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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.11 no.2 Juiz de Fora dez. 2017

http://dx.doi.org/10.24879/2017001100200180 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/2017001100200180

 

Uma pesquisa-intervenção sobre prevenção às IST/HIV com mulheres lésbicas e bissexuais.

 

A research-intervention about the prevention of STI/HIV with lesbian and bisexual women.

 

 

Monique Cristina Henares BatistaI; Gustavo ZambenedettiII

IUniversidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)/PR.

IIUniversidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)/PR. Mestre e Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)/PR.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa buscou discutir estrategias de prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis(IST’s)/HIV e proporcionar um processo grupal participativo entre lésbicas e bissexuais. Foi utilizada a pesquisa-intervenção, seguindo o referencial analítico-institucional. Foram selecionadas cinco participantes (duas lésbicas e três bissexuais), com as quais foram realizados três grupos focais. As experiências de prevenção das participantes tiveram caráter prescritivo, biomédico e heteronormativo. Foi relatado falta de preparo dos profissionais de saúde para atendimento dessa população, contribuindo para sua invisibilização e vulnerabilidade. Como efeitos da pesquisa, houve a sensibilização das participantes em relação ao tema e o seu deslocamento de uma experiência individual/privada para um plano coletivo. Foi criado um folder, visando constituir-se como um modo de dar visibilidade e inserir as vivências lésbicas e bissexuais no curso histórico.

Palavras chave: vulnerabilidade; prevenção; IST; lésbicas; bissexuais;


ABSTRACT

This research aimed to discuss preventing strategies of STI/HIV and provide a participatory group process among lesbians and bisexuals women. The research-intervention was used, following analytical-institutional framework. Five participants (two lesbians and three bisexuals) were selected, with whom three focal groups were performed. The participants’ prevention experiences were prescriptive, biomedical and heteronormative. It was reported a lack of preparation of health professionals to attend this population, contributing to their unfeasibility and vulnerability. As effects of the intervention of research, there was sensitization of the participants in relation to the theme and their displacement from an individual/private experience to a collective plan. A folder was created, aiming to constitute as a way to give visibility and insert the lesbian and bisexual experiences in the course of history.

Keywords: vulnerability; prevention; IST; Lesbians; Bisexuals;

 

 

Pouco mais de três décadas após o início da pandemia de AIDS, com o desenvolvimento de medicamentos e tratamentos que estabilizam o HIV, a prevenção e a educação em saúde continuam sendo um dos principais focos de formulação de políticas e ações neste campo. A prevenção primária é constituída por medidas que visam evitar a instalação de agentes que possam causar doenças (Czeresnia, 2009). No caso das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s)-Aids, a prevenção primária apoia-se nos métodos de barreira, como o uso de preservativo, o qual tem se constituído como um dos principais focos das políticas públicas brasileiras. A prevenção está atrelada a um exercício de educação em saúde, compreendido enquanto um processo de transformação do sujeito na relação com seu corpo e sexualidade. Existem diferentes modelos de prevenção em saúde, conformando uma heterogeneidade de abordagens. Meyer, Mello, Valadão & Ayres (2006), Ayres (2002), Paiva (2000), criticam os modelos centrados na prescrição de condutas, onde os técnicos supostamente sabem e prescrevem o que é melhor para o outro, com o pressuposto de que a prevenção seria algo a ser ensinada, numa perspectiva racional-cognitiva. Também criticam as pedagogias do medo, centradas na doença e seus aspectos biomédicos. Segundo Ayres (2002), a primeira lição aprendida, ainda no início da epidemia, “é que o caminho do terror, do susto, de que quanto mais assustadora a propaganda melhor seu efeito preventivo, é extremamente limitado” (p. 14)

Da crítica a esses modelos surgem novas experiências e propostas. Entre as características consideradas inovadoras, reside a proposição de que elas sejam construídas “em conjunto” com as pessoas e grupos afetados e não apenas “para” eles, suscitando a emergência de pesquisas e ações no campo assistencial com caráter participativo. Neste contexto, o conceito de vulnerabilidade passa a orientar as ações de prevenção e educação em saúde (Meyer et al, 2006; Ayres, França-Jr, Calazans, & Saletti Filho, 2008; Paiva, 2008). A vulnerabilidade é concebida como “esse movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento” (Ayres et al, 2008, p. 127).

O gênero, enquanto um marcador social, constitui-se como um importante aspecto a ser considerado nas análises de vulnerabilidade, possibilitando analisar as construções sociais em relação ao masculino e feminino. Para Scott (1995), o gênero pode ser compreendido como um saber construído historicamente acerca das diferenças sexuais e das hierarquias estabelecidas através dessa diferenciação. Segundo Louro (2000), a sexualidade, longe de ser algo natural e vivido universalmente da mesma forma, envolve linguagem, representações, símbolos, rituais, fantasias, enfim, processos culturais e plurais que não se esgotam. É constituída historicamente a partir de discursos “que regulam, normatizam, instauram saberes, que produzem ‘verdades’” (Louro, 2000, p. 6).

