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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.10 no.2 Juiz de Fora Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.24879/201600100020059 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/201600100020059

 

Gênero, sexualidade e subjetividade: Algumas questões incômodas para a psicologia

 

Gender, sexuality and subjetivity: Some questions uncomfortables for the psychology

 

 

Karen Priscila Lima dos AnjosI; Maria Lúcia Chaves LimaII

IPrograma de Pós - Graduação em Psicologia; Universidade Federal do Pará; Belém.

IIPrograma de Pós - Graduação em Psicologia; Instituto de Ciências da Educação; Universidade Federal do Pará; Belém.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A sexualidade constitui um dos principais dispositivos de controle e produção de subjetividade na sociedade ocidental. Desse modo, acredita-se que seja fundamental para a psicologia, na atualidade, problematizar alguns de seus conceitos basais que organizam a forma como entendemos a constituição dos sujeitos, muitos explicitamente pautados por uma lógica heteronormativa de gênero e sexualidade. O presente trabalho utiliza ferramentas teóricas apresentadas por Michel Foucault e Judith Butler para apontar incômodos epistemológicos e políticos decorrentes de uma adoção acrítica de noções naturalizantes de gênero, sexualidade e subjetividade por parte da psicologia. Ao final, a título de exemplo, apresentamos algumas notas acerca da produção discursiva da diferença sexual em um manual de desenvolvimento humano utilizado nos cursos de formação em psicologia.

Palavras chave: gênero; sexualidade; subjetividade; psicologia.


ABSTRACT

Sexuality is one of the main devices of control and production of subjectivity in western society. Thus, it is believed that is fundamental for the psychology, in the present, to problematize some of the yours basics concepts that organize the form how we understand the constitution of the subjects, many explicitly guided for an heteronormative logic about gender and sexuality. The present work uses theoretical tools presented for Michel Foucault and Judith Butler, to point epistemological and political uncomfortables arising from uncritical adoption of naturalizing notions of gender, sexuality and subjectivity by psychology. At end, for example, present some notes about the discursive production of the sexual difference in a handbook of human development used in psychology graduation courses.

Keywords: gender; sexuality; subjectivity; psychology.


 

 

O presente texto surge do incômodo que as discussões trazidas tanto pelo dispositivo de sexualidade de Michel Foucault quanto da perspectiva performativa de gênero, proposta por Judith Butler, provocam em alguns conceitos clássicos da psicologia, tais como sujeito, indivíduo, subjetividade, fases de desenvolvimento sexual, entre outros. Com tal objetivo, parte-se para um questionamento de alguns “problemas de gênero” (Butler, 2012) enfrentados pela psicologia, buscando chegar a uma proposta de atuação crítica no que tange à produção de conhecimento referente a temas como gênero, sexualidade e seus efeitos de subjetivação no interior dos discursos psi. Como exemplo complementar à problematização empreendida, apresentamos algumas notas a respeito da produção discursiva da diferença sexual em um manual de desenvolvimento humano bastante utilizado nos cursos de graduação em psicologia no Brasil.

 

Sexualidade como um dispositivo de saber-poder-subjetivação

Em nossa sociedade ocidental, encontramos uma proliferação discursiva sobre a temática da sexualidade e do gênero. De acordo com Foucault (2011), a partir do século XVI, as sociedades ocidentais viram surgir e se reforçar uma vontade de verdade que formulou e inscreveu sobre o sexo toda verdade sobre os sujeitos. Em seu projeto genealógico, o autor argumenta que, ao contrário da hipótese de repressão do sexo, do século XVI ao século XIX, o que aparece no interior das sociedades ocidentais industriais é um tipo de dispositivo chamado sexualidade. Este seria um emaranhado de redes discursivas que, ao invés de reprimir, atuaria principalmente com base em procedimentos de produção discursiva e prática de corpos, sujeitos e do próprio sexo. Dessa forma, foi produzido um saber sobre a sexualidade, os corpos, as populações e, de maneira conjunta, a normalização desses elementos.

Desse modo, Foucault (2011) realiza uma série de análises que invertem a lógica a partir da qual geralmente é formulada a temática da sexualidade. Ao invés de tomar essa sexualidade como um dado prévio e natural, o referido filósofo se envolve em pesquisas que buscam mostrar quais relações de poder e estratégias políticas foram postas em prática e tiveram como efeito a produção dessa sexualidade.

