamental, o autor ressalta que o esforço do pai não adianta muito, e que caso tenha obtido algum resultado deveria ser atribuído à luz de revelações posteriores. Em outro momento, entretanto, o psicanalista considera a elaboração do conflito psíquico comunicada por Hans. Esse momento refere-se a uma parte do discurso do menino quando falava com o pai sobre o medo que tinha de tomar banho. Nesse relato, Hans conta sobre dois desejos que sentia e lhe proporcionavam sentimento de culpa. Um desses desejos dizia respeito à sua rivalidade com a irmã Hanna, sobre a qual Hans alimentou fantasias de que sua mãe, durante o banho da menina, poderia soltá-la dentro da banheira, o que consequentemente a levaria à morte. Tal desejo é comumente encontrado na maioria das crianças. O outro desejo de Hans era de ficar sozinho com a mãe no banho, resultado do conflito edípico que vivenciava. Diante da pontuação do pai sobre esses desejos em que acentuou que um bom menino não desejava esse tipo de coisa, Hans responde que “pensar isso” poderia ser bom, pois poderia ser comunicado ao professor, no caso Freud. Freud (1909/2015) considera essa elaboração de Hans como uma plena compreensão sobre o que se trata a Psicanálise. Diante dos ideais sociais e civilizatórios acentuadamente marcados na pontuação do pai de Hans, constatamos a importante contribuição da Psicanálise, que permite que o sujeito tome consciência do seu desejo e se posicione frente a este desejo.

Em outros momentos, é interessante notar que ao relatar o que sente, Hans usa seus sonhos e jogos, o que permite que ele faça uso de imagens e figuras que comportam o que ele sente, mas que só com palavras ficaria difícil expressar. Freud (1909/2015) analisa o sonho manifesto por Hans o qual, segundo o menino, tratava-se de duas girafas, uma grande e uma pequena. A girafa grande aparecia à noite em seu quarto e a outra girafa apareceu toda amarrotada. De acordo com Hans, no sonho a girafa grande gritava, porque ele havia levado a girafa amarrotada para longe. Quando a girafa grande para de gritar, Hans senta-se em cima da girafa amarrotada. Alguns restos diurnos justificam a presença das girafas no sonho de Hans. Alguns dias antes, Hans tinha feito um passeio em que pôde ver uma girafa e quando voltou do passeio, o pai havia feito para Hans um desenho desse animal, a pedido dele. Nesse desenho, Hans questiona onde estava o pipi da girafa e o pai pede que ele o desenhe, e o menino faz um traço vertical embaixo da girafa. Outro resto diurno seria o fato de que Hans possuía, em seu quarto, uma figura de uma girafa e de um elefante pendurados em cima de sua cama. Esse sonho é interpretado pelo pai de Hans da seguinte maneira: a girafa grande é identificada com o pai e seu pênis grande faz referência ao pescoço comprido da girafa. A girafa amarrotada seria a mãe de Hans, em referência ao órgão genital dela. A interpretação feita pelo pai sobre o fragmento do sonho em que a girafa grande estava gritando, refere-se ao fato do pai haver repreendido a mãe por ela permitir que Hans ficasse na cama com ela. Freud (1909/2015) acrescenta à interpretação do pai, a construção do desejo de Hans, que, certamente, havia desejado ter sua mãe, suas carícias e seu órgão genital. A mãe que aparece no sonho, identificada como a girafa amarrotada, é tomada como posse pelo menino, que representa esse fato quando senta em cima dessa girafa. Ademais, segundo o autor, o sonho tratava-se de vencer o desafio contra seu pai, em que não adiantaria que o pai gritasse, pois a mãe o levaria para a cama assim mesmo.

O relato desse sonho de Hans é mais um exemplo da presença do inconsciente em crianças, bem como da influência dos ideais sociais instituídos, como o tabu do incesto. Esse último, por exemplo, age como um mecanismo de censura que provoca a distorção no sonho de Hans que tem seus pais substituídos por imagens de girafas por meio dos mecanismos primários inconscientes da condensação e do deslocamento. Freud (1900/1991) considera a essência do sonho como uma realização de desejos, mas que apresenta distorção, como podemos perceber no exemplo do sonho de Hans.

