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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.11 no.2 Juiz de Fora dez. 2017

http://dx.doi.org/10.24879/2017001100200185 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/2017001100200185

 

Entre o urbano e o rural: afetações nos encontros de uma pesquisa em saúde

 

Between the urban and the rural: affectations within the encounters in a research in health

 

 

Gislene Aparecida LacerdaI; Luciana KindII

IEscola de Saúde Pública

IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é expor as interações entre pesquisadora, profissionais de saúde e usuários do SUS no contexto rural, no material empírico de uma pesquisa de orientação etnográfica. O rural é pensado como o lugar do encontro entre o campo e a cidade, como um “espaço singular” e como um modo vida. Apoiadas nas contribuições dos estudos etnográficos, utilizaram-se, neste trabalho, recursos como observação participante, descrição densa e entrevistas com os profissionais da equipe de Saúde da Família que trabalham em povoados de um município de Minas Gerais. Acentuam-se, nos resultados e discussão, elementos do material empírico que permitem acompanhar cenas de estranhamento nos encontros proporcionados pela pesquisa.

Palavras chave: Etnografia. Ambientes rurais. Interação Social.


ABSTRACT

The objective of this text is to expose the interactions between the researcher, health professionals and SUS users, in the empirical material of an ethnographically oriented research in health. The rural is thought of as an encounter between the countryside and the city, as a “singular space”, and as a way of life. Supported by the contributions of ethnographic studies, we used field strategies such as participant observation, dense description and interviews with professionals of the Family Health team, who work at villages of the state of Minas Gerais. In the results and discussion section we highlight elements of the empirical material that lead us to follow scenes of estrangement within the encounters produced by the research.

Keywords: Ethnography. Rural Environments. Social Interactions.

 

 

Um dos principais desafios experimentados por pesquisadores iniciantes é a delimitação metodológica da pesquisa. Em nosso caso, pesquisávamos a saúde pública em contextos rurais, cenário pouco explorado pelas ciências sociais e humanas e pelas ciências da saúde. A intenção, desde o princípio, era produzir uma experiência de imersão em campo, aqui entendido como o propõe Spink (2003), sendo delimitado desde que se decide o contexto da investigação. Desde a composição de autores e conceitos pertinentes ao estudo, o delineamento das estratégias de produção de material empírico e de apresentação da pesquisa, estamos falando em campo.

A orientação etnográfica pareceu-nos a escolha mais apropriada para o que pretendíamos construir. Alinhamo-nos ao posicionamento de Reigota (1999), quando afirma que sua opção pela pesquisa etnográfica se dá mais no sentido explicativo e linguístico do que na adesão a um método científico de pesquisa. Nesse sentido, apresentamos, neste texto, os conceitos, as ferramentas de registros e a postura reflexiva que aproxima a pesquisa realizada dos estudos etnográficos.

O interesse em estudar sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF) no contexto rural nasceu nas estradas e nos caminhos da roça percorridos pela primeira autora deste texto. Durante três anos, entre 2008 e 2011, atuou como psicóloga, compondo a equipe dos profissionais de saúde do município de Martinho Campos, na região central de Minas Gerais. Nos atendimentos pelos povoados e pelas casas, a autora foi descobrindo o quão sui generis são as interações com o “povo da roça”, como eles próprios se denominavam. Essa experiência abriu espaço para as indagações da presente pesquisa. A atenção à saúde da população rural é alvo de interesse técnico e exploração política desde o início do século XX, como argumenta Paiva (2016), embora o foco das ações e o desenvolvimento de ações tenham variado ao longo do tempo. Paiva (2016) mostra como os anos 1920 viram a exploração dos sertões com o propósito de conhecer e diagnosticar doenças característica daquele meio. No pós-guerra, os sanitaristas herdeiros do sanitarismo desenvolvimentista do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), com estímulo da Organização Panamericana de Saúde (Opas), desenvolvem agenda própria para pensar expansão de cobertura e interiorização de serviços. Nas palavras de Paiva (2016, p. 230), “subnutrição, planificação da saúde, assistência médica, recursos humanos, enfermidades transmissíveis, saúde animal, enfermidades crônicas e dental”, emergiram como temas de interesse intelectual e político.

Os anos 1970 foram marcados por experiências de interiorização que antecederam o Programa de Interiorização das ações de Saúde e Saneamento (PIASS) (Escorel, 1998), mas também pelo FUNRURAL, que, de acordo com a Lei Complementar nº 11, de 25/05/1971, era responsável pela execução do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, prevendo benefícios, como aposentadora e assistência à saúde ao trabalhador rural. Segundo Carneiro (2007) o benefício era direcionado ao trabalhador rural e aos seus dependentes, tendo como objetivo garantir a assistência médica, ambulatorial e hospitalar.

