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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.12 no.2 Juiz de Fora May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.24879/2018001200200177 

Artigo Original

10.24879/2018001200200177

 

A Utilização De Metodologia Grupal Em Pesquisa-ação Participativa Com Travestis E Transexuais

 

The Use Of Group Methodology In Participatory Action Research With Transgender

Juliana Perucchi; Brune Coelho Brandão; Beatriz Guedes Mattozo; Letícia Soares Zampiêr; Helena Santos Braga de Carvalho

Universidade Federal de Juiz de Fora

 

 


Resumo

Em um trabalho de extensão universitária em psicologia comunitária, desenvolvemos um grupo de apoio para pessoas travestis e transexuais. Nos ancoramos nas teorias feministas pós-estruturalistas, na pesquisa ação-participativa e no comprometimento político da psicologia com as populações marginais. Descrevemos o uso de uma metodologia participativa como estratégia de promoção da autonomia dos sujeitos, possibilitando enfrentamento de vulnerabilidades. Essa metodologia foca na construção coletiva da demanda a ser trabalhada de acordo com os participantes. Utilizamos a análise do discurso de Foucault como ferramenta analítica. Constatamos que investir na linguagem, nos espaços de falas silenciadas e nas articulações para minimizar os efeitos de desigualdade produzidos pelo contexto mostram-se importantes no fomento da autonomia e da ação dos sujeitos nas estratégias de transformação social.

Palavras-chave: Pesquisa-ação participativa; Psicologia Comunitária; Gênero; Metodologia participativa.


Abstract

We developed in the university extension work at field of community psychology a support group for travestis and transsexual people. We are anchored in post-structuralist feminist theories, in participatory action research, and in the political commitment of psychology to marginalized populations. We describe the use of a participatory methodology such as a strategy of promotion the subject’s autonomy, allowing resistance in situations of vulnerability. This methodology focus in collective construction of the demand to be worked according participants. We realize that investing in language, silenced discourse spaces and in articulations to minimize the effects of inequality produced by the context are shown as important in the promotion of autonomy and protagonism of the community in the strategies of social transformation.

Keywords: Participatory Action Research; Psychology Community; Gender; Participatory methodologies.

 

 

A partir de um trabalho em extensão universitária com interface em pesquisa em psicologia comunitária, desenvolveu-se o grupo de apoio e militância destinado a pessoas travestis e transexuais, o “VisiTrans”. A proposta, para além da pesquisa com essas/es participantes, se propôs a pensar intervenções no âmbito comunitário ancoradas nos estudos de gênero das teorias feministas pós-estruturalistas (Butler, 2000; Butler, 2008; Spivak, 2010), na pesquisa ação-participativa e no comprometimento político da psicologia para com as populações colocadas à margem (Fine et al, 2004; Fine, Torre, Burns & Payne, 2007; Adrião, 2015) pelos processos de produção de normalidade, dos quais as ciências contribuíram na produção de verdade (Canguilhem, 2009).

Em meio ao desejo de reconhecimento, suporte social e busca por maior espaço na sociedade local, surgiu a proposta do grupo, que também respondia às inquietações com o contexto de vulnerabilidade no âmbito da saúde, em que vive esta população no Brasil (Perucchi, Brandão, Berto, Rodrigues & Silva, 2014). Inicialmente pensado de modo informal no convívio entre pesquisadoras/es e militantes da luta pela diversidade de gênero, a pequena reunião de pessoas foi ganhando forma através de parcerias importantes com instituições de ensino superior onde estavam pesquisadoras/es engajadas/os nos estudos de gênero e das sexualidades. Assim, no contexto de um projeto de extensão com interface em pesquisa, que recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e de uma universidade federal do interior mineiro, os encontros do grupo de apoio, cidadania e direitos humanos para a população transexual e travesti deste município de médio porte tiveram início.

Inicialmente nossas pesquisas e intervenções tinham como foco o marcador social das diferenças de gênero, uma vez que o grupo recebeu uma população cuja principal demanda era o reconhecimento de sua identidade de gênero, tanto no âmbito comunitário quanto no âmbito legal. Sabemos que essa questão levantada envolve um contexto histórico e culturalmente construído de produção de um corpo sexuado com base em características biológicas que definem modelos binários e excludentes entre si, que foram convencionados como base para o gênero das pessoas (Butler, 2000; Butler, 2008). Tem-se, assim, fabricada na modernidade, a identidade cisgênera – aquela identidade de gênero consoante com o sexo que fora convencionado antes mesmo do nascimento pelos dispositivos tecnológicos da medicina – como a vivência natural e, portanto, normal do ser humano (Jesus, 2015; V., 2015). No entanto, começamos a nos deparar em nosso trabalho com outros marcadores sociais de diferenças, principalmente, com os de raça, classe social e território, que nos fizeram reavaliar e pensar em uma abordagem mais interseccional.

A ideia de interseccionalidade surgiu junto com os estudos pós-coloniais, tendo como plano de fundo o feminismo negro, que fazia uma crítica radical ao feminismo branco, de classe média e heteronormativo. Este último pode ser definido como as expectativas e normas que atravessam as vivências de gênero em regras binárias, engessadas e que essencializam e naturalizam o que é ser homem ou ser mulher na sociedade, bem como elegem a heterossexualidade como única vivência normal e possível da sexualidade humana (Louro, 2000). Assim, o objetivo das perspectivas de interseccionalidade era chamar atenção para a interdependência das relações de poder que se articulam por meio dos diferentes marcadores de diferenças de raça, de sexo e de classe (Hirata, 2014). Daniele Kergoat (1978) trabalhava a ideia utilizando o conceito de Consubstancialidade, articulando as relações sociais de classe e gênero, tentando compreender as práticas sociais de homens e mulheres na divisão social do trabalho. O conceito de interseccionalidade propriamente dito foi trabalhado por Kimberlé Crenshaw (1994), focalizando principalmente as intersecções da raça e do gênero, com o objetivo de considerar as variadas fontes de identidade.

