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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.12 no.1 Juiz de Fora jan./abr.. 2018

http://dx.doi.org/10.24879/2018001200100378 

Artigo Original

10.24879/2018001200100378

 

A reconstrução dos contornos do eu: um olhar psicanalítico sobre a amputação

 

Reconstruction of ego outlines: a psychoanalitic look on amputation

 

 

Priscila Ferreira Friggi I; Alberto Manuel Quintana II; Cristine Gabrielle Da Costa Dos Reis III; Camila Peixoto Farias IV

I Graduada em Psicologia pela Universidade Franciscana-UNIFRA, de Santa Maria-RS, no ano de 2009. Especialista em Gestão e Atenção Hospitalar pelo Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde do Sistema Público de Saúde, da Universidade Federal de Santa Maria-UFSM, EM 2012. Mestre em Psicologia com ênfase na Saúde pela UFSM em 2015. Universidade Federal de Santa Maria.

II Graduação em Psicologia pela Universidad Argentina J F Kennedy (1980). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio De Janeiro (1989). Doutor em Ciências Sociais - Antropologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998). Pós-Doutor em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid (21013). É Professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria-UFSM, curso de Graduação e Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Maria.

III Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM (2014). Mestre em Psicologia com Ênfase na Saúde pela UFSM(2017). Atualmente é doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina

IV Psicanalista graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM em 2004. Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009-2013). Pós-doutora em Psicologia pela UFSM (2016). Professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas e professora colaboradora do curso de Psicologia e da Pós-graduação em Psicologia da UFSM. Universidade Federal de Pelotas.

 

 


Resumo

A amputação de membros é um procedimento reconstrutor, porém, altamente invasivo, podendo causar abalos não apenas orgânicos, mas psíquicos. Partindo disso, investigou-se, por meio de uma pesquisa qualitativa e de um aporte teórico psicanalítico, como os sujeitos amputados vivenciam a mudança corporal. Foram entrevistados 9 sujeitos submetidos à cirurgia de amputação em um hospital público do Rio Grande do Sul. Compreendeu-se que a amputação assumiu um caráter traumático para esses sujeitos, provocando uma ruptura nos alicerces simbólicos constitutivos de cada um e repercutindo diretamente na imagem corporal e em seu narcisismo. Diante disso, mostrou-se necessário o processo de reintegração corporal que exige um trabalho de luto pelo membro amputado e pela imagem corporal mantida até o momento da cirurgia.

Palavras-chave: amputação; psicanálise; narcisismo; imagem corporal; luto.


Abstract

Limbs amputation is a reconstructive procedure, however, highly invasive and can cause not only organic, but also psychic damage. It was investigated through a qualitative research and a psychoanalytic theoretical framework, how amputees individuals experience the body change. There were nine interviewed subjects who underwent amputation surgery on a public hospital in Rio Grande do Sul. It was understood that the amputation brought a traumatic character to the subjects, causing a break in the constitutive symbolic foundation of each and has a direct impact on body image and in its narcissism. Thus, it proved to be necessary a process of grief work to the amputated limb, to the body reintegration, and for the body image kept until the surgery.

Keywords: amputation; psychoanalysis; narcissism; body image; grief.

 

 

A cirurgia de amputação de membros é um procedimento de caráter reconstrutor que objetiva melhorar a qualidade de vida das pessoas e trazer de volta o bom funcionamento do corpo, tendo em vista que as áreas afetadas por doenças ou acidentes comprometem a atividade corporal e, por essa razão, são amputadas (Smeltzer & Bare, 2006). No cenário brasileiro, de acordo com dados publicados em 2013 pelo Ministério da Saúde (MS), estima-se que a incidência de amputação é de 13,9 para cada 100.000 habitantes por ano, e sua maioria caracteriza-se pela extirpação de membros inferiores.

A amputação, embora seja de cunho reconstrutor, conforme mencionado, também é considerada um procedimento altamente invasivo, podendo causar abalos não apenas orgânicos, mas também psíquicos a quem a vivencia. Winograd, Solero-de-Campos & Drummond (2008) pontuaram que, quando o sujeito se depara com doenças, perdas motoras ou cognitivas e lesões corporais, ele passa, concomitantemente, por transformações subjetivas que precisam ser consideradas devido a sua relação estreita com esses acometimentos físicos. Assim, a partir de um referencial psicanalítico alicerçado na teoria Freudiana e em seus desdobramentos contemporâneos, considera-se que a problemática da cirurgia de amputação de membros é perpassada pela questão da construção subjetiva do corpo e do quanto um procedimento invasivo como esse pode influenciar diretamente nesse aspecto.

Nessa perspectiva, o corpo é reconhecido como subjetivo, apresenta-se diferente de um corpo biológico ou um corpo estético. É um corpo que vai além das queixas de ordem somática e não se reduz ao conceito de organismo, é um todo em funcionamento perpassado pela história de cada sujeito (Fernandes, 2006; Lazzarini & Viana, 2006).