Considerando-se uma inquietação dos autores despertada pela percepção de uma inexistência de campanhas ou ações de prevenção direcionadas às mulheres lésbicas e bissexuais, surgiu o interesse na realização de uma pesquisa que pudesse se aproximar desse público e de suas percepções sobre o tema. Carvalho, Souza & Calderaro (2013), desenvolvem a compreensão de que houve um apagamento histórico das vivências lésbicas, refletindo-se - em nosso tempo presente -, na quase ausência de políticas de saúde específicas para este público. Palma e Orcasita (2017) referem a existência de um vazio de informações acerca da prevenção entre mulheres lésbicas e bissexuais, a despeito do crescimento das infecções pelo HIV, colocando como pauta do dia a criação de diretrizes de intervenção para esta população.

Diante disso, propusemos uma pesquisa com os seguintes objetivos: - conhecer a percepção e as estratégias de prevenção às IST/Aids entre mulheres lésbicas e bissexuais; - proporcionar um processo grupal participativo e de coanálise sobre o tema da prevenção entre lésbicas e bissexuais; - criar um material educativo, em caráter participativo, que expressasse o que esse grupo considera importante no tocante ao tema da prevenção às IST/Aids.

 

MÉTODO

Utilizamos a abordagem da pesquisa-intervenção, seguindo o referencial da análise institucional. A pesquisa-intervenção é uma metodologia de pesquisa que consiste em “uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades” (Rocha & Aguiar, 2003, p. 66)[1]

Essa metodologia visa a um comprometimento ético que vai além do campo enquanto lugar para coleta de dados, percebendo-o como um espaço de fazer político, que busca romper com a lógica de pesquisador como detentor do saber. A pesquisa-intervenção também visa pôr em análise “as instituições que determinam a realidade sócio-política e os suportes teórico-técnicos, construídos no território educacional. Não há, portanto, o que ser revelado, descoberto ou interpretado, mas criado” (Aguiar & Rocha, 2003, p.72).

Para a seleção das participantes, foi utilizada a técnica denominada “snowball” (bola de neve), que consiste em uma rede de indicações, utilizando cadeias de referências “onde os participantes iniciais de um estudo indicam novos participantes que por sua vez indicam novos participantes e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo” (Baldin & Munhoz, 2011, p. 332). Foram selecionadas duas participantes-chave, vinculadas a uma ONG LGBT do município de Irati-Paraná, que indicaram mais 2 participantes cada, as quais foram convidadas a participar da pesquisa. Entretanto, uma das mulheres indicadas não compareceu aos grupos, resultando em 5 participantes, todas universitárias, com idades de 18 a 24 anos, que se auto classificaram como lésbicas ou bissexuais.

O grupo focal foi escolhido como dispositivo pois possibilita a produção dos dados em interação entre os participantes (TRAD, 2009), ativando um potencial transformador de suas percepções/ações, em consonância com as prerrogativas da pesquisa-intervenção. A Análise Institucional propõe trabalhar com o grupo instituinte, onde o próprio grupo possa produzir novas maneiras de se organizar, explicitando os processos que o atravessam. Trabalha também com os conceitos de Auto-análise e Auto-gestão, que consistem em processos nos quais o próprio coletivo percebe suas demandas, avalia as condições em que estão e se tornam protagonistas na tomada de decisão sobre as próprias problemáticas (Baremblitt, 2002). Cabe ao pesquisador auxiliar nesse processo grupal, porém, sem assumir a posição de quem teria as soluções preestabelecidas.

Foram realizados três grupos focais, sendo que as cinco participantes estiveram presentes em todos eles. No primeiro o tema-foco foi a compreensão acerca da percepção das participantes sobre a prevenção e o interesse no debate sobre o tema. O segundo encontro teve como temas-focos: o levantamento de aspectos que elas consideram pertinentes no âmbito da prevenção; identificação das vulnerabilidades da população lésbica e bissexual; análise da proposta e construção de um esboço de um material que pudesse expressar as informações que as participantes consideram importantes acerca do tema da prevenção às IST/Aids entre lésbicas. No terceiro grupo foi discutida a construção de um folder, suas potencialidades e as limitações dos meios de prevenção entre lésbicas e bissexuais. Este momento também marcou a restituição da pesquisa, compreendido como um momento de colocar em análise os resultados e as interpretações realizadas através da pesquisa. Nessa perspectiva, trata-se de assumir uma relação entre pesquisador e participante que não é neutra: “se a população estudada recebe esta restituição, pode se apropriar de uma parte do status do pesquisador, se tornar uma espécie de ‘pesquisador-coletivo’, sem a necessidade de diplomas ou anos de estudos superiores” (Lourau, 1993, p. 56). Os grupos foram áudio-gravados e transcritos.

 

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste.