A consolidação da saúde como direito de todos com a Constituição Federal de 1988, deixou, como tarefa, a reordenação dos serviços de saúde, projeto construído ao longo dos anos 1990, com a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e o Programa de Saúde da Família. Este último passou a ser estratégia reestruturadora do SUS nos anos 2000 (Giovanella & Medonça, 2008).

Com foco específico para a população rural, a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF) acentua os princípios da universalidade, mas especialmente o da equidade, de modo a reconhecer as condições materiais de existência dos povos do campo, da floresta e das águas, como situações que os tornam mais vulneráveis a doenças e agravos evitáveis (Brasil, 2013). A Política se apoia na estrutura descentralizada, mas integrada nos três níveis de gestão, na territorialização da assistência e na intersetorialidade das ações.

A despeito de se tratar de um tema que ocupa sanitaristas e governos desde os anos 1920 e de se ter como expressão, na atualidade, a PNSIPCF, há lacunas na literatura científica sobre os desafios culturais e sociais que ocorrem nos encontros entre as equipes de saúde e a população residente em áreas rurais. A orientação etnográfica deste estudo viabilizou um olhar descritivo-analítico sobre esses encontros, colocando também em cena a pesquisadora responsável pelo trabalho de campo.

Na exposição aqui proposta, tomaremos a assistência à saúde da população rural como pano de fundo para apresentar os desafios da pesquisadora durante a imersão no território, mas também alguns dos dilemas enfrentados pelos participantes da pesquisa, profissionais de saúde, no encontro com a “roça”. A ênfase, portanto, reside nas dimensões das ruralidades e nas discussões sobre etnografia. O objetivo deste texto é expor as interações da pesquisadora e dos/as participantes do estudo com a população rural, em situações de observação ou de entrevista desenvolvidas na pesquisa de mestrado da primeira autora.

O rural, mais do que um espaço geográfico, é pensado como o lugar do encontro entre o campo e a cidade, como um “espaço singular”, como um modo vida. Wanderley (2004), ao discutir a ideia de município rural, apresenta a experiência do “village”, na França, que é considerado como um município rural que possui uma estrutura social e política, mas que é constituída pelas coletividades rurais.

Wanderley (2004) apresenta as ideias de diferentes autores que classificam municípios como rurais pelo tamanho populacional. De acordo com a autora, esse critério também é sugerido pela Organização das Nações Unidas (ONU), em que o urbano seria composto por municípios com mais de 20 mil habitantes. Mesquita e Ferreira (2016) acompanham essa delimitação no contexto brasileiro, assinalando a importância do Estatuto da Cidade, em 2001, como um importante marco para a delimitação de Planos Diretores Municipais em áreas rurais.

Temos, em relação às pequenas cidades, uma diversidade e uma dificuldade de definição. Como afirma Silva, “apesar da dificuldade de definição, podem-se caracterizá-las como centros resultantes de um processo histórico específico, dependentes de um centro maior, em relação com o meio rural, e marcadas pela proximidade entre as pessoas, e por uma temporalidade lenta.” (Silva, 2011, p.31).

Silva considera que não “há como abordar os pequenos municípios sem nos referirmos à influência que o rural exerce sobre sua economia, política, cultura e em toda a sua realidade social” (Silva, 2011, p.25). Nas discussões e definições acerca do rural e do urbano, duas grandes teorias se destacam: a dicotômica e a de continuum. Na visão dicotômica, cria-se uma polarização entre o rural e o urbano, sendo o urbano associado à ideia de novo, de progresso, e o rural ao velho, às antigas relações (Laubstein, 2011).

A teoria do continuum surge na década de 1930, como uma variante da teoria dicotômica. Nessa teoria, a relação entre rural e urbano deixa de ser vista como polarização antagônica e passa a ser vista como um gradiente de variações espaciais. Wanderley (2001) afirma que a teoria do continuum se divide em duas vertentes. A primeira está centrada no urbano como fonte do progresso e dos valores dominantes. Nessa vertente, existe o domínio de um polo sobre o outro, sendo que essa valorização do urbano levaria a uma homogeneização espacial e social que prioriza a urbanização, podendo provocar a extinção da realidade rural. A segunda vertente pensa o continuum rural-urbano como uma relação de integração entre os dois polos. Nessa perspectiva, “o continuum se desenha entre um polo urbano e um polo rural, distintos entre si e em intenso processo de mudanças em suas relações” (Wanderley, 2001, p.33). Assim, permanecem os dois polos como espaços integrados. No contexto da segunda vertente da teoria do continnum, surgem trabalhos que buscam uma nova alternativa metodológica para os estudos do rural, propondo-se o termo ruralidades (Carneiro, 1998; Wanderley, 2000; Veiga, 2006, Nunez & Bezerra Neto, 2016).