Hirata (2014) chama atenção para o fato de que Crenshaw focaliza a relação gênero/raça, enquanto Kergoat, aquela entre gênero/classe. Isso tem implicações teóricas e políticas significativas, apesar da convergência na proposta de não hierarquização das formas de opressão. Ao escolher determinados marcadores em detrimento de outros, acaba-se reiterando a discriminação que se pretende criticar. Se baseando em um “essencialismo estratégico”, essas teóricas acabam normatizando determinados conceitos e tratando as diferenças como dadas (Scott, 2005).

Além disso, mesmo dentro do marcador sexo/gênero, as variabilidades de identidades de gênero e de orientação sexual são desconsideradas, reiterando uma visão binária e heteronormativa. Para se sanar essa defasagem, uma opção mais estratégica parece ser o diálogo com a Teoria Queer, que surge junto com os Estudos Pós-coloniais dos Estudos Culturais. Ambas as teorias podem ser denominadas de “teorias subalternas” e se originaram como uma alternativa ao marxismo que, de corrente ortodoxa, tornara-se hegemônica, e cujo projeto não atendia mais às demandas dos grupos sociais da época (Miskolci, 2009).

Inicialmente, a Teoria Queer esteve associada aos estudos do desejo e das sexualidades. Entretanto, na contemporaneidade e mais especificamente nos últimos anos “não é mais garantido que a sexualidade seja o eixo principal de processos sociais que marcaram e ainda moldam as relações sociais” (Miskolci, 2009, p. 19). Dessa forma, surge a necessidade de pensar a intersecção de categorias, como parte dos diálogos entre os teóricos queer e os sociólogos contemporâneos, influenciados pelos estudos pós-coloniais. Assim, a Teoria Queer é pensada hoje como uma teoria de resistência à americanização branca, hetero-gay e colonial do mundo, consoante aos Estudos Pós-Coloniais, uma vez que as teorias pós-coloniais vêm exercendo uma influência significativa na reconfiguração da crítica cultural (Costa, 2014). Apesar de trazer desafios, a principal ponte entre os teóricos queer e pós-coloniais se dá no reconhecimento da necessidade de aliar os saberes subalternos nos estudos do “outro” (Fine, 1994), de modo a propor o desenvolvimento de metodologias que “analisem as interdependências entre as categorias de forma que não resultem na soma de opressões, antes na compreensão de como elas se determinam mutuamente” (Miskolci, 2009).

Os estudos feministas se aproximam da psicologia nas décadas de 1960 e 1970, forçando esse campo do conhecimento a repensar sua teorização acerca de gênero. Há na psicologia uma forte base epistemológica que essencializa os processos de construção de identidade de gênero, reiterando um binarismo e uma base ontológica que naturalizam o feminino e o masculino na nossa sociedade (Nogueira, 2001). Seja através da concepção de determinismo biológico ou da noção de socialização e introjeção de papéis de gênero dentro do campo psi (Nogueira, 2001), o feminismo busca romper com tais concepções propondo, do contrário, o caráter relacional da construção social de identidades que são atravessadas por uma série de dispositivos que fabricam uma verdade sobre a matéria e seus usos (Butler, 2000; Butler, 2008). Esse processo de desessencialização do gênero e dos demais marcadores sociais que atravessam os processos de subjetivação das pessoas tornam-se importantes para o trabalho na comunidade, nesse caso específico com pessoas travestis, transexuais ou que fujam de alguma forma da cisgeneridade.

Como as principais pautas e experiências dos/as participantes do grupo apontam, a discussão a respeito de gênero e sexualidade e o tratamento desses temas em diversos dispositivos da sociedade, seja na assistência, na gestão ou na formulação de políticas, ainda se faz de modo precário. Dito isto, é importante ressaltar o trabalho de Rubin (2003), que destaca o fato de que o sexo é um instrumento político importante no desenvolvimento de nossa sociedade e sua (re)negociação na esfera social e política é ferramenta utilizada para estipular normas dentro das quais determinadas práticas e identidades sexuais são legitimadas ou não, consequentemente definindo quais receberão apoio por meio de políticas de governo e quais serão excluídas, marginalizadas e oprimidas por esta mesma instituição.

Na realidade brasileira, as lutas em busca da defesa e garantia de direitos LGBT, ganharam maior destaque e força a partir da década de 70, período que coincide com nosso processo de redemocratização e, também mais tarde, com a criação dos Princípios de Yogiakarta (ONU, 2007), que é um modelo de referência sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e a identidade de gênero. Há poucos anos, a população LGBT obteve uma grande conquista e avanço com a construção da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013), um documento importante em direção à garantia de direitos e reconhecimento das necessidades deste grupo.

Nesse sentido, o entendimento da psicologia comunitária a respeito do trabalho com comunidades é de grande valia em nosso estudo, como uma proposta de psicologia que pretende a saída de um cenário tradicional nos consultórios e se torna um movimento que procura ocupar espaços na política pública, aproximando-se de grupos populares e suas demandas (Silva, 2015). Dentre as diversas contribuições desta linha teórica, destaca-se a ênfase nos pressupostos de que a construção de conhecimento é feita na interação da/o profissional com o sujeito e que é desta relação entre pesquisador/participante que as transformações de realidade serão possíveis, além da importância da ética, da solidariedade, dos direitos humanos e da melhoria da qualidade de vida de determinado grupo (Campos, 2015).