Como os sonhos, os jogos de Hans eram expressão da solução que ele dava para os conflitos e dúvidas que vivenciava. Num de seus jogos, Hans estava brincando com um cavalinho de brinquedo que caiu, e o menino chama a atenção para o barulho que fez. A criança demonstra com sua brincadeira o incômodo que sentia desde que viu o cavalo cair na rua próxima a sua casa, momento a partir do qual, ele passa a evitar a saída à rua, apresentando angústia ao ver cavalos. Algumas brincadeiras de Hans foram relatadas por seu pai por referirem-se, claramente, ao conflito que ele vivenciava. Uma dessas brincadeiras tratava-se da experiência que Hans faz com sua boneca de borracha que ele chamava de Grete, introduzindo um canivete pela abertura que a boneca tinha na parte de trás, depois deixando que a faca saísse ao abrir as pernas da boneca. Ele nomeia para a empregada o ato da faca sair por entre as pernas dizendo que era o pipi da boneca. Após essa brincadeira, segue uma conversa entre o pai e o menino em que Hans manifesta o resultado de suas investigações sobre a origem dos bebês, assunto sobre o qual seu pai tarda a esclarecer. O pai de Hans pede que o menino explique o que fez com a boneca e Hans diz que queria ver o pipi dela. Aliado a essa explicação, Hans descreve o ato da galinha botar ovos, o que para Freud (1909/2015) não foi uma associação ao acaso, pois o assunto sobre a brincadeira com a boneca não está dissociado desse comentário sobre o ato de botar ovos. Para o autor, o que Hans faz com a boneca demonstra que ele sabe como nascem os bebês. A brincadeira em que o canivete sai por entre as pernas da boneca, deixa claro que Hans já estava ciente de que os bebês saem de dentro da mãe. Hans busca o saber sobre a origem dos bebês por motivos narcísicos e egoístas, e não de maneira inata. Diante do nascimento da irmã em que sente que a atenção dos pais deve ser partilhada, Hans inicia sua saga investigativa sobre a origem dos bebês e de um meio que o livre da rival. Essa associação de Hans nos remete à elaboração freudiana sobre o saber da criança, que difere do que foi instituído como ideal social de criança pura e inocente. Freud (1910/2013) nos aparece com a novidade de uma criança que não é ingênua, nem inocente, mas que busca soluções para suas investigações e, algumas vezes, desfruta de certos benefícios diante do ideal inocente para ampliar seu conhecimento. Hans demonstra por meio da brincadeira e da metáfora do ovo, em que ele compara o fato da galinha botar ovos, ao ato do nascimento dos bebês e deixa claro que compreendia que o bebê saiu de dentro de sua mãe. Hans disfarça para o pai o conhecimento que já era factível para ele numa atitude que Freud (1909/2015) nomeia como zombaria, já que o pai demorou a prestar esclarecimentos ao menino sobre como nascem os bebês. Assim, o menino deixa claro que descobriu sozinho, reproduzindo isso em seu jogo com a boneca.

Freud (1909/2015) observa em sua análise do caso Hans que os pais do menino foram responsáveis por abordar o material patogênico que o angustiava. O assunto abordado durante todo o acompanhamento da fobia de Hans pouco versou sobre cavalos. O assunto mais abordado por Hans se tratava da ausência de pipis nas mulheres e a conservação do seu pipi. Freud (1909/2015) destaca que houve efeito terapêutico sobre a fobia de Hans, mas lembra que a prioridade da análise não é alcançar esse efeito. O autor enfatiza que o essencial é proporcionar ao paciente, a capacidade de compreender e tornar-se consciente dos seus desejos inconscientes.

Freud (1909/2015) afirma que esse trabalho é possível quando transmitimos à criança, com nossas palavras, o conteúdo inconsciente. Essa intervenção, segundo o autor, propicia que a criança alcance o que está procurando por meio da semelhança com a interpretação que lhe é apresentada sobre o que se passa com ela. Freud (1909/2015) considera que o analista permite que o paciente percorra seu caminho e em determinado ponto há um encontro no conhecimento do desejo inconsciente. Assim, a criança mostra-se como um participante ativo na busca pelo conhecimento inconsciente.