Cabe destacar que essa concepção de um corpo subjetivo não estava presente desde o início na teoria psicanalítica, mas foi construída à medida que Freud avançava seus estudos no campo da histeria. Tais estudos o conduziram a pensar em um corpo afetado pelo outro, pelos investimentos, pela linguagem, distanciando-se do discurso inerente à medicina e à neurologia que se referiam a um corpo exclusivamente anatomopatológico (Rodrigues & Priszkulnik, 2011). Para Lazzarini e Viana (2006), Freud deu início a uma verdadeira revolução na concepção de corpo, que começou alicerçada no corpo soma e culminou na noção de corpo erógeno.

O corpo, nessa perspectiva, é pensado como um corpo que se constitui a partir do investimento do outro, responsável por despertar o pulsional. Nesse primeiro momento, que Freud (1905/1996) denomina de autoerotismo, o pulsional age sobre as partes do corpo de forma anárquica, constituindo um corpo fragmentado. A unificação das pulsões é a base para constituição de uma imagem unificada do corpo. Tal imagem vai delineando-se por meio da ação e do investimento do outro e é fundamental para a constituição narcísica.

A passagem do autoerotismo, ou seja, da fase anárquica das pulsões, para o narcisismo, ocorre a partir do processo de unificação pulsional. O primeiro objeto das pulsões unificadas será o eu, constituindo, assim, o narcisismo (Freud, 1914/1996). Tal processo está intimamente articulado à constituição de uma imagem unificada do corpo. Tendo isso em vista, Dolto (1984) indica que a imagem corporal está diretamente relacionada à história de cada um, ou seja, é particular e específica de um tipo de relação libidinal. A autora também elucida que a imagem corporal é a memória inconsciente da relação com o outro e uma síntese das experiências de caráter emocional vivenciadas pelo sujeito desde bebê.

Nasio (2008) destaca que a mencionada relação com o outro se refere ao contato afetivo, simbólico e carnal entre o cuidador e o bebê, desde a vida intrauterina. Isso significa que, por meio dessa relação com o cuidador, as impressões e as sensações corporais provenientes desse contato deixam marcas no psiquismo da criança. Assim, vai sendo construída a autoimagem, alicerçada no processo de erogeneização corporal, isto é, por meio desse intenso contato afetivo, o cuidador vai investindo o corpo do bebê, recobrindo-o de sentidos e o localizando no universo simbólico familiar.

Nesse ponto, encontra-se a articulação entre a imagem corporal e o narcisismo, justamente porque o processo de unificação corporal é a base para a constituição narcísica. Isso significa que as pulsões que se encontravam circulando anarquicamente pelas partes do corpo vão unificando-se por meio do narcisismo e delineando o corpo do bebê enquanto unificado e separado do corpo da mãe. Assim, essa ação narcísica possibilita que a autoimagem e o eu construam-se concomitantemente (Laplanche & Pontalis, 2001).

Quanto a isso, destaca-se que no autoerotismo não há uma unidade ou uma representação total do corpo, faltando, nessa fase, o eu e a representação que cada indivíduo faz de si. Essa representação é instituída pelo narcisismo. Nesse contexto, o narcisismo é entendido como uma etapa que prepara para o investimento no objeto, situando-se entre o autoerotismo e o amor objetal (Fernandes, 2006; Lazzarini & Viana, 2010). Portanto, é somente após a constituição do eu que será possível o investimento no outro, em um objeto externo.

Inicialmente, o eu se constitui como um reservatório de libido, o que é fundamental para a constituição narcísica. Posteriormente, essa libido, entendida como narcísica, passa a ser direcionada aos objetos externos e torna-se, então, libido objetal. É fundamental para o funcionamento psíquico que haja um equilíbrio entre os investimentos direcionados ao eu e os investimentos direcionados aos objetos. Um abalo nos investimentos dirigidos ao eu, nos contornos narcísicos já constituídos, tem efeito direto na dinâmica dos investimentos dirigidos aos objetos, exigindo um trabalho de reorganização psíquica.

Nesse sentido, baseando-se nos aspectos discutidos sobre a constituição narcísica, destaca-se a íntima articulação entre a amputação de membros e o narcisismo, uma vez que uma intervenção física dessa magnitude pode provocar alterações na imagem unificada do corpo, o que reverbera nos contornos do eu. Acredita-se nisso devido à desestruturação do segmento corporal que é provocada por esse procedimento, bem como por uma possível interferência na imagem de si mesmo e na vivência do próprio corpo. Sendo a imagem corporal a base para a constituição do narcisismo, questiona-se: um sujeito cujos limites corporais foram abalados por conta de uma amputação de membros não terá também seus limites narcísicos abalados?

Partindo desse questionamento, este estudo objetivou investigar como os sujeitos amputados vivenciam o processo de mudança corporal por meio de uma pesquisa qualitativa e do aporte teórico psicanalítico, alicerçado na teoria freudiana e em seus desdobramentos contemporâneos. Especificamente, buscou-se investigar a relação entre a cirurgia de amputação de membros e o narcisismo, bem como de que maneira a perda do membro se articula com a problemática da imagem corporal.

 

MÉTODO

 

Desenho do estudo

Este estudo caracterizou-se como uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório e descritivo. Seu desenvolvimento se deu com participantes submetidos à cirurgia de amputação de membros assistidos em um hospital público do interior do Rio Grande do Sul.