O cenário das ruralidades que fizeram parte da experiência profissional de uma das autoras a conduziu para a realização de sua pesquisa de mestrado, que teve por objetivo geral compreender as possibilidades e os desafios da atuação da Equipe de Saúde da Família no contexto rural. A escolha pela orientação etnográfica, como exposto anteriormente, colocou em relevo os encontros em campo, enfatizando estranhamentos ali produzidos. O propósito deste texto é expor as interações entre pesquisadora, profissionais de saúde e usuários do SUS no contexto rural, por meio da descrição analítica do material empírico, da observação participante e de entrevistas realizadas durante a pesquisa.

 

METODOLOGIA

Em seu estudo clássico, Malinowski (1922/1976) sistematizou o método etnográfico e apresentou alguns aspectos ali considerados como centrais. Dentre esses aspectos, ressaltamos o “viver entre os nativos”. Viver entre os povos pesquisados se torna uma premissa básica na etnografia de Malinowski. É a partir dessa entrada na rotina dos povos pesquisados que se desenvolve a observação participante. Clifford (2008) considera que, a partir de Malinowski, a etnografia passa a ter uma acentuada ênfase na observação. Como forma de complementar a observação, outras ferramentas são inseridas, entre elas, a descrição da observação, a descrição da sociedade pesquisada como um todo e o uso de entrevistas.

Em Geertz (1989), buscamos o acento na descrição densa como um projeto antropológico baseado na percepção das situações e interpretações destas, em contraposição a uma descrição superficial, que apenas realiza a observação e a descrição dos códigos. Ela se preocupa com as estruturas de significado socialmente estabelecidas e busca a compreensão dos sistemas simbólicos, nos quais os acontecimentos estão inseridos.

A realização do trabalho do antropólogo, nas palavras de Oliveira (2000), se relaciona a três etapas: ver, ouvir e escrever. Para o autor, a primeira experiência do/a pesquisador/a em campo deve ser a dominação teórica do olhar, pois, ao direcionar o olhar sobre o “objeto”, este já é alterado pelo modo de visualizá-lo. No entanto, somente o olhar não é suficiente para a realização da pesquisa, por isso, o/a pesquisador/a deve, também, se valer do ouvir. Para Oliveira (2000), o ouvir envolve uma relação de mão dupla, possibilitando a interação e a criação de um espaço semântico partilhado pelos interlocutores. Essa ideia de interlocutor supera a visão do/a pesquisado/a como um informante.

Desse encontro, do qual emerge o ver e o ouvir do/a pesquisador/a, surge um outro aspecto discutido nos estudos antropológicos, o “ser afetado”. Favret-Saada (2005) realiza uma pesquisa etnográfica sobre feitiçaria em Bocage, na França. Diante do cenário sui generis de pesquisa, a autora experimenta, deixando-se afetar pelos rituais de enfeitiçamento e desenfeitiçamento. Segundo a autora, é a partir dessa experiência de afetamento que se abre a possibilidade de comunicação com o público pesquisado. Em suas palavras, “se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas, se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então, uma etnografia é possível.” (Favret-Saada, 2005, p. 160).

Nessa perspectiva, podemos pensar o trabalho etnográfico como possibilidade de se deixar afetar, de se permitir um encontro com o outro, como a possibilidade de observar, participar, interpretar e escrever. Nessa mesma direção, Laperrière (2010) nos convida a pensar a ideia de reflexividade na pesquisa. Para a autora, a pesquisa qualitativa é fundamentalmente interativa, e a interação entre os sujeitos e o/a pesquisador/a não acontece sem consequências para ambas as partes. O/a pesquisador/a, na sua inserção no campo, leva sua experiência integral, seus valores, seus sentimentos, sua apreensão pessoal do mundo e suas intuições. Essa subjetividade do/a pesquisador/a, de acordo com a autora, não pode ser neutralizada, a interação entre pesquisador/a e as pessoas pesquisadas será influenciada por esses aspectos. A realização da pesquisa, nas palavras da autora, deve considerar “uma tomada de consciência e uma documentação sistemática do efeito dessa subjetividade sobre a evolução da pesquisa.” (Laperrière, 2013, p. 414).

 

Procedimentos Metodológicos

O período de imersão no território em que a pesquisa foi realizada aconteceu em três etapas, entre setembro de 2014 e março de 2015. A primeira envolveu as negociações com a Secretaria Municipal de Saúde de Martinho Campos.

O município de Martinho Campos localiza-se na região central de Minas Gerais, a 197 km da capital Belo Horizonte. Segundo o censo do IBGE do ano de 2010, a população total é de 12.611 habitantes, e com área territorial de 1.058 km² (IBGE, 2014). Possui como principais atividades econômicas a agropecuária, a agricultura, a silvicultura e a extração vegetal. O município é composto pela sede, dois distritos – Ibitira e Albert Isaacson – e alguns povoados, como: Buriti Grande, Pontal, Barra, Boa Vista, Monjolinhos, Riacho, Sacramento, entre outros. O município possui ainda uma comunidade indígena, da etnia Caxixó, atendida pelo Programa de Saúde Indígena (PSI), conduzido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), através de uma Organização Não-Governamental.