Durante o processo de pesquisa, a primeira autora, na posição de pesquisadora e orientanda de Iniciação Científica, e o segundo autor, na condição de orientador, reuniam-se antes e após a realização de cada grupo focal, buscando analisar os movimentos em curso no processo de pesquisa. Além disso, discutiam também o uso de conceitos-ferramentas que pudessem auxiliar na leitura do processo de pesquisa. Em uma conversa com Foucault, Deleuze afirma que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas (...). É preciso que sirva. É preciso que funcione” (Foucault & Deleuze, 1979, p. 71). Nesta perspectiva, os conceitos são operativos da realidade, auxiliando no processo de desnaturalização dos fenômenos.

No exercício de análise dos dados para a redação deste artigo, procedemos a leitura do material transcrito e das memórias das discussões realizadas em supervisão. Guizardi, Lopes e Cunha (2011) afirmam que assumir uma perspectiva institucionalista implica em “buscar olhar com estranhamento para o nosso cotidiano, para a maneira como em nossa sociedade se constroem relações que nos parecem tão naturais, a ponto de não conseguirmos pensar que elas poderiam ser diferentes” (p. 200). Acompanhando esse pensamento, buscamos identificar, durante a leitura do material, os momentos da pesquisa em que movimentos de ruptura foram produzidos, possibilitando evidenciar o tensionamento entre as forças instituídas e instituintes.

O campo da saúde é perpassado por diferentes modelos e saberes, em tensionamento, em disputa. Nesse sentido, prevenção e gênero serão analisados, sob a ótica institucionalista, como instituições (Baremblitt, 2002), na medida em que conformam um conjunto heterogêneo de regras e normas (formais e informais) que se insinuam sobre os modos de vida e os modos pelos quais nos tornamos sujeitos. Enquanto instituições, possuem movimentos de transformação, denominados “instituintes”, e movimentos de estabilização e sedimentação, denominados de instituídos.

Tendo por base essa compreensão, produzimos cinco linhas de análise, as quais colocam em evidência tais movimentos de ruptura, confrontação ou cristalização ao longo do processo de pesquisa. As linhas de análise articulam os analisadores, que “funcionam como catalizadores de sentido, desnaturalizando o existente e suas condições e realizando a análise” (Aguiar & Rocha, 2003, p. 71). O analisador pode ser uma fala, uma imagem ou qualquer aspecto que possibilite a explicitação das forças e tensões que constituem determinado fenômeno social.

Visando preservar o anonimato das participantes as falas serão identificadas como Participante 1, Participante 2, Participante 3, Participante 4 e Participante 5.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

A Pesquisa como Disparadora de Reflexão

Logo no início do primeiro grupo, ao serem indagadas sobre o que pensaram a partir do convite para a pesquisa, uma das participantes relata: “Eu pensei ‘Meu Deus, tô fazendo tudo errado’, porque eu não, sabe tipo, nunca tinha colocado nada sobre a prevenção no sexo lésbico, (...) eu me assustei assim tipo de, daí que eu fui pesquisar sobre alguma coisa assim em blog, sapatômicas” (Participante 1, grupo focal, 03 de maio, 2016). Essa fala foi consoante a outras falas no grupo e demarca, ao mesmo tempo, um aspecto instituído e um movimento instituinte. O primeiro está relacionado à percepção de que aquele não era um tema presente na vida delas. O segundo é expresso pelo movimento de interrogação acerca do tema, levando-as a pesquisar e movimentar ideias e discussões que até então não haviam sido pensadas com uma maior atenção. Relatam terem recorrido a buscas sobre o tema da prevenção às IST-HIV em vlogs da comunidade LGBT, no Youtube e em outras plataformas online. Esse movimento possibilita afirmar a indissociabilidade entre pesquisa e intervenção, visto que o próprio convite mobilizou as participantes a buscar informações sobre o tema da pesquisa. A pesquisa atua enquanto “proposta de atuação transformadora da realidade sócio-política, já que propõe uma intervenção de ordem micropolítica na experiência social” (Aguiar & Rocha, 2003, p. 67).

A necessidade de uma busca de informações foi justificada pelo fato de que as participantes se sentiam distantes do tema e, ao mesmo tempo, curiosas a partir do convite. Esse movimento constitui-se como um analisador que revela o baixo acesso a ações de prevenção destinadas a esse público. As participantes relataram não encontrar, conhecer ou terem tido contato com campanhas ou ações abordando a saúde da mulher lésbica ou bissexual, ou - ainda mais especificamente - sobre prevenção à IST/HIV. Os métodos de prevenção que conheciam eram de origem da própria vivencia e compartilhamento de experiências com outras mulheres, ainda que consideradas pouco usuais e práticos, como a utilização de plástico filme ou a camisinha feminina.