A pesquisa qualitativa mostrou-se a mais apropriada ao estudo, pois, segundo Turato (2013), é um tipo de pesquisa que visa proporcionar o entendimento e a interpretação dos sentidos e das significações alusivas a um fenômeno, referindo-se a algo que não é visível ao olhar comum. O autor acrescentou que esse método cria um modelo de entendimento intenso de ligações entre os elementos e busca compreender o processo a partir de como o objeto de estudo acontece e se manifesta.

Em relação ao caráter exploratório e descritivo, Gil (2002) o mencionou como típico da pesquisa na qual os objetivos de concentram em conhecer melhor o objetivo a ser investigado, descobrindo significados e diversos aspectos a serem considerados. A pesquisa descritiva objetiva descrever as características de determinadas populações, fatos ou fenômenos e suas relações, sem manipulá-los (Gil, 2002).

 

Participantes

Foram selecionados para a pesquisa sujeitos amputados em decorrência de doença crônica; maiores de 18 anos; de ambos os sexos; completando, no mínimo, 1 mês de pós-operatório e, no máximo, 1 ano; em processo de reabilitação pós-amputação no referido hospital e residentes na cidade onde o hospital se localiza.

 

Processo de coleta e análise dos dados

Este estudo foi encaminhado para apreciação da Direção de Ensino, Pesquisa e Extensão do hospital no qual foi desenvolvido. Após sua aprovação e aceite, a pesquisa foi enviada à Plataforma Brasil e assim encaminhado ao Comitê de Ética da universidade com a qual a pesquisadora era vinculada, sendo aprovado com o número CAAE 26372514.1.0000.5346. Ressalta-se que esta pesquisa seguiu as diretrizes da resolução nº. 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos.

As coletas aconteceram de março a dezembro de 2014 e foram realizadas 09 entrevistas semiestruturadas gravadas em áudio para posterior transcrição. Para a interpretação dos dados, optou-se pela técnica da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011), um método que utiliza procedimentos objetivos e sistemáticos na descrição dos conteúdos das falas, condensando e agrupando suas partes comuns. Nesse tipo de análise, cabe ao pesquisador fazer inferências e interpretar os resultados (Bardin, 2011).

Ressalta-se que todos os participantes foram voluntários e todas as informações concernentes ao estudo e seus objetivos foram passadas em encontro anterior à entrevista. Para garantir o sigilo dos participantes, seus nomes foram trocados por códigos, conforme se pode visualizar na Tabela I, em que constam também as informações concernentes às doenças, à idade de cada sujeito e ao tempo de amputação.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os resultados alcançados mediante a análise dos dados, as categorias se destacaram por pontuar questões de relevância quanto às vivências e sentimentos associados à amputação, diretamente relacionados às problemáticas do narcisismo e da imagem corporal.

 

Nunca se está preparado: o encontro com o desconhecido

Entende-se, nesse estudo, que o corpo é construído subjetivamente, sendo um todo em funcionamento que transcende as queixas de ordem somática. De acordo com a teoria Freudiana, o corpo é construído por percepções, investimentos libidinais, representações, pulsões e fantasias (Nasio, 2008). Assim, o corpo na perspectiva psicanalítica não se restringe ao conceito de organismo, pois é atravessado pela história de cada um e constitui-se na interface entre o psíquico e o somático (Fernandes, 2006; Lazzarini & Viana, 2006).

Partindo desse pressuposto, a cirurgia de amputação de membros é aqui compreendida enquanto uma intervenção que abala o corpo subjetivo, e não somente um procedimento cirúrgico que secciona um membro anatômico. Por isso, esta categoria se debruçara sobre o impacto causado pela notícia da amputação e suas repercussões psíquicas, tendo em vista o quanto esse momento é propulsor de desamparo para quem o vivencia e o confronta com uma situação de difícil representação e elaboração.

Assim, um procedimento cirúrgico como esse provoca não apenas uma instabilidade emocional, como também traz à tona a ameaça de morte que esse evento representa (Sebastiani & Maia, 2005). Sobre isso, ressalta-se que a mencionada instabilidade e o temor do futuro são evidenciados e potencializados frente à iminente perda do membro, o que foi observado nas seguintes falas, referentes às reações no momento da notícia da amputação: “Eu já tava preparado [...] Eu nunca imaginava que isso aí ia acontecer comigo, eu nunca imaginava na minha vida [...] (choro intenso)” (E4, comunicação pessoal, 44). “Então, eu já tava esperando, mas só que... [...] Então uma amputação realmente foi um choque emocional muito grande” (E3, comunicação pessoal, 51).

As contradições presentes nestes discursos revelaram que a notícia provocou, abruptamente, um encontro com aquilo que o psiquismo não teve recursos para elaborar. O processo de elaboração psíquica é conceituado como um processo de trabalho, realizado pelo aparelho psíquico, com o objetivo de dominar as excitações que se apresentam a ele e que correm o risco de acumularem-se, tornando-se patogênicas (Laplanche & Pontalis, 2001). Embora os entrevistados citados tenham mencionado um conhecimento prévio da possibilidade de amputação e que estavam esperando por isso, suas falas demonstraram que, diante da notícia, eles se depararam com o vazio de recursos para lidar com esse fato novo.