Diante desse apontamento de Freud (1909/2015), refletimos sobre o atendimento de crianças e a possibilidade da escuta do discurso do infante durante o jogo, sob transferência. Nos exemplos descritos no caso Hans, notamos como as brincadeiras e jogos são essenciais no modo como as crianças se expressam. Desde o prazer nonsense, mencionado por Freud (1905/1991), em que o bebê faz uso dos sons como um jogo prazeroso que precisa de um sentido, até o FORT-DA, que Freud (1920/2010) descreve o jogo de uma criança como um meio de expressar o conflito psíquico que vivencia e sobretudo de elaborar. A compulsão à repetição envolvida na brincadeira tem como objetivo elaborar a experiência. Observamos que no atendimento de Hans, seu pai mostrou-se como o verdadeiro motor que mobilizou as elaborações do menino. Constatamos, portanto, que o analista a partir do vínculo transferencial com a criança, funcionaria como o verdadeiro objeto lúdico que possibilitaria a produção de saber pela criança.

Com sua investigação psicanalítica e suas incursões sobre a criança, a obra freudiana, apresenta uma novidade a qual contribui com apontamentos que deixam abertas as possibilidades para uma clínica com crianças. Um bom exemplo disso é a observação que Freud (1920/2010), em Além do Princípio do Prazer, faz da brincadeira de FORT-DA de seu neto de 18 meses, como forma de uma criança comunicar como ela concebia a ausência de sua mãe.

Freud (1920/2010), anos depois da publicação do caso Hans, traz uma importante contribuição ao atendimento clínico de crianças a partir do discurso apresentado pelo infante no manejo do objeto lúdico. Considera o estudo dos sonhos como o método mais confiável quando se trata de pesquisar processos psíquicos profundos. Aponta como característica dos sonhos nas neuroses traumáticas a possibilidade de manifestação repetida da situação do acidente sofrido pelo neurótico, causando o despertar sob o susto.

Além disso, Freud (1920/2010) apresenta a brincadeira das crianças com umas das primeiras atividades da vida do sujeito, bem como a representação do funcionamento do aparelho psíquico delas. A brincadeira infantil, como assevera Freud (1920/2010), exerce importante papel econômico na produção de prazer, como pôde averiguar numa experiência manifestada por seu neto de 18 meses. Freud (1920/2010) considera que a criança não apresentava elementos que pudessem considerá-lo como um sujeito precoce ou com características especiais. A criança pronunciava poucas palavras e mantinha uma convivência saudável com seus pais e sua empregada. O comportamento, descrito por Freud (1920/2010), leva a entender que ela elaborava bem os conflitos de ordem afetiva, respeitando limites e separações. Freud (1920/2010), então, descreve um hábito eventual que a criança manifestava de apanhar e atirar objetos que encontrava e tornar a apanhá-los, algumas vezes embaixo da cama, em algum canto. Esse comportamento dava bastante trabalho à criança. Quando ela praticava essas ações e pronunciava a expressão “o-o-o-o-o”, manifestava junto interesse e satisfação. Freud (1920/2010) assevera que a expressão se referia à palavra alemã “fort”, o que leva o autor a concluir que com esse jogo, o menino brincava de ir embora. Ao observar o menino com um carretel, Freud (1920/2010) pôde notar como a brincadeira se completava. Ele atirava o carretel de volta e expressava “da” (ali). O autor conclui que a brincadeira completa tratava-se de desaparecimento e retorno, deixando claro que essas ações da criança apresentavam um objetivo nobre de renúncia à satisfação pulsional, que sentia a partida da mãe como aflitiva. Freud (1920/2010) conclui que essa experiência apresentada pela criança, atendia ao princípio do prazer, mesmo partindo de uma experiência aflitiva, porque através da experiência repetida no jogo a criança alcança uma produção de prazer. A experiência podia ser interpretada a luz do princípio do prazer, mas no seguimento do texto ele vai defender que a compulsão à repetição (portanto, o além do princípio do prazer) está presente na brincadeira. O autor ainda afirma que por meio das brincadeiras, a criança encontra um meio de repetir as experiências que lhe afetam na vida real, ab–reagem à intensidade da sensação, provocando o sentimento de se assenhorear da situação.