Dentre as cinco equipes de saúde da família que atuam no município, decidiu-se por acompanhar as atividades da equipe de Saúde da Família (eSF) 4, em Albert Isaacson, por ser aquela com maior abrangência rural. A eSF4, acompanhada durante a pesquisa, atende ao distrito De Albert Isaacson e aos povoados de Boa Vista, Monjolinhos, Riacho e Sacramento, sendo dividida em quatro microáreas para atender toda a sua área de abrangência. Segundo as informações do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), do ano de 2014, na área atendida pelo eSF4, estão cadastradas 576 famílias, totalizando 1.643 pessoas (BRASIL, 2015).

Cada microárea é assistida por uma agente comunitária de saúde que ali reside. O número de famílias das microáreas 1 e 2 (413 famílias), que atendem o distrito, é maior que o das microáreas 2 e 4 (163 famílias), que atendem aos povoados. Nessas duas últimas, o número de fazendas é maior. A área dos povoados apresenta concentração populacional menor, no entanto, possui uma área territorial maior.

Na primeira etapa de campo, em janeiro de 2015, houve o acompanhamento do cotidiano das práticas desenvolvidas pela eSF4. A pesquisadora hospedou-se em um hotel de Martinho Campos, e, durante todos os dias, por um mês, se deslocava para o distrito de Albert Isaacson e acompanhava a rotina de trabalho da equipe. Durante esse período, participou, na condição de pesquisadora, de toda a rotina de assistência prestada pela equipe nos quatro povoados atendidos. Todas as impressões, reflexões, relatos de profissionais e usuários foram anotados em seu diário de campo.

Na segunda etapa de trabalho, a pesquisadora voltou ao distrito para realizar entrevistas com os profissionais da equipe e com a coordenadora da atenção primária do município. Foram feitas 11 entrevistas com os seguintes integrantes da equipe: o médico, a enfermeira, 4 estagiárias de medicina, 2 agentes comunitárias de saúde que trabalham nos povoados, 3 técnicas de enfermagem e uma entrevista com a coordenadora da atenção primária à saúde do município, totalizando 12 entrevistas. As entrevistas foram realizadas no distrito ou nos povoados, de acordo com os dias de atendimento e a agenda dos profissionais, sendo todas gravadas após a apresentação e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O roteiro para realização das entrevistas estava organizado em três eixos de questões: 1) aspectos da formação profissional; 2) cotidiano dos serviços, 2) desafios da saúde rural.

No intuito de resguardar a identidade das pessoas envolvidas, seja nas entrevistas ou nos registros no diário de campo, foram-lhes atribuídos nomes fictícios. Os nomes Maria e José são bastante comuns no contexto rural. Nesse sentido, as mulheres tornaram-se todas Marias e os homens serão Josés, em nomes compostos.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), parecer n. 911.172.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os equipamentos disponíveis, o distrito Abert Isaacson possui uma unidade de saúde da família, um posto de apoio dos correios, uma creche e uma escola com ensino fundamental e médio. A maioria das casas tem acesso a água canalizada, mas não há coleta de esgoto em todas elas, sendo utilizadas fossas. A principal atividade econômica do distrito é o trabalho em fazendas com a produção de leite e a criação de gado, e em granjas de criação de frangos, extração de pedra ardósia e o cultivo de eucalipto.

O termo “fazenda”, como nas práticas locais, foi usado como referência à pequena propriedade rural que está fora da área sede do distrito ou dos povoados. São pequenas propriedades onde residem uma ou duas famílias que trabalham com a criação de animais, a produção de leite, e o cultivo de feijão, milho, cana de açúcar para o consumo familiar ou para a alimentação dos animais.

 

Os Povoados e a Equipe

Ligados ao distrito por estrada de terra existem algumas fazendas e quatro povoados: Boa Vista, a 5 km; Monjolinhos, a 7 km; Riacho, a 15 km; e Sacramento, a 23 km. O povoado, ao contrário do distrito, não possui uma definição e uma regulamentação específica na Lei Orgânica do município (Martinho Campos, 1990). Wanderley (2004) considera que no espaço rural brasileiro “o povoamento é mais rarefeito e disperso em relação ao centro municipal. Existem nele apenas pequenas aglomerações, que não estão inscritas na estrutura político administrativa do país, nem absorvem os serviços essenciais.” (Wanderley, 2004, p.8). Boa Vista é um povoado formado por uma capela e no entorno algumas casas. A casa paroquial é emprestada à prefeitura para ser ponto de apoio para o atendimento da equipe de saúde. No período em que a equipe de saúde foi acompanhada não eram realizados atendimentos no povoado em função das condições da casa e do grande número de morcegos que estavam no telhado. Os moradores de Boa Vista eram levados, no carro da equipe de saúde, até o povoado de Monjolinhos para serem atendidos. Monjolinhos está há 7 quilômetros do distrito. Uma pequena casa é usada como local de atendimento da equipe de saúde. Riacho está localizado a 15 quilômetros do distrito. Uma antiga escola é utilizada como local de atendimento da equipe de saúde. Sacramento está localizado a 23 quilômetros do distrito e uma pequena sala de uma escola desativada é usada para os atendimentos.