Quanto a isso, Zecchin (2004) apontou que é nesse confronto entre a mutilação que se faz real e a ausência de recursos internos para enfrentá-la que se observa um despreparo do aparelho psíquico para lidar com essa situação, para realizar o trabalho de elaboração psíquica, revelando uma condição de fragilidade. O fato de o sujeito não ter como evitar esse confronto, exposto no corpo, é uma das razões desse evento apresentar-se como algo gerador de intensa angústia e difícil de ser subjetivado.

O choro de E4 e o referido “[...] choque emocional muito grande” de E3 revelaram não apenas essa fragilização, mas também o estado de desamparo que a notícia da amputação provocou, confrontando-os com a impotência diante de algo que estava prestes a materializar-se em seus corpos. Segundo Rocha, o que define o desamparo “é a situação de total passividade em que se encontra o sujeito, a incapacidade de, com seus próprios recursos, encontrar saída para seus impasses” (Rocha, 2000, p. 130). Isso pode ser visualizado na fala de E7 ao referir “Não, jamais eu pensei que eu iria ouvir isso. Pra mim parecia que o mundo ia acabar” (comunicação pessoal) .

Na concepção de Freud (1895/1996), o estado de desamparo, no adulto, é o protótipo do seu próprio nascimento, evento traumático propulsor de intensa angústia. Isso porque, ao nascer, o bebê é totalmente impotente diante de um excesso de tensão gerado pelas necessidades orgânicas que precisam ser satisfeitas e pelas quais ele é submergido por ainda não ter recursos para dominá-las (Laplanche & Pontalis, 2001). É nesse período que surgem as trocas libidinais e simbólicas entre o bebê e o cuidador, que ficam registradas no psiquismo do sujeito e possibilitam a construção de significados para as experiências advindas do contato com o mundo externo, base do processo de constituição e elaboração psíquica. Logo, são as trocas simbólicas que vão atribuir sentido aos eventos e às situações vivenciadas pelo sujeito durante sua vida (Freud, 1895/1996).

É por meio dessas trocas simbólicas que vao sendo construídas as tramas representacionais, que permitem a criaçao ilusória de uma realidade segura e eficaz diante das ameaças de desamparo. O desamparo vem a tona justamente quando o sujeito confronta-se com situaçoes que ameaçam essas construçoes simbólicas, alicerces da sua estruturaçao psíquica e do trabalho elaborativo (Freud, 1895/1996).

No momento da notícia da amputação, os entrevistados citados vivenciaram essa ameaça em suas construções simbólicas, pois esse comunicado foi recebido como algo que irrompe qualquer possibilidade de enfrentamento. Isso significa que, em seu universo simbólico, os recursos elaborativos que dispunham não deram conta do impacto gerado pela notícia da amputação.

Nessa direção, Debenetti e Fonseca (2006) pontuaram que há eventos que serão imediatamente integrados ao psiquismo pelo fato de o sujeito lançar mão de recursos internos que vão dar conta de elaborar a experiência. Entretanto, ao longo da existência, o sujeito pode não conseguir elaborar alguns eventos, tampouco construir um sentido para eles. Isso parece ocorrer com a vivência da mutilação corporal, conforme alguns entrevistados demonstraram, não apenas por ser um evento desconhecido, mas por ter um caráter traumático.

Sobre isso, é importante trazer o que Freud elucidou sobre o trauma. Em Além do Princípio do Prazer (1920/1996), o autor explicou o trauma enquanto uma experiência desestruturante e de uma excitação tão intensa que não é tolerada nem dominada pelo sujeito, ocorrendo, assim, uma espécie de ruptura em suas construções simbólicas e uma paralisação do psiquismo, justamente pelo transbordamento de estímulos. Essa ruptura torna a experiência impossível de ser representada e elaborada psiquicamente (Laplanche & Pontalis, 2001). Mais tarde, Freud (1926/1996) definiu que, além do excesso de excitação, há, por outro lado, a fragilização e o despreparo do ego, que se vê sem recursos para integrar e absorver essa intensidade de estímulos, o que fragiliza e ameaça suas fronteiras.

Posto isso, pode-se dizer que a notícia da amputação assumiu um caráter traumático para os entrevistados devido a sua característica de excitação excessiva, correlacionada ao despreparo e à fragilização do ego diante desse evento. Por essa razão, é notório que esses sujeitos depararam-se com uma impossibilidade de encontrar, em seu universo representacional, recursos que possibilitassem a atribuição de um sentido à mutilação corporal, ou seja, recursos que permitissem a realização de um trabalho elaborativo diante desse evento que os fragilizou narcisicamente.

 

Para além da perda do membro: a fragilidade narcísica

Por ser a amputação de membros um evento que leva à incapacidade física, sabe-se que o amputado defronta-se com limitações que contemplam todas as esferas de sua vida, não se restringindo apenas à perda de uma parte importante de seu corpo. Essa perda estende-se à saúde, à eficiência corporal e causa dificuldades desde o âmbito pessoal até o profissional (Oliveira, 2004; Paiva & Goellner, 2008).