As principais fontes de informações sobre prevenção constituíram-se, portanto, pelas relações pessoais e pelo acesso as redes virtuais, ressaltando o papel das mídias no processo educativo e de constituição dos sujeitos (Fisher, 2002). Entretanto, chama a atenção que o site do Ministério da Saúde ou de outras organizações e órgãos públicos não tenham se constituído como um ponto de referência para tal assunto. Tendo por base o princípio de universalidade do Sistema Único de Saúde-SUS, todos os cidadãos têm direito a acesso a saúde, de forma integral. Ao mesmo tempo, esse acesso deve seguir ao princípio de equidade, que envolve um tratamento diferenciado – singularizado – para os desiguais, sem que ocorra discriminação ou preconceito (Brasil, 1990).

 

Prevenção: Como Fazer e a Quem se Destina?

Através das conversas nos grupos, ficou evidente que o distanciamento das participantes com o tema não significava que elas já não tivessem sido alvo de campanhas ou ações de prevenção, mas que não havia produzido sentido por serem direcionadas para públicos com os quais elas não se identificavam ou através de estratégias onde elas não se reconheciam. Nesse sentido, abre-se a discussão: como é feita e a quem se destina a prevenção? O contato que as participantes tiveram com campanhas de prevenção eram geralmente direcionadas à prevenção das então chamadas “Doenças Sexualmente Transmissíveis” (DST), HIV e também de gravidez indesejada, tendo como principal método preventivo a camisinha masculina ou, no caso da prevenção a gravidez, a pílula anticoncepcional. As informações referentes a estes temas eram vistas em cartazes afixados em locais de circulação, comerciais de TV e nas unidades de saúde. Também mencionaram campanhas trabalhadas por professores e equipes de saúde nas escolas, “com imagens fortes” das IST’s, que assustavam e tinham como principal ação de prevenção o discurso moral com relação às práticas sexuais e a utilização da camisinha masculina. O discurso moral envolve enunciados que permitem valorar e classificar os comportamentos que envolvem componentes sexuais como certo ou errado, adequado ou inadequado. Foi destacado pelas participantes a percepção de que, mais recentemente, há a presença de campanhas voltadas à população de homens gays, tendo como método de prevenção a camisinha masculina, mas nada que se referisse à saúde da mulher lésbica e bissexual.

As falas das participantes abrem caminho para a expressão de dois analisadores. O primeiro coloca em evidência o caráter heteronormativo das ações de prevenção. O segundo, evidencia o caráter biomédico e prescritivo que perpassa os modelos de prevenção. Tanto o caráter heteronormativo quanto o viés biomédico e prescritivo constituem-se como aspectos instituídos que atravessam as ações de prevenção.

As campanhas e ações de prevenção que as participantes relataram ter contato ao longo de suas vivencias foram constituídas pelo viés heteronormativo. Nardi, Silveira e Machado conceituam a heterenormatividade como a “forma como a heterossexualidade é tida como a norma a partir da qual se classificam as sexualidades” (2003, p. 20), resultando em um processo de heterossexualidade compulsória, que consiste em pensar e agir como se todas as pessoas que compõe a sociedade fossem heterossexuais.

Rich (2010) propôs o conceito de heterossexualidade compulsória, segundo o qual compreende que existe um heterocentrismo na forma de organização social. Dentro desta perspectiva, todas as ações, incluindo as de prevenção, seriam formuladas e direcionadas através da pressuposição da heterossexualidade.

Em relação ao segundo analisador, os modelos biomédicos e prescritivos de prevenção ficam evidenciados pelas ações que tem como foco a doença (imagens, sinais, sintomas), desconectada das formas de vida e de marcadores (desigualdade de gênero, identidade de gênero, orientação sexual, raça/etnia) que constituem dimensões de vulnerabilidade. As ações de prevenção as IST’s vivenciadas pelas participantes estavam atravessadas por pressupostos de que as IST’s eram problemas individuais e que deveriam ser combatidas na vida privada. Apesar de Ayres (2002) ter anunciado as lições sobre a prevenção à Aids e os desafios “atuais” em artigo publicado há 15 anos, é possível perceber a atualidade das colocações do autor e o quanto a superação daquele modelo de prevenção continua sendo um desafio. Segundo Paiva (2008), nos modelos tradicionais de prevenção, “Fala-se de comportamentos e práticas sexuais de risco, sem sentido, sem contexto, sem pessoa” (p. 642), pressupondo a “existência de um sujeito humano potencialmente livre e autônomo” (Meyer et al., 2006, p. 1336).Também esses programas costumam partir de uma lógica na qual seria possível “passar” esses conhecimentos sobre as doenças e as formas de prevenção, vendo o educador como aquele que transmite o conhecimento e o educando como o recipiente vazio que recebe a informação e o conhecimento do outro (Paiva, 2000). Esse modelo pode ser caracterizado pelo viés prescritivo, ou seja, que parte do pressuposto de que alguns sabem e devem repassar o conhecimento aos que não sabem, servindo a eles para tomarem decisões.