O fato de a criança repetir a experiência aflitiva da partida da mãe no jogo como se isso não se harmonizasse com o princípio do prazer e, em sua observação, ainda acrescenta que a criança repetia num número maior de vezes a saída da mãe e, em menor número, o retorno, o que poderia se entender como seu final agradável. A isso, o autor cogita a possibilidade da criança tornar-se ativa diante de uma situação em que antes ela encarava apenas passivamente. Outra possibilidade encontrada por Freud (1920/2010) seria a criança fazer uso do jogo para satisfazer um impulso suprimido na vida real, no caso vingar-se da mãe por afastar-se dela como se dissesse então “vá embora! Não preciso de você! Sou eu que estou mandando você embora”.

Freud conclui que, nesse caso, a criança que ele observava “só foi capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta”. (FREUD, 1920/2010, p. 27). Ele ainda enfatiza que quando a criança desloca-se da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto. Com o adulto, essa forma de lidar com as experiências desprazerosas, de acordo com Freud, dá-se de forma semelhante.

Freud (1920/2010) lembra que, em atividades artísticas, o sujeito adulto é capaz de expressar ou representar contextos que não poupam ao expectador as mais penosas situações. Essas representações penosas, no entanto, podem ser sentidas como altamente prazerosas. Assim, Freud ratifica que “isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio do prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente.” (FREUD, 1920/2010, p. 28).

Retomando o discurso da criança em análise, o qual não acontece por meio da associação livre como ocorre com o adulto, perguntamos-nos a respeito do conteúdo presente no discurso das crianças durante os jogos e brincadeiras que ela participa. Também nos perguntamos se o desejo realizado presente no conteúdo distorcido de seus sonhos não significaria uma possibilidade de abordar o desejo inconsciente que incide sobre o conteúdo psíquico. Nos jogos, as crianças manifestam o que se passa no seu imaginário sobre o que a angustia e é capaz de reproduzir sob a sua concepção seu incômodo, conflito, sensação de abandono, ciúme ou inveja do outro. Isto é, o que está sentindo e de um modo que, durante o jogo, ela não sente que sofre passivamente a ação, pois na brincadeira ela escolhe se quer sofrer a ação, se quer se vingar, se quer reagir e provoca a ação ao reproduzir o que lhe aflige. Freud (1908/2015), em Escritor e fantasia, destaca que a criança tem consciência que a história que se dá no jogo pertence ao imaginário e não se passa no real. De acordo com a análise do FORT-DA relatada por Freud (1920/2010), poderíamos também, em nosssas clínicas, utilizar o lúdico como estratégia para fazer a criança falar, pois o neto de 18 meses que ele observava, foi capaz de nomear o que se passava em seu jogo, comunicando a elaboração daquele ato. Como conceber, entretanto, esse discurso como uma associação que acessa o desejo inconsciente, se a criança utiliza objetos reais e tem consciência de que o jogo e a brincadeira pertencem ao campo das fantasias? Afinal, o contato da criança com o lúdico deixa claro, como afirmado acima, que esta não sente a brincadeira como um fato real. Ela compreende o jogo como um verdadeiro faz de conta.

Podemos elaborar uma articulação do processo do brincar da criança com o conteúdo dos sonhos. Sobre a deformação onírica, Freud (1900/1991), em Interpretação dos Sonhos, afirma que o conteúdo dos sonhos implicam na realização de desejo e que apresentam elevado grau de deformação em seu conteúdo, manifestando incoerência e se compondo de forma absurda e confusa. Santa Roza (1994) apresenta uma possibilidade de vincular a produção onírica ao brincar da criança. A autora distingue os dois fenômenos, ratificando a deformação onírica dos sonhos que se apresentam de maneira incoerente e confusa, e o brincar, que se apresenta como uma atividade consciente que envolve ações motoras, perceptivas e o uso de objetos concretos. Além de corresponder a uma cadeia de associações produzidas pela criança que distingue, claramente, que o ato de brincar não corresponde à realidade, a qual é apenas imaginada.

