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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.11 no.1 Juiz de Fora jun. 2017

http://dx.doi.org/10.24879/2017001100100210 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/2017001100100210

 

Aron Gurwitsch, intérprete de Kurt Goldstein: a intencionalidade categorial*

 

Aron Gurwitsch as interpreter of Kurt Goldstein: the categorial intentionality

 

 

Hernani Pereira dos SantosI; Danilo Saretta VerissimoII

IDiscente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, São Paulo.

IIDocente do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Aron Gurwitsch foi um filósofo lituano que se esforçou em aproximar as pesquisas fenomenológicas das pesquisas científicas da Psicologia da Gestalt. Neste trabalho, analisa-se a sua interpretação da obra do médico alemão Kurt Goldstein. Inicialmente, abordam-se as análises de cunho epistemológico que Gurwitsch desenvolve a respeito da biologia goldsteiniana, tendo-se como eixo o conceito de “organismo”. Em seguida, trata-se da utilização por parte de Gurwitsch da distinção operada por Gelb e Goldstein entre a atitude concreta e a atitude categorial. Por fim, discutem-se alguns desdobramentos e algumas repercussões da interpretação gurwitschiana a respeito da obra de Goldstein. Essas análises guiam-se pelo fio-condutor da distinção entre um nível de intencionalidade perceptiva e um de intencionalidade categorial.

Palavras-chave: ideação; intencionalidade; fenomenologia; atitude categorial; Aron Gurwitsch; Kurt Goldstein.


ABSTRACT

Aron Gurwitsch was a Lithuanian philosopher who endeavored to approximate phenomenological research and scientific research of Gestalt psychology. In this paper, we analyze his interpretation of the work of the german physician Kurt Goldstein. Initially, we approach Gurwitsch’s epistemological analyses of goldsteinian biology, having as axis the concept of “organism”. Then, we analyze the use by Gurwitsch of the distinction made by Gelb and Goldstein between concrete and categorial attitude. Finally, we discuss some developments and some repercussions of Gurwitsch’s interpretation of the work of Goldstein. These analyses are guided by the leading idea of the distinction between two levels of intentionality, perceptual and categorial.

Keywords: ideation; intentionality; phenomenology; categorial attitude; AronGurwitsch; Kurt Goldstein.


 

 

Aron Gurwitsch (1901-1973) foi um filósofo lituano reconhecido por seus esforços em aproximar as pesquisas fenomenológicas husserlianas das pesquisas científicas da Psicologia, mais particularmente da Psicologia da Gestalt. A sua biografia (Embree, 2009) ilustra uma ampla formação filosófica e científica e um profundo interesse tanto pela fenomenologia quanto pela pesquisa empírica em Psicologia. No início de sua formação, estudou sob a tutela de Carl Stumpf (1848-1936), em Berlim, que o indicou para continuar seus estudos em Göttingen, com Edmund Husserl (1859-1938). Devido a problemas burocráticos, optou por se estabelecer em Frankfurt, onde conheceu e trabalhou com o médico alemão Kurt Goldstein (1878-1965) e o psicólogo Adhémar Gelb (1887-1936), cujos estudos com pacientes com lesões cerebrais possuem reconhecida importância na área da neuropsicologia e, em particular, na área de estudos sobre a linguagem. A influência dos estudos de Goldstein e Gelb sobre Gurwitsch se faz notar em suas recorrentes referências aos autores ao longo de toda a sua obra.

Após ter defendido a sua tese em 1928, intitulada Fenomenologia da temática e do ego puro (Gurwitsch, 1929/2009a), e tendo enviado-a para Husserl, Gurwitsch iniciou uma relação próxima com o fenomenólogo alemão, visitando-o com frequência. Com o subtítulo Estudos da relação entre teoria da Gestalt e fenomenologia, a tese já apresenta um traço que distingue o pensamento de Gurwitsch: trata-se, como o comenta Pintos (2005, p. 156), da “atitude que consiste em se voltar para as ciências e buscar, nelas, coincidências com a filosofia fenomenológica”. Trata-se de uma aproximação entre fenomenologia e ciências, em especial as ciências humanas.

A teoria da Gestalt, tal como desenvolvida pela Escola de Berlim, fornece o material para Gurwitsch operar um estudo crítico da fenomenologia e da própria psicologia de sua época. O estudo da fenomenologia e o estudo da psicologia demonstram estar, para Gurwitsch, interconectados de maneira essencial. As duas pesquisas movem-se juntas. Mas, para esta interconexão essencial ganhar um sentido no interior do domínio fenomenológico, Gurwitsch deve adotar uma postura diferente da postura de Husserl. Afinal, em seu “Epílogo” às Ideias diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica puras, Husserl (1931/1989) havia descartado o significado da psicologia da Gestalt para uma “psicologia descritiva”, isto é, para uma psicologia fenomenológica. Em um estudo crítico do “Epílogo” de Husserl, Gurwitsch (1932/2009b) reafirma a importância da teoria da Gestalt para a fenomenologia e estende os domínios de investigação científica que possuem significância para a fenomenologia. O autor inclui neste rol trabalhos que não se limitam ao “homem adulto normal civilizado” (Gurwitsch, 1932/2009b, p. 126), como os de Köhler sobre os animais, de Koffka e Lewin sobre a criança, de Gelb e Goldstein sobre os pacientes com lesões cerebrais e os de Lévy-Bruhl sobre a mentalidade primitiva.

Com este cenário em vista, temos por objetivo analisar os comentários e a interpretação de Gurwitsch a respeito da obra de Kurt Goldstein. Abordamos, inicialmente, as análises de cunho epistemológico que Gurwitsch desenvolve a respeito da biologia goldsteiniana, centrada na noção de “organismo”. Em seguida, tratamos da utilização, por parte de Gurwitsch, da distinção operada por Gelb e Goldstein entre a atitude concreta e a atitude categorial. Por fim, discutimos alguns desdobramentos e algumas repercussões da interpretação gurwitschiana a respeito da obra de Goldstein.

 

Gurwitsche a biologia de Goldstein

Dois dos primeiros artigos escritos por Gurwitsch em francês foram dedicados, especificamente, à biologia de Goldstein: O funcionamento do organismo segundo K. Goldstein (Gurwitsch, 1939)e A ciência biológica segundo K. Goldstein (Gurwitsch, 1940/2009c). Nestes dois trabalhos, Gurwitsch baseia-se, principalmente, na grande obra sistemática do médico alemão, intitulada A estrutura do organismo (Der Aufbaudes Organismus) e publicada, pela primeira vez, em 1934 (Goldstein, 1934/1983). Nesses artigos, não encontramos uma interpretação sistemática da obra de Goldstein à luz do projeto fenomenológico de Gurwitsch. Eles consistem, antes, em uma apresentação comentada, em profundidade, da obra de Goldstein ao público francófono e que gira em torno da análise de um contexto intelectual perpassado por uma importante discussão epistemológica. Goldstein é apontado por Gurwitsch como uma figura central no cenário da biologia da sua época e cuja obra representaria uma verdadeira transição de paradigma no que concerne à concepção geral de biologia e, mais especificamente, de organismo. A biologia de Goldstein evidencia uma crítica ao ideário clássico a respeito do fenômeno biológico. Trata-se, nela, de denunciar a concepção mecanicista, baseada na noção de reflexo, e de propor, em seu lugar, uma visão globalista, holista, ou, como o diz o próprio Goldstein (1934/1983), “organísmica”, baseada na concepção de que o fenômeno biológico está sempre vinculado à totalidade do organismo.

Conforme Gurwitsch (1940/2009c), na concepção clássica, mecanicista, o organismo é compreendido como um composto de partes mecânicas elementares, independentes umas das outras, e a vida do organismo é explicada por meio da cooperação desses mecanismos elementares. O conhecimento do organismo como um todo repousa, em suma, no conhecimento de suas partes e de suas funções específicas. O fenômeno vital, por sua vez, repousa estritamente na noção de reflexo, isto é, na noção de que as ações dos órgãos receptivos isolados dependem exclusivamente de estimulação local. De tal forma, às ciências da vida caberia construir a vida do organismo a partir dos reflexos (Gurwitsch, 1940/2009c).

A concepção de biologia de Goldstein demonstra as dificuldades dessa concepção. As funções dos centros regulatórios de nível superior, que se supõem necessários para coordenar os múltiplos reflexos e garantir a cooperação dos mecanismos elementares isolados, revelam-se como hipóteses ad hoc, e a complexidade que se erige da necessidade de estabelecerem-se sempre novos mecanismos de regulação superior leva à superposição de hipóteses que são mutuamente incompatíveis. A biologia, com isso, perde em unidade. Ao lidar com os níveis superiores de organização, a biologia é levada a uma regressão infinita. Goldstein (1934/1983) propõe, então, o abandono da direção tradicional da pesquisa biológica, que parte do nível de regulação mais baixo ao mais alto, e que começa dos fatos simples para chegar aos fatos chamados complexos. O início da pesquisa biológica passa a ser o próprio organismo, enquanto unidade global, em vez da “desconcertante multiplicidade de dados particulares observados que dizem respeito a um organismo” (Gurwitsch,1940/2009c, p.78).

A concepção de organismo que Goldstein (1934/1983) leva adiante é, pois, a de uma “totalidade centralizada” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.78). Por mais que o organismo seja composto de partes articuladas entre si, isto é, membros, órgãos e sistemas de órgãos, ele não se compõe por sua mera justaposição. “O organismo total”, segundo Gurwitsch (1940/2009c, p.78), “não é a ‘soma’ formada de suas partes, tampouco ele se estabelece como oposto a estas partes no sentido de estar em um nível superior com relação a elas”. Não há tensão entre o organismo e seus órgãos, como se o organismo fosse uma realidade de nível superior. “Na verdade”, escreve Gurwitsch (1940/2009c, p.78), “o organismo não é diferente do sistema total articulado e centralizado de suas partes”. Cada manifestação vital do organismo relaciona-se essencialmente ao organismo como um todo. O que é característico da atitude de Goldstein (1934/1983) é não partir de dados isolados considerados como absolutos, nem da interdependência e reciprocidade das ações dos órgãos isolados, mas do estado concreto atual do organismo como um todo. E, mesmo quando uma ação ou reação é realizada por um ou alguns órgãos, o organismo, considera-o Goldstein (1934/1983), está engajado nelas como um todo. Por este motivo, em vez de tornar-se primordial o conhecimento das reações isoladas das partes do organismo, como na teoria do reflexo, torna-se necessário, antes de tudo, conhecer as condições do organismo para a ação, aquelas condições nas quais ele se encontra assim que uma tarefa é oferecida para ele (Gurwitsch, 1940/2009c). Uma nova estimulação altera o curso de ação do organismo como um todo, isto é, há aí uma “alteração das condições nas quais o organismo desempenha a ação” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.78).

Isso não significa, é claro, que o conceito de reflexo seja totalmente negado por Goldstein (1934/1983). O autor, na verdade, renova o conceito: este passa a ser concebido como um fato que é produzido e pode existir apenas em condições especiais de laboratório, no arranjo experimental em que se isola o organismo de determinada maneira, ao invés de um fato primitivo, fundamental, e como elemento constitutivo da vida (Goldstein, 1934/1983; Gurwitsch, 1940/2009c). Em outros termos, o reflexo não pode ser “considerado como uma ação ‘natural’ do organismo” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.80), nem pode ser o ponto de partida para a biologia. O que se perde de vista, na teoria do reflexo, é a “modificação que o arranjo experimental introduz no organismo” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.80).

Segundo Gurwitsch (1940/2009c), o trabalho de Goldstein deve ser considerado, sobretudo, como uma “metodologia e uma filosofia da ciência biológica” (p.80), mesmo que nele haja uma grande quantidade de explicações teóricas e de dados acumulados. Isto significa que Goldstein (1934/1983) não realiza um mero empirismo. Ao contrário, como o afirma Gurwitsch (1940/2009c), trata-se da elaboração de uma “ideia do organismo” (p.80). Vejamos isto mais de perto. “A fim de se considerar fatos particulares em sua relação com o organismo como um todo e vê-los a partir de sua perspectiva”, afirma Gurwitsch (1940/2009c), “é necessário formar uma ideia sobre o que é o organismo como um todo” (p.80). Não seria possível, portanto, na visão teórica de Goldstein, passar da pesquisa puramente indutiva, dos fatos particulares, obtidos na atitude experimental e analítica, a uma consideração do organismo enquanto totalidade. Ao contrário, evidencia Gurwitsch (1940/2009c), é preciso destacar o fato de que o biólogo realiza uma ação cognitiva de caráter não-indutivo para formar a “ideia do organismo”. Gurwitsch (1940/2009c) expressa-se da seguinte maneira: “[...] a elaboração da noção de organismo não pode ser cumprida por meio de uma simples aglomeração de simples fatos; essa elaboração requer uma função cognitiva que é diferente daquelas atividades cognitivas que lidam apenas com fatos observados” (p. 81). E mais à frente, afirma: “[...] a ideia do organismo [...] pertence a um nível diferente daquele dos próprios fatos particulares” (p.81). Isto significa reconhecer um nível de intencionalidade diferente daquele restrito à percepção sensível, no sentido do empirismo, de tal modo que o ato e o objeto desta intencionalidade sejam concebidos, conforme veremos mais adiante, como pertencentes a um “nível superior” de atividade. Significa, também, em maior amplitude, que o biólogo não é um físico de partículas. Com isso, afasta-se, ao mesmo tempo, o indutivismo e o atomismo.

Mais precisamente, o que Gurwitsch (1940/2009c) destaca aqui a respeito de Goldstein (1934/1983) é o nível da “ideia”, ou, ainda, das “entidades simbólicas” que representamos fatos. A relação dessas entidades simbólicas com as coisas que elas representam não é a de “semelhança” nem a de “conformidade”. Trata-se de uma proximidade intuitiva com a realidade fenomênica dos fatos com os quais se inicia a observação e a partir dos quais se constrói a teoria biológica. Conforme Gurwitsch (1940/2009c), a diferença básica entre as entidades simbólicas da física e da biologia é, primeiramente, uma diferença de grau: os símbolos físicos são mais abstratos, podendo chegar ao ponto de serem definidos “apenas pelas características formais das operações que são realizadas sobre eles” (p.82), ao passo que os da biologia permanecem mais próximos dos fenômenos observados. Há, contudo, uma diferença ainda mais essencial. De um lado, o físico substitui as percepções do mundo por símbolos matemáticos. De outro lado, “o biólogo deixa intactos os fatos observados que subjazem à sua teoria” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82). Os fatos são considerados pelo biólogo como “manifestações reais do organismo” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82), “ainda que a sua relação com o organismo e a evidência que eles fornecem com respeito a ele constituam um problema a ser resolvido em cada caso particular” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82). Esta caracterização do fenômeno biológico com relação ao organismo exige, pois, que os “símbolos biológicos possuam um conteúdo qualitativo e concreto” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82).

Na biologia de Goldstein, o organismo é, portanto, concebido como um “princípio inteligível que tornaria os fenômenos observados compreensíveis” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82-83, grifos do autor). Não se quer indicar, com isso, nas palavras de Gurwitsch (1940/2009c, p. 82), uma “entidade metafísica designada para fundar o ser”. Antes, é preciso distinguir a ideia de organismo como “razão de conhecimento” e como “razão de ser”. Conforme Gurwitsch (1957/2010), a ideia de organismo “não deve ser construída como uma razão de ser (Realgrund), fundando a existência, mas, antes, como uma razão de conhecimento (Erkenntnisgrund), tornando fatos particulares e fenômenos compreensíveis” (Gurwitsch, 1957/2010, p. 397). “A ideia”, explana o autor, “é delineada para explicar a aparição de dados observados, para nos permitir compreender por que o organismo, em virtude de sua estrutura intrínseca, comporta-se (em um caso particular) de tal e tal maneira e não de outra” (Gurwitsch, 1940/2009c, p. 90)1.

A realidade biológica do organismo e a sua ideia formam, por assim dizer, uma unidade dialética na qual as suas partes são irredutíveis uma à outra, uma “dialética entre o nível dos fatos e aquele das ideias”, como escreve Gurwitsch (1940/2009c, p. 98), sendo que os fatos particulares “expressam” as manifestações concretas do organismo, tal como situado em determinadas condições, e a “ideia” de organismo “nos permite estabelecer uma ordem entre esses fatos” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.90). É isso o que permite afirmar a diferença de nível entre a totalidade do organismo e as “realidades que são os membros do organismo, os órgãos e os sistemas de órgãos [...]” (Gurwitsch, 1940/2009c, p.82), sem que o organismo seja, por isso, uma totalidade que deva ser superposta ou adicionada a tais realidades.

Posteriormente, em O campo da consciência, Gurwitsch (1957/2010) retoma esta compreensão da dialética entre o fato biológico e a ideia de organismo. Afirma, neste livro, que “a ‘ideia’ de um organismo não pode ser elaborada por meio de sínteses de fatos particulares, tampouco pela indução ou pela generalização” (Gurwitsch, 1957/2010, p.239). Acrescenta, ainda: “Aqui, é requerido um ‘ato de imaginação criativa’ [...]” (Gurwitsch, 1957/2010, p.397), a ser executado pelo biólogo. Por meio deste ato, símbolos, modelos ou ideias são criados com o fim de que seja estabelecida uma “ordem racional e inteligível” entre os fatos observados.

O retorno de Gurwitsch a Goldstein, como se pode notar, é constante. Fundamental é a tese de que o organismo não possui uma existência “em si”, fundante da realidade, mas consiste, antes, em uma “dialética” entre o conceitual e o factual. Em seu texto ulterior, Gurwitsch (1957/2010) desenvolve o conceito de “ordem de existência” tomando a noção goldsteiniana de “realidade biológica” como um caso especial. Esta ordem designa, no geral, o contexto no interior do qual cada fenômeno particular recebe o seu significado de acordo com a natureza e os princípios de relevância do próprio contexto global. Desta forma, o autor concebe que cada ocorrência biológica só tem significado no interior deste “sistema” ou desta “ordem”, que é a ideia de organismo. “A partir de seu significado e de sua significância organísmica, de sua referência à ideia de organismo”, afirma Gurwitsch (1957/2010, p.398),“uma ocorrência atual deriva da sua realidade biológica”. “Nenhuma ocorrência atual”, continua Gurwitsch (1957/2010, p.398), “deve ser aceita como um fato organísmico a não ser que tenha provado ser genuinamente significante para o organismo”.

O conceito de organismo demonstra ser, então, para Gurwitsch, um caso do que ele chama de “ordem”, significação que faz parte da dialética entre os fatos e o conceito. É nesta direção que o autor elogia o “platonismo” da biologia de Goldstein:

Considerar fatos como materiais cuja significância organísmica é estabelecida à luz da ideia que eles próprios ajudam a conceber e, assim, definir a ciência biológica como uma dialética entre o nível dos fatos e aquele das ideias é recorrer a um platonismo na interpretação da ciência biológica. Expresso de maneira mais exata, é redescobrir o platonismo como a força motriz ou a mola mestra dessa ciência. Goldstein não cita Platão; mas há, em seu trabalho, passagens suficientes que são, nitidamente, de inspiração platônica. Traçar uma linha de demarcação entre ‘investigação empírica’ e ‘reflexão filosófica’ parece artificial para ele porque nada de empírico pode ser compreendido exceto à luz de ideias e porque o finito não se torna inteligível exceto por sua relação com o infinito. O conhecimento científico consiste em estabelecer ordem entre os fatos. Agora, tal ordem pode ser estabelecida apenas sobre a base de ideias, que estão em um nível diferente daquele dos fatos (Gurwitsch, 1940/2009c, p.98).

Compreende-se que o elogio de Gurwitsch se dirige ao destaque da atividade de ideação em sua relação dialética com o empírico. Gurwitsch evidencia, desse modo, o organismo como uma unidade dialética entre o percebido e o inteligível. Há uma relação entre esta maneira de conceber o organismo e um nível de intencionalidade chamado de “categorial”, o que fica evidente ao se tomar por tema a “atitude categorial”.

 

Atitude categorial e atitude concreta

Assinalamos anteriormente o fato das pesquisas de Gurwitsch se notabilizarem por uma postura diferenciada com respeito à relação entre filosofia e ciências, particularmente a psicologia. Foi assim que tratou de estudar as relações entre fenomenologia e teoria da Gestalt em seu trabalho de doutoramento (Gurwitsch, 1929/2009a). Na rejeição, por parte da Psicologia da Gestalt, da “hipótese de constância”, tese, presente na psicologia clássica, de que haveria uma correspondência direta entre os estímulos objetivos e as sensações deles decorrentes, Gurwitsch enxerga uma “redução fenomenológica” em forma incipiente. Em seu artigo dedicado ao desenvolvimento histórico da teoria da Gestalt (Gurwitsch, 1936/2009d), Gurwitsch destaca o papel dessa rejeição para a teoria da forma. Se interpretada corretamente, ela levaria a um campo específico e privilegiado de pesquisas: o campo fenomênico, isto é, o campo das descrições puras e, como o autor o expressa em seu comentário crítico ao “Epílogo” de Husserl, da “consciência emancipada das considerações concernentes às constelações dos estímulos” (Gurwitsch, 1932/2009b, p.125). Dessa maneira, coincidindo com respeito ao domínio de estudo do fenômeno perceptivo, fenomenologia e teoria da Gestalt se mostram complementares, apesar de suas diferenças de princípio – de um lado, filosofia e, de outro, psicologia.

Para Gurwitsch, as pesquisas de Gelb e Goldstein sobre o pensamento categorial respondem a um problema que transcende os meios teóricos da teoria da Gestalt. O conceito de Gestalt é fundamental em uma área que corresponde à “significação imediatamente experimentada” (Gurwitsch, 1936/2009d, p.33), mas os termos de igualdade, de desigualdade, de identidade, de semelhança, de unidade, e afins, possuem um duplo significado. Pintos-Peñaranda (2008) lembra que Husserl distingue um sentido em que a significação é imediata, dada na experiência sensível, e um sentido que vai além da significação imediata e que se refere ao domínio das relações categoriais, que são pensadas conceitualmente. Em “Filosofia da Aritmética”, Husserl (1891/1972) descreve unidades cujo sentido é imediato e as quais ele nomeia como “momentos figurais” (figurale Momente): tais são as fileiras de árvores, as colunas de soldados etc., aquelas situações em que, de um só golpe, uma multiplicidade é percebida enquanto unidade. Estas se opõem à unidade que envolve atos de pensamento mais complexos e aos quais Husserl (1891/1972) chama de “unidade categorial”2. Nas unidades imediatas, nenhum pensamento de ordem superior, conceitual, intervém. Segundo Gurwitsch (1936/2006d), o conceito husserliano de “momento figural” seria uma antecipação do conceito de Gestalt e descreveria aqueles dados imediatos de organizações perceptivas unitárias.

Gurwitsch (1936/2009d), no entanto, destaca, com base nos trabalhos de Gelb e de Goldstein, os limites da teoria da Gestalt da Escola de Berlim. Para Gurwitsch, tal teoria permanece restrita ao domínio dos objetos fenomênicos, aqueles que são “acessíveis a nós apenas em e através de nossas experiências e especialmente de nossas percepções” (Gurwitsch, 1936/2009d, p.60). As coisas objetivas apenas nos são apresentadas pela mediação do domínio fenomênico, em cujo interior são constituídas enquanto multiplicidades. Num campo perceptivo qualquer, vemos diversos objetos, distintos espacialmente uns dos outros. Mas, se os objetos fenomênicos se constituem como uma multiplicidade de coisas, eles se relacionam uns com os outros por meio de sua referência a uma “mesma coisa real” (Gurwitsch, 1936/2009d, p.60). Essas relações mútuas estabelecem, assim, uma identidade entre os diferentes objetos fenomênicos. Uma coisa real idêntica aparece, portanto, em cada um desses objetos. Essa identidade não faz parte, entretanto, das relações do domínio fenomênico. Conforme observa Gurwitsch (1936/2009d, p.60), ela “não apenas não é fenomênica e imediata, mas é compatível com uma grande diversidade de objetos fenomênicos”. Vemos livros de formas e formatos diferentes, de cores diferentes, e assim por diante, em uma diversidade de fenômenos. Ainda assim, todos pertencem a uma mesma categoria, “livro”, que se manifesta através da diversidade, sem, no entanto, suprimi-la ou ser por ela suprimida. Para Gurwitsch, este fato manifesta uma limitação da teoria da Escola de Berlim, na medida em que esta estaria limitada ao nível do fenomênico, entendido enquanto nível da significação imediata, ou seja, da forma percebida. A teoria da Gestalt seria incapaz de dar conta da dimensão da identidade categorial.

Segundo a interpretação de Gurwitsch, uma nova área de problemas não restrita ao “puramente fenomênico” se abre. Tais são problemas “para os quais”, escreve Gurwitsch (1936/2009d, p. 61),“as soluções da teoria da Gestalt requerem complementação”. O aspecto que transcende a teoria da Gestalt e que a complementa remete, por sua vez, ao problema da linguagem. Na comparação entre a inteligência animal e a inteligência humana, esta questão ganha um grande destaque. Chimpanzés são capazes de comportamentos que, em muito, se aproximam do comportamento humano, assemelham-se, como diz Gurwitsch (1936/2009d, p.61), à maneira como um operário lida com as coisas. Há uma evidente proximidade entre a inteligência humana e a animal. No entanto, ainda que eles possuam uma articulação orgânica apropriada e mesmo que os seus sons fonéticos contenham muitos elementos comuns à linguagem humana, os chimpanzés não possuem linguagem, não possuem função verbal. Em uma palavra, o seu comportamento não é simbólico: eles não se relacionam com símbolos, mas com meros sinais. A questão sobre a essência da linguagem ganha um destaque especial também no domínio da psicopatologia, especialmente nos estudos sobre a afasia (Gelb, 1933/1969; Goldstein, 1933/1969). São estes estudos sobre a afasia que teriam uma importância psicológica e filosófica fundamental para solucionar os problemas relativos à ordem categorial.

O comportamento simbólico envolve uma dimensão que transcende o imediatismo perceptivo. Envolve, pois, a dimensão de perspectivas que são possíveis para a consciência, e não meramente atuais. Em suas pesquisas, Gelb(1933/1969) e Goldstein(1933/1969) distinguem, nesta direção, uma esfera de atitude concreta, imediata, de uma esfera de atitude categorial, possível ou virtual. Em seu artigo de 1949, intitulado O conceito de Gelb-Goldstein de atitude “concreta” e “categorial” e a fenomenologia da ideação, Gurwitsch (1949/2009e) dedica-se a interpretar essas noções à luz da fenomenologia husserliana, especificamente no que diz respeito ao problema da ideação, isto é, o problema de como os universais e as categorias de coisas são intencionalmente apreendidos. Assim, distingue-se, de um lado, a atitude que se refere à ideação, à capacidade de apreender coisas universais, que se apoia sobre a “igualdade ou semelhança categorial” (Gurwitsch, 1949/2009e, p.405), isto é, a relação de igualdade ou de semelhança existente entre objetos de uma mesma espécie, e, de outro, a atitude que se refere ao comportamento concreto, vinculado às coisas particulares e disponíveis na experiência perceptual mais imediata. De acordo com as pesquisas de Gelb e de Goldstein sobre o assunto, pacientes com lesões cerebrais podem regredir ao nível meramente concreto do comportamento.

Os pacientes de Gelb (1933/1969) e Goldstein (1933/1969) não conseguiam realizar a contento a tarefa de classificar objetos segundo suas cores. O teste de visão de cores de Holmgreen consiste na exposição de diversas fitas de lã coloridas e na solicitação de que se agrupem as fitas de acordo com suas cores fundamentais, posto que as fitas apresentem variações de tonalidade e brilho. Os pacientes submetidos ao exame eram incapazes de adotar um princípio de classificação. Conforme Gelb (1933/1969, p.236), “a sua conduta se regulava unicamente de acordo com a conveniência inteiramente momentânea das cores”. A semelhança entre as fitas disponíveis para o sujeito era estabelecida inteiramente com base na percepção sensível, sem qualquer recurso à nomeação, ou seja, a categorias linguísticas. Tratava-se mais de estabelecer a analogia entre as cores que se apresentavam pela percepção do que estabelecer um princípio de semelhança entre essas cores. Em outras palavras, as fitas não eram vistas como “representantes das propriedades da cor que foi escolhida como princípio de classificação” (Gelb, 1933/1969, p.237). Nada além de um nível de experiência caracterizado pela rigidez perceptiva lhes era acessível.

Para Gelb (1933/1969) e Goldstein (1933/1969), os pacientes com lesões cerebrais não eram capazes de adotar a atitude categorial, em que coisas isoladas podem ser vistas como representantes de categorias, ou, ainda, na qual o sujeito pode adotar uma distância com relação ao mundo e agir com relação a ele não apenas de maneira imediata e prática, mas de maneira teórica e contemplativa. A percepção da pessoa normal, segundo Gurwitsch (1949/2009e), possui uma ambiguidade e uma plasticidade que permite haver, em cada percepção de coisa, uma referência a uma ordem conceitual, mesmo que implícita. No caso da percepção normal, a “experiência perceptual é englobada pelo horizonte de ao menos uma consciência potencial de perspectivas não perceptuais possíveis” (Gurwitsch, 1949/2009e, p.426). Com relação ao doente, este horizonte não se apresenta como tal. Gurwitsch interpreta a atitude categorial como camada intencional sobreposta à experiência perceptual. Esta, apartada da dimensão categorial, equivale à atitude concreta e, assim, aos limites do comportamento orientado por um campo perceptivo circunscrito ao atual. Para Gurwitsch, a dimensão categorial é equivalente ao domínio do conceitual, que é não-perceptual3. A plasticidade referente a esta esfera é compreendida pelo autor como fundamento da possibilidade da variação livre ou eidética, um dos métodos da análise fenomenológica.

É esta dimensão conceitual que Gurwitsch (1936/2009d) apontava como algo além dos limites da teoria da Gestalt. Para o autor, somente na esfera da atitude categorial é que podem ser estabelecidas as relações de igualdade, desigualdade, semelhança, identidade, de unidade, e afins. Sem poder se referir à atitude categorial, a capacidade de um sujeito classificar coisas em grupos, segundo sua espécie, fica extremamente prejudicada, limitada a uma esfera rudimentar, mais imediata, de distinção entre as coisas. O imediatismo perceptivo da esfera fenomênica é, portanto, para Gurwitsch, insuficiente para lidar com os problemas da ordem categorial e de toda a esfera linguística ou simbólica do comportamento humano. A neuropsicologia de Gelb e de Goldstein fornece métodos importantes para a investigação desse domínio. Correlativamente, no âmbito de investigação fenomenológica, é a fenomenologia da ideação que, amparada inclusive pelas pesquisas de Gelb e de Goldstein (Gurwitsch, 1949/2009e), seria capaz de desenvolver pesquisas sobre esse nível de intencionalidade, considerado por Gurwitsch (2009f, p.345) como “mais elevado”.

 

Prolongamentos a respeito do domínio categorial

No prolongamento das discussões a respeito da diferença entre a atitude concreta e a categorial, Gurwitsch estabelece, em seus cursos de 1934-1935, uma distinção entre o que chama de “objeto dotado de valor funcional” e o “domínio categorial” (Gurwitsch, 2009f, p.347). Segundo Gurwitsch, há uma diferença de apreensão dos objetos segundo os níveis em que eles se apresentam e a atitude que corresponde a esses níveis, a começar pela vida prática e cotidiana. A vida prática e cotidiana exige do sujeito uma atitude que seja adaptada à situação concreta na qual está inserido, principalmente caso se considere que os objetos que se apresentam a ele não apenas têm qualidades perceptivas de substrato visual, tátil, térmico, olfatório, e similares, mas possuem, também, valores de uso, que são percebidos de acordo com o emprego que se pode fazer deles nas variadas situações de ação. Esta é a atitude mais imediata e que revela o valor espontâneo com o qual os objetos são dotados na maneira cotidiana de se lidar com eles. Um objeto dotado de valor funcional pode, contudo, ser transferido de um contexto a outro e manter, ainda assim, a sua identidade de sentido. Ele possui, conforme o explicita Gurwitsch (2009f, p.343), “certa independência com relação a seus entornos e à situação na qual ele é empregado ou percebido”. Para o autor, isto significa que esse tipo de objeto é um “objeto real”.

Há, ainda, outra classe de objetos que se pode classificar como “real”, mas em um sentido ligeiramente diferente, mais abstrato. Esta classe de objetos se refere ao objeto “dotado com tais e tais qualidades e propriedades que podem ser descritas como objetivas” (Gurwitsch, 2009f, p.341), que pertencem a ele “tal como ele é em si mesmo”. Gurwitsch nomeia essa classe de objetos, que são reais porque são descritos por meio de propriedades que possuem “em si”, como objetos reiformes. A objetividade referente a esta classe não se encontra na esfera ordinária da vida perceptiva. É, em vez disso, apreendida apenas na consideração das coisas em uma atitude diferente da atitude comum, a saber, apenas a partir de uma contemplação puramente teórica, cuja estrutura é a da atitude categorial. Ela não corresponde ao objeto mais simples e primitivo, mais “originário”. Pelo contrário, “é antes o resultado, psicologicamente falando, de um longo desenvolvimento mental e, fenomenologicamente falando, o produto de uma intencionalidade constituinte de um nível mais elevado” (Gurwitsch, 2009f, p.345). Em suma, trata-se do objeto da ciência objetiva, o qual figura, assim, como resultado de um processo pelo qual se encontra o invariável nas variações. Contrariamente às coisas percebidas e às coisas dotadas de valor funcional, o que há de característico na coisa reiforme é a sua total falta de perspectiva. O seu ser é determinado como um “em si”. E pertence, enfim, ao domínio categorial.

A distinção entre o objeto dotado de valor funcional, com sentido imediato, e o domínio categorial, correlativo a uma atitude específica, que, apesar de estar enraizada no mundo prático e cotidiano, não possui relações intrínsecas com ele, se torna ainda mais evidente a partir de algumas investigações empíricas, cuja relevância fenomenológica é destacada por Gurwitsch (2009f). No caso dos afásicos, estudados por Gelb e Goldstein, no caso do pensamento infantil, estudado por Piaget, e do pensamento primitivo, estudado por Lévy-Bruhl, todos citados por Gurwitsch (2009f), o plano categorial permanece inacessível e destaca-se o objeto dotado de valor funcional4. A coisa reiforme passa à margem dos modos de consciência desempenhados nesses casos, porque, para acessar o seu domínio de ser, o que Gurwitsch (2009f) chama de seu “campo temático”, é necessária uma atitude específica: a categorial. O domínio de ser da coisa reiforme pertence a um campo temático, uma esfera de objetos internamente relacionados entre si e vinculados a uma consciência atual, que consiste puramente em noções categoriais. O campo temático da coisa reiforme não possui, então, o mesmo sentido das situações ordinárias da vida prática e perceptiva. Nenhum valor funcional deriva desse campo temático. Com base na distinção presente nos trabalhos de Gelb e de Goldstein, Gurwitsch (2009f) formula a diferenciação de níveis ou formas distintas da consciência intencional, sendo a correspondente ao objeto reiforme “uma forma à qual devemos a possibilidade de manusear objetos intelectualmente” (Gurwitsch, 2009f, p.348). Em obra posterior, Gurwitsch(1957/2010) desenvolverá a mesma linha destas análises a partir do que concebe, então, como “ordens de existência”.

A implicação da distinção goldsteiniana entre o comportamento concreto e o comportamento abstrato para a fenomenologia é ainda mais sistematizada em O campo da consciência, principal obra madura de Gurwitsch (1957/2010). Os problemas fenomenológicos que concernem à ideação e ao método da variação eidética, para os quais Gurwitsch (1949/2009e) apontava a contribuição das pesquisas de Gelb e Goldstein, são especificamente colocados e abordados neste texto.

As análises fenomenológicas que Gurwitsch (1957/2010) desenvolve a respeito da percepção, fundamentam-se, novamente, sobre a referida distinção goldsteiniana. A percepção das coisas materiais é diferenciada da consciência de classes nas quais as percepções individuais são apreendidas como exemplificações de um conceito. Para Gurwitsch (1957/2010), a percepção da coisa material “não implica, certamente, uma apreensão explícita dessa coisa como um exemplo ou representante de uma classe” (p.231), mesmo que haja uma tipicidade ligada à própria aparência perceptual da coisa e nela concretizada. Nesta direção, o autor repete a fórmula, já comentada, segundo a qual aquilo que não é imediato é “conceitual”, ou seja, “não-perceptual”. Há, portanto, para Gurwitsch, uma identidade que é irredutível à percepção da coisa material. Esta identidade pertence a um nível diferente daquela ligada à aparência perceptual da coisa, posto que, nela, cada aparência não é senão o exemplar de uma classe: ela é, com efeito, conceitual e correlativa à atitude categorial.

 

Considerações finais

A interlocução de Gurwitsch com os trabalhos de Goldstein mantém-se ao longo de toda a obra do filósofo. Ela permite ao autor repensar os limites da psicologia da Gestalt da Escola de Berlim e estabelecer um método de análise para os objetos categoriais, ou seja, aqueles correlativos a uma atitude categorial, diferente, portanto, da atitude perceptiva ou prática, cujos objetos possuem um caráter tácito e imediato. O fio condutor de suas análises sobre Goldstein, desde o conceito de organismo até o de atitude categorial, encontra-se, precisamente, nesta distinção entre um nível de intencionalidade perceptual e um categorial.

Como vimos, é possível ler este aspecto da obra de Gurwitsch como uma reinterpretação e um desenvolvimento dos problemas legados pela filosofia clássica. Em uma carta de Gurwitsch a Alfred Schutz, isso fica claro:

Em última análise, tal é uma questão de clarificar-se a ratio. Quando e em que medida um domínio deve ser racionalizado, isto é, deve ser referido a uma ordem eidética? Se você quiser falar metafisicamente, eu estou preparado para fazê-lo e simplesmente perguntar: onde o mundo começa a ser racional? O mais surpreendente é que o problema de Parmênides reapareceu na neurologia, sem que Gelb e Goldstein conhecessem algo sobre ele (Gurwitsch, 1989, p.116).

Trata-se, então, de formular de uma nova maneira e de desenvolver de forma mais adequada o problema clássico relativo à ordem categorial (“eidética”), certamente inspirando-se na fenomenologia e no desenvolvimento das ciências. A obra de Goldstein possui, neste sentido, um profundo valor heurístico não apenas do ponto de vista psicológico, mas, também, do ponto de vista epistemológico e filosófico. Uma radicalização desta leitura do projeto de Goldstein e de seu significado filosófico pode ser encontrada, aliás, no livro Fenomenologia da percepção, de Merleau-Ponty (1945/2006), e, em especial, em uma leitura crítica do livro de 1957 de Gurwitsch (1957/2010), composta de notas e comentários e publicada apenas postumamente (Merleau-Ponty, 1997). Neste texto póstumo, e no qual preparava a sua filosofia tardia, o filósofo francês reconduz a problemática da ordem eidética a uma ontologia mais fundamental e denuncia, no texto de Gurwitsch, a primazia da “consciência tética canônica” (Merleau-Ponty, 1997, p. 189) e que é correlativa ao “método eidético-temático-reflexivo” (Merleau-Ponty, 1997, p. 189).

 

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Recebido em 04/01/2017
Aceito em 11/04/2017

Endereço para correspondência:
Danilo Saretta Verissimo
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar.
Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário. Assis, SP – Brasil.
CEP: 19806-900.
E-mail: danilo.verissimo@gmail.com

 

 

*Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP) (Processo 2013/13035-7).

1Convém indicar a relação entre a compreensão do fenômeno biológico em Goldstein e a ideia de organismo proposta por Kant em Crítica do Juízo. Sobre o assunto, conferir Noble (2008).

2Neste momento da obra do autor, a “unidade categorial” é interpretada como fruto de “atos de coligação”. Com os avanços de suas pesquisas, os objetos categoriais são concebidos como correlativos a uma intencionalidade própria que é, também, imediata, a saber, a “intuição categorial” ou “ideação”. Gurwitsch, por sua vez, parte desta última concepção. Além disso, a partir da leitura da obra de Goldstein, “ideação” ou “intuição categorial” será sinônimo de “atitude categorial”.

3Merleau-Ponty (1945/2006) entende que separação da atitude categorial em relação à ordem perceptiva implica a adoção de uma posição intelectualista. Mais adiante, em nossas considerações finais, sinalizamos esse ponto. Para o aprofundamento deste debate, recomendamos a leitura do trabalho de Verissimo (2012).

4Gelb (1933/1969) mostra-se cético com relação à possibilidade de associar-se a atitude concreta com um pensamento primitivo, à maneira de Lévy-Bruhl. Para ele, os dois campos são suficientemente heterogêneos para que possam ser assimilados. “Porque um civilizado recai, por conta da doença, em um comportamento imediato, ‘manual’, e, neste sentido, ‘mais primitivo’ e ‘mais concreto’, ele não se aproxima, por isso, da mentalidade ‘primitiva’ arcaica”, escreve Gelb (1933/1969, p.256). Citando E. Cassirer, Gelbafirma que não há uma diferença essencial entre o mito do primitivo e o pensamento científico do homem moderno.

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