É justamente nessa direçao que esta categoria segue, abordando a amputaçao como um evento que fragiliza narcisicamente o sujeito. Ao lançar-se um olhar a subjetividade do sujeito amputado, o que se observa nao é somente a perda da autonomia, mas uma perda da imagem de si mesmo e um abalo em seu narcisismo.

Essas limitações que restringem e, muitas vezes, impossibilitam a autonomia dos sujeitos amputados os colocam em contato constante com suas fragilidades, com uma imagem de si e um modo de vida que não existem mais. Ao referirem-se à vida antes da amputação, E3 e E4 mencionaram sobre esse confronto traduzido pelas restrições que lhes foram impostas, como se pode ver nos excertos a seguir: “Eu gostava de trabalhar no hospital, a atividade é muito cansativa, ela é muito corrida [...] Era muito bom e era muito intenso” (E3, comunicação pessoal, 51). “Antes de acontecer isso, eu tinha a minha liberdade, trabalhava na oficina, passava o dia trabalhando, eu tava sempre muito ativo” (E4, comunicação pessoal, 44)

Percebe-se que nesse tipo de contexto, o passado no qual havia um corpo não amputado se reatualiza e se faz presente sucessivamente, por meio de tudo aquilo que o sujeito amputado não pode mais realizar ou dar continuidade, em sua condição atual, devido às limitações físicas (Paiva & Goellner, 2008). Uma vez convivendo com essas dificuldades, não há como evitar o confronto com as fragilidades do próprio corpo e com seus desdobramentos nas diversas dimensões da vida.

Logo, tanto a mutilação sentida no corpo quanto as possibilidades para lidar com essa realidade são transpostas à vida e às experiências do cotidiano, ou seja, é preciso que o sujeito amputado se reconheça nessa nova forma de vivenciar seu próprio corpo. Tal vivência do corpo mutilado somente pode ser entendida quando se considera a construção da imagem corporal e sua relação com o narcisismo, uma vez que ela provoca alterações na imagem unificada do corpo, reverberando nos limites narcísicos. Assim, diante da fragilização narcísica que a amputação provoca, o sujeito vê-se limitado em seu corpo e em suas atividades, logo sua autoimagem precisa ser reestruturada.

Nesse sentido, Winograd, Solero-de-Campos e Drummond (2008) destacam que na amputação de membros há uma morte real de alguma parte significativa do corpo e uma morte simbólica de um estilo particular de vida, de um jeito de ser, de uma identidade e ainda é preciso que se consiga dar vida a todo o restante que se mantém saudável. Na fala seguinte o entrevistado demonstra a necessidade de um reinvestimento libidinal em si mesmo para que seu corpo possa retornar ao estado de unidade:

Depois, o pós-amputação. . . . É querer trabalhar e não poder, é querer fazer alguma coisa e não poder, não conseguir, a parte mais difícil foi essa, a minha aposentadoria [...] O que antes eu queria fazer, hoje eu tenho que colocar um se [...] Levanto, tomo chimarrão, fico sentado né [...] O que eu não quero pra mim é uma vida contemplativa assim né, isso eu não quero pra mim (E3, comunicação pessoal, 51)

Percebe-se, através desse fragmento, a ausência do imprescindível processo de reintegração corporal e, além disso, indícios de um narcisismo fragilizado, o que denota, também, um abalo na subjetividade, já que se sabe da importância da ação narcísica para a construção subjetiva de cada um. Assim, a reconstrução da autoimagem e o investimento nos limites corporais são, tal como no início da vida, essenciais para que o novo corpo, amputado, torne-se uma unidade e seja representado.

Freud (1923/1996) conceituou o ego (eu) como uma projeção mental da superfície do corpo derivado das sensações corpóreas dela originadas. Tendo isso em vista, é preciso que uma nova imagem unificada do corpo seja projetada no psiquismo desses sujeitos para que possam vivenciar seus corpos como eles se apresentam, ou seja, com a amputação e com todo o restante saudável, base de uma restruturação narcísica.

Logo, a amputação exige uma reestruturação nas esferas físicas e psíquicas, tendo em vista que causa uma ameaça às fronteiras corporais, desestrutura a imagem corporal e consequentemente causa uma ameaça às fronteiras narcísicas. Assim, essa reestruturação deverá acontecer tanto nos limites corporais quanto nos limites do eu.

 

O confronto com a falta: reconstruindo a própria imagem

A amputação pode adquirir contornos traumáticos e, por essa razão, sua elaboração, sua integração no aparelho psíquico pode tornar-se difícil, como indicado anteriormente. Em decorrência disso, uma vez que a amputação não foi representada, o sujeito depara-se com uma dificuldade, também, de reconstruir a percepção de si mesmo. Isso porque, enquanto a mudança corporal não é integrada no aparelho psíquico, através da realização do trabalho de luto pela perda do membro amputado, a reconstrução da autoimagem fica prejudicada.