Já Freud (1900/1991), afirma que os sonhos funcionam como um ressurgimento da vida anímica infantil já suplantada. O autor parte do pressuposto de que são realizações de desejos, pois se utilizam da via curta da regressão pela via do método primário do aparelho psíquico que já se mostrava ineficaz. Freud exemplifica esse método ao citar uma psiquê jovem e primitiva, que um dia dominara a vida de vigília abandonada pelo sujeito e que fora banida para a noite. Um paralelo pode ser traçado entre o brincar e a representação da vida primitiva do homem quando demonstram a utilização pela criança de alguns instrumentos como arcos e flechas em sua vida de vigília que são representados através dos jogos e brinquedos.

O ato de brincar representa para a criança, um universo rico de manifestações das fantasias e elaboração de desejos inconscientes que transpassam a sua vida cotidiana. O brincar que a criança abandona ao crescer e que era determinado pelo desejo de ser adulto, aparece, posteriormente, como fantasias. Freud (1908/2015) esclarece, em Escritor e fantasia, que as fantasias são motivadas por desejos insatisfeitos, como uma correção da realidade insatisfatória. O poeta representa bem esse trabalho mental quando a partir de uma experiência poderosa no presente, é despertado por uma lembrança infantil e encontra realização de um desejo na obra criativa. O brincar da criança é como o jogo de fantasia produzido pelo poeta. Ambas as atividades funcionam como fontes de prazer, seja para as crianças que brincam ou para os ouvintes que têm oportunidade de assistir a peças, ouvir ou ler poesias, apesar dessas atividades tratarem muitas vezes de excitamentos penosos. As fantasias podem ser reunidas em dois grupos: desejos ambiciosos ou desejos eróticos. O trabalho mental entrelaça passado, presente e futuro pelo fio condutor que os une através de um desejo rememorado na infância que se encontra insatisfeito no presente e está ligado a um futuro, em que sua realização pode se dar. As pessoas, ao crescer, renunciam ao prazer que encontraram no brincar, porém ao refletirem sobre a seriedade que envolve os jogos infantis, o adulto pode elaborar a relação presente na seriedade com que encara suas atividades atuais com a seriedade com que encarava as brincadeiras infantis. Essa elaboração proporciona ao adulto uma sensação de liberdade diante da pesada carga imposta pela vida e passa a vivenciá-la com humor. Em A Interpretação de sonhos, Freud (1900/1991) relata sonhos infantis como sonhos que apresentam menor deformação onírica e que representariam pura realização de desejo assim como em sonhos de adultos haveria distorções tão complexas que seus pacientes achavam difícil acreditar que se tratasse de realização de desejos. Freud, nessa obra, faz outra importante contribuição sobre o fato de que os sonhos apresentam conteúdo infantil. O autor defende a ideia de que os restos diurnos presentes nos sonhos só estão ali porque apresentam a mesma carga de afeto de determinado conteúdo infantil da vida do sujeito.

Freud (1900/1991) menciona o mecanismo da figuração como efeito da condensação e deslocamento que converte o conteúdo do sonho em imagens que alcançam os sistemas perceptivos. E essa conversão em imagens visuais dá-se a partir do processo secundário, diferentemente da condensação e o deslocamento que se dão no processo primário. A formação dos sonhos é assemelhada pelo autor à linguagem poética, que faz uso de símiles e metáforas. Freud (1900/1991) alega que na construção do sonho haveria uma influência das fantasias relacionadas ao desejo tão perceptíveis na vida de vigília construídas a partir de repetições ou versões modificadas de cenas da infância. Isso leva a crer que o disfarce do sonho, muitas vezes, corresponde ao núcleo da fantasia onírica distorcida pela combinação com outro conteúdo. E todos esses efeitos mencionados, que provocam a deformação onírica, também incidem sobre os fenômenos da vida cotidiana das pessoas como o esquecimento, os lapsos de linguagem, os atos falhos e certa classe de tropeços.