Na contramão de um projeto individualizante de sociedade, a psicologia comunitária vem com a proposta de retomar valores comuns, promover bem-estar e cidadania, através da justiça social. Pensando sobre isso, Silva e Sarriera (2015) enriquecem a discussão conceituando o que chamamos de justiça social, relacionando-a principalmente ao processo de questionamento e reflexão do status quo vigente. Estes mesmo autores destacam a importância da postura dos/as psicólogos/as no exercício de uma prática que promova a transformação e não o controle social, possibilitando que indivíduos se vejam como pessoas de direito, autônomas e que, através do estímulo ao desenvolvimento de seu compromisso social e exercício de cidadania, também contribuam com a transformação de suas realidades. Assim, pensar a promoção de saúde é possibilitar a melhoria da qualidade de vida das populações e sua participação na construção de políticas públicas, ampliando a noção de contexto de perspectivas locais para incorporar elementos políticos, sociais, físicos e psicológicos (Czeresnia, 2009).

Dessa maneira, o trabalho relatado neste artigo se fez no sentido de constituir-se como produção de conhecimento feita por meio da promoção das vozes das pessoas que ainda são chamadas a ocupar posições subalternas no contexto social por determinantes históricos e políticos (Fine, Torre, Burns & Payne, 2007; Spivak, 2010). Além disso, ao reconhecer os determinantes de subalternidade e propor um trabalho ativo na comunidade, buscou-se promover a autonomia[1] das/os participantes, consoante com o compromisso ético e político da psicologia com as recorrentes demandas de transformação social da realidade pesquisada. Para tanto, pretendemos com este artigo descrever como o uso de uma metodologia participativa em uma pesquisa-ação participativa na comunidade pode atuar como uma estratégia de autonomia dos sujeitos ao possibilitar o enfrentamento de situações de vulnerabilidade social e programática. Ao ampliar esses conceitos advindos do campo de estudos da aids para a saúde no geral, entendemos que a vulnerabilidade social se refere às lacunas que o sujeito encontra nos contextos em que se insere para o pleno exercício da sua cidadania, tais como recursos materiais disponíveis, acesso a informações, escolaridade, influências em decisões de cunho político, dentre outros. Já a vulnerabilidade programática faz alusão à falta de políticas públicas específicas que contemplem suas necessidades (Ayres, 2002; Ayres, França-Júnior, Calazans & Saletti-Filho, 2003).

 

A pesquisa-ação participativa na psicologia: pensando modelos de atuação na comunidade

Os processos de pesquisa e intervenção em psicologia estão sendo repensados para atender às múltiplas demandas sociais e políticas emergentes na nossa sociedade. O trabalho de Adrião (2015), no qual a autora entrevistou a pesquisadora, psicóloga e feminista Michelle Fine, aproxima-se da proposta do artigo aqui construído, pensando as interseções e possibilidades entre a psicologia, os estudos feministas e a justiça social. Esta perspectiva de trabalho científico destaca que os modos de pesquisa e de intervenção devem ser repensados para não reproduzir formas de opressão e dominação presentes no contexto social e político através do reconhecimento da produção de privilégios e de posições marginalizadas. Desse modo, quem faz pesquisa em psicologia deve constatar que há contingências históricas, políticas e sociais que colocam alguns sujeitos em uma posição hierarquizada em relação a outros.

Ao criarmos espaço para que vozes silenciadas possam falar, não só fomentamos a autonomia e o protagonismo dessas pessoas, como também partimos da ideia de que “a pesquisa mais válida deve ser feita por e com as pessoas que mais entendem a injustiça” (Adrião, 2015, p. 484). Assim, pensamos não em termos de ‘coleta de dados’, mas na produção de dados, de forma que o material que emerge das interações no campo surge na medida em que nos envolvemos com o grupo com o qual se trabalha, e possibilitamos que suas demandas sejam ouvidas, restaurando a integridade das subjetividades frequentemente marcadas pela violência e pela discriminação.

Devemos reconhecer como atuamos na construção do “outro” com base em um sistema de diferenças, assim como devemos constatar qual o impacto dessa construção na produção de conhecimento científico em ciências sociais e nas práticas comunitárias que desenvolvemos (Fine, Torre, Burns & Payne, 2007). Reconhecendo nossa posição de autoridade de dizer sobre esse “outro”, recusamos a premissa de que essa construção é meramente neutra e reconhecemos os jogos de poder/saber e os processos de exclusão que essa produção científica colonizada fabrica; haja vista que o discurso dominante nas ciências sociais e na psicologia atua no sentido de manutenção da ordem social estabelecida e de obscurecimento da posição de privilégio de quem escreve sobre determinado grupo ou população (Fine et al, 2004).

A respeito da metodologia que norteia o nosso trabalho é importante realizar algumas reflexões para melhor entender nossa perspectiva de ação. Anterior ao conceito de pesquisa-ação-participativa, temos o de pesquisa-ação, que pretende, como objetivo geral, investigar a prática para melhorá-la. Em um de seus trabalhos, Tripp (2005) apresenta-nos que não se sabe precisar com exatidão o momento de surgimento do conceito, mas sabe-se que foi Kurt Lewin o primeiro teórico a cunhá-lo na literatura e, além desta discussão inicial sobre a metodologia, propõe refletir sobre a forma que o utilizamos atualmente, propondo alguns esclarecimentos e mudanças importantes. Um dos pontos trazidos à tona questiona o que chamamos de “participante” dentro da metodologia e a partir de quais vínculos o/a tal participante estaria envolvido/a na pesquisa – através da obrigação, cooptação, cooperação ou colaboração – o que nos faz pensar também a questão ética de como um sujeito ou grupo pode ser afetado por uma investigação. Nesse sentido, o autor propõe que haja tópicos de interesse de todos, que o mesmo seja compartilhado, que todas/os tenham participação ativa da forma que preferirem e que as decisões sobre questões concernentes à justiça sejam definidas coletivamente com as/os participantes (Tripp, 2005).