Foucault (2011) localiza na confissão, primeiramente como obrigação no cristianismo e posteriormente codificada dentro de uma linguagem científica, o principal mecanismo por meio do qual a sociedade ocidental vinculou o tema da sexualidade ao tema da verdade. Contudo, não se trata de qualquer verdade, mas a verdade sobre o sujeito, ou seja, dizer a verdade sobre seu sexo passou a ser tomado como sinônimo de dizer a verdade sobre si. Assim, surge todo um jogo de esquadrinhamento e incitação dos corpos, no nível dos pensamentos, dos gestos, dos comportamentos e do desejo. Para Foucault (2011), o dispositivo de sexualidade foi se constituindo, desde o século XVIII, como um ponto crucial da grande rede discursiva que age sobre e através de nossos corpos.

No texto “Sexualidade e poder”, Foucault (2012b) estabelece a diferença entre sua formulação da história da sexualidade em relação a outras formas de estudar o saber sobre a sexualidade como, por exemplo, a psicanálise. O principal está em não aceitar apenas a formulação geral sobre a sexualidade gerada no século XIX, com o fenômeno amplo da histeria; isto é, não formular a sexualidade apenas como o “[…] desconhecimento pelo sujeito de seu próprio desejo” (p. 57), que seria ainda uma dimensão individual de análise. Todavia, ir além nessa investigação sobre o saber sobre a sexualidade e ponderar a própria superprodução social e cultural sobre a sexualidade que se instaurou desde - e mesmo antes - desse período histórico.

Percebe-se como a análise de Foucault a respeito da sexualidade a demonstra desalojada de um caráter substancial e essencialista, pois não existe uma “coisa em si” relativa à sexualidade que determinaria nossos pensamentos, comportamentos ou desejos. A sexualidade não estava lá como um objeto a ser descoberto por algum tipo de intencionalidade. A sexualidade, de acordo com Foucault, surge em um jogo de ordem discursiva. Por outro lado, admite-se que esses discursos sobre o sexo não se encontram regidos unicamente por um tipo de regime pautado na evolução lógica dos conceitos empenhados para falar sobre o sexo. Entre as palavras utilizadas para representar a sexualidade como coisa natural e os efeitos de se assumir um sujeito, o qual, ao falar, revela a verdade da sexualidade, existe um feixe de relações bem mais amplo. Essas outras relações corresponderiam àquelas que Foucault denomina propriamente “discursivas”: as que se pode estabelecer entre as relações de formação de um objeto, no caso, a sexualidade, e as relações que estabelecem o que, quem, quando, de que forma se pode falar e o que não se pode falar a respeito desse objeto (Foucault, 2014).

Dessa forma, analisar a sexualidade como um dispositivo1 significa, além de considerar a sexualidade como produto de uma formação discursiva, também inserir nesse estudo os efeitos políticos dessa formação discursiva e as estratégias de poder-saber que a sustentam, modificam e reforçam. Ou seja, significa ampliar o raio de análise para as práticas e não apenas os discursos.

Certamente, a sexualidade não é o único meio de discutir e desvendar as estratégias de poder-saber em nossa atualidade, contudo, permanece um local privilegiado de visualização e análise dessas estratégias, uma vez que a sexualidade se constituiu em um ponto extremamente denso de articulação de elementos dessa grande rede de discursos e práticas que atravessa o cotidiano de nossas relações. É também um dispositivo estratégico valioso para efeitos de controle, tanto no nível individual e disciplinar quanto em um nível mais abrangente, como o dos fenômenos de população.

Portanto, longe de representar uma realidade alheia aos jogos de poder econômicos, sociais, culturais, políticos, existentes em nossa sociedade, a sexualidade é um dos principais pontos de articulação dessas relações de poder dispersas. Simultaneamente, a sexualidade é efeito e causa dessa vontade de saber que nos obriga à tarefa ininterrupta de falar a verdade sobre nosso sexo.

Nesse sentido, torna-se irrevogável para a psicologia a tarefa de problematizar sua participação nesse processo. A recorrência à história genealógica da formação dos saberes psi demonstra o quanto tais saberes se encontram atrelados a essa lógica que busca no interior dos sujeitos, na produção de discursos sobre si e sobre a sexualidade, as condições de possibilidade para sua emergência como disciplina científica.