Um fator observado é a rotatividade dos profissionais da equipe, principalmente do profissional médico. Entre 2010 e 2014 passaram pela equipe 5 profissionais médicos, sem contar os períodos em que o atendimento médico era realizado pela secretária de saúde, que também era médica. A enfermeira da equipe considera tal aspecto como uma dificuldade:

Uma das dificuldades que a gente tem aqui é a questão da locomoção e a rotatividade dos profissionais, por que no interior, principalmente o profissional médico que não para, vem passa uma temporada quando está começando a acostumar com a população, a conhecer a população vai embora, aí já conseguiu passar numa residência e nos abandona. (Entrevista, Maria Bernadete, Enfermeira da eSF4).

A fixação do profissional médico sinaliza uma dificuldade de estruturação e consolidação da equipe. Durante o período em campo, mais precisamente nas primeiras semanas de janeiro de 2015, período em que a equipe estava sem médico, havia um processo de negociação para a contratação de um novo profissional. Um médico foi contratado e levado ao distrito para conhecer a equipe e o local de trabalho. Foi agendada a data de início dos atendimentos, no entanto, na véspera, a equipe foi informada de que o médico havia desistido do contrato. A equipe continuou sem médico até novas negociações com outro profissional, que iniciou suas atividades na primeira semana de fevereiro de 2015.

A ausência e a troca frequente do profissional médico acarretam um acúmulo de demanda, o que afeta a própria rotina da eSF. Nos dias de atendimento médico, acaba havendo uma superlotação na unidade, resumida na fala de um morador que buscava atendimento para renovação de receita de medicamentos: “fica muito tempo sem médico, quando vem médico é esse tanto de gente” (Registro no diário de campo, janeiro 2015).

Outro aspecto que aparece nas conversas registradas em campo é o quanto as pessoas sentem a saída do profissional:

“Esse povo da saúde é tudo gente boa demais; quando eles ‘vai’ embora, a gente sente muito. Tomara que Deus ‘abençoa’ dele ficar aqui, porque aqui é lugar difícil, né? Os ‘médico tudo vai’ embora” (Moradoras do povoado de Monjolinhos, registro de diário de campo, fevereiro de 2015).

A ideia do vínculo entre profissional e população se rompe com a ausência dos profissionais. Essa imagem de um lugar difícil gera uma ideia de responsabilização da população pela não fixação dos profissionais, principalmente do médico. Podemos perceber certa complacência da população com os profissionais, os médicos vão embora porque o “lugar é difícil”, porque é distante, porque tem pouca infraestrutura. Subentendida nessa ideia de “lugar difícil” está também a imagem de uma “população difícil”, o que acaba sendo reforçado pelo discurso dos profissionais, quando falam de uma população carente, analfabeta e ignorante.

O desenvolvimento de ações na eSF passa também pela necessidade de integração com outros setores e atores. Na entrevista da enfermeira, ela sinaliza para a falta de políticas públicas ligadas às questões sociais, educacionais e de lazer:

Eu acho assim, na questão social, eles não têm o que fazer, tipo assim, eu acho que até a escola não anda influenciando muito na vida dos adolescentes, sabe? Então, eu acho que deveria trabalhar mais com projetos tanto para crianças quanto para adolescentes, idosos, para os homens a gente não tem nada. É isso. Eu acho que a gente tem que ter projetos e focar na ocupação, porque na comunidade não tem essa oferta de serviço; então, fica difícil (Entrevista, Maria Bernadete, Enfermeira do eSF).

Uma cena inusitada serve de ilustração condensada tanto do cotidiano da assistência quanto dos estranhamentos entre profissionais de saúde e as ruralidades. Uma sala improvisada para atendimentos no povoado de Sacramento estava infestada de morcegos. Quando a porta foi aberta, os morcegos saíram em revoada, apavorando as estagiárias. A agente comunitária de saúde assumiu o papel de espantar os bichos.

“Estávamos sentados do lado de fora, quando uma das estagiárias sai correndo e gritando do consultório, deixando o paciente lá dentro. Os morcegos haviam voltado e ela ficou apavorada. A ACS retirou novamente os morcegos e a estagiária voltou a atende” (Registro no diário de campo, janeiro de 2015).