Desse modo, a pesquisa-ação participativa busca romper com a lógica de que as/os pesquisadoras/es vão definir o problema e a natureza da pesquisa (Fine, Torre, Burns & Payne, 2007), em uma produção científica e de estratégias de ação em que sejam levadas em consideração as próprias definições do grupo pesquisado (Fine et al, 2004). Nessa lógica, trabalhamos com o que Michelle Fine chama de “críticas bifocais” (Adrião, 2015, p.482): “ao mesmo tempo em que focamos nas vidas em seu contexto, trabalhamos na história e nas teorias, fazendo o conhecimento circular por diferentes lugares e contextos”.

Nosso trabalho caminha nesse sentido: de reconhecimento da posição parcial e contingencial das pessoas da equipe na produção de conhecimento acerca da população estudada com a finalidade de evitar a reprodução de desigualdade no próprio processo de construção do conhecimento (Haraway, 1995). É um movimento de troca de saberes, em que a equipe precisa reconhecer e deslocar sua posição de privilégio, que deixa de ser a de produtora de uma verdade absoluta legitimada pelo lugar de poder-saber da psicologia e da universidade, para então se aproximar da realidade social e trabalhar com as questões, locais e globais, trazidas pelos sujeitos. Nesse sentido, investir na linguagem e nos espaços de falas silenciadas cotidianamente mostra-se como estratégias importantes no fomento da autonomia e da agência dos sujeitos nas estratégias de ação.

 

A linguagem e a promoção de espaços de fala: promovendo o protagonismo dos sujeitos

O presente trabalho se desenvolveu através de uma pesquisa-ação participativa que está em andamento há três anos com pessoas travestis e transexuais, meninos e meninas, com idade variando de 15 anos até 58 anos (tendo grande parte das pessoas participantes na faixa etária de 20 a 30 anos), de classe média. A proposta metodológica se ancora nos estudos feministas em psicologia social e comunitária, com foco na construção coletiva de estratégias de ação que minimizem situações de vulnerabilidade social e programática identificadas com o contato com as/os participantes. Em um primeiro momento, buscamos levantar quais as reais necessidades das pessoas trans no município. A ferramenta das rodas de conversa (Sampaio, Santos, Agostini & Salvador, 2014) nos possibilitou ouvir atentamente as pessoas presentes, suas histórias e os atravessamentos que as colocavam em uma posição de sujeito subalterno frente a acontecimentos do dia-a-dia. As conversas abertas, com foco nas experiências de vida dos sujeitos e a troca de informações (Batista, Bernardes & Menegon, 2014), permitiram que compreendêssemos o que de fato as pessoas trans que participavam do grupo necessitavam em seu cotidiano de vida, abrindo espaço para que protagonizassem a elaboração da demanda a ser trabalhada coletivamente em cada reunião grupal. As reuniões foram gravadas em vídeo e transcritas, mediante a autorização da/os participantes, dentro dos princípios éticos propostos pela universidade. Todo o material transcrito foi analisado sob a luz teórica da análise do discurso em Foucault (2012), nos possibilitando entender os jogos de poder que subjugam as pessoas trans em posições de sujeito subalternas na fabricação de verdades acerca de seus corpos e (im)possibilidades de cidadania.

O trabalho com a linguagem do cotidiano na disposição de rodas de conversa demonstrou-se um importante recurso metodológico para que nós da equipe pudéssemos nos deslocar, enquanto profissionais e estudantes de psicologia que somos, do lugar de saber-poder normatizador dos corpos e das condutas, para uma outra posição, de escuta, de acolhimento e solidariedade, de alguém que, conjuntamente com o sujeito, busca compreender o que está em jogo e quais os desdobramentos das demandas emergentes. A ideia, neste sentido, é a de que trabalhássemos não para a comunidade assistida, mas com ela – modelo de psicologia comunitária em que a comunidade deve protagonizar ações, sendo o lugar da/o profissional de psicologia com aquela/e que atua como facilitadora das discussões e estimuladora dos processos de construção coletiva de ações transformadoras (Campo, 2015; Silva, 2015).

As/os participantes chegaram ao grupo através da indicação de amigas/os ou de pessoas da militância e também de algumas instituições que sabiam da existência do mesmo. Os encontros ocorrem em uma sala ampla, com sofás e cadeiras, dispostos em formato de círculo. A proposta é criar um setting de acolhimento, no qual todas as pessoas participantes possam se ver mutuamente e interagir entre si. A duração média de cada encontro é de aproximadamente uma hora e meia, sendo que ocorrem quinzenalmente, por solicitação do próprio grupo. Após uma roda inicial de apresentações, para que todas/os possam se conhecer melhor, alguém da equipe pergunta se alguém possui alguma novidade ou informe para compartilhar com o grupo. Desse modo, suscita-se que as próprias pessoas participantes tragam fragmentos das suas histórias de vida para o diálogo. Vale destacar que a equipe conta com a participação de uma doutoranda em psicologia que é uma mulher transexual, o que constitui um importante elemento de identificação com as demais pessoas transexuais participantes do grupo e que além de instituir um vínculo identitário importante entre participantes e equipe no trabalho, constitui uma exitosa estratégia de agência e protagonismo também no âmbito acadêmico.