Paiva (2008) discute as contribuições de perspectivas construcionistas para a formulações de políticas e ações de prevenção. Emergente na segunda metade do século XX, o construcionismo “interpretou melhor novos desafios, como a epidemia da Aids, especialmente em contextos de desigualdade e violação de direitos, inspirando a prevenção baseada na análise de gênero e compreensão de cenários, cenas, scripts e trajetórias de sujeitos sexuais” (Paiva, 2008, p. 641). Uma das características desta abordagem é a valorização dos grupos afetados pela Aids e a construção de iniciativas envolvendo-as como formuladores e participantes de teorias e intervenções.

É no bojo dessas experiências e perspectivas que buscamos inspiração para a constituição desta pesquisa, onde compreendemos que o pesquisador propicia condições para que um processo grupal se desenvolva, insere problemas a serem discutidos junto ao coletivo, assim como deixa-se tomar pelos problemas que o coletivo produz, transformando-se também nesse processo. Ao mesmo tempo, não oferece soluções prontas, desconstruindo o lugar do ‘expert’, mas busca auxiliar na criação de condições para que o grupo se reúna, produzindo análise e cogestão dos problemas.

 

(In)visibilidades em Questão – “Quero ser Vista, Não Quero ser Exposta”

Essa linha de análise coloca em evidência o processo de produção da invisibilização da vivência lésbica/bissexual e seus efeitos, deslocando-a do lugar de naturalidade para o lugar de problema a ser interrogado.

Das 5 meninas que participaram do grupo, 3 já fizeram teste de HIV e outras DST’s. Todas já foram ao ginecologista pelo menos 1 vez e 1 participante foi mais de uma vez. Destaca-se, na fala de todas as participantes, a percepção de despreparo dos profissionais de saúde, especialmente das(os) ginecologistas, para recebe-las e trabalhar com suas demandas. Nos atendimentos ginecológicos foram alertadas somente sobre a prevenção de uma gravidez indesejada. Na fala de uma das participantes:

a minha primeira consulta que eu fui, que eu tive com um ginecologista assim, que era ‘uma’ ginecologista até por sinal, que eu me sentia mais confortável, né!? E ai eu fui, e ela me perguntou se eu já tinha, já tinha tido relação, falei que sim e ela perguntou o que que eu utilizava como método contraceptivo, ou seja, não preciso me proteger de nada, só de uma gravidez indesejada (...). Ai eu falei pra ela que eu não, nunca tinha usado nenhum método contraceptivo porque eu nunca tinha tido relação com homens, só com mulheres, e que eu tinha uma companheira, e ai ela me falou “Ah, ta bom”. Tipo?? Não, não teve uma informação. (Participante 2, grupo focal, 03 de maio, 2016)

Como desdobramento desta forma de abordagem, as participantes relataram o afastamento dos serviços de saúde e consultas com ginecologistas ou, na ocorrência dessas, o ocultamento da orientação sexual com fim de evitar constrangimentos e experiências de lesbofobia. Em decorrência disso, passaram a não perceber em seu cotidiano a necessidade desse acompanhamento.

Esse aspecto indica um aumento da dimensão institucional da vulnerabilidade, relacionada à oferta de ações e programas a uma determinada população (Ayres et al, 2008). O conceito de vulnerabilidade, tal qual perspectivado por Ayres et al (2008), considera que o risco de exposição a um evento não é determinado unicamente pelo sujeito, havendo várias dimensões que interagem na sua produção.

As experiências relatadas são consoantes com as descritas no estudo de Carvalho et al (2013), onde constatou-se despreparo dos profissionais de saúde para a abordagem e atendimento de lésbicas e bissexuais em serviços de saúde. Segundo Paiva (2008), estudos constataram “que no Brasil e em outros países latino-americanos, os profissionais que trabalham em programas públicos dedicados à sexualidade jovem quase sempre atuam com base em suas crenças e valores pessoais” (p. 643-644). Bjorkman & Malterud (2009) coletaram, na Noruega, relatos de 128 lésbicas acerca das experiências de atendimento médico, constatando que parte dos relatos ressaltou que os médicos costumam tomar como pressuposto a heteronormatividade, sendo necessário intervenções das mulheres para informar a orientação lésbica. Mas também encontraram relatos positivos em relação a posturas profissionais. Por fim, concluíram que é necessária a articulação de três dimensões: que os médicos tomem consciência da orientação sexual lésbica; que tenham atitudes positivas em relação a elas, sem preconceito e discriminação; e, por fim, que possuam conhecimentos médicos adequados a realidade delas.

Um importante atravessamento que se expressa nessa discussão diz respeito a constatação acerca da invisibilidade da mulher lésbica e bissexual nas políticas de saúde. Uma das hipóteses para a invisibilidade de campanhas governamentais para lésbicas é a consideração de que o risco de IST entre lésbicas seria menor do que entre heterossexuais. Entretanto, essa consideração parte de um viés heteronormativo, que acaba por hierarquizar o que é mais ou menos importante.