Santa Roza (1994) recorda que o simbolismo que encontramos presente no brincar, situa-se como a figuração dos sonhos regulada pelo sistema preconsciente/consciente, sistema em que ocorre o predomínio do processo secundário. A autora destaca que pertencendo ao processo secundário, a atividade lúdica e seu conteúdo latente podem ser aproximados dos devaneios. Os devaneios, por sua vez, são aproximados dos sonhos por Freud (1900/1991) através de propriedades comuns a ambos. Dentre essas propriedades estão as características de trazerem em seu conteúdo a realização de desejos e o fato de as vivências infantis estarem na constituição de ambos, Portanto, tanto os sonhos quanto os devaneios são resultado de um relaxamento da censura. Para o autor, a reordenação e recomposição do desejo inconsciente ocorrem por meio da elaboração secundária ao constituir um material que, combinado às reminicências do passado, servem de material para uma construção moderna. Assim, a elaboração de Santa Roza (1994) sobre o brincar como o primeiro devaneio põe o desejo em movimento e traz em seu pano de fundo: o passado, o presente e o futuro.

Podemos compreender o que Freud (1920/2010) descreve no jogo do FORT-DA ao correlacionar a brincadeira com um controle que a criança apresenta sobre o objeto, o que permite um resgate do passado que sofre uma permuta com o jogo encarado como substituto da passividade da criança frente à ausência da mãe. O jogo, portanto, se constitui como um meio de acesso ao discurso da criança e consequente elaboração dos conflitos no atendimento clínico. Como podemos observar os elementos essenciais à clínica psicanalítica com crianças foram abordados por Freud ao longo de sua obra.

Alguns autores pós-freudianos abordaram a clínica psicanalítica com crianças como Anna Freud, Melanie Klein, Winnicot entre outros. Reafirmamos, entretanto, que como nosso propósito, neste trabalho, ressaltar que os pressupostos básicos no atendimento de crianças já se encontravam nas obras freudianas.

 

Considerações Finais

A análise de crianças traz em sua essência a observação de Freud (1920/2010) de que ela não deve priorizar o efeito terapêutico e sim propiciar à criança o acesso a seu desejo inconsciente. Realizamos um recorte sobre especificidades no atendimento de crianças que se distinguem da análise de adultos e como o lúdico apresenta-se como um importante recurso neste tipo análise. Entre os opontamentos destacamos importantes diferenças entrea a análise de adultos e crianças em fenômenos como o vínculo transferencial e a associação livre. Além disso, as condições em que ocorre a análise apresenta como particularidade a presença dos pais e a demanda apresentada por eles.

Como destacamos, o analista funciona como o principal objeto lúdico tomado pela criança como depositário de seus impulsos libidinais, uma vez que devemos considerar a presença dos pais como intermediário importante nesse processo. Diante desse contexto, torna-se essencial discutir sobre os elementos que atravessam o discurso daqueles que conduzem a criança ao analista. Essa especificidade da clínica com crianças interpõe-se ao ideal constituído socialmente sobre o infante, presente no discurso dirigido ao analista. A esse discurso, defendemos o propósito que não deve ser respondido, pois tomamos a criança sob a perspectiva proposta por Freud o qual parte da singularidade da presença do inconsciente como a principal novidade a ser apresentada sobre a criança.

Com este artigo, portanto, notamos que interpondo o ideal de criança socialmente instituído como pura e inocente à desconstrução desse ideal proposto pela prática psicanalítica, demonstramos que não se negligencia o universal da norma social e que a proposta de análise com crianças possibilita uma construção que a aproxime da norma civilizatória por meio de tomada de consciência de seu desejo. Constatamos que tal prática prima pela singularidade do sujeito. Em uma análise, o sujeito torna-se ciente do seu desejo, sem, contudo, priorizar, nesse processo, o efeito terapêutico.

 

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Recebido em 22/11/2015

Aceito em 05/05/2016

Endereço para correspondência:

Jane Mara dos Santos Barbosa

Praça Dom Helvécio, 74, Fábricas, São João del Rei-MG CEP 36301-160. janemarapsi@yahoo.com.br. 32 9943-5568.

Wilson Camilo Chaves

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