Três elementos merecem destaque. Primeiro, é a questão da infraestrutura para o atendimento nos povoados que se mostra deficitária. Segundo, é a relação urbano-rural que se realça. A estagiária de medicina, situada como pertencente ao cenário urbano, se apavora diante dos morcegos, animais muito presentes no cenário rural. A população local, habituada aos bichos, ria da situação. Um terceiro ponto é a intervenção da ACS. Sua posição, situada entre urbano e rural, é vista como uma espécie de intérprete de linguagens, mas também de circunstâncias. Como explicitam Giovanella e Mendonça (2008), a orientação da competência cultural da atenção básica à saúde nem sempre é apropriada pela equipe.

A despeito da centralidade das ACS na mediação entre equipe e população rural, e do eventual reconhecimento de sua importância nas práticas de saúde, nem sempre essas profissionais se sentem valorizadas, como também é exposto na pesquisa realizada por Passos (2015).

 

Encontros com as Ruralidades e Modos de Vida

Em relação a modos de vida, Silva (2011) considera “que os elementos produtivos, sociais e culturais locais, intimamente ligados aos hábitos rurais, levam a uma configuração que permeia todos os hábitos cotidianos.” (Silva, 2011, p. 53). Para o autor, é na valorização desses hábitos que há a permanência dos modos de vida através das tradições mantidas e difundidas.

De modo semelhante, Wanderley (2000) considera que “o recorte rural-urbano, em suas novas e modernas formas, permanece como um recorte pertinente para analisar as diferenças espaciais e sociais da sociedade moderna, apontando não para o fim do mundo rural, mas para a emergência de uma nova ruralidade” (Wanderley, 2000, p.90). Para a autora, o rural se coloca como um “espaço singular”, um espaço de vida que tem implicações nos laços de sociabilidade e nas “relações de interconhecimento”. O rural é visto como um “modo de vida” e se torna um “ator coletivo” na construção das suas identificações a partir de suas referências em relação ao “território” e às “trocas sociais”.

A ideia de modo de vida é retomada por Wanderley (2000; 2004). A autora aponta duas caraterísticas principais do rural. A primeira centrada naquilo que o rural representa como uma relação específica do ser humano com a natureza, por meio do trabalho e do habitat. A segunda característica diz das relações sociais diferenciadas, que resultam em práticas particulares de convivência com o espaço, com a família, com o trabalho e com o tempo. Essas características enfatizam a noção de um modo de vida construído a partir da integração desses aspectos.

Tomando os pressupostos de Wanderley (2000; 2001; 2004), que pensa o rural como o lugar do encontro entre o campo e a cidade e, ao mesmo tempo, como um “espaço singular”, como um modo de vida, como um ator coletivo, e tendo em vista o período de permanência em campo e os registros feitos, propomos algumas reflexões a partir desses encontros com a população.

Percorrendo toda a extensão de cobertura da eSF, foi possível perceber esse encontro, que coloca em contraste o urbano e o rural. Um registro de campo mostra esse encontro.

É muito sofrido o pessoal da roça, tem horas, sabe? É sofrido porque não tem conforto. [...] Tem coisas que você pensa que não existe, você pensa que não existe, aí, você se depara lá, e isso existe. Igual, por exemplo, você chega numa casa, igual, tem uma senhorinha de oitenta e tantos anos, mora sozinha, nessa casa não existe geladeira, não existe fogão a gás, é uma casa assim, de barro, barreada, né?” (Entrevista, Maria das Graças, ACS dos povoados de Riacho e Sacramento).

Esse registro nos direciona a algumas reflexões. A ACS, mesmo residindo na região e conhecendo a população, se mostra afetada diante de uma “casa barreada” e sem eletrodomésticos. Tal situação é vista como “difícil” e como “algo que não existe mais”, essa visão reflete a ideia de um padrão de moradia e de acesso a bens de consumo construídos a partir de um ideário urbano. Wanderley (2000) considera que o acesso à infraestrutura, a bens de consumo e a equipamentos públicos é um direito para a população rural. No entanto, não podemos sobrepor esse modelo ao modo de vida rural. A “casa barreada” com a sua forma de organização diz de um modo de convivência com o espaço rural.

Dentro das práticas locais de saúde desenvolvidas podemos destacar o uso de plantas e de chás. Os denominados “remédios caseiros”, expressão utilizada pelos moradores, são utilizados em forma de chás, banhos e emplastros. Durante a conversa com Maria Rita, que trouxe seu bebê para fazer puericultura, ela conta à pesquisadora que o filho teve muitas cólicas e ela dava chá de funcho, camomila e erva cidreira, afirmando: “Esses chás são muito bons para cólicas e para fazer dormir, é só você ferver com água, coar e dar na mamadeira com um pouco de açúcar.” (Maria Rita, registro do diário de campo, janeiro de 2015). Segundo a usuária, essas plantas são cultivadas na maioria das casas, e afirma ainda: “Toda casa que tem um bebê, tem que ter um pé de funcho.” (Maria Rita, registro do diário de campo, janeiro de 2015).