Rich (2010) estabelece uma crítica ao processo de invisibilização das lésbicas, mesmo dentro dos discursos feministas. As análises da autora partem da constatação em relação à “negligência total ou virtual da existência lésbica em um amplo conjunto de textos, inclusive da produção acadêmica feminista” (2010, p. 22). Convergindo para esta constatação, uma das participantes relata: “Acho que até as vezes nos espaços LGBT’s é uma coisa não dita (...). até quando a gente fez aquele curso lá de LGBT, teve toda uma palestra lá sobre prevenção em homens gays, homens bissexuais, mas tipo, não foi citado sobre as mulheres lésbicas” (Participante 4, grupo focal, 03 de maio, 2016).

Rich (2010), discute o processo de invisibilização, afirmando que:

As lésbicas têm sido historicamente destituídas de sua existência política através de sua “inclusão” como versão feminina da homossexualidade masculina. Equacionar a existência lésbica com a homossexualidade masculina, por serem as duas estigmatizadas, é o mesmo que apagar a realidade feminina mais uma vez. (Rich, 2010, p. 36)

Esse silêncio produzido historicamente grita na escassa discussão sobre a saúde da mulher lésbica e bissexual dentro do âmbito da saúde pública frente ao cuidado com outras parcelas da população.

Ao discutirem os processos de (in)visibilidade, as participantes destacam o desafio de tornarem-se visíveis, mas sem se exporem. Essa discussão surge a partir da frase “Eu quero ser vista, mas eu não quero ser exposta”, presente em um dos vídeos discutidos no terceiro grupo. A participante 2 afirma:

A gente não vai desenvolver o látex, a gente não vai desenvolver a calcinha, mas a partir do momento que a gente começa a levar essas micro discussões pro macro, as vezes as pessoas vão começar a se dar conta que é verdade, essa galera existe e precisa pensar nisso, sabe?! Porque as vezes as pessoas não deixam de lado por má fé, mas porque isso não é uma coisa que toca elas no dia a dia, isso não chama atenção, cabe a nós cobrar isso. (Participante 2, grupo focal, 01 de junho, 2016)

Como efeito do processo grupal, ocorre um movimento que desloca a temática da prevenção entre lésbicas e bissexuais de um âmbito individual para um âmbito coletivo, remetendo não somente as participantes do grupo, mas a toda uma população de mulheres que “estão no mesmo barco” (Participante 1, grupo focal, 31 de agosto, 2016).

No processo de restituição da pesquisa, a participante 1 relata que quando foi convidada para participar do grupo ela pensou “Nossa, estou fazendo tudo errado”, e, diante dessa percepção, acreditou que iria “levar um sabão” (Participante 1, grupo focal, 31 de agosto, 2016). Porém, com os grupos, percebeu que não era um problema individual, mas expressava algo que surgia para todas as meninas ali, o que a fazia sentir-se reconfortada.

As participantes perceberam o grupo enquanto uma ação micropolítica, que possibilitou movimentar uma questão, por em pauta uma discussão. Tornar visível sem expor a mulher lésbica e bissexual evidencia o desejo de reconhecimento, sem que seja necessária exposição.

As (im)possibilidades de Prevenção: “É Como Você Estar na Cama Elástica, Mas Não Pode Pular”.

Considerando-se o caráter participativo e dialógico da pesquisa, no terceiro grupo focal foram levados dois vídeos, visando disparar a discussão acerca das (im)possibilidades de cuidados preventivos no sexo lésbico. O primeiro de um vlog LGBT[2] no qual a apresentadora, mulher lésbica – em um clima descontraído - leva a um médico voltado a estudar gênero e diversidade sexual, as dúvidas quanto às possibilidades de prevenção à IST’s e HIV no sexo entre mulheres, bem como ressalta a importância de discutir a saúde da mulher lésbica e bissexual.

Já o segundo vídeo retrata a experiência de um Congresso realizado pelo Ministério da Saúde para discutir as políticas públicas voltadas à saúde da mulher lésbica e bissexual, tendo estas como protagonistas dessa discussão.

A exibição dos vídeos disparou discussões acerca de questões que não haviam ganhado pauta até aquele momento, com destaque para as percepções de possibilidades ou impossibilidades de prevenção frente ao uso de recursos como a camisinha feminina e o plástico pvc. Justamente o que constitui o fator de prevenção (a barreira da troca de fluidos) é considerado pelas participantes como algo que retira o prazer da relação sexual.

Quando o entrevistado do 1° vídeo informa que em um sexo seguro não poderia haver a troca de secreções, todas as participantes afirmam diferentes frases que retratam um mesmo cenário, sendo que uma delas menciona a seguinte metáfora: “Tipo, você tá numa cama elástica mas você não pode pular” (Participante 3, grupo focal, 01 de junho, 2016). Outra participante afirma “Com a camisinha feminina, ela fica pra fora [da vagina]. Assim, tipo, dá [para usar], entendeu? [...]ela não cobre toda a região do clitóris, até que cobre assim, da né mas aquele negócio da balinha né, cê fica sentindo gosto de plástico” (Participante 1, grupo focal, 01 de junho, 2016). Há um consenso, no grupo, de que o sabor das secreções vaginais faz parte do prazer sexual, o que ficaria inibido com o uso de barreiras.