Assim, o foco dessa categoria será a reintegração corporal e a sua relação com o trabalho de luto pelo membro amputado e pela antiga imagem corporal. Esse processo é de indiscutível importância quando se trata da construção de novos limites corporais e narcísicos após um processo de amputação.

Nesse contexto, a alteração dos contornos corporais, explícita no próprio corpo, não foi integrada ao psiquismo desses sujeitos, isso está intimamente articulado a não realização do trabalho de luto, conforme se pôde observar quando E8 referiu: “Não mudou nada de diferente. Eu me senti bem, eu me senti feliz da vida, não fiquei triste nem nada” (E8, comunicação pessoal, 65). E, ainda, quando os seguintes entrevistados verbalizaram: “Mas eu não sinto nada, nada, nada. Tranquilo, tranquilo mesmo [...] Tô feliz da vida” (E2, comunicação pessoal, 64). “É, eu só cortei os dedo e pronto né, tirei os dedo e daí tudo bem [...] Mas eu não sinto nada, nada, nada mesmo” (E6, comunicação pessoal, 76).

Nota-se que a referência ao sentimento de bem-estar diante da amputação, que num primeiro momento poderia ser pensado como o uso da negação, revela, sob um olhar mais aprofundado, que a perda do membro ainda não foi representada psiquicamente por esses sujeitos. Contudo, para que isso aconteça, há um trabalho a ser feito, ou seja, um processo de elaboração da perda do membro e da antiga vivência corporal para que uma nova configuração do corpo, uma nova imagem corporal seja construída.

Para um melhor entendimento dessa relação, salienta-se o que Freud (1917/1996) elucidou sobre o luto, explicando-o sob a lógica da perda do objeto e a consequente falta de interesse e de investimentos no mundo externo. Isso significa que, diante de uma perda, real ou simbólica, ocorre um desequilíbrio de investimentos libidinais, isto é, o sujeito enlutado desinveste dos objetos externos, e a libido fica localizada no eu, através de um superinvestimento que deverá ser temporário, mas que é fundamental para o desligamento do objeto perdido.

Tendo isso em vista, se o processo de luto não acontecer de maneira satisfatória, a reintegração das fronteiras do corpo será prejudicada e o processo de desinvestimento do membro amputado será muito difícil. Isso prejudicará também a reconstrução da imagem de si, ação que também depende do êxito da elaboração da perda do membro. Enquanto E8, E2 e E6 demonstraram, anteriormente, que esse processo não começou a acontecer, pois referiram que a amputação não acarretou mudanças tampouco sofrimento, E7 sinalizou que a perda do membro já começou a ser elaborada, principalmente quando, ao referir-se ao corpo após a cirurgia, falou “Um dia eu ia ter que olhar né pro meu corpo. Foi difícil, bem difícil, é ainda bem complicado, mudou. . . (choro) (E7, comunicação pessoal, 66)”.

Baseando-se nisso, pode-se inferir que, para que esses sujeitos reconstruam suas autoimagens, é fundamental a elaboração da perda do membro amputado, o que possibilitará o investimento dos novos limites corporais. Isso constitui o alicerce para uma reorganização narcísica, para reorganização dos limites do eu. Para que isso ocorra, o corpo precisa ser vivenciado enquanto um corpo novo, diferente e mutilado, marcado por novos limites, por um novo contorno. Assim, esse corpo com novos contornos deverá ser novamente erogeneizado e investido para que a imagem de si e o narcisismo sejam reestruturados.

Nota-se que a relação entre a reconstrução da imagem corporal e o trabalho de luto é de indiscutível relevância nesse contexto da amputação de membros, haja vista que se o trabalho de luto pelo membro perdido não for realizado, novos limites corporais não serão construídos e a reconstrução da imagem corporal não será possível. Isso reverbera diretamente na impossibilidade de aceitar e lidar com a nova condição física, especialmente com as dificuldades e as limitações impostas pela nova realidade corporal.

Enquanto o sujeito transita por esse período de tentativas de reintegração corporal e (re) significações, há que se lançar um olhar para algumas manifestações que permeiam as limitações e restrições advindas da amputação, conforme esta categoria apontou. Não há como abordar a realidade da amputação sem mencionar a dor no membro ausente, que muitas vezes alia-se ao restante de limitações e é tratada apenas como mais um sintoma ou característica da vida pós-amputação. Esse olhar mais atento será discutido a seguir.

 

Quando o membro ausente faz sentir-se: uma leitura além das sensações

No cenário da amputação, também é comum ouvir relatos a respeito da sensação de dor nos membros que foram seccionados, a chamada Síndrome do Membro Fantasma, que também deve ser considerada quando se trata de reintegração corporal. Tecnicamente, essa dor explica-se pelo fato de que o amputado tem a sensação de que o membro perdido continua presente, ou seja, há a consciência de dor na extremidade que foi retirada. É uma sensação muito real que pode ser queimação, dormência, pontadas e até mesmo uma ilusão vívida da existência e do movimento do membro ausente (Benedetto et al., 2002; Seren & De Tilio, 2014; Demidoff, Pacheco, & Sholl-Franco, 2007).