Outro morador de um dos povoados, José Antônio, apresentava interesse e habilidades para lidar com plantas. Ele fora até a unidade de saúde para fazer curativo em um ferimento na mão. Enquanto esperava, chegou uma mulher procurando a enfermeira, apresentando o pé inchado. José Antônio disse à mulher: “Você pode tomar chá da folha de embaúba para desinchar o pé; se você quiser, eu tenho lá em casa.” (José Antônio, registro do diário de campo, janeiro de 2015).

Enquanto a mulher era atendida pela enfermeira, estabeleceu-se uma conversa entre José Antônio e a pesquisadora. Ele conta que sempre gostara de plantas medicinais e que a pessoas sempre iam à sua casa para perguntar sobre alguma planta ou algum chá que pudessem tomar e ele sempre “receitava” e providenciava a planta. Em sua argumentação, orienta a pesquisadora:

Rosa branca – o chá – é usado para problemas uterinos; mão de deus – o chá – é usado para combater diabetes; casca de Maria pobre – o chá – é usado para problemas da coluna... As plantas precisam secar à sombra e nunca no sol para não perder a força. (José Antônio, registro do diário de campo, janeiro de 2015).

Outra prática muito frequente entre a população é recorrer a um farmacêutico na cidade de Martinho Campos. A figura desse farmacêutico é muito significativa para as pessoas. Maria das Dores, moradora de um dos povoados, com quem a pesquisadora encontrou em campo, expõe:

Quem cuidou dos meus meninos quando eram pequenos foi o José Roberto; então, quando eu preciso de alguma coisa, eu vou nele; ele sabe mais que muitos médicos. Quando eu preciso de um médico e dependendo do médico que está de plantão no hospital, eu vou direto no José Roberto. (Maria das Dores, registro do diário de campo, janeiro de 2015).

Como discutido em diálogo com Favret-Saada (2005), a pesquisadora vivenciou uma situação de afetamento nos encontros propiciados pela experiência em campo. O uso de plantas, de chás e a busca pelas orientações do farmacêutico podem ser pensados dentro das práticas locais de saúde, mas também como formas de lidar com as distâncias e as desigualdades de acesso à saúde. É inevitável o estranhamento da pesquisadora quando se depara com as formas de acesso, tanto da população aos serviços de saúde quanto dos profissionais aos locais de atendimento, situações de encontros cotidianos para equipe e usuários, marcadas pelas distâncias e pelas questões de infraestrutura.

 

O Olhar dos que Vêm/Veem de Fora

Na composição da equipe pesquisada, somente as ACS e as técnicas de enfermagem residiam no distrito ou nos povoados. O médico, as estagiárias de medicina e a enfermeira “vêm de fora”, ou seja, residem na sede do município ou em algum município próximo e vão ao distrito e povoados para os atendimentos. O médico era recém-formado e também acabara de chegar ao município. As estagiárias de medicina faziam parte do Internato Rural da UFMG e ficariam por três meses no município atendendo nas equipes de Saúde da Família. Terminado o período, elas iriam para outros estágios. O município mantém uma casa para a residência dos estagiários de medicina e, a cada três meses, um novo grupo de estagiários inicia seu trabalho. A enfermeira, que mora também na sede do município, era a profissional com mais tempo de trabalho na equipe: cinco anos. Na entrevista realizada com umas das técnicas de enfermagem, ela faz a seguinte afirmação:

Em geral, os profissionais que vêm de fora, que não moram aqui na comunidade, no começo eles estranham. Por exemplo, se você falar um termo técnico com um paciente daqui, eles não vão entender. Então, com o tempo, os profissionais veem que tem que mudar a forma de falar, a forma de comunicar, que aqui é diferente. (Entrevista, Maria Aparecida, Técnica de Enfermagem, grifos nossos).

A partir dessa fala, surge a combinação “vêm/veem”, que compõe esse eixo de discussão. Maria Aparecida sinaliza para a questão do “estrangeiro”, aquele que vem de fora e não é “membro da comunidade”, em sua relação ao “nativo”. No primeiro momento, é uma relação de estranhamento. No entanto, ela assinala que “com o tempo os profissionais veem que precisam mudar” a forma de se relacionar. Nesse estranhamento, um dos primeiros aspectos que aparece nas entrevistas é a visão de uma população “carente”, que não se desenvolveu.

“Aqui, em Albert Isaacson, eu acho um público mais simples, mais carente mesmo, tem uma dificuldade maior de entendimento de compreensão. Você vê que os que têm um pouco mais de compreensão é porque já moraram fora; depois, vieram pra cá, ou tem algum estudo; então, você nota uma compreensão maior. Mas é muito difícil, é uma coisa que eu vejo, que nós somos estudantes ainda; eu imagino quem já tem anos de profissão, mas eu vejo que é frustrante, que você não consegue avançar com o paciente por conta dele não conseguir entender o quadro dele. Acontece em Martinho Campos, acontece em Belo Horizonte, mas aqui eu acho mais, é uma outra cultura mesmo.” (Entrevista, Maria José, Estagiária de Medicina, grifos nossos).

O impacto que a estagiária vive em relação à cultura e aos modos de vida das pessoas revela a assimetria entre profissionais e população atendida. Para Sucupira (2007), essa relação assimétrica entre médico e paciente ocorre tanto em função do saber envolvido quanto das inserções sociais de cada um. Ainda sobre essa questão, podemos considerar que, “além dos aspectos culturais, temos que enfatizar que eles (médicos e pacientes) não se colocam no mesmo plano: trata-se de uma relação assimétrica, em que o médico detém um corpo de conhecimento do qual o paciente geralmente é excluído” (Caprara & Rodrigues, 2004, p. 141). Esse processo reforça a visão de uma população fragilizada e submissa, vista também como ignorante.

A frustração experimentada pela estagiária de medicina se relaciona com a ideia de que só há uma forma de se entender “o quadro” e uma expectativa de racionalidade médica hegemônica. Para os profissionais, o/a paciente precisa entender o seu “quadro” do ponto de vista biomédico. No entanto, podemos pensar em outras formas de entender “o quadro”. Aqui, a profissional vivencia uma dificuldade de compreensão da população e de seu contexto. Os aspectos culturais e sociais envolvidos nos “quadros” de saúde dos usuários não são considerados.

Gomes, Caprara, Landim e Vasconcelos (2012), ao discutirem a relação médico paciente na Atenção Primária à Saúde, apresentam alguns aspectos que influenciam na interação clínica e no desenvolvimento do trabalho, dos quais destacamos: as características pessoais do médico, o agir profissional e os problemas na organização dos serviços. Um usuário diz ao sair do consultório do médico:

“O médico é educado e me tratou bem, ele conversou muito comigo... porque o povo da roça é ignorante e descompreendido, mas, se a pessoa for educada a gente, também muda de toada e fica educado também, faz por onde. ‘Ocês são tudo estudado’, mas são educados com a gente, a gente fica muito feliz de ‘ocês cuidar de nós’.” (José Francisco. Registro de diário de Campo, janeiro de 2015).

A fala de José Francisco nos traz alguns elementos para pensar a questão relacional. Os profissionais da saúde são vistos como “os estudados” que possuem “doutoração”, termo usado em outro momento por José Francisco. Porquanto, profissionais são colocados na posição de quem sobrepõe o seu saber sobre o povo “ignorante e descompreendido”. No entanto, ele sinaliza que, de alguma forma, os profissionais podem ser vistos como agentes de um outro tipo de ignorância: a ignorância relacional. A anedota de José Francisco insinua que o “povo da roça” é versátil o suficiente para “ficar educado” quando tratado com educação, eles fazem “por onde” estabelecer uma relação educada. José Antônio nos questiona sobre a capacidade dos “estudados” também fazerem “por onde” estabelecer uma relação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A entrada em campo e a experiência de ser “afetada” pela realidade possibilitaram algumas reflexões sobre o rural e as novas ruralidades. Tomamos o rural como um cenário de significados e práticas que emergem da interação, da relação com a alteridade e com o território. Para além do espaço geográfico, estamos inseridos em um espaço de práticas, códigos culturais, memórias e modos de vida.

Enfatizamos, neste artigo, as interações em campo, que mostram as diferenças culturais entre os “da cidade” e os “do rural”, situando pontos de estranhamento em situações experienciadas pela pesquisa e pelas pessoas envolvidas no estudo. A orientação etnográfica, como proposta metodológica, possibilitou colocar em destaque a afetação da pesquisadora, por meio de um exercício de reflexividade das situações vividas no território. A metodologia permite, igualmente, acentuarem-se as diferenças culturais entre a equipe de saúde e a população rural. Nos fragmentos de entrevista e registros de falas desses participantes no diário de campo, ressaltam-se os contrastes e as distinções que fazem entre si.

A principal limitação observada foi a impossibilidade de se prolongar ainda mais essa estadia, tendo como consequência a constante posição de estranhamento da pesquisadora nas cenas de que participou. Contudo, alguns dos fragmentos de conversa com usuários a que recorremos neste texto mostram a posição da pesquisadora como alguém que, assim como os profissionais de saúde, também vinha de fora. Por esse motivo, entendemos que essa limitação não minimiza os resultados. Ao contrário, mostra possibilidades metodológicas com potencial para se aproximar da cena empírica da saúde rural, lançando sobre ela o olhar descritivo analítico que guiou nossas reflexões.

 

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Recebido em 15/06/2017
Aceito em 15/09/2017

 

Endereço para correspondência:

Luciana Kind

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