As participantes ainda questionam se a não utilização de métodos de prevenção na maioria de suas relações não teria relação com uma historicidade. Questionam se esse dado seria diferente caso houvesse visibilidade da mulher lésbica e bissexual, bem como se a utilização da camisinha feminina fosse trabalhada historicamente nas ações de prevenção. Na fala de uma das participantes “se com a camisinha que é heteronormativa já acontece isso (tabu com relação ao uso da camisinha) imagina com látex pra lésbica?!” (Participante 3, grupo focal, 01 de junho, 2016). Nesse sentido, as próprias participantes desnaturalizam as formas de enxergar e dar sentido às práticas sexuais e de prevenção, compreendendo que suas percepções estão conectadas com uma produção histórica.

Nesta discussão, também foi importante a análise de implicação dos pesquisadores, que corresponde a análise das posições ocupadas e relações desenvolvidas com as instituições (Baremblitt, 2002). Observou-se que os pesquisadores possuíam a expectativa de que, a partir das discussões realizadas nos grupos, as participantes pudessem aderir aos métodos preventivos ou criar novas possibilidades de prevenção. Entretanto, observou-se que elas indicaram não considerar os métodos disponíveis totalmente viáveis, não conseguindo elaborarem (no recorte temporal da pesquisa) outras alternativas.

Esse aspecto atualiza a necessidade de criação de uma cultura preventiva e de compartilhamento de possibilidades de obtenção do prazer que não estejam em campo oposto ao da prevenção. Ayres (2002) afirma a necessidade de construção e manutenção de uma cultura preventiva, “universalizada, sustentada, plural e versátil para o conjunto da sociedade” (p. 14). A ideia de cultura preventiva é transversal aos modos de vida, perpassando a vida escolar e outros âmbitos de formação dos sujeitos. Também fica ressaltada uma aparente contradição: as participantes relatam pouca informação sobre os métodos de prevenção; mas, na medida que tem acesso às informações, consideram os métodos de prevenção pouco aplicáveis a elas. Essa contradição indica que a informação (apesar de necessária) não garante mecanicamente a prevenção, visto que a adesão ao uso do preservativo não é apenas uma decisão racional calcada na informação, mas permeada pelas percepções de prazer/desprazer, avaliação de risco, sentimentos/afetos, entre outros aspectos, ressaltando a necessidade de modelos de prevenção não calcados apenas na informação, mas que possam abordar o sujeito a partir de sua realidade, suas cenas e scripts sexuais (Paiva, 2000).

 

A Formulação do Folder: Produzindo Visibilidades

A proposta de formulação de um folder partiu dos pesquisadores, com a intenção de que a pesquisa pudesse ter, como um de seus produtos, um material produzido por e distribuído para mulheres lésbicas e bissexuais, fomentando o tema da prevenção de modo contextualizado, dado o caráter participativo de sua produção. Tal proposta foi colocada em análise no grupo, interrogando-se seu sentido e possíveis efeitos. As participantes destacaram que a criação do folder era importante, na medida em que emergia como uma forma de reconhecimento da existência lésbica e bissexual.

Butler (2010) propõe uma leitura onde desconstrói a obviedade da vida enquanto viver biológico, inserindo a discussão sobre o reconhecimento. Segundo a autora, os processos de reconhecimento são permeados por marcadores que hierarquizam os sujeitos, fazendo com que algumas vidas sejam qualificadas como “valendo mais” que a vida de outros. As desigualdades de gênero expressam esse processo. Para Butler (2010), uma vida só pode ser apreendida como viva - e, portanto, passível de ser investida - na medida em que é reconhecida: “Se certas vidas não se qualificam como vivas – não são concebidas como vidas dentro de certos marcos epistemológicos - tais vidas nunca se considerarão perdidas no sentido pleno da palavra” (p. 13). Nesse sentido, o processo de reconhecimento é fundamental para que uma vida possa ser considerada viva e investida enquanto tal, dialogando com a percepção das participantes do grupo sobre a função de um folder. Entretanto, para além do reconhecimento enquanto legitimação de existência, é necessário que este processo esteja atrelado a valorização da vida e não a sua exploração, sendo esse um risco indicado por Butler (2010).

Uma das participantes sugeriu desenvolver algo que fosse acessível e prático de ler, “livreto fica cansativo, fazer uma coisa mais prática” (Participante 3, grupo focal, 01 de junho, 2016). Surgiu também a preocupação em produzir algo que veiculasse uma mensagem de afeto às mulheres lésbicas e bissexuais, ao mesmo tempo que ressaltasse a questão da visibilidade, sinalizando na capa do folheto o arco-íris LGBT e a imagem de duas mulheres abraçadas num ato de amor e cuidado. A participante 2 faz um apontamento que todas consideram pertinente: “Como acessar aquelas mulheres que ainda não teriam assumido sua sexualidade, mas também estavam em uma situação de vulnerabilidade?”.