Com base no material discursivo produzido, atuamos com a desconstrução das verdades naturalizadas e reiteradas de que há corpos essencialmente masculinos ou femininos (Butler, 2000; Butler, 2008; Louro, 2000), promovendo uma reflexão acerca de como o gênero se processa de diferentes maneiras nos corpos das pessoas. O espaço oferecido pela proposta grupal é aproveitado através da realização de discussões a partir da demanda das pessoas participantes, sendo muito recorrentes temáticas como: o uso do nome social, as relações familiares, os processos de hormonização, entre outras modificações corporais como as cirurgias de transgenitalização[2], procedimentos a laser, mastectomia (procedimento de retirada das glândulas mamárias). Ao longo destes anos, o grupo apontou as dificuldades de acesso a serviços de saúde voltados para pessoas travestis e transexuais no âmbito municipal e as dificuldades de respeito ao nome social e a sua identidade de gênero nos espaços públicos, aspectos trabalhados em pesquisas anteriores. Ao criarmos espaço para que vozes silenciadas possam falar, não só fomentamos a autonomia e o protagonismo dessas pessoas, como também partimos da ideia de que “a pesquisa mais válida deve ser feita por e com as pessoas que mais entendem a injustiça”, (Adrião, 2015, p.484).

 

A legitimidade da demanda e os espaços de fortalecimento coletivos

Nossa estratégia metodológica pautada na pesquisa-ação participativa (Fine et al, 2004; Fine, Torre, Burns, & Payne, 2007; Adrião, 2015) permitiu que pudéssemos entrar em contato com histórias cotidianas de discriminação e preconceitos compartilhados por cada pessoa participante dos encontros do grupo ao longo destes anos, mas também nos permitiu refletir acerca dos macrocontextos que determinam arranjos societários nos quais as pessoas travestis e transexuais ocupam posições subalternas. Isso se reflete nas falas que mostram como dispositivos jurídicos e sociais atuam na deslegitimação da identidade de gênero das pessoas trans. Podemos verificar isso no excerto de fala em uma das rodas de conversa realizadas:

Judite[3]: Sem um laudo não consegue entrar na justiça pra judicializar o controle hormonal. E a moça falou que eles estavam pedindo receita agora. Mas gente! Se for fiscal mesmo, como as meninas vão conseguir? Na justiça o único argumento que consegue justificar o uso do hormônio é o laudo.

Nesse excerto de fala, percebemos como o acesso a medicamentos preconizados pelas portarias do Ministério da Saúde (Brasil, 2008; Brasil, 2013) não são fornecidos na realidade local, sendo necessário o uso do poder jurídico, materializado pelo léxico “judicialização”, como via de acesso ao controle hormonal. Para legitimar uma demanda de alteração corporal que causa sofrimento psíquico, não basta a decisão e autonomia da pessoa sobre seu corpo para sustentar seu direito ao uso de hormônios, é exigido um laudo (Bento & Pelúcio, 2012; Perucchi, Brandão, Berto, Rodrigues & Silva, 2014; V. 2015; Roger, Tesser-Júnior, Moretti-Pires & Kovaleski, 2016) – dispositivo médico-jurídico que atua na fabricação desse corpo enquanto instância (i)legítima para a solicitação desejada. Episódios como esses se repetem nos encontros do grupo, o que nos leva a refletir acerca do constante silenciamento das vozes de pessoas trans. Elas ainda precisam se submeter ao poder biomédico e jurídico para que suas necessidades sejam, de fato, reconhecidas. A violação se apresenta nesses pequenos episódios cotidianos, relatados para nós durante três anos de trabalho. Entender como essa injustiça se processa de acordo com os parâmetros e as verdades produzidas pelo grupo nos faz questionar o sistema hegemônico de gênero que atravessa os espaços pelos quais essas pessoas estão inseridas (Silva, 2015). Trabalhar com o grupo em uma perspectiva de pesquisa-ação participativa exige, portanto, reconhecer a legitimidade das diferentes demandas dessa população frente à invisibilidade cotidiana que sofrem (Fine, Torre, Burns, & Payne, 2007).

Nesse sentido, no processo de nomeação dos corpos, o grupo aponta como o sistema jurídico atua na legitimação do gênero das pessoas através dos documentos de identificação pessoal. O fragmento de fala abaixo exemplifica a questão:

Lúcio: Quando eu fui fazer exame de sangue foi a mesma coisa, o cara conferiu meu nome de registro três vezes, eu acho que isso acontece muito, a pessoa olha pra sua cara, olha pro nome, vê uma diferença e acaba sendo ruim pra você, que tem que se explicar, às vezes e corrigir.

Muitos relatos semelhantes ao destacado acima aparecem como pauta da demanda do grupo: o respeito ao uso do nome social. O desrespeito ao seu uso é algo que se repete nos espaços públicos pelos quais as pessoas trans transitam. Ao ouvir atentamente esses relatos e reconhecermos como o gênero é designado à pessoa mesmo antes de seu nascimento pelo processo de nomeação convencionado como oficial e legitimado pelo registro civil, percebemos que as instituições não estão preparadas para lidar com a incongruência entre o nome e a apresentação física, de modo que, conforme afirmou o participante do grupo: “acontece muito” e “acaba sendo ruim pra você”. O que fica claro para nós é que há uma produção de constrangimentos e inconvenientes cotidianamente reiterados, de modo a reproduzir o desrespeito para com o uso do nome social, o que também traz dificuldades no processo de retificação civil de pessoas trans.

