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Psicologia em Pesquisa

versión On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.12 no.2 Juiz de Fora mayo./agosto 2018

http://dx.doi.org/10.24879/2018001200200175 

Artigo Original

10.24879/2018001200200175

Drogas na Adolescência: desafios à saúde e à educação

 

Drugs in Adolescence: a challenge to health and education

 

Maria Lucia Boarini I,*

I Universidade Estadual de Maringá. Doutorado em psicologia. Docente e orientadora do Programa de Pós-graduação do depto. de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

 

 


Resumo

Diante do atual cenário do consumo de drogas lícitas e ilícitas pelo segmento juvenil, nosso objetivo é identificar os fundamentos teórico-práticos que sustentam as ações dos profissionais da saúde mental e professores do ensino fundamental em relação ao uso de drogas ilícitas e abuso do álcool, por adolescentes. Para tanto, entrevistamos dez profissionais da saúde mental e dez professores do ensino fundamental no município de Campo Mourão/PR., ambos da rede pública. As análises tiveram como parâmetro teórico as implicações histórico-sociais no processo de construção deste fenômeno. Os resultados indicam que os profissionais seguem acreditando em mitos a respeito do uso de drogas e abuso do álcool, os quais trazem em seu bojo o moralismo e o medo como pano de fundo.

Palavras-chave: Drogas, Adolescência; Saúde mental; Saúde pública; Educação


Abstract

Given the current scenario on the use of licit and illicit drugs by youth, the goal of this study is to identify the theoretical-practical foundations that support the actions of mental health professionals and elementary school teachers in relation to illicit drug use and alcohol abuse among adolescents. To reach this, we interviewed ten mental health professionals and ten elementary school teachers in the municipality of Campo Mourão, state of Paraná, both working in the public system. The theoretical parameter of analysis was the historical-social implications in the process of construction of this phenomenon in their views. Our results indicate that professionals still believe in myths about drug use and alcohol abuse, which bring moralism and fear as background.

Keywords: Drugs, Adolescence; Mental health; Public health; Education

 

 

Diariamente, em diferentes meios de comunicação, são veiculadas notícias sobre os problemas gerados pelas drogas. Abordar a questão das drogas e a considerar os fatos ampla e continuamente divulgados pela mídia, não há como não relacionar drogas à violência, à delinquência, à polícia e coisas do gênero. Há que se lembrar, porém, que o conceito de droga é polissêmico. Estudos de Carneiro (2009) indicam que os significados das drogas “abrangem tudo o que se ingere e que não constitui alimento, embora alguns alimentos também possam ser designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias, tabaco, açúcar, chá, café, chocolate, mate, guaraná, ópio, quina, assim como inúmeras outras plantas e remédios. ”. Ainda de acordo com este historiador, desde a Antiguidade, há íntima relação entre determinadas drogas e o comércio. No mundo clássico, na era cristã, o vinho teve importante papel econômico, difundido “com a conversão religiosa, com as navegações modernas, a religião que fazia do vinho o sangue do seu deus, levou o seu hábito para as Américas e para todo mundo” Carneiro (2009, p.3). Neste sentido, é importante observar que há registros históricos da presença e do uso de bebidas alcoólicas sem, contudo, haver problemas. Estes parecem ocorrer quando se dá o consumo abusivo.

No Brasil, no século VII, os invasores holandeses escandalizavam os luso-brasileiros não apenas porque a bebedeira era o “ordinário costume” entre os homens, mas também entre as mulheres (Fernandes, 2013). Enfim, as bebidas alcoólicas e outras drogas, há séculos, são fonte de “dor ou alegria” de diferentes povos em diferentes épocas. Neste cenário internacional, o tabaco e o álcool, em especial, vêm garantindo o lugar das drogas mais consumidas e prejudiciais à saúde. Lembramos aqui a revolta do gim que aconteceu em 1751 em Londres, retratada por William Hogarth em duas gravuras denominadas “Beer Street” e “Gim Lane”, acompanhadas de um poema que dentre outras coisas afirma que “Gin, monstro amaldiçoado, com apavorante força, faz da raça humana sua presa. Ele entra na forma de uma bebida mortal, e leva sua vida embora [...].”. Estas gravuras, dentre outras fontes, indicam que no século XVIII a embriaguez passa a ser problematizada já dando indícios de intolerância e nos finais deste século nos Estados Unidos, onde muitas questões estavam sendo revistas e discutidas com um teor de moralismo e religiosidade, é criado o movimento social denominado Temperança ligado à Igreja Protestante. Este movimento também adentrou o Brasil em 1925 recebendo a denominação União Brasileira Pró-Temperança (ramificação da World’s Women’s Christian Temperance Union), integrados apenas por mulheres e, em 1950, tornou-se uma instituição de utilidade pública. (Garcia, Leal & Abreu, 2008). Para Sáad (2001) “Os movimentos religiosos e de caridade aumentavam cada vez mais em um discurso reacionário e ´seco´ concernente às bebidas alcoólicas.”. No século XIX outros paradigmas surgiram. Em 1810, o primeiro estudioso a classificar o uso do álcool como doença foi o médico Benjamim Rush e nesta perspectiva o “adicto” (denominação adotada por este autor) deveria se abster completamente deste uso. Este tipo de abordagem está presente até nossos dias e é o princípio filosófico dos grupos de autoajuda, tais como os Alcoólicos Anônimos/A.A. e os Narcóticos Anônimos/NA. Abreviando a história, constatamos que no final do século XIX o movimento de Temperança vai perdendo força e no século XX é substituído pelo movimento Proibicionista que inverte os vetores, ou seja, de vítima de uma doença o usuário de drogas ilícitas passa a ser considerado como uma ameaça à sociedade. Este movimento social, no século XX, pauta os princípios das políticas públicas cujo fundamento é o modelo idealizado de uma sociedade livre das substâncias atualmente consideradas ilícitas, o que contraria a história da humanidade que em todas as épocas registra o uso de alguma droga (Carneiro, 2009). E aí o início da disputa entre a medicina e a justiça pela responsabilidade do usuário de drogas e da pessoa que abusa do álcool, segundo Sáad (2001). No que tange ao comércio, no âmbito internacional e por paradoxal que possa parecer “O século XX foi o momento em que esse consumo alcançou a sua maior extensão mercantil, por um lado, e o maior proibicionismo oficial por outro” (Carneiro, 2002).

No Brasil, um dos grandes problemas, nas primeiras décadas do século XX, tal como vinha acontecendo em outros países, era em relação à ingestão abusiva de bebida alcoólica. Já no início do século XX, em sua tese de doutorado, Francisco Xavier Borges (1907) alertava sobre a existência da “tríade de pestes contemporâneas” a saber “tuberculose, sífilis e alcoolismo”. E neste tom, nas próximas décadas outros tantos alertas foram feitos. Para o médico e educador Afrânio Peixoto (1931, p.233), a ingestão de grandes quantidades de álcool, além de comprometer o sistema nervoso, facilita infecções como a tuberculose e causa prejuízos à moral: “(...) o alcoolismo corrompe a sensibilidade, a inteligência, a vontade, tornando o bebedor insuportável no meio doméstico e social”. Muitas campanhas e alertas foram realizadas em relação aos prejuízos provocados pelo abuso do álcool, sobretudo pela Liga Brasileira de Higiene Mental/LBHM que, particularmente, se empenhava para conseguir dos poderes públicos uma legislação antialcoólica, tendo em vista os riscos da prole dos abusadores do álcool (LBHM, 1929, p. 12) que dentre outros “são responsáveis pelos tipos incapazes de ligar duas ideias, de adquirir instrução, de assimilar as normas de moral – toda essa longa escala de idiotas, imbecis, débeis e degenerados que formam o peso morto da civilização. ” Porto-Carrero (1932).

Transcorrido o século XX e adentrando o século XXI, o fenômeno das drogas lícitas e ilícitas e suas ressonâncias mantem-se. No cenário nacional, atualmente, outras e novas drogas se fazem presentes, porém o álcool e o tabaco, drogas lícitas, continuam sendo dois dos maiores problemas de saúde pública. Em relação à polêmica sobre o consumo do crack, Kinoshita (2011) afirma que o aumento da visibilidade do crack não corresponde “a magnitude do problema” porque “Os problemas relacionados ao álcool são, de longe, muito mais significativos. O número de pessoas envolvidas e o custo econômico em relação ao álcool são infinitamente superiores aos do crack”.

É no início do século XXI, mais precisamente em 2003, que se abriram discussões mais sistemáticas entre o campo da saúde pública e outros setores sobre o uso abusivo do álcool e o uso de outras drogas. Neste ano, o Sistema Único de Saúde/SUS “assume de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar e reabilitar os usuários de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública” (Brasil, 2003), e o papel de condutor da política de tratamento é atribuído ao Ministério da Saúde, articulado com outros Ministérios. Ainda neste ano, reconhecendo a gravidade do problema e o atraso histórico da saúde pública em assumir a responsabilidade pela saúde do usuário, a fim de subsidiar a construção coletiva de enfrentamento a este problema e buscando dar um tom menos repressor à questão, é publicada a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral ao Uso de Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2003). Para Machado & Miranda (2007), embora esta política ainda tenha resquícios do aparato jurídico institucional repressivo, busca-se “romper com a tradição histórica deste último, inaugurando práticas destinadas a superar concepções moralistas, ainda muito presentes na abordagem das questões relativas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil”. Em nível internacional, o cenário atual não se difere e não é menos complexo ou preocupante no que tange ao uso das drogas ilícitas. (UNODC, 2014).

Em relação ao segmento infanto-juvenil, a partir de 1987, o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – Cebrid vem realizando estudos e confirmando o aumento do consumo de substâncias psicoativas entre crianças e adolescentes e com “a utilização de drogas cada vez mais pesadas”. (Brasil, 2001, p.7). Este fato é reconhecido pelo Ministério da Saúde que aponta esta situação “como uma das principais causas desencadeadoras de situações de vulnerabilidade na adolescência e juventude, a exemplo dos acidentes, suicídios, violência, gravidez não planejada e a transmissão de doenças por via sexual e endovenosa, nos casos das drogas injetáveis. (Brasil, 2005, p. 10).

Em estudo domiciliar realizado, Laranjeira, R., Madruga, C. S., Pinsky, I., Caetano, R., Ribeiro, M., & Mitsuhiro, S. (2012, p. 57) afirmam que de um total de 4.607 pessoas entrevistadas, 2,3% eram adolescentes que declararam “ter utilizado cocaína, pelo menos uma vez na vida e 1,6% deles declararam ter utilizado nos últimos 12 meses – representando cerca de 225 mil adolescentes em todo país.”.

Em 2010, o Cebrid realizou um novo estudo, desta vez, trata-se do VI Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras, e tem como diferencial a inclusão da rede privada de ensino. Dos resultados obtidos, destacamos o fato de que a experimentação da droga vem ocorrendo em idades inferiores a dez anos. (Carlini et al., 2010, P.405).

Diante desta situação, em 2012, o Ministério Público do Estado do Paraná lançou uma campanha intitulada “Compromisso pela criança e pelo adolescente” que se consistiu de uma carta aberta aos candidatos/as às Prefeituras e Câmaras Municipais, estabelecendo 22 compromissos em comemoração aos 22 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA. Dentre esses compromissos, consta a elaboração e a implementação de “políticas públicas especificamente destinadas à prevenção e ao tratamento especializado de crianças e adolescentes usuários de substâncias psicoativas (inclusive as chamadas ‘drogas lícitas’, como álcool e cigarro) ” (Ministério Público do Estado do Paraná, 2012).

Enfim, sem a pretensão de esgotar os estudos realizados sobre esta temática, as informações aqui reunidas indicam que o fenômeno do abuso do álcool, uso de outras drogas e os problemas daí decorrentes não são recentes e nem de fácil solução visto que não se produz isoladamente, mas sustenta-se em bases de diferentes ordens que se retroalimentam. E aqui estamos nos referindo aos aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos, culturais, religiosos, educacionais e subjetivos que se entrecruzam dando a cor e o tom deste preocupante fenômeno social que pelo visto não é algo específico que ocorre em determinada faixa etária, mas vem estendendo seus limites para população cada vez mais jovem. Este fato sugere que “programas adequados de prevenção ao uso de drogas deveriam contemplar crianças antes dos 10 anos de idade. ” (Carlini et al., 2010).

Outrossim, os novos direcionamentos das políticas públicas neste campo de atuação creditam, em geral, às intervenções promovidas no campo da saúde e da educação novas perspectivas e possibilidades no enfrentamento dos problemas dessa população específica de jovens. Implicado nestas intervenções, o conhecimento e a avaliação das estratégias adotadas, bem como as ações setoriais destinadas, sobretudo à criança/adolescente usuário de substâncias psicoativas, ocupam um lugar importante.

Tendo como meta participar das discussões sobre este tema tão complexo, viabilizar um estudo cujo foco é a adolescência usuária de substâncias psicoativas foi a nossa proposta. Diante das inúmeras possibilidades que este tema permite, e considerando os limites do presente estudo fizemos um recorte delimitando como objetivo identificar os fundamentos teórico-práticos que sustentam as ações dos profissionais da saúde mental e professores do ensino fundamental em relação ao uso de substancias psicoativas por adolescentes.

Não perdemos de vista que apenas o conhecimento teórico dos profissionais, quer seja da saúde, da educação ou de qualquer outro campo de conhecimento, isoladamente não tem o poder de solucionar um problema desta dimensão. Porém, convenhamos que as ações praticadas são, em geral, orientadas e/ou definidas pela forma como o profissional da saúde e da educação entende e explica os problemas pertinentes ao uso de drogas que lhe caem às mãos.

 

MÉTODO

Desenvolvemos este estudo na intercessão de duas fontes de conhecimento: pesquisa bibliográfica/documental e pesquisa de campo no município Campo Mourão[1] do Estado do Paraná. Neste município, no período de fevereiro a março de 2014, após a permissão das secretarias municipais de saúde e educação e o encaminhamento às unidades determinadas, sem qualquer conhecimento prévio, entramos em contato com estes profissionais. A escolha dos entrevistados deu-se a partir da disponibilidade pessoal de cada um e, desta forma, a seleção ocorreu de maneira aleatória, ou seja, independente de sexo, idade e experiência profissional. Nestes termos, entrevistamos dez profissionais da saúde mental (médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem) e dez professores do nível de ensino fundamental, ambos da rede pública[2]. Adotamos como técnica a entrevista semiestruturada apoiada em um roteiro de temas que não necessariamente seguiu uma ordem rígida. A opção por esta técnica deve-se por um lado a possibilidade de maior proximidade entre entrevistador e entrevistado que pode favorecer o aprofundamento de determinadas questões, dentre outras vantagens (Boni & Quaresma, 2005). Por outro lado, a impossibilidade de reunir os entrevistados em um mesmo horário. Os temas definidos para serem apresentados aos entrevistados foram os seguintes: 1. A explicação sobre o consumo abusivo do álcool e uso de outras drogas; 2. A demanda, bem como as dificuldades específicas, em relação ao atendimento ao segmento infanto-juvenil; 3. A avaliação da formação profissional como facilitadora deste trabalho.

Em relação aos aspectos éticos de biossegurança no desenvolvimento deste estudo todas as exigências foram atendidas à risca e recebeu aprovação pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, conforme parecer nº. 449.704.

Antes da realização da entrevista propriamente dita, apresentamos ao entrevistado uma reportagem, em sua forma escrita, intitulada “Pesquisa mostra que esmola financia o uso de drogas das crianças de rua” veiculada, no dia 06/10/2013, pelo programa dominical Fantástico da TV Globo. (Pesquisa mostra... 2013). Em seguida, solicitamos que o entrevistado opinasse sobre esta reportagem, que semelhantes a esta são cotidianamente divulgada pela mídia televisiva. Após esta fase, os temas que preparamos foram apresentados ao entrevistado. As entrevistas com duração média de 45 minutos foram gravadas e encerradas apenas quando o entrevistado afirmava ter esgotado o seu depoimento. As entrevistas foram transcritas na integra. Os dados coletados na apresentação dos vídeos e durante as entrevistas foram submetidos a leitura recorrente e rigorosa (sem adotar qualquer recurso tecnológico) e analisados sob a perspectiva da análise do discurso de Pêcheux (1993) que reconhece as implicações histórico-sociais no processo de construção do discurso.

Os resultados são apresentados em forma de excertos e para preservar o sigilo da identificação, os entrevistados são nomeados por meio de siglas. Desta forma os entrevistados do setor de saúde são nomeados pela letra S (significa Saúde), e para diferenciá-los adotamos números arábicos, por exemplo: S1, S2, S3 etc. Adotamos o mesmo sistema para o caso da educação, por exemplo: Prof.1, Prof.2, Prof.3 etc.

 

RESULTADOS

O que dizem os profissionais entrevistados

A explicação sobre o consumo de drogas ilícitas e o uso abusivo do álcool

O problema existe e o profissional se assusta com a sua constatação: “confesso para você que fiquei um pouco assustada com o número de adolescentes que a gente tem recebido no CAPS. Eu não imaginava, não tinha noção que a coisa estava desse jeito (S.7) ”. As explicações de tal constatação, em diferentes nuances, perdem de vista a complexidade do assunto e, via de regra, tem o caráter individual, de foro íntimo, por exemplo “a pessoa está fugindo da sociedade que ela vive, porque ela não deu conta das responsabilidades que foram passadas para ela, então ela fugiu disso com álcool, com droga. ” (Prof. 7) ”; ou problemas de saúde “Ah, eu acho que álcool e droga é uma doença. Uma doença e que eles precisam de ajuda. (Prof. 6)”; ou adentram o campo religioso: “Olha, eu tenho o seguinte pensamento, que é falta de Deus mesmo. [...]. Eu penso que se você tem Deus, você supera tudo isso, não precisa ir atrás das drogas. (Prof. 4)”. Na linha da religiosidade seguem afirmando que “é a falta da presença de Deus nessa história toda. Eu vejo que a base de tudo é Deus, aí com Deus as coisas ficam menos difíceis. (S.1)”. Apenas em uma entrevista a propaganda é citada como o “canto da sereia”[3] do processo de produção do dependente químico de drogas lícitas (bebidas alcoólicas tais como cerveja, vinho): “Eu acho que a princípio o contato com as drogas lícitas está relacionada com a propaganda, com o televisivo, as propagandas de maneira geral, que mesmo não estando vinculadas ao público infanto-juvenil, tem gente feliz, alegre” e conclui com uma informação preocupante: “Então a gente encontra pacientes com doze, treze com ingestão de álcool” (S.8).

Apesar de que a responsabilidade pelo uso de drogas e abuso do álcool é, em geral, pulverizada em pontos que assentam sobre o indivíduo, a família é apontada como a principal responsável por esta difícil questão porque “As pessoas só pensam em estