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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.11 no.1 Juiz de Fora June 2017

http://dx.doi.org/10.24879/2017001100100211 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/2017001100100211

 

Concepção de justiça e injustiça de docentes do ensino fundamental

 

Conception of justice and injustice in Primary School Teachers

 

 

Leandra Lúcia Moraes CoutoI;Heloisa Moulin de AlencarII

IDoutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo;

IIProfessora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento (DPSD) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Investigamos a concepção de justiça de professoras do ensino fundamental. Realizamos entrevistas com base no método clínico piagetiano. Verificamos que a temática dos direitos foi abordada pelas participantes em todas as perguntas e justificativas do estudo. Por outro lado, obtivemos poucas referências com relação à igualdade e à equidade. Também encontramos citações que versam sobre a oportunidade de desenvolvimento pessoal, o julgamento e a punição, a valorização ou desvalorização da vida e da profissão, entre outros. De maneira geral, os dados mostram que as concepções de justiça possuem predominância de características da moral autônoma. No entanto, chamamos a atenção para a ocorrência de dados que revelam a existência de traços de uma moral heterônoma na concepção das docentes.

Palavras chave: Psicologia da Moralidade, Educação moral, Justiça, Injustiça.


ABSTRACT

We investigated the conception of justice of primary school teachers. We conducted interviews based on Piaget’s clinical method. We found that the thematic of rights was addressed by participants in all questions and rationale of the study. Moreover, we found few references in relation to equality and fairness. We also find quotes that talk about the opportunity for personal development, trial, and punishment, the appreciation or depreciation of life and profession, among others. Overall, the data show that the conceptions of justice have predominant features of autonomous morality. However, we draw attention to the occurrence of data that reveal the existence of heteronomous moral traits in the teachers’ conception.

Keywords: Psychology of Morality, Moral Education, Justice, Injustice.


 

 

A moralidade é assunto de interesse para diferentes áreas do conhecimento. No entanto, dentro de uma mesma área do conhecimento, a noção de moralidade pode ser entendida de forma distinta por cada autor. No presente estudo, temos o objetivo de investigar as concepções de justiça e de injustiça de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental. Os referidos temas serão abordados no que se refere às perspectivas teóricas da área da Psicologia da Moralidade. Adotamos como referencial teórico as contribuições de Piaget e La Taille para os estudos da moralidade.

O objetivo central de pesquisa de Jean Piaget foi investigar como o homem constrói o conhecimento, sendo que, para este autor, conhecer significa organizar, estruturar e explicar a partir do vivido, do experienciado. Nessa perspectiva, o conhecimento só é possível devido ao funcionamento das estruturas mentais, as quais não são inatas, mas caracterizam-se enquanto possibilidades da espécie humana (Ramozzi-Chiarottino, 1988). Com relação ao estudo do juízo moral, Piaget (1932/1994) concluiu que há um desenvolvimento do juízo moral, caracterizado pela evolução de duas tendências morais, a saber: heteronomia e autonomia. Para este autor, é o tipo de respeito vivenciado nas relações entre as crianças e os adultos, ou entre elas e seus pares, que permitirá o estabelecimento das aludidas tendências morais.

Segundo Piaget (1932/1994), até os quatro anos de idade, aproximadamente, as crianças estão em uma fase de anomia, pois não possuem a consciência das regras. Após esse período, a moral começa a fazer parte do universo de valores das crianças e elas passam a compreender a dimensão do dever, do bem e do mal. Esse momento é denominado heteronomia, em que a moral é a do respeito unilateral. A partir desse tipo de relação, a criança adentra ao mundo da moralidade e desenvolve o sentimento de obrigatoriedade. Por volta dos nove anos de idade, a partir da vivência de relações de reciprocidade, a criança pode apresentar sinais de autonomia. A moral autônoma é a moral da justiça, do respeito mútuo, em que prevalecem as relações de cooperação. A criança autônoma liberta-se da obediência estrita às regras e passa a julgar a partir de princípios. Em resumo, “enquanto na heteronomia uma regra é moralmente boa porque a ela se deve obedecer, na autonomia o raciocínio inverte-se: deve-se obedecer a uma regra porque ela é boa” (La Taille, 2006, p. 98). Além disso, como discute La Taille (2006), na moral heterônoma os deveres têm maior importância que os direitos, enquanto na moral autônoma deveres e direitos complementam-se e equilibram-se.

Por sua vez, encontramos em La Taille (2006) importantes contribuições no que diz respeito aos estudos sobre a moralidade. Conforme o aludido autor, em meio à diversidade teórica em torno do fenômeno da moralidade, há autores que enfatizam a dimensão afetiva dos comportamentos morais, enquanto outros privilegiam a dimensão racional deste tipo de comportamento. Diante disso, La Taille propõe uma articulação entre as dimensões intelectuais e afetivas presentes na moralidade.

De acordo com La Taille (2006, 2010), para compreendermos os comportamentos morais dos sujeitos, precisamos conhecer a perspectiva ética que estes adotam. Por isso, o autor estabelece definições distintas para os conceitos de moral e ética, pois, para ele, essa diferenciação é essencial para a compreensão psicológica das condutas morais. Assim, segundo La Taille (2006), a moral refere-se a leis, deveres que normatizam as condutas humanas. Já a ética diz respeito a ideais, projetos que dão sentido à vida. Os conteúdos do plano moral estão vinculados às possibilidades de resposta à pergunta “como devo agir?”. Por outro lado, à reflexão ética cabe a resposta à pergunta “que vida eu quero viver?”. O plano moral, do ponto de vista psicológico, é o lugar do sentimento de obrigatoriedade. Por sua vez, o invariante psicológico do plano ético corresponde à busca de sentido para a vida, o qual possui outro invariante: o sentimento de expansão de si próprio. Os planos moral e ético são complementares e indissociáveis, e a articulação deles é estabelecida pelo autorrespeito. O autorrespeito e a autoestima correspondem a todo estado subjetivo de valorização de si próprio. A diferença entre esses dois conceitos reside no fato de que o autorrespeito é um caso particular de autoestima, pois é ela quando regida pela moral (La Taille, 2006).

Nessa perspectiva, para a personalidade merecer ser denominada como ética dependerá dos valores que são centrais nas representações de si dos indivíduos, se condizentes com a moral ou não (La Taille, 2010). Para La Taille (2001a), três tipos de valores podem compor as representações de si: valores que não possuem relação com a moral, valores contraditórios com as leis morais e valores coerentes com a moral. As virtudes, como a generosidade, a justiça e a honestidade, são nossos valores morais (Comte-Sponville, 2009; La Taille, 2001a).

De acordo com Comte-Sponville (2009), a virtude, no sentido geral do termo, é um poder específico que constitui o valor de um ser, sua excelência própria. Nesse sentido geral, a virtude é independente do uso que se faz dela. Deste modo, “uma faca excelente na mão de um homem mau não é menos excelente por isso. Virtude é poder, e o poder basta à virtude” (p. 8). Porém, conforme nos traz Comte-Sponville, tal afirmação não se aplica quando se trata do homem, da moral. A virtude do homem é nossa maneira de ser e de agir humanamente, nossa capacidade de agir bem. Na mesma linha, La Taille (2001a) afirma que, em uma definição mais restrita, virtude remete a qualidades da pessoa, as quais definem seu caráter.

A partir dessa definição de virtude, La Taille (2001b) questiona: o tema das virtudes é um tema moral? Para ele, essa pergunta pode ser respondida de duas formas. A primeira delas remete aos conteúdos das diferentes virtudes. O autor lembra que certamente é preciso ter coragem para cometer certos atos como, por exemplo, os atos terroristas, que causam a morte indiscriminada de inocentes. Assim, tal coragem carece de valor moral. Nesse sentido, algumas virtudes não têm valor moral em si: há dependência nos seus objetivos e pessoas-alvo. Por sua vez, a segunda resposta versa sobre a perspectiva moral adotada. O autor assinala que para a ética de Aristóteles, por exemplo, naturalmente as virtudes têm valor moral. Por outro lado, alguns autores modernos, como Kant, retêm a sua atenção a apenas uma delas: a justiça.

Isto posto, vale dizer que La Taille (2001b) defende a reflexão e os estudos acerca de demais virtudes, além da justiça, mesmo que permaneçamos com uma definição de moral que não as contemple. Isto devido a razões como o fato de que as virtudes são disposições de caráter necessárias à ação moral. Felizmente estudiosos contemporâneos têm resgatado a discussão sobre as virtudes. Tal resgate é importante uma vez que, em tempos atuais, como nos alerta La Taille (2009), as culturas do tédio e da vaidade sobrepõem-se às culturas do sentido e do respeito de si, e a sociedade passa por problemas como a violência, o desrespeito, entre outros. Assim, as reflexões e os estudos acerca das virtudes são relevantes e urgentes.

A referida relevância ganha destaque quando deparamos-nos com dados da literatura, como o estudo realizado por Zanotelli, Bertole, Lira, Barros e Bergamaschi (2011). Os autores revelaram que no período de 1976 a 2006 ocorreram 28.437 homicídios no Estado do Espírito Santo, uma média de 1.053 por ano. Do total de homicídios, 19.188 concentram-se na Região Metropolitana da Grande Vitória. Além disso, os autores apontam que em 2006 o referido Estado teve o maior número de homicídios de sua história: 1.857. Com relação à faixa etária, foi observado um aumento do homicídio dos jovens (entre 15 e 34 anos).

Além deste estudo, podemos citar a pesquisa de Borges (2011), no qual a autora investigou o juízo de adolescentes em situação de risco psicossocial acerca do crime de homicídio, bem como o valor que dão à vida. O estudo contou com a participação de 32 jovens igualmente divididos quanto ao sexo, entre 12 e 15 anos de idade, atendidos por duas Organizações não Governamentais (ONGs) localizadas na cidade de Vitória, Espírito Santo. Foram realizadas entrevistas individuais, com base no método clínico piagetiano, em que foram discutidos contextos de homicídios (reais e fictícios). A partir dos dados encontrados, a autora constatou que houve maior tendência dos jovens para a valorização da vida, o que a levou a inferir que os participantes consideram que os casos de homicídios relatados não deveriam ter ocorrido, pois é algo errado. No entanto, Borges também averiguou conteúdos que versam sobre a desvalorização da vida por parte de alguns entrevistados. Embora com menor frequência, a autora ressalta a necessidade de não ignorarmos a presença desses últimos dados, uma vez que eles podem representar a importância que deve ser dada para esta situação.

No que diz respeito ao presente estudo, escolhemos estudar a justiça. Essa seleção justifica-se devido à sua importância para a moralidade. Além disso, a escolha por esta virtude reside no fato de este ser um conteúdo preconizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – (2000) para o Tema Transversal Ética, o qual deve ser trabalhado no ensino fundamental. Desse modo, é relevante conhecer como professores concebem a justiça, pois tal concepção pode contribuir para a reflexão das práticas pedagógicas destes profissionais sobre o referido tema.

As definições de justiça podem ser diversas, bem como as formas de estudá-la na Psicologia. Assim, passamos a apresentar algumas definições e pesquisas sobre o aludido valor moral. A respeito da justiça, Comte-Sponville (2009) assinala que dela não podemos nos isentar, seja qual for a virtude que consideremos. Para ele, a justiça é boa em si e, sem ela, os valores deixariam de ser valores ou não valeriam nada. O autor destaca dois sentidos pelos quais a justiça define-se: como conformidade ao direito ou como igualdade ou proporção. O primeiro sentido remete à legalidade, à justiça como fato. Por sua vez, o segundo diz respeito à justiça como valor, como virtude (igualdade, equidade). O autor afirma que “esse segundo ponto concerne à moral, mais que ao direito. Quando a lei é injusta, é justo combatê-la – e pode ser justo, às vezes, violá-la” (p. 73). Para ele, o ideal é que leis e justiça caminhem no mesmo sentido, e é nisso que todos os cidadãos têm a obrigação moral de empenhar-se. Assim, Comte-Sponville (2009) define a justiça como a igualdade dos direitos, sejam aqueles juridicamente estabelecidos ou moralmente exigidos.

Por sua vez, La Taille (2001a) destaca três características que vinculam a justiça à moral: a justiça é sempre boa, traduz-se em leis e confere direitos. O autor (2000) afirma, ainda, que a justiça é a única virtude que corresponde ao binômio direito/deveres, pois dos direitos morais decorrem deveres morais. Então, se é instituído a alguém determinado direito, os outros têm o dever de respeitá-lo.

No campo de apropriação da Psicologia do Desenvolvimento, Piaget (1932/1994) realizou estudo pioneiro com relação ao desenvolvimento da noção de justiça. Para o autor, a justiça é a mais racional das noções morais e resulta diretamente da cooperação. Segundo ele, há duas noções distintas de justiça, denominadas distributiva e retributiva. A justiça distributiva define-se pela igualdade, ou seja, na noção de que uma repartição é injusta quando favorece uns à custa de outros. Nessa perspectiva, a justiça distributiva desenvolve-se a partir da aquisição da noção de igualdade e de equidade. Vale dizer que esta última é a capacidade que se adquire de relativizar a igualdade: “a criança não concebe mais os direitos iguais dos indivíduos, senão relativamente à situação particular de cada um” (Piaget, 1932/1994, p. 237). Já a justiça retributiva define-se pela proporcionalidade entre o ato e a sanção.

No domínio da justiça retributiva, Piaget (1932/1994) descreve dois tipos de sanções: expiatórias e por reciprocidade. As sanções expiatórias caminham junto à coação e às regras de autoridade e possui caráter arbitrário, isto é, não há relação entre o conteúdo da sanção e a natureza do ato sancionado. Por outro lado, as sanções por reciprocidade caminham junto às regras de igualdade e à cooperação, e há relação de conteúdo e natureza entre a falta e a punição. Segundo Piaget, uma sanção é injusta quando pune um inocente, recompensa um culpado ou não é proporcional ao mérito ou à falta. Da mesma forma, há injustiça quando uns são favorecidos à custa de outros.

Assim, a partir de seus estudos, Piaget (1932/1994) afirma que a criança passa por três grandes períodos no decorrer do desenvolvimento da noção de justiça. No primeiro, que se estende até aproximadamente os sete, oito anos, a justiça está subordinada à autoridade do adulto: é considerado justo aquilo que está de acordo com as ordens impostas pelo adulto. Toda sanção é considerada legítima e necessária e a criança coloca a necessidade da sanção acima da igualdade. Para o autor, “o justo confunde-se com o que é imposto pela lei, e a lei é inteiramente heterônoma e imposta pelo adulto” (Piaget, 1932/1994, p. 237). O segundo período, entre oito e 11 anos de idade, surge com o desenvolvimento progressivo da autonomia. Há primazia da igualdade sobre a autoridade e as sanções são consideradas legítimas quando decorrentes da reciprocidade. A crença na justiça imanente diminui e são consideradas como injustas as condutas contrárias à igualdade ou aquilo que quebra as regras de um jogo. Por volta dos 12 anos, surge o terceiro período, quando se esboça uma nova atitude caracterizada pelo sentimento de equidade. São consideradas como injustas as atitudes contrárias à igualdade e os fatos relativos à sociedade adulta, como as injustiças de ordem política e econômica (Piaget, 1932/1994).

Isto posto, ressaltamos que conhecer a concepção de justiça e de injustiça de docentes é importante para a reflexão sobre as práticas pedagógicas destes profissionais com relação à virtude em pauta. Partindo de tal pressuposto, realizamos uma revisão de pesquisas recentes que buscaram investigar a concepção de justiça de professores, por meio da qual encontramos, dentre outros estudos, os trabalhos de Müller (2008) e de Camino, Paz, & Luna (2009).

Em sua pesquisa, Müller (2008, 2012) investigou como professoras aprenderam o valor moral da justiça durante a sua vida escolar, e como ensinam este valor moral em suas práticas pedagógicas. Além disso, dentre outros objetivos, a autora averiguou a concepção de justiça das docentes. Para tanto, entrevistou 20 profissionais, de 5ª a 8ª série, de escolas particulares de ensino fundamental da cidade de Vitória, Espírito Santo, tendo como base o método clínico piagetiano. Dentre os resultados alcançados, a autora verificou que as participantes conceituam a justiça segundo a perspectiva da “ação correta”, da “igualdade” e da “equidade”. Ademais, Müller constatou que as professoras entrevistadas ensinam o valor moral da justiça de forma semelhante a que aprenderam, isto é, com imposição.

Por sua vez, no estudo de Caminoet al. (2009) foram realizadas entrevistas individuais com 35 professores, de ambos os sexos, do ensino fundamental e médio, de escolas particulares da cidade de João Pessoa, Paraíba. As autoras constataram uma diversidade de ideias a respeito das concepções de justiça, as quais foram classificadas como “garantia dos direitos”, “distinção do certo e errado”, “igualdade”, “respeito”, “punição”, “imparcialidade”, “coerência”, “princípio orientador”, “crítica à justiça” e “não pertinente”. Diante disso, as aludidas autoras afirmam que o conhecimento dos professores sobre a justiça ainda está próximo do senso comum. No entanto, concluem que há predominância de características da moral autônoma no discurso dos docentes.

Como base nos estudos de Muller (2008, 2012) e de Caminoet al. (2009), podemos refletir a respeito da importância do papel do professor no contexto escolar, e especificamente para a efetivação da educação em valores morais, como a justiça, no referido contexto. Ademais, os dados desses estudos chamam a atenção para a importância da formação destes profissionais para o trabalho com a educação em valores morais, a qual é por nós concebida como aquelas práticas voltadas a constituir indivíduos autônomos, aptos à cooperação (Piaget, 1930/1996).

Além dos trabalhos citados, outras pesquisas (Alencar, De Marchi, Couto, Romaneli, & Lima, 2013; Dias, 2005) também reforçam a necessidade de preparação dos professores para o trabalho com a educação em valores morais. No trabalho de Dias (2005) foram entrevistadas 15 educadoras infantis (professoras, auxiliares e professoras orientadoras) de oito unidades de educação infantil públicas da cidade de Niterói, Rio de Janeiro. O objetivo da pesquisa foi investigar as concepções de autonomia e educação moral das participantes, bem como relacionar tais concepções com o desenvolvimento de práticas pedagógicas. Dentre os resultados alcançados, foi constatado que as entrevistadas apresentam dificuldade em conceituar autonomia: foram relatadas concepções abstratas e individualizadas.

Por sua vez, Alencar et al. (2013) analisaram três experiências de educação em valores morais realizadas em três escolas públicas estaduais localizadas no Espírito Santo. As referidas experiências consistiram em projetos desenvolvidos no contexto escolar, intitulados de “Safra do Café” (Iúna/ES), “Resgatando valores” (Aracruz/ES) e “Histórias e memórias: a trajetória do povo negro em Venda Nova do Imigrante” (Venda Nova do Imigrante/ES). O projeto “Safra do Café” teve como um dos seus objetivos prevenir a incidência do alto índice de evasão escolar durante a colheita do café, tendo em vista que a maioria dos educandos era trabalhador rural. Já o projeto “Resgatando valores” foi desenvolvido a fim de resgatar a autoestima e o autorrespeito dos alunos, refletir sobre a importância da boa convivência, entre outros objetivos. Finalmente, o projeto “História e memórias: a trajetória do povo negro em Venda Nova do Imigrante” buscou resgatar a trajetória dos afrodescendentes residentes no citado município, que possui forte influência da cultura italiana. As pesquisadoras efetuaram entrevistas semiestruturadas com propositores e participantes das experiências, a saber: coordenadores, diretores, professores, alunos, funcionários das escolas, membros da comunidade externa e familiares dos alunos. Dentre os resultados, foi constado que os profissionais não receberam formação específica para a realização das experiências. As autoras verificaram, ainda, que a condição de trabalho de muitos profissionais influencia de modo expressivo na continuidade dos trabalhos, como, por exemplo, a contratação por Designação Temporária (DT). Sobre este fato, podemos acrescentar que foi verificado que as experiências analisadas aconteceram, principalmente, por responsabilidade de um profissional em particular. Em uma das experiências descritas, a saída da idealizadora do projeto culminou na interrupção do mesmo.

Assim, tendo em vista a importância desse profissional na educação em valores morais dos alunos, concordamos com Araújo (2001) quando destaca a necessidade de que os cursos de graduação e formação preparem esses profissionais por meio da inclusão nos currículos de matérias relacionadas aos valores morais.

Nesse sentido, partindo do pressuposto de que o papel dos professores é fundamental no que diz respeito à educação em valores morais, e que este profissional deve estar preparado para atuar em tal formação, nosso objetivo foi pesquisar a concepção de justiça e injustiça de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental. Conheçamos, então, o método que utilizamos em nosso estudo.

 

MÉTODO

Realizamos entrevistas semiestruturadas, individuais, com 23 professoras da rede municipal de Vitória, Espírito Santo, tendo como base o método clínico piagetiano (Piaget, 1932/1994, Delval, 2002). Este método é um procedimento que se realiza por meio de entrevistas ou situações abertas, em que se busca compreender como os indivíduos pensam, analisam situações e resolvem problemas. Delval (2002) distingue dois tipos de perguntas utilizadas quando se aplica o método clínico: as básicas e as complementares. As primeiras dizem respeito às questões que fazem parte do roteiro de entrevista, sendo as segundas referentes às perguntas elaboradas durante a entrevista a fim de esclarecer o que o sujeito diz e entender o seu sentido.

Participaram do presente estudo dois grupos de profissionais: 11 que lecionavam para o primeiro ano e 12 para o quinto anoi. No que concerne às perguntas acerca das concepções de justiça e injustiça das participantes, realizamos as seguintes questões: Dê exemplos que envolvem situações de justiça e injustiça. Por quê? Como você conceitua justiça?

Selecionamos as participantes por meio de contato com instituições de ensino localizadas em bairros de classe baixa. As entrevistas foram realizadas na própria escola que a participante lecionava, no horário de planejamento da docente. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Os dados foram analisados com base na teoria piagetiana e na sistematização proposta por Delval (2002), por meio da adoção dos seguintes passos: a) transcrição de todas as entrevistas, b) leitura de todas as entrevistas, c) elaboração de categorias iniciais, d) discussão das categorias iniciais com duas auxiliares de pesquisa, e) elaboração de categorias detalhadas, f) elaboração de categorias resumidas e g) discussão com uma juíza para validação das categorias.

No decorrer da pesquisa, respeitamos todos os procedimentos éticos conforme prevê a Resolução CNS 466/12. Nesse sentido, as participantes foram solicitadas a assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para preservar o anonimato das entrevistadas, ao mencionarmos trechos de entrevistas ao longo do texto, utilizamos nomes fictícios para as participantes.

 

RESULTADOS

Iniciamos perguntando às professoras sobre exemplos de situações que envolvem justiça e outros que abarcam injustiça e suas respectivas justificativasii. A partir das situações de injustiça citadas, um total de 57, estabelecemos 11 categorias: ausência do direito de ser cuidado (n=13, 22,8%), impunidade (n=8, 14,0%), condição de trabalho docente (n=8, 14,0%), pobreza (n=4, 7,0%), homicídio (n=3; 5,3%), ausência de igualdade (n=3; 5,3%), ausência de equidade (n=3; 5,3%), punição incorreta (n=3; 5,3%), recompensa desmerecida (n=2, 3,5%), calúnia (n=2, 3,5%) e outros (n=8, 14,0%).

Os exemplos de injustiça mais proferidos dizem respeito a uma ausência do direito de ser cuidado. As respostas versam sobre a omissão deste direito ao ser humano por parte do Governo ou da família. Por sua vez, as participantes também descreveram a impunidade como uma situação injusta, seja com relação a pessoas que cometeram crimes (n=7) ou aos alunos (n=1). Outros exemplos de injustiça fazem referência à condição de trabalho docente, em que as entrevistadas expuseram situações como a má qualidade da formação oferecida aos professores pelo Governo e o baixo salário que recebem. O homicídio também foi mencionado como situação injusta, sendo citados acontecimentos a respeito do assassinato de uma forma geral (n=1) e o linchamento de um indivíduo (n=2). Além dos grupos de respostas descritos, constatamos a ausência de igualdade e a ausência de equidade. Na primeira categoria estão os exemplos que remetem a um tratamento desigual entre pessoas. Já na segunda estão aqueles que tratam da ausência de tratamento diferenciado a um indivíduo que necessita devido às suas particularidades. Verificamos, ainda, exemplos que tratam da punição incorreta, como podemos observar no relato de Lara (quinto ano):

Mas pegar essas pessoas que cometeram esse delito e jogar num presídio onde elas não tenham a menor chance de se recuperar também acho uma injustiça. Eu acho que é uma injustiça, porque se você vai tirar o elemento de circulação, que realmente você tire de vez. Por exemplo, a pena de morte.

Na categoria outros, incluímos as respostas que não se adequaram aos conteúdos dos demais grupos. As referidas explanações versam sobre a resolução de conflito com violência, a condição de aprendizado do aluno (estudar em uma escola em péssimas condições), o assalto, entre outras.

Quanto às justificativas dos exemplos de injustiça, obtivemos um total de 81 explicações, as quais foram agrupadas em 10 categorias: negação de direitos (n=15, 18,5%), ausência de oportunidade de desenvolvimento (n=13, 16,0%), consequência negativa para o aluno (n=10, 12,3%), desvalorização da vida ou da profissão (n=10, 12,3%), desigualdade social (n=6; 7,4%), ineficácia da ação ou da lei (n=5, 6,2%), punição desproporcional (n=3, 3,7%), valores pessoais (n=3, 3,7%), ausência de resposta (n=7, 8,6%) e outros (n=9, 11,1%).

O argumento mais utilizado pelas professoras para justificar os exemplos de injustiça diz respeito à negação de direitos. A segunda justificativa mais empregada foi a ausência de oportunidade de desenvolvimento pessoal, isto é, a situação é injusta porque não possibilita ao indivíduo tornar-se um cidadão melhor, um profissional melhor. Outro grupo de justificativas aborda a consequência negativa para o aluno: Eu, como professora, posso prejudicá-lo mais ainda e fazer a vida dele pior se eu fizer uma avaliação errada (Letícia, quinto ano). Além destas justificativas, temos a desvalorização da vida ou da profissão, sendo que cinco participantes mencionaram a desvalorização da vida e cinco a desvalorização da profissão. Com relação à primeira, as argumentações referem-se a colocar vidas em risco, entre outros. Já a segunda trata de assuntos como a falta de correspondência entre o salário recebido e as atividades desenvolvidas, assim como o desrespeito pela profissão do professor por parte da sociedade e dos cursos de formação. No que concerne ao fundamento punição desproporcional, obtivemos justificativas que salientam a falta de proporção entre o ato cometido por um indivíduo e a punição recebida. As professoras justificaram, também, com base nos próprios valores pessoais. Com relação à categoria outros, agrupamos argumentos tais como a importância da punição e a ameaça.

Passamos, então, à apresentação dos exemplos de justiça obtidos, um total de 30, os quais foram reunidos em sete categorias: presença do direito de ser cuidado (n=8, 26,7%), condição de trabalho docente (n=6, 20,0%), julgamento ou punição de um culpado (n=4, 13,3%), condição de aprendizado do aluno (n=4, 13,3%), equidade (n=2, 6,7%), ausência de resposta (n=1, 3,3%) e outros (n=5, 16,7%).

A presença do direito de ser cuidado foi o fator mais mencionado para a construção de uma situação justa. Tal cuidado refere-se à possibilidade de acesso à escola, ter uma vaga no hospital quando necessita, entre outros. Na categoria condição de trabalho docente, agrupamos exemplos como um melhor salário e uma melhor infraestrutura de trabalho. Em julgamento ou punição de um culpado inserimos as respostas que tratam da punição e/ou do julgamento para um culpado de forma geral (n=3), e em particular para os crimes de trânsito (n=1). Por sua vez, condição de aprendizado do aluno, inclui exemplos como levar o aluno a discernir e oferecer material para o aluno estudar. A equidade foi abordada em dois exemplos de justiça, os quais tratam da prioridade de educação em tempo integral para alunos que precisam e da necessidade de avaliação de um comportamento com base no contexto em que ele está inserido. Finalmente, a categoria outros inclui respostas que versam sobre recompensa de um indivíduo que foi punido injustamente, igualdade, desenvolvimento de um bom trabalho, usufruto de um bem pelo qual pagou e desejo (não ser forçado).

As professoras apresentaram 36 justificativas para os exemplos de justiça. Com base nelas, estabelecemos seis categorias: garantia de direitos (n=12, 33,3%), valorização da vida ou da profissão (n=6, 16,7%), melhora do desempenho como profissional (n=5, 13,9%), autoestima (n=2, 5,6%), ausência de resposta (n=3, 8,3%) e outros (n=8, 22,2%).

O critério da garantia de direitos foi o mais utilizado pelas participantes. Foi mencionado o direito ao voto, ao atendimento médico, à educação, entre outros. Em segundo lugar, e com a metade de respostas da primeira categoria, averiguamos o grupo de fundamentos acerca da valorização da vida ou da profissão, sendo três respostas sobre a valorização da vida e três a respeito da valorização da profissão. Outro grupo de justificativas diz respeito à melhora do desempenho como profissional das professoras. Segundo elas, a situação exemplificada é compreendida como justa porque possibilita investir mais na carreira, sentir-se mais segura em sala de aula e desempenhar melhor o seu trabalho. Verificamos, ainda, duas menções à autoestima, ou seja, a um estado subjetivo de valorização de si. Por fim, na categoria outros incluímos argumentos como ausência de consequência negativa para o aluno, oportunidade de desenvolvimento pessoal e punição correta.

Após as entrevistadas emitirem os exemplos de injustiça e de justiça, solicitamos que enunciassem um conceito de justiça. Obtivemos 73 respostas, com as quais constituímos 11 categorias: garantia de direitos (n=15, 20,5%), ação correta em geral (n=11, 15,1%), ação correta específica (n=9, 12,3%), menção ao correto (n=6, 8,2%), respeito (n=6, 8,2%), cumprimento de deveres (n=6, 8,2%), cumprimento de regras (n=4, 5,5%), igualdade (n=4, 5,5%), verdade (n=3, 4,2%), oportunidade de desenvolvimento pessoal (n=2, 2,7%) e outros  (n=7, 9,6%).

A garantia de direitos foi o enfoque mais utilizado para conceituar a justiça. As docentes mencionaram direitos do ser humano de forma geral, e em específico como o de ser feliz, trabalhar, ter saúde e educação. A avaliação de uma atitude ou de um fato como correto também serviu de base na conceituação de justiça para grande parte das professoras. Em ação correta em geral incluímos as explanações que versam sobre um comportamento correto de forma geral: Então, para mim, justiça é ser correto, é fazer tudo corretamente, não é? (Lívia, 5º ano). Já ação correta específica compreende as respostas que tratam de exemplos de uma conduta correta específica como, por exemplo, agir com honestidade na realização de um trabalho e cuidar do bem público: Acho que agrega valores, no sentido de a pessoa ser séria, ser honesta, de a pessoa cuidar do bem público. Quando eu cuido do bem público, eu cuido da pessoa que está sendo atendida (Jaciara, 1º ano). Finalmente, em menção ao correto agrupamos os conceitos que fazem referência a algo que é correto de forma geral, sem abarcar uma ação de um indivíduo: Conceituar justiça é você lembrar-se de coisa correta, certa, não é? (Joseane, 1º ano). Por sua vez, na categoria respeito constam as respostas que tratam da justiça como aquilo que envolve o respeito ao outro (n=4), a si mesmo (n=1) e ao patrimônio público (n=1). O conceito de justiça também foi relacionado à noção de igualdade entre as pessoas e à oportunidade de desenvolvimento pessoal, sendo citados o desenvolvimento do indivíduo de forma geral e o incentivo às potencialidades educacionais deste. Na categoria outros agrupamos os demais conceitos, como confiança e ferramenta para saber viver.

 

DISCUSSÃO

As professoras emitiram uma variedade de respostas e justificativas a respeito dos exemplos de injustiça e justiça, bem como sobre o conceito deste valor moral. A partir dessas questões, o foco de nossa análise é a concepção de justiça e injustiça das participantes. Dessa maneira, vamos destacar os conteúdos que apareceram em maior frequência ou que possuem relevância teórica para o estudo.

Ao analisarmos as categorias estabelecidas, verificamos que a temática dos direitos foi abordada com maior frequência pelas professoras. Destarte, percebemos uma relação próxima constituída pelas participantes entre justiça e direitos. Essa consideração das entrevistadas aproxima-se da acepção de justiça apresentada por La Taille (2001a), quando destaca três características que vinculam o referido valor à moral: a justiça é sempre boa, traduz-se em leis e confere direitos. Para o autor (2000), a justiça é a única virtude que corresponde ao binômio direito/deveres. Assim, a justiça é definida como dar a alguém o que é seu de direito, ou, ainda, como a igualdade de direitos: sejam aqueles juridicamente determinados ou moralmente exigidos (Comte-Sponville, 2009). Por fim, é importante destacar que, no estudo de Caminoet al. (2009), também foi averiguada a relação entre garantia de direitos e o conceito de justiça emitido por professores.

Além deste aspecto, o julgamento e a punição foram recorrentes nas concepções das docentes. As respostas e as justificativas incluídas nestas categorias versam sobre a noção de justiça retributiva considerada por Piaget (1932/1994), isto é, aquela em que a ideia de justiça é inseparável daquela de sanção, sendo definida pela correlação entre os atos e sua retribuição. Segundo essa perspectiva, uma punição pode ser avaliada como justa ou injusta. É justa se exige uma restituição, se faz o culpado suportar as consequências de sua falta, ou ainda se constitui em um tratamento de simples reciprocidade. Por outro lado, “é injusta quando pune um inocente, recompensa um culpado ou, em geral, não é dosada na proporção exata do mérito ou da falta” (Piaget, 1932/1994, p. 157). Ressaltamos, ainda, que as participantes descreveram, com menor frequência, a recompensa desmerecida como uma situação injusta, conteúdo este que também pode ser relacionado ao conceito de punição injusta que acabamos de descrever. Por último, destacamos que no estudo de Caminoet al. (2009) foi igualmente verificada a associação entre punição e a noção de justiça por parte dos professores. As autoras abordam que esse tipo de concepção revela traços de uma moral heterônoma. No entanto, elas consideram que, de uma maneira geral, houve predominância de características da moral autônoma na concepção de justiça dos docentes.

Passando para o próximo tópico, temos a igualdade e a equidade. No que diz respeito à igualdade, as participantes emitiram respostas que podem ser associadas ao segundo período de desenvolvimento da noção de justiça conforme considerado pela teoria piagetiana. Com relação à equidade, as explanações correspondem ao terceiro período de desenvolvimento da noção de justiça (Piaget, 1932/1994). Outros estudos também constataram a relação estabelecida por professores entre igualdade (Caminoet al., 2009; Müller, 2008) ou equidade (Müller, 2008) e o conceito de justiça. No entanto, chama-nos a atenção as poucas menções destes dois conteúdos no que refere à definição do referido valor: na pesquisa de Müller (2008) foram verificadas oito citações de igualdade (29,6%) e três de equidade (11,1%), enquanto no trabalho de Camino et al. (2009) apenas a igualdade foi mencionada.

Por sua vez, a condição de trabalho docente foi destacada nos exemplos de injustiça e justiça. É importante ressaltar que a condição de trabalho do professor, ou a forma como os profissionais a avaliam, pode influenciar de forma significativa a condução de práticas de ensino, incluindo o de valores morais. Um exemplo disso pode ser encontrado no estudo de Alencar et al. (2013).

Outro aspecto a ser discutido, e que está relacionado ao trabalho do professor, diz respeito à melhora do desempenho como profissional. Concordamos com Araújo (2001) que há necessidade de que os cursos de graduação e formação preparem esses profissionais, para que eles sejam capazes de trabalhar tais temas. Ainda sobre esse ponto, vimos que os valores pessoais das participantes serviram de base para as justificativas dos exemplos de injustiça. O referido argumento aponta para o fato de que estas professoras baseiam-se em seus próprios valores, o que nos leva a questionar se possuem uma visão teórica e crítica a respeito do tema. Nas três experiências de educação em valores morais discutidas no estudo de Alencar et al. (2013), foi constatado que os profissionais envolvidos não receberam nenhum tipo de formação específica para desenvolverem os projetos. Além disso, trabalho como o de Dias (2005) demonstra que os profissionais da educação apresentam dificuldade em entender o que é autonomia e apresentam concepções abstratas e individualizadas.

Outro aspecto abordado pelas entrevistadas trata da oportunidade de desenvolvimento pessoal. Tais dados chamam a atenção para a discussão realizada por LaTaille (2006), para quem a possibilidade de expansão de si próprio é condição necessária para que a vida faça sentido.

As entrevistadas mencionaram também a valorização ou desvalorização da vida e da profissão. No que diz respeito à desvalorização da vida, ressaltamos que a categoria homicídio também aborda este conteúdo. Os valores são investimentos afetivos, trocas afetivas de um indivíduo com os objetos (Piaget, 1954/1962) e, sendo assim, tudo pode tornar-se valor (La Taille, 2009). Dessa maneira, as representações de si podem ser compostas por valores que não possuem relação com a moral, valores contraditórios com as leis morais e valores coerentes com a moral (La Taille, 2001a). Diante disso, os dados apontam para o fato de que os valores da vida e da profissão são importantes para estas docentes no que diz respeito à definição da justiça. É relevante destacar, porém, um exemplo citado por uma participante, Lara (5º ano), no qual a docente menciona ser a favor da pena de morte e, portanto, aborda uma situação em que há a desvalorização da vida. Nesse sentido, alertamos para a importância que os professores têm na formação de seus alunos de forma geral e, também, no que diz respeito à promoção do valor da vida. Tal relevância ganha respaldo na literatura, notadamente no que concerne ao Estado do Espírito Santo, que mostra que a prática do crime de homicídio é elevada (Zanotelliet al., 2011). Além disso, temos o estudo de Borges (2011), no qual foram verificados dados que sinalizam a desvalorização da vida por parte de jovens. Assim, a autora chama a atenção para que intervenções sejam realizadas a fim de promover o valor da vida em populações de jovens em situação de risco psicossocial. Com menor frequência, temos o respeito como conteúdo relatado pelas professoras. Nesse tópico, podemos incluir também a menção a autoestima pelas participantes. Os respeitos unilateral e mútuo, bem como o respeito a si próprio, que versam sobre a autoestima e ao autorrespeito, são importantes no que concerne à moralidade (La Taille, 2006; Piaget, 1932/1994). Assim, podemos afirmar que um trabalho educacional que visa constituir sujeitos morais deve enfocar tais aspectos. Como mostra o estudo de Alencar et al. (2013), o qual revelou que a utilização do respeito como conteúdo de trabalho permitiu a reflexão crítica dos alunos acerca das diferenças de opinião e culturais existentes entre eles.

Por fim, o último tópico que iremos analisar refere-se ao que é correto. No trabalho de Müller (2008) a ação correta serviu de base para 16 (59,3%) conceituações das professoras entrevistadas. Além desta pesquisa, encontramos no estudo de Caminoet al. (2009) a categoria “distinção do certo e do errado”, aparecendo, assim, a referida relação entre o que é correto e justiça.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De maneira geral, os dados de nossa pesquisa mostram que as concepções de justiça das participantes possuem predominância de características da moral autônoma (Piaget, 1932/1994), pois foram abordados conteúdos, em maior quantidade, que versam sobre direitos e deveres, igualdade e equidade, respeito, valorização da vida, oportunidade de desenvolvimento pessoal e o que é correto. Por outro lado, também verificamos dados que mostram a existência de traços de uma moral heterônoma nas concepções das docentes, como no conteúdo acerca do julgamento e da punição, bem como dos valores pessoais. Embora em menor número, tais dados são relevantes, pois ressaltam a necessidade de que os cursos de formação preparem esses profissionais para ensinar valores morais no contexto escolar, dentre eles a justiça.

Diante disso, temos um importante aspecto a ser refletido no que concerne à educação em valores morais. No presente estudo, partimos do pressuposto de que o conhecimento acerca das concepções de justiça e de injustiça de docentes pode auxiliar a reflexão a respeito das práticas pedagógicas de tais profissionais com relação à virtude da justiça. No entanto, sabemos do distanciamento que pode haver entre o juízo e a ação (La Taille, 2006). Como mostra o estudo de Müller (2008, 2012), embora as concepções de justiça das docentes estejam próximas de uma moral autônoma (ação correta, igualdade e equidade), a maior parte das práticas de ensino desse valor moral foi embasada na imposição, o que pode não favorecer o desenvolvimento da autonomia dos alunos. Porém, o conhecimento acerca das regras, dos princípios e dos valores morais é imprescindível para a ação moral. Nesse sentido, assinalamos que não devem ser desprezados os dados que indicam traços de uma moral heterônoma nas concepções de justiça e injustiça das professoras.

Com base no que foi exposto, ressaltamos que os cursos de formação dos profissionais da educação, preocupados em prepara-los para o trabalho com valores morais no contexto escolar, devem dar atenção aos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula, bem como à forma como eles devem ser colocados em prática. Muitos são os procedimentos que podem ser adotados na educação em valores morais, os quais são discutidos por autores da área como Piaget (1930/1996), La Taille (2009), dentre outros.

Isto posto, destacamos que alguns aspectos discutidos em nosso estudo precisam ser mais bem investigados em futuras pesquisas, tais como a preparação dos cursos de formação de professores para instruir os docentes para o ensino de valores morais no contexto escolar e a relação entre a concepção de justiça e de injustiça e as práticas de ensino voltadas a esse valor moral.

Por fim, destacamos que para a construção de personalidades éticas, é de suma importância que valores morais, como a justiça, sejam conteúdos associados às representações de si dos indivíduos. Nisto reside a importância da educação em valores morais no contexto escolar, a qual deve propiciar a construção de indivíduos autônomos, que se guiem por princípios de justiça.

 

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Recebido em 04/01/2017
Aceito em 19/04/2017

 

Endereço para correspondência:
Leandra Lúcia Moraes Couto
Heloisa Moulin de Alencar
Prédio Professor Lídio de Souza - Programa de
Pós-Graduação em Psicologia (PPGP). Centro
de Ciências Humanas e Naturais (CCHN).
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Av. Fernando Ferrari, n° 514, Goiabeiras.
CEP: 29.075-910 – Vitória /ES
E-mail: leandrabj@hotmail.com,
heloisamoulin@gmail.com

 

iÉ importante ressaltar que o presente trabalho faz parte de um estudo mais abrangente, no qual foram investigadas também as motivaçõe dessas profissionais para ensinar o referido valor moral no contexto escolar e os procedimentos de ensino utilizados por elas para ensinar a justiça. Além disso, a aludida pesquisa teve como objetivo comparar os dados referentes aos dois anos escolares pesquisados.

iiNo que diz respeito às concepções de justiça e injustiça das participantes, não foram encontradas diferenças relevantes entre os anos escolares pesquisados. Assim, na apresentação e discussão dos resultados deste estudo, não realizamos essa análise.

1Agradecemos ao Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia de Vitória (Facitec) pelo apoio financeiro.

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