Um ponto de tensão nas discussões versou sobre a presença da informação sobre o preservativo. Algumas consideravam importante a informação, enquanto outras ressaltavam receios, como o de “ser hipócrita em colocar no folheto coisas que nem elas fazem” (Participante 4, grupo focal, 01 de junho, 2016). Ao final, decidem colocar a informação sobre o preservativo, considerando que o folder não deveria ser visto de forma isolada. Este debate expressa os tensionamentos entre o modelos biomédico e prescritivo em relação aos modelos participativo e construcionista. Apesar do folder propiciar condições para o reconhecimento das mulheres lésbicas e bissexuais, ainda esbarra em instituídos do campo da prevenção, como a veiculação do preservativo com caráter prescritivo, visto que as participantes não conseguiram construir outro modo de veiculação do mesmo.

Concluem sobre as informações que nele deveriam conter e de que forma abordar as leitoras. A participante 4 e a participante 2 sugerem iniciar os tópicos de conteúdo com frases convidativas como “Você já pensou...” (Participante 4, grupo focal, 01 de junho, 2016), introduzindo as leitora à temática e “Você já teve esses sintomas?” (Participante 2, grupo focal, 01 de junho, 2016), citando - em seguida - os sintomas mais comuns nas IST’s entre às mulheres lésbicas e bissexuais.

Na última página do folheto constam fontes que indicam onde as leitoras poderiam encontrar mais informações sobre o tema, bem como os locais para realização do teste para HIV, sífilis e hepatites B e C no município.

Uma preocupação apresentada por elas foi com relação à forma de distribuição e disponibilização desse material a população, sendo sugerido a sua disponibilização nas escolas, Unidades Básicas de Saúde, locais de referência e também a disponibilização on-line.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O referencial da pesquisa-intervenção mostrou-se oportuno para a produção de dados sob um viés participativo, propiciando a ampliação do grau de compreensão das participantes acerca das instituições que se insinuam sobre as vivências lésbicas e bissexuais, especialmente a interrelação entre gênero e prevenção. Constatou-se que a percepção de ausência de políticas e ações de prevenção às IST-Aids para mulheres lésbicas e bissexuais está atrelada a invisibilização social desse público. As experiências relatadas evidenciam aspectos instituídos no campo da prevenção, relacionados ao caráter biomédico e prescritivo das intervenções, assim como seu viés heteronormativo, com informações que não condizem com o contexto e demandas das participantes, acentuando a dimensão programática da vulnerabilidade.

A análise do processo de pesquisa evidenciou a confrontação entre aspectos instituídos e instituintes da realidade, ressaltando os movimentos de desnaturalização das experiências lésbicas e bissexuais. O uso de conceitos como heteronormatividade, gênero, vulnerabilidade como ferramentas auxiliou nesse processo, propiciando a ampliação do grau de compreensão acerca dos temas em debate. Devemos ressaltar que, segundo Baremblitt (2002), a autoanálise e a autogestão não são nunca atingidos em seu estado último, mas se constituem como direções de trabalho. Destacamos que um dos principais efeitos da pesquisa ocorreu pelo deslocamento do tema da prevenção de um âmbito individual/privado para um âmbito coletivo, expressando um processo de politização das participantes.

Em relação as limitações da pesquisa, destaca-se que as participantes eram jovens e universitárias. Torna-se relevante outras pesquisas que possam abranger mulheres lésbicas e bissexuais de outras faixas geracionais e ocupações. Além disso, destaca-se que um aspecto permaneceu em aberto no grupo: apesar de ampliarem a compreensão acerca dos aspectos que as tornam vulneráveis às IST, elas não consideraram totalmente viáveis os meios de prevenção disponibilizados, seja porque os consideram descontextualizados, seja pela percepção de que eles estão vinculados a diminuição do prazer sexual. Nesse sentido, permanece em aberto a discussão em torno da educação em saúde e conformação de uma cultura da prevenção entre mulheres lésbicas e bissexuais, produzidas conjuntamente com esse público e acompanhado da avaliação de sua efetividade.

 

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Recebido em 15/06/2017
Aceito em 14/08/2017

 

Endereço para correspondência:

Monique Cristina Henares Batista

Universidade Estadual do Centro-Oeste

R. Salvatore Renna, 875

CEP: 85015-430 – Santa Cruz, Guarapuava/PR

 

 

1 A pesquisa recebeu apoio da Fundação Araucária, através de bolsa de Iniciação Científica (IC), vinculada ao edital de Ações Afirmativas (AF), atribuída ao primeiro autor.

2 Canal das bee. (2015, 1 de dezembro). Saúde sexual para lésbicas - Pergunte Às Bee 104. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=eTh4KDvfe2M

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