Para exemplificar essa análise das relações de poder, Foucault (2010) nos remete a algumas lutas sociais mais recentes, como as ocorridas quanto às questões das hierarquias de gênero e da doença mental. O autor elenca algumas características que essas lutas possuem em comum, dentre as quais estão aquelas que acredita serem suas críticas mais originais: crítica ao estatuto do indivíduo, aos efeitos de poder-saber e às técnicas de poder de submissão da subjetividade, ou formas de sujeição. Essas lutas recentes contestam, sobretudo, o que Foucault denomina o “governo da individualização”. Portanto, são lutas que reivindicam o direito à diferença, direito a ser um indivíduo “verdadeiramente individual” e não apenas uma existência obrigada a se reconhecer nos limites da noção de identidade ou da representação abstrata de um sujeito universal cognoscente.

Para Foucault, as lutas de seu tempo estabelecem uma crítica fundamental a determinadas relações de poder que articulam imanentemente saber-poder-subjetivação e possuem como efeito a nossa invenção enquanto “sujeitos”, entendendo este último termo na dupla acepção indicada pelo escritor: sujeitados ao controle do outro e ao controle de nós mesmos pela obrigação da identidade e do autoconhecimento (Foucault, 2010, p. 277-278).

 

Butler e alguns “problemas de gênero”

Judith Butler (2012), partindo dessa visão de sexualidade enquanto um dispositivo discursivamente constituído e politicamente condicionado por meio das relações de poder, insere-se no debate feminista que realiza a crítica sobre o sujeito e questiona as bases que limitam as condições de emergência desse sujeito, sob o signo da representação. Além disso, a autora argumenta que, de fato, não existe em nossa sociedade um sujeito que não sofra desde o nascimento a marca do gênero, quer dizer, que não seja generificado. Tal existência seria da ordem do irrepresentável.

Butler (2012) faz uso de uma inversão no debate feminista sobre a categoria de gênero, com base em seus questionamentos e problematizações. Ao invés de tomar a divisão binária existente entre “gêneros feminino e masculino” como um dado prévio, a autora busca realizar uma genealogia feminista da categoria de gênero, com a finalidade de expor e desconstruir sua suposta naturalidade. Nesse sentido, lança mão de um conceito de gênero performativo, ou seja, não entende o gênero como um conjunto de elementos essencialmente ligados à natureza dos corpos, nem apenas como um conjunto de características culturalmente impostas.

Conforme Butler (2012), o gênero e sua divisão binária são performativamente constituídos no sentido em que só existem a partir do momento mesmo de sua expressão. Dessa maneira, o gênero não estaria ligado a uma essência atemporal de um determinado corpo ou alma, mas é construído a todo o momento pela repetição de uma performance estilizada de feminilidade e/ou masculinidade.

Butler (2012) elabora uma crítica radical e contundente à formulação de um conceito fundamental para a história do movimento feminista, qual seja, o próprio conceito de gênero. Contudo, a autora não o faz com fins de dissolver o movimento feminista. Ao contrário, sua contumaz crítica interna é realizada exatamente na perspectiva de potencialização política do movimento feminista, em contraposição ao seu processo de cristalização pautado pelo enraizamento de suas ações em determinadas formulações essencialistas do conceito de gênero.

Nesse sentido, Butler (2012) questiona a suposta necessidade de regularidade e coerência da categoria “mulheres” (assim mesmo, no plural) como essencial para o alcance dos objetivos políticos do movimento feminista. Primeiramente, pela própria noção que orienta a busca de um sujeito uno e coerente: a noção de representação. Isto é, quando se admite previamente a representação como fundamento para a legitimação de um sujeito jurídico2, e quando a existência deste é condição sine qua non para o empreendimento de ação política. O apelo a uma identidade unificadora das demandas e opressões vividas pelas “mulheres” é uma estratégia política que se encontra atrelada à obrigação da representatividade. Quando a política é tomada nesses termos, tem-se que, desde o momento de partida, as regras do jogo estão limitadas por princípios de uma formação discursiva a qual tem por base mecanismos de exclusão. Desse modo, para que se possa ser representado, é necessário que se atenda às exigências requeridas para ser reconhecido enquanto sujeito.

Butler (2012) recorre à noção de poder desenvolvida por Foucault, o que significa dizer que a autora admite que as relações de poder operam não apenas em nível repressivo, mas também produtivo. Ou seja, a política representacional não traduziria em termos políticos sujeitos pré-existentes, porém, ao delimitar as exigências de formação e reconhecimento de sujeitos, ocorre que estes apenas podem existir em conformidade com essas exigências. Portanto, os sujeitos são produto dessas regras. Desse modo, Butler alerta para a função normativa da linguagem de estabelecer aquilo que é verdadeiro ou não a respeito da categoria “mulheres”.

O terceiro problema, talvez este o mais grave, pode ser exposto por meio dos seguintes questionamentos: existiria mesmo algo essencialmente feminino, em oposição ao mundo masculinista? Ou tal oposição e binarismo de gênero apenas fariam sentido dentro de uma perspectiva epistemológica presumivelmente heterossexual? Até que medida essa estratégia de política representacional adotada pelo movimento feminista não traria consigo a controversa consequência de reificar as normas de relações de gênero até então instituídas?

Nesse sentido, Butler (2012) retoma a questão da cisão introduzida à noção de sujeito do feminismo, a partir da elaboração do conceito de gênero diferencialmente ao de sexo. Inicialmente elaborada como forma de contraposição política à máxima de que “a biologia é o destino”, o conceito de gênero,quando compreendido como interpretação cultural do sexo, traz alguns problemas, se o levarmos à sua radicalidade lógica. Em seu extremo, ao ser compreendido como interpretação cultural sobre um corpo sexuado binariamente, nada garantiria a priori que essa interpretação devesse se manter limitada ao número de dois, podendo haver tantos gêneros quanto a diversidade cultural humana ensejasse. Da mesma maneira, se esse gênero guardasse a liberdade interpretativa, poderia ocorrer de que os termos “mulher” e “feminino” se remetessem tanto a corpos femininos quanto masculinos, bem como os termos “homem” e “masculino” poderiam ser aplicados a qualquer corpo, independentemente do sexo com o qual fosse designado (Butler, 2012).

Contudo, sabe-se que não vivenciamos tamanha pluralidade em nossas classificações de gênero. Permanecemos presos à norma binária, em uma espécie de mimetismo do sexo. Isso nos conduz a uma série de outros problemas apontados por Judith Butler, a respeito do conceito de gênero: “Podemos referir-nos a um ‘dado’ sexo ou a um ‘dado’ gênero, sem primeiro investigarmos como são dados o sexo e/ou gênero e por que meios?” (p. 25).

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma (Butler, 2012, p. 25).

Assim, questionado em suas bases naturalizadas e descortinado em sua perspectiva política de construção, tem-se um sexo também desconstruído em sua binariedade e em sua falácia pré-discursiva e apolítica. Foucault (2011) já havia argumentado a respeito desse jogo “performativo” do discurso, que advoga como causa algo que seria efeito. Para o referido autor, o sexo seria, talvez, o elemento mais fictício do dispositivo de sexualidade. E tais análises de cunho mais epistemológico e estratégico-político ganham ressonância em trabalhos como de Laqueur (2001), que traça uma linha histórica de construção discursiva do próprio sexo biológico como o entendemos atualmente.

Desse modo, para Butler (2012), a própria noção de “pessoa” se veria questionada, pois esta é tomada no interior do discurso filosófico como uma constância que independe do tempo, lugar e contexto social; porém, como demonstrado, só possui sua completa significação a partir de uma associação não admitida com relação ao padrão de inteligibilidade de gênero. Então, como conceber “pessoas”, cujo padrão em relação ao gênero não se mostra “idêntico a si mesmo”, “persistente ao longo do tempo”, “unificado” e “internamente coerente”?

A existência de um padrão de linearidade e coerência interna entre sexo, gênero, prática sexual e desejo apenas pode existir (e persistir) baseando-se em uma visão do sexo enquanto substância. Entretanto, de acordo com Butler (2012, p. 40), “[…] essa aparência se realiza mediante um truque performativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que ‘ser’ um sexo ou um gênero é fundamentalmente impossível”.

Tal crítica nos remete a um questionamento muito relevante e desestabilizador para a psicologia, em suas bases epistemológicas. Ao discutir a temática da metafísica da substância e sua origem nietzschiana, Butler (2012) nos apresenta o seguinte comentário de Michel Haar:

A destruição da lógica por meio da genealogia traz consigo a ruína das categorias psicológicas fundamentadas nessa lógica. Todas as categorias psicológicas (ego, indivíduo, pessoa) derivam da ilusão da identidade substancial. Mas essa ilusão remonta basicamente a uma superstição que engana não só o senso comum mas também os filósofos - a saber, a crença na linguagem e, mais precisamente, na verdade das categorias gramaticais. Foi a gramática (a estrutura de sujeito e predicado) que inspirou a certeza de Descartes de que “eu” é o sujeito de “penso”, enquanto, na verdade, são os pensamentos que vêm a “mim”: no fundo, a fé na gramática simplesmente traduz a vontade de ser a “causa” dos pensamentos de alguém. O sujeito, o eu, o indivíduo, são apenas conceitos falsos, visto que transformam em substâncias fictícias unidades que inicialmente só têm realidade linguística (Butler, 2012, p. 43).

Com base nesse conjunto de críticas, Butler (2012) desconstrói a base substantiva sobre a qual se erigiu grande parte das formulações feministas a respeito da categoria de gênero, bem como o apelo à lógica da representação como finalidade da política feminista. Ao inverter a ordem sobre a qual geralmente se formulam as indagações sobre gênero e abdicar a uma busca de origem/causa, a autora apresenta sua elaboração de gênero performativo. Ou seja, que não se apoia em um antes pré-discursivo, em uma estabilidade persistente ao longo do tempo ou uma unidade supostamente necessária.

Reelaborando uma formulação nietzschiana, Butler (2012) afirma, como corolário: “[…] não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seu resultado” (p. 48).

Ao problematizar determinadas concepções políticas e teóricas sobre gênero, a autora evoca a concepção de poder foucaultiana para argumentar a respeito da impossibilidade de existência de subversão das normas de gênero “fora” do jogo instituído dessas mesmas normas, bem como para questionar o status da norma a partir de outra característica fundamental na analítica de poder foucaultiana: seu caráter produtivo. Tomar essa característica como princípio para uma análise da sexualidade e do gênero faz com que se levem em consideração os efeitos inintencionais das normas e que se considerem os esquemas predeterminados de inteligibilidade sexual para além de um movimento eterno e linear de repetição. Nessa perspectiva, abre-se espaço para que, “por dentro” das mesmas normas, possam surgir configurações de sexualidade e gênero as quais se apresentem como uma forma de repetição desesquematizante, como repetições que produzam outros modos de inteligibilidade sobre sexualidade e gênero.

Com essa problematização, temos que a homossexualidade não é para a heterossexualidade algo como uma cópia malsucedida de um modelo original, mas sim “[…] o que uma cópia é para uma cópia” (BUTLER, 2012, p. 57). Em outros termos, a heterossexualidade nada mais seria que uma tentativa demasiado repetitiva de se aproximar de um esquema ideal - e, portanto, inatingível - de inteligibilidade cultural de gênero, esquema que arbitrariamente estabelece linearidade a determinada montagem de atributos de gênero selecionados por meio de uma multiplicidade de relações de poder. Destarte, para Judith Butler, “heterossexualidade” e “homossexualidade”, “feminino” e “masculino”, “mulher” e “homem”, bem como suas respectivas oposições, possuem tanto o papel de feitos quanto de efeitos, pois de acordo com a formulação da autora,

[…] gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser (Butler, 2012, p. 59).

 

A Psicologia e seus “problemas de gênero”

A psicologia, embora possua a sexualidade como uma de suas temáticas centrais, mostra-se arredia frente a uma discussão franca sobre seu papel, no que tange a debates como produção da diferença sexual, identidade de gênero e diversidade sexual. A psicologia é um dos discursos que atravessa fortemente as verdades elaboradas até hoje a respeito da homossexualidade, por exemplo. Desde as teorias de desenvolvimento e suas “explicações” para a diferenciação entre heterossexualidade e homossexualidade, as quais trazem em seu bojo as noções de normalidade e anormalidade, passando por seu papel fundamental no aferimento de “diagnósticos” de transexualidade e por seu histórico aparato de “terapias de tratamento” desta. Ainda hoje, passados mais de quinze anos de a resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) referir-se diretamente à forma de proceder das psicólogas e psicólogos diante de orientações sexuais diversas da heterossexualidade, e afirmar não serem estas patologias nem distúrbios, não é difícil perceber que as práticas de alguns destes/as profissionais estão ainda impregnadas por um tipo de concepção repleta de preconceitos (Conselho, 2011).