Frente a essas questões de desigualdade, a troca de experiências se mostra como uma importante estratégia de resistência e de enfrentamento à vulnerabilidade social e programática que acometem esta população (Batista, Bernardes & Menegon, 2014). A metodologia grupal permitiu que as pessoas se colocassem, relatassem suas histórias e experiências pessoais de êxito e de fracasso, compartilhassem os mesmos medos, anseios e esperanças. Um exemplo é o fragmento de fala que se segue, no qual Luís, um participante que chegou recentemente ao grupo, relata sobre a ida à instituição de ensino onde estuda para solicitar o uso do nome social, acompanhado de Angelina, uma participante mais antiga do grupo.

Luís: Então, eu fui, a Angelina foi comigo no colégio onde eu faço curso né, pra poder ver a questão do nome social, mas a diretora ela foi, foi tão mente aberta que é uma coisa que eu não esperava, me surpreendeu realmente, e aí ela falou que já vai mudar o meu nome social na chamada, no certificado e na formatura, e os documentos do colégio, todos também.

Angelina: Então ele vai formar, vai ter o certificado com o nome social.

Pode-se perceber como os vínculos se tornaram mais fortes para além do espaço físico e temporal do grupo, de modo que uma pessoa mais antiga do grupo, que inclusive se potencializou enquanto militante na cidade, se dispôs a auxiliar outra pessoa que estava com problemas de reconhecimento do uso do nome social na sua instituição de ensino. Torna-se pertinente constatar como a política pública no âmbito educacional federal – que tem em uma portaria do ministério da educação e da cultura (Brasil, 2011) o respaldo legal que exige o uso do nome social – não é suficiente para que este direito seja reconhecido como legítimo. No caso ilustrado pelo excerto acima, foi necessária a mediação de uma terceira pessoa, nesse caso, a Angelina, para que Luís tivesse coragem e agência para ir até a instituição de ensino exigir que seu nome social seja reconhecido pela direção do colégio. Isso nos faz refletir como o fortalecimento desses vínculos grupais, de pessoas que passam por experiências semelhantes, possibilitam que ações de resistência e de enfrentamento sejam protagonizadas por elas, na luta por direito, consoante com a proposição da psicologia comunitária (Campos, 2015) e de se repensar as concepções de gênero nesse campo do saber (Nogueira, 2001) de produções de verdade que colonizam os corpos trans (V., 2015). Neste sentido, vale destacar que o papel da psicologia não se coloca apenas como executora de políticas públicas, mas no sentido de estabelecer o controle social, de modo a verificar se essas políticas de fato contemplam as demandas da população afetada por ela (Campos, 2015; Silva, 2015). Isso Possibilita que a própria população promova ações que julgue necessárias, seja para a manutenção dos direitos preconizados, seja para a ampliação da arena de direitos (Silva & Sarriera, 2015).

Surgiu também no trabalho coletivo uma demanda de criação de um grupo de whatsapp[4] para a comunicação das pessoas do grupo com a equipe e entre si. Inicialmente, havia um recorte de geração e classe, visto que o uso requer um aparelho celular do tipo smartphone – tecnologia com um custo relativamente alto e mais popular entre jovens. Contudo, cada vez mais pessoas que chegavam ao grupo estavam se comunicando com a equipe por esse aplicativo e as pessoas mais antigas começaram a utilizá-lo. Frente a essa nova configuração social, atravessada por diferentes marcadores sociais da diferença (Haraway, 1995), percebemos como a tecnologia poderia auxiliar nesse processo de fortalecimento grupal para além do recorte espaço-temporal do projeto. Não são promovidas discussões mais amplas, posto que estas ocorrem presencialmente, mas o grupo virtual tem possibilitado conversas sobre as próximas datas de reunião, trocas de notícias relativas a pessoas trans e trocas de experiências positivas e de informações sobre avanços das pautas no Brasil.

Um episódio interessante de uma mulher trans no grupo que passou por um processo de retificação civil de dez anos exemplifica como o celular possibilitou um fortalecimento grupal. Ela estava muito angustiada por conta da demora na retificação dos documentos e, sempre que estava presente no grupo, trazia desesperança no seu relato. O grupo se sensibilizou e trazia palavras de consolo, compartilhava da revolta dela e as pessoas mais antigas relatavam também suas dificuldades com o sistema jurídico. Durante um breve período, ela não pode estar presente nas discussões presenciais, mas o vínculo com as pessoas se manteve, atravessando recortes de classe e de geração. Quando o grupo do whatsapp surgiu, ela o utilizou para fazer relatos acerca do andamento do processo, seus medos, suas angústias e os avanços. Mensagens de motivação eram trocadas e outras pessoas começaram a enviar fotos de seus documentos já retificados como forma de estímulo. Quando ela de fato conseguiu retificar seus documentos, também enviou uma foto deles com seu nome retificado, junto a uma mensagem de agradecimento, dizendo como o apoio grupal a auxiliou a enfrentar a desesperança frente a esse processo e a lutar para a mudança. Mais que isso, o caso se tornou referência na região, na luta coletiva para que cada vez mais pessoas tenham seu gênero e seu nome reconhecidos juridicamente perante o Estado.

Para nós, observar essa interação fora do grupo presencial, os novos vínculos formados, ou seja, constatar que as pessoas trans se comunicam coletivamente, protagonizando ações e suporte intersubjetivo é um importante indicativo de que há um fortalecimento das relações que geram ações e incentivos coletivos pela busca de direitos. Acreditamos que essa aproximação promove: suporte para lidar com as cotidianas violações enfrentadas e que geram adoecimento; bem-estar ao verificar que sua experiência não é única e que há outras pessoas que passam por situações semelhantes, pessoas estas que, apesar de apresentarem outros marcadores sociais diferentes dos seus, como ser oriundo de outra classe social, pertencer a outra raça ou outra geração, são pessoas dispostas a escutar e entender suas experiências de vida; e esperança, no sentido de que quando uma pessoa consegue ter seu direito reconhecido, as demais vêem que isso pode ocorrer também consigo próprias. Seguindo por essa perspectiva, potencializar os laços comunitários atua na promoção de saúde e da autonomia das pessoas trans.

Desse modo, possibilitar um espaço de voz para pessoas que compõem uma população historicamente marginalizada e tutelada por normas biomédicas, psicológicas e psiquiátricas (Canguilhem, 2009) que designam seus corpos e suas identidades como patologia nos permitiu estimular o protagonismo das pessoas trans, criando condições para que seja, inclusive, fortalecido o questionamento que fazemos deste status psicopatológico comumente atribuído a estas pessoas e às suas experiências. Suas vozes silenciadas tornaram-se agentes potentes no trabalho grupal realizado no contexto aqui relatado, haja vista que foram ao longo do tempo silenciadas nos próprios (e escassos) serviços de atendimento a pessoas trans no processo transexualizador: posto que a imperativa era de diagnosticar seu gênero, em uma perspectiva que a pessoa deveria preencher pré-condições estabelecidas para o seu “diagnóstico correto” (Bento & Pelúcio, 2012; Perucchi, Brandão, Berto, Rodrigues & Silva, 2014).

Apesar disso, o trabalho no grupo de apoio e militância nos fez refletir também acerca da necessidade de transformação do contexto de políticas públicas municipais, frente às reais necessidades das pessoas trans, enunciadas por elas próprias.

 

Em busca por uma atenção à saúde mais inclusiva: a implementação de um serviço ambulatorial a pessoas trans

É pertinente destacar que o grupo foi criado para potencializar parcerias e oferecer auxílio na busca pelo preenchimento de lacunas nos serviços de saúde pública do município no que concerne ao atendimento à população transexual da região de abrangência do projeto de extensão com interface em pesquisa aqui relatado. Dentre as temáticas apresentadas durante os encontros, houve a demanda pela criação de um ambulatório que pudesse atender as necessidades específicas em saúde do público transexual e travesti do município. Quando se fala em acesso à saúde, destacam-se algumas dificuldades e obstáculos específicos enfrentados na busca pelos serviços, tais como o desrespeito em relação ao tratamento pelo nome social e o desconhecimento sobre a possibilidade de se confeccionar o cartão SUS com este nome (Brasil, 2009), como ilustrado no excerto:

Heleonora: Eu via [como enfermeira] muita trans sofrer preconceito, dentro de um hospital, por isso que eu queria fazer esse negócio de ajudar as trans, travesti de ponto porque eu já vi várias travestis de ponto sofrer no hospital público, porque eles não respeitam o nome social, também a pessoa nem sabe que existe direito de pôr o nome social no cartão do SUS, eu presencio isso, sabe, já vi médico desfazer de uma trans de rua, eu já vi, só que lá eu não tenho direito de falar nada, porque eu não sou ninguém perto dele.

Os excertos do grupo retratam não só a realidade do público no município, mas de outras localidades do país e que tem sido pensada em alguns trabalhos (Bento & Pelúcio, 2012; Roger, Tesser-Júnior, Moretti-Pires & Kovaleski, 2016). Além dos pontos já citados, vale destacar a complicada relação médico/paciente marcada pelo caráter patologizante da abordagem biomédica das transexualidades, assim como, a presença de protocolos para processo transexualizador que reforçam a patologização dessas pessoas, bem como a negligência a situações de risco e discriminação no nível das instituições de saúde (Bento & Pelúcio, 2012; Perucchi, Brandão, Berto, Rodrigues & Silva, 2014). Estes aspectos, dificultadores da promoção de uma saúde integral, frequentemente são fatores que inibem a busca desta população pelos serviços de saúde pública. Como se pode refletir a partir da análise do seguinte excerto de fala:

Tarso: Agora, no particular, eu tenho plano, eu cheguei lá eu pedi pra, sempre tem que pedir né, pra chamar pelo nome social, apresentar cartão SUS, e tal, aí a mulher falou que ia colocar lá no sistema e tal, só que na hora de chamar, o médico me chamou pelo meu nome de registro. Depois que teve a consulta eu não tive nem coragem de olhar na cara da mulher, também nem voltei lá de novo, acho que eu prefiro esperar, passar mais tempo e ser atendido pelo SUS, ter esse transtorno, do que esperar cinco minutos e ser atendido, mas ter essa dor de cabeça toda e passar constrangimento na frente das pessoas, porque te chamam pelo seu nome de registro e as pessoas ficam te olhando.

Em vistas das debilidades dos dispositivos na cidade, o grupo, firmou parcerias institucionais com o objetivo de facilitar o acesso ao atendimento médico, psicológico e ao também apoio jurídico. Em relação ao atendimento em saúde, percebemos nas discussões as dificuldades de suporte no sistema público de saúde na cidade para o tratamento hormonal. Alguns trabalhos anteriores apontaram como os/as profissionais em saúde não ofereciam atendimento para esse tratamento, muitas vezes encaminhando as pessoas para outra localidade de maior porte a aproximadamente 200 quilômetros. As pessoas traziam as dificuldades nessa trajetória para ter acesso a uma consulta médica. Com o tempo, a demanda desta cidade se encerrou para novos atendimentos de acompanhamento hormonal, deixando a população do nosso município sem esse serviço. Tendo em vista essa necessidade de atendimento e a dificuldade encontrada no processo de encaminhamento, decidimos, com base nas sugestões do grupo, buscar parcerias para a implementação de um ambulatório trans no município, a exemplo do que vem ocorrendo em outros municípios do país.

No âmbito do trabalho aqui relatado, os lugares que se mostraram mais sensíveis à demanda foram o Serviço de Atenção Especializada (SAE), voltado para pessoas soropositivas, e a Casa do Adolescente, instituição municipal de saúde que conta com uma equipe multidisciplinar (psicólogas, ginecologistas, clínicos gerais, psiquiatras) para o atendimento de adolescentes. Conseguimos então uma psicóloga no SAE para atendimento das pessoas trans que estivessem em situação de vulnerabilidade e precisassem de suporte para lidar com as adversidades do contexto, repensando uma prática que contemple as interseções entre gênero e psicologia (Nogueira, 2001). Casos de comorbidade como depressão e ansiedade também foram contemplados. Uma profissional de Psicologia do Centro de Referência em Direitos Humanos e uma da Casa do Adolescente também se disponibilizaram a realizar esses atendimentos. Além disso, uma médica ginecologista da Casa do Adolescente se sensibilizou com esse contexto de negligência em saúde e com as demandas de nosso grupo de apoio e militância, prontificando-se a fazer o acompanhamento hormonal das pessoas trans em um consultório cedido no SAE, quinzenalmente, fazendo permuta de horário na sua instituição de origem. A devolutiva das/os participantes do grupo acerca do acolhimento e do atendimento das profissionais tem sido no sentido de sentirem suas demandas contempladas e suas necessidades atendidas, havendo um canal de diálogo e escuta – a nosso ver, essenciais para a promoção de saúde da população trans. Contamos também há alguns meses com acompanhamento nutricional oferecido por um dos participantes do grupo, um homem trans formado em nutrição que se sensibilizou com os relatos que escutou durante sua participação. Dessa maneira, a demanda vai tomando forma conforme as discussões ocorrem e as/os próprias/os participantes definem quais serviços são realmente necessários (Fine et al, 2004; Fine, Torre, Burns, & Payne, 2007). O funcionamento ainda ocorre de modo informal, entretanto, consideramos que estamos seguindo assertivamente no caminho de implementação deste serviço comunitário.

 

CONCLUSÃO

O grupo de apoio e militância de pessoas travestis e transexuais residentes na região de abrangência do projeto possibilitou que nós pudéssemos entrar em contato com a realidade local e suas peculiaridades. Constatamos como a criação de espaços horizontais de expressão da linguagem possibilita um canal importante de vínculo entre equipe e participantes do grupo, auxiliando-nos a romper com a lógica de autoridade que frequentemente permeia práticas em psicologia.

Os pressupostos da pesquisa-ação participativa foram importantes para o reconhecimento de nossa posição parcial e localizada, que atravessa nosso trabalho comunitário, forjando posições de saber-poder que produzem verdades acerca dos sujeitos. Esse reconhecimento nos faz refletir acerca de estratégias que permitam a autonomia dos sujeitos, no que de fato contempla suas necessidades e o fortalecimento de vínculos. Além disso, a psicologia comunitária nos possibilita sair de uma postura individualizante, à medida em que reconhecemos como o contexto pode interferir no adoecimento das pessoas e nos propomos, coletivamente, a pensar estratégias de ação que não somente fomentem a agência dos sujeitos, mas que possibilitem romper com o sistema normativo do gênero e das sexualidades. A partir desse deslocamento de olhar, de posição de autoridade e de perspectiva teórico-metodológica, a psicologia não atua somente com indivíduos e grupos mas, sobretudo, com as contingências sociais, históricas e políticas que os (des)qualificam enquanto sujeitos de direitos.

 

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Endereço para correspondência:

Juliana Perucchi

Núcleo de pesquisas e Práticas em Políticas Públicas, psicologia Social e Saúde (PPS) - Instituto de Ciências Humanas B III 49 - UFJF s/n Campus Universitário Bairro

Rua José Lourenço Kelmer

CEP: 36036-330 – São Pedro, Juiz de Fora/MG

E-mail: jperucchi@gmail.com

Recebido em 15/06/2017

Aceito em 06/11/2017

 

[1] A autonomia, nesse trabalho, pode ser definida como ação de sujeitos e comunidades em poderem deliberar acerca de questões que lhes dizem respeito, escolher nos âmbitos político, econômico, cultural, psicológico, entre outros (Benevides, 2005).

[2] Apesar da classificação médica nomear o procedimento cirúrgico de reconstrução da genitália de pessoas trans como cirurgia de redesignação sexual (Brasil,2008; Brasil, 2013), optamos neste trabalho por nomear o procedimento como transgenitalização a fim de romper com a lógica de adequação de um corpo a um gênero binário instaurada pelo saber biomédico.

[3] Todos os nomes reais foram trocados por nomes fictícios a fim de manter o sigilo das pessoas participantes do projeto.

[4] O Whatsapp é um aplicativo de celular para a comunicação entre pessoas por mensagens de texto, gravações de áudio, chamadas de voz e vídeo. Ela possibilita a criação de grupos fechados e se popularizou nos últimos anos no Brasil.

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