O presente estudo está alicerçado em uma concepção psicanalítica do corpo e, dessa forma, a dor fantasma será, aqui, abordada e compreendida sob essa perspectiva. Isso significa que, embora a dor fantasma seja comum e relatada pela grande maioria de pessoas submetidas à amputação (Demidoff et al., 2007), é importante que se atente aos aspectos subjetivos que estão implicados nessas sensações e sua relação com a imagem corporal, o que será o foco desta categoria.

Lembrando que a imagem corporal é a representação inconsciente do corpo, pode-se entender o porquê de os sujeitos ainda sentirem o membro que foi retirado, o que vai muito além de uma sensação ou de um reflexo. Quando os limites corporais são alterados por uma amputação, pode-se pensar que a representação desse corpo, sua imagem inconsciente, mantém-se a mesma de antes da amputação, necessitando um trabalho psíquico para a construção de uma nova imagem corporal.

Durante as entrevistas, esse assunto foi abordado por alguns participantes, quando mencionaram sobre o corpo depois da amputação, assim como nos relatos a seguir, referindo-se a uma ilusória presença desses membros ausentes:

Eu sentia como se meu joelho tivesse normal, sentia coceira [...] Colocava a mão no joelho e sentia dores muito fortes no calcanhar. . . . Que não existe né. Era como se eu tivesse assim pisando numa quina, numa ponta assim, sabe. Uma coisa muito estranha, é como se tivesse ali, muita dor, muito forte, realmente. E eu pensava assim, mas o que que é isso. . . . É uma coisa muito estranha. (E3, comunicação pessoal, 51).

Diante dessa fala, pode-se pensar que essa impressão de que os membros amputados ainda estão presentes e causando sensações como coceira e dores de diferentes intensidades, referem-se a uma imagem corporal que ainda não foi abandonada pelo sujeito. Durante a vida, muitos eventos podem abalar essa autoimagem, mas não significa que vão exigir uma reconstrução da mesma. Entretanto, um evento como a amputação de membros, além de causar uma ruptura na autoimagem, faz com que sua reconstrução seja essencial para a reintegração corporal e para que manifestações de dores e sensações no membro já retirado, por exemplo, possam cessar.

Benedetto et al. (2002) apontaram que, após a amputação, essa imagem do corpo sofre um abalo e, enquanto a perda do membro não é assimilada pelo sujeito, a dor fantasma pode surgir, mostrando que tal perda ainda não foi elaborada, que o processo de luto ainda não foi realizado. Isso porque em sua autoimagem o membro ainda existe, isto é, a alteração ocorreu apenas no corpo anatômico e não em sua vivência subjetiva do corpo.

Isso significa que há um conflito entre a imagem corporal e o corpo real, ou seja, entre a imagem psíquica do corpo e a imagem real e anatômica deste, tal como ele está após a amputação. E é esse corpo real que confronta constantemente o sujeito com uma outra imagem, a imagem anterior à amputação, a qual ele está com dificuldades de abandonar.

Assim, a permanência dessa dor fantasma pode indicar dificuldades no processo de reintegração corporal (Benedetto et al., 2002), embora caiba destacar que esse processo leva tempo e, enquanto não estiver consolidado, a dor fantasma pode existir. Isso se explica pelo fato de que a integração psíquica dessa mutilação corporal não ocorre imediatamente após o evento cirúrgico, ou seja, a retirada de um membro anatômico não é suficiente para que a autoimagem e os limites narcísicos se modifiquem instantaneamente. Para isso acontecer, é imprescindível a ação do trabalho de luto, a elaboração da perda do membro, como visto, pois, logo após a amputação, o que vigora é a imagem corporal existente antes da amputação.

Compreende-se esse fenômeno devido ao fato de a perda representar uma perda de si mesmo, uma perda narcísica e não apenas uma perda física (Bazhuni & Sant’Ana, 2006). Somente após a elaboração dessa perda é que o reinvestimento narcísico no corpo mutilado vai acontecer, tornando-o unificado novamente e reestruturando sua autoimagem.

Uma vez que todo esse processo aconteça, pode-se pensar que a amputação venha a ser uma aliada na melhora da qualidade de vida desses sujeitos, embora essa ideia, num primeiro momento, pareça uma contradição, visto que esse procedimento retira uma parte do corpo. No entanto, ao chegar às vias da cirurgia de amputação, sabe-se que, provavelmente, outros métodos já foram utilizados e não obtiveram sucesso terapêutico, levando os sujeitos a optarem entre perder uma parte de si mesmos ou correr sérios riscos de piorar seu estado de saúde e até riscos de morte.

 

Quando a perda é necessária: a amputação como possibilidade de vida

Em muitos casos, a amputação assume um caráter de salvação para o sujeito, sendo uma possibilidade de sobrevida e término de alguns tipos de dores e de intervenções altamente invasivas que não alcançavam resultados positivos. Além disso, não é raro que a amputação represente a única saída para evitar a morte. Diante do êxito desse processo, a amputação pode associar-se à chance de uma vida com qualidade mesmo diante de muitas limitações e incapacidades que esse evento pode trazer.