E, em parte dos casos, quando tais práticas não contêm esse teor discriminatório, isso não ocorre por força de conhecimento sobre o tema ou por concordar que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (Conselho, 1999), mas sim como mero respeito à norma, como atitude “politicamente correta” que condena a homofobia sem saber porque fazê-lo (Conselho, 2011).

O questionamento a respeito das noções estáveis de sexo e gênero, juntamente com a referência à construção da sexualidade como um dispositivo histórico, introduzem um movimento ulterior, de crítica a alguns conceitos e noções que constituem pilares da formação do discurso psicológico. Os problemas de gênero de Judith Butler nos desafiam a formular alguns “problemas de gênero para a psicologia”, por exemplo: como repensar as categorias de sujeito, eu, indivíduo e pessoa presentes nas principais metateorias psicológicas, com base na crítica feminista de gênero? Deveriam os conceitos derivados por essas teorias ter seu status de validade científica redimensionado ou ressignificado, ao se considerar a ruína de suas noções fundamentais? Até que ponto a psicologia e suas correntes teóricas mais difundidas se encontram comprometidas com uma perspectiva engendrada pela norma heterossexual de gênero e sexualidade? Haveria condição de possibilidade para a emergência de uma psicologia que não fosse binária e oposicionalmente generificada?

Não são as respostas a essas perguntas que valem nossa atenção, contudo, a simples plausibilidade lógica de suas formulações. A atual impossibilidade de respondê-las a contento, por meio de alguma das “grandes teorias” psi, coloca esse saber em xeque. Desse modo, revela-se a importância da emergência, no interior do discurso psicológico, de um debate mais aprofundado e politicamente crítico sobre as funções exercidas pela lógica normativa de gênero em nossa sociedade e das consequências de uma utilização acrítica dessas normas pelo discurso psicológico.

Nesse sentido, acreditamos que pesquisas que buscassem cartografar a diversidades de devires minoritários e expor a fluidez da vida, da multiplicidade de sujeitos, frente às normativas de gênero e sexualidade, constituiriam um dos modos possíveis de trazer à produção de conhecimento em psicologia maior positividade, no que tange à sua participação e compromisso social no combate ao preconceito e à discriminação. Assim, cremos que um passo fundamental nesse processo de reflexão crítica da psicologia consistiria em rever, reformular e problematizar alguns de seus conceitos basais que organizam a forma como entendemos a constituição dos sujeitos, muitos deles explicitamente pautados por uma lógica heteronormativa de gênero e sexualidade.

A importância deste direcionamento para as pesquisas em psicologia está em interrogar o cerne da questão a respeito dos moldes de sociedade que vivenciamos, entendendo-a como uma sociedade na qual o controle sobre o corpo e a sexualidade se traduzem na produção de identidades estanques que engessam as possibilidades de singularidades outras, dentro de um padrão de conduta pré-fixado. Simultaneamente, esses padrões relegam as resistências a esse padrão heteronormativo para uma localização marginal e tida como abjeta na sociedade, ocasionando preconceito, discriminação e decorrente sofrimento psíquico.

Para complementar os questionamentos teóricos apresentados, e como exemplo desse esforço a ser empreendido nos mais diversos campos de estudos em psicologia, trazemos algumas notas críticas a respeito de formulações presentes em uma de suas áreas consagradas, a saber, a psicologia do desenvolvimento.

O livro Desenvolvimento Humano (Papalia, Olds & Feldman, 2006) é um dos mais adotados nos cursos de graduação em psicologia do Brasil, nas disciplinas destinadas à área da psicologia do desenvolvimento. O capítulo 8 do livro em questão trata do desenvolvimento psicossocial na segunda infância, delimitada como o período entre os 3 e 6 anos de idade. Logo na apresentação do capítulo, encontramos uma afirmação que pode ilustrar o debate teórico realizado nos tópicos anteriores: “À medida que o autoconceito das crianças se fortalece, elas aprendem a que sexo pertencem e começam a agir de acordo com isso” (Papalia, Olds & Feldman, 2006, p. 314).

Não é por coincidência que um subtópico específico sobre gênero esteja incluído nesse capítulo, que tem como principal tema o desenvolvimento do “Eu”. A frase citada nos mostra como o autoconceito ou “a imagem que temos de nós mesmos” é exposta como tendo uma formação que independe do sexo e da forma de agir; além disso, também deixa explícita a noção de que devemos “pertencer” ao sexo e agir “de acordo” com ele.

Outra frase importante: “As diferenças de gênero são diferenças psicológicas ou comportamentais entre os sexos” (Papalia, Olds & Feldman, 2006, p. 320). Esta deixa clara a referência ao biológico, ao sexo naturalizado, como determinante para a formulação do conceito de gênero a ser usado e como fundamento para a elaboração de diferenças psicológicas. Como se existisse uma linha de continuidade entre sexo, gênero e psicologia. Entretanto, em momento algum essa continuidade é assumida, exatamente por ser encarada como um pressuposto que não tem motivos para ser problematizado.

E, ao se ter a referência ao biológico como pressuposto, inevitavelmente os problemas que se formulam estão ligados a uma lógica binária e oposicional de gênero, cujo principal interesse é fomentar a produção de diferença por meio do referente sexual, tais como: “Que diferenças existem entre meninos e meninas? O que causa essas diferenças? Como as crianças desenvolvem a identidade de gênero? Como isso influencia suas atitudes e seu comportamento?” (Papalia, Olds & Feldman, 2006, p. 320).

No capítulo que tomamos para este breve exemplo, são feitas algumas abordagens sobre o desenvolvimento de gênero, as quais variam entre a consideração exclusiva de fatores biológicos (como massa cerebral e quantidade de hormônios) até aquelas que levam em consideração a socialização das crianças. Em relação a essas abordagens, embora exista uma vaga possibilidade assumida de que as diferenças de gênero sejam socialmente construídas, percebe-se que a questão do binarismo e oposição entre gêneros não é questionada em momento algum. Ao contrário, essa noção binária e oposicional de gênero serve de pressuposto para o estudo do desenvolvimento humano.

Outro ponto não problematizado no referido livro diz respeito à formação discursiva do sexo e à suposta continuidade entre sexo e gênero. Mesmo quando as abordagens se baseiam na socialização das crianças para explicar as diferenças sexuais, estas dispensam de suas análises o debate mais amplo a respeito de como as normas de gênero e sexualidade aprendidas pelas crianças em sua socialização são produzidas em relação a seu contexto histórico, econômico e político. Ou seja, essas normas são naturalizadas no que se refere ao desenvolvimento do gênero. E é a partir da referência a tais formulações que muitas/os futuras/os profissionais de psicologia irão orientar suas práticas, seja na pesquisa ou em outras áreas de atuação.

Obviamente, não afirmamos que exista uma linha de causa e feito determinista que impeça a reorientação das práticas cotidianas informadas pelos postulados gerais que se tem hoje construídos pelos saberes psi. Entretanto, acreditamos que este breve exemplo seja pertinente para demonstrar o incômodo causado pela presença de noções naturalizantes de sexo e gênero nestes postulados, bem como dizer do embaraço causado pela não problematização destes termos.

 

Considerações sobre o presente

Em contraposição à perspectiva expressa nesse manual empregado nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia, as pesquisas em psicologia deveriam começar a utilizar a prerrogativa da construção performativa de gênero como um pressuposto epistemológico (como sugerido por Butler) e reverter o sentido das perguntas de pesquisa até então formuladas. Talvez, uma atitude de pesquisa mais interessante ética e politicamente fosse perguntar: como nos constituímos enquanto sujeitos diante dos discursos que marcam nossos corpos a partir de uma noção generificada, binária e oposicional? Que atos performativos são postos em prática, na produção de corpos e gêneros objetivados entre o cabo de força do feminino e do masculino? Como realizamos a dobra dessas forças? Essa luta binária seria tão rígida a ponto de impedir o trânsito entre feminilidade e masculinidade? Ou seriam nossos olhos viciados pela norma de gênero que nos cegariam em relação a outras experiências de gênero mais plurais e flexíveis?

Por essa perspectiva apresentada, o próprio sentido do ato de conhecer é ressignificado, pois não se traduz como representação de uma realidade pré-existente e apartada, mas assume que tanto sujeito quanto objeto são produzidos a partir desse ato. Portanto, a noção da criação se torna inseparável do ato de conhecer, bem como da ideia de que por meio deste produzimos a realidade e também nossa subjetividade. Em função disso, torna-se premente a questão do compromisso ético e político implicados no processo de produção do conhecimento, o que nos remonta ao direcionamento e rigor da pesquisa; esta não pode ocorrer à revelia da análise das implicações inerentes a todo processo de produção de conhecimento (Passos & Barros, 2009).

Proceder essa crítica se apresentou como uma das principais pretensões deste trabalho, remetendo aos apontamentos de Foucault quanto ao uso que se deve fazer de uma teoria, assim como da exigência de que esta esteja em consonância com o questionamento da atualidade, do trabalho constante de questionar “[…] o que estamos deixando de ser com o que estamos nos tornando” (Foucault, 2012a). Quer dizer, indicando que a produção de saber apenas adquire sentido de resistência à dominação, quando assume para si o compromisso de atuar efetivamente no processo de produção de subjetividades no qual, inevitavelmente, se insere.

Em contrapartida, acredita-se que a análise desses discursos e práticas deverão possuir o potencial de expor a conjugação das formas atuais das linhas de força, fazendo com que surjam desse empreendimento também as possibilidades de resistência e de singularização. Ou seja, de transposição desses modelos prévios de indivíduo (e, por extensão, de gênero) que se voltem para um movimento de composição dessas forças sob um padrão heterogêneo em suas manifestações.

A produção de conhecimento é igualmente uma luta política. Reconhecer a fluidez da sexualidade e seu caráter de composição histórico, político e não essencialista é uma tarefa contemporânea que deve ser empreendida por todas as psicologias, considerando sua diversidade e extensão de áreas de atuação profissional e produção de conhecimento. Do contrário, a referência a um padrão binário e oposicional de gênero e a um esquema pressuposto de continuidade e coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo continuará a servir de fundamento para posicionamentos discriminatórios. Pois, como assistimos atualmente em muitos palcos políticos institucionalizados, por vezes a discriminação busca no saber da psicologia as armas a serem utilizadas para eliminar as pessoas que ousem viver suas vidas em contraponto às normas aprisionadoras de nossas existências.

 

Referências

Butler, J. (2012). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo, SP: Civilização Brasileira.

Conselho Federal de Psicologia (1999). Resolução CFP n° 001/99 de 22 de março de 1999 - Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Recuperado em 10 de maio de 2016 de <http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>         [ Links ].

Conselho Federal de Psicologia. (2011). Psicologia e Diversidade Sexual: desafios para uma sociedade de direitos. Brasília, DF: CFP.

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Recebido em 10/06/2016
Aceito em 18/10/2016

Endereço para correspondência:
Maria Lúcia Chaves Lima
Universidade Federal do Pará, Rua Augusto Corrêa, 01
Campus Universitário do Guamá, Setor Profissional, Instituto de Ciências da Educação, Guamá - Belém - Pará
CEP 66075-110
E-mail: marialuciacl@gmail.com

1Nas palavras de Foucault (2012a, p. 364), o dispositivo seria: “[…] em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos”.

2Não confundir este termo com o jargão profissional utilizado no campo do Direito. Quando Butler (2012) utiliza a expressão “sujeito jurídico” ela o faz tendo como referência as “noções jurídicas de poder” (p. 18), tal como apresentadas por Foucault no último capítulo de História da Sexualidade. Ou seja, a autora se contrapõe à noção de pura repressão ou de mera determinação do lícito e ilícito por parte das estruturas jurídicas. Para Foucault (2011), a partir do século XIX, isto significa dizer “[…] que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras” (p. 157). Butler (2012) assume como postulado a formação dos sujeitos a partir de tais estruturas jurídicas e de suas normas e regulações, portanto, seriam estes “sujeitos jurídicos”, sujeitos produzidos pelas normas.

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