Tendo isso em vista, esta última categoria vai abordar a cirurgia de amputação como uma possibilidade de vida, de acordo com o que foi observado nos depoimentos de alguns entrevistados, que sinalizaram o quanto a secção de uma parte do corpo foi necessária para maiores chances de sobrevivência, conforme pode-se visualizar nos seguintes relatos: “Antes da cirurgia era uma vida triste, eu não dormia de noite...Mas hoje, depois da cirurgia pronta, eu não sinto mais dor e não tem mais perigo nem risco de aumentar a infecção” (E2, comunicação pessoal, 64). “Mas sabe que o médico mesmo me disse ‘se a senhora não fizer a amputação, vai acontecer que vai subir essa trombose, vamo ter que fazer, é a única saída” (E7, comunicação pessoal, 66.) “No meu caso a amputação seria o último recurso tentado pela medicina” (E3, comunicação pessoal, 51).

Contudo, não basta que a retirada de um membro anatômico proporcione uma melhora no estado de saúde do sujeito se ele não se reconhecer sob essa nova condição corporal e não conseguir integrá-la psiquicamente. A amputação só repercutirá enquanto uma possibilidade de vida se ele perder esse membro subjetivamente, elaborar essa perda e reconstruir sua autoimagem, reconstruindo-se, assim, narcisicamente.

Se isso não acontecer, a amputação pode representar algo mortífero ao sujeito, o que se explica retomando o caráter traumático desse evento e os efeitos patogênicos que sua não elaboração pode causar. Ademais, não vivenciar o luto pelo corpo mutilado e pela imagem corporal abalada ou vivenciá-lo de maneira patológica pode levar o sujeito a caminhos danosos. Um exemplo disso é quando o sujeito não consegue desligar-se do objeto que foi perdido, no caso, uma parte de seu corpo e, assim, não investe novamente em si mesmo, prejudicando a ação narcísica que vai tornar seu corpo uno, mesmo mutilado. Quanto a isso, Freud (1917/1996) esclareceu que, ao não direcionar investimentos libidinais a si mesmo, concentrando-os no objeto perdido, o sujeito viverá um processo patológico de luto.

Desse modo, as dificuldades nesse processo de reconstrução da imagem corporal e dos contornos narcísicos estão intimamente relacionadas à ausência de um trabalho de luto satisfatório, conforme observado nas categorias apresentadas. O que se espera é que o sujeito amputado tenha condições de se reinvestir libidinalmente e possa integrar a sua imagem os novos contornos corporais e suas potencialidades. É desse trabalho que vai depender sua reestruturação narcísica, com a ausência do membro integrada a sua imagem ou, como ausência que não pôde ser elaborada, ganhando um caráter patológico, mortífero.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo mostrou que, embora a cirurgia de amputação de membros tenha representado uma melhora na qualidade de vida dos entrevistados, assumiu, por outro lado, um caráter traumático, provocando uma abrupta ruptura nos alicerces simbólicos constitutivos de cada um, ameaçando todo o arcabouço que o sustentava até o momento da perda do membro, repercutindo diretamente na imagem de si mesmo e em seu narcisismo.

Diante desse evento, mostrou-se necessário o processo de reintegração corporal que, para ter êxito, exige um trabalho de luto não só pelo membro amputado, mas também pela imagem corporal mantida até o momento da cirurgia. E, diante de uma imagem corporal abalada, sabe-se que a ação narcísica de unificação corporal terá de ser reestruturada para que a imagem do corpo, agora mutilado, seja reconstruída.

Quanto a isso, sublinha-se a importância de se realizar um acompanhamento psicológico ao sujeito amputado, escutar suas fantasias, angústias, receios e incertezas diante desse corpo modificado e das reverberações que produz em sua vida. Sugere-se que o acompanhamento psicológico aconteça, principalmente, durante toda a internação, desde o preparo pré-cirúrgico até a alta hospitalar, garantido que, mesmo em um período curto de tempo, o sujeito expresse seus sentimentos diante de um evento dessa magnitude.

Além disso, espera-se que esta pesquisa possa contribuir para a percepção de que a amputação de membros pode desvelar-se enquanto uma possibilidade de vida. E, uma vez que representa uma chance de sobrevivência, este trabalho buscou mostrar que a mesma não se refere apenas à sobrevivência orgânica, física e biológica, mas a uma sobrevivência psíquica, a uma reestruturação necessária que vai tornar esse corpo mutilado um corpo uno, cenário de potencialidades.

Por fim, cabe destacar a importância do acompanhamento psicológico nos processos de protetização, uma vez que o uso de prótese não exclui o trabalho de luto pelo membro extirpado. A ausência desse processo, ou seja, se não ocorrer a reestruturação da imagem corporal e do narcisismo, a adaptação ao membro artificial pode ficar comprometida e ser permeada por muitas dificuldades ou, até mesmo, ser impossibilitada.

 

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Endereço para correspondência:

Priscila Ferreira Friggi

Centro de Atendimento Educacional

Rua Augusto Emmel, 96

CEP: 96878-000 – Vale do Sol/RS

E-mail: prifriggi@hotmail.com

Recebido em 13/11/2017

Aceito em 17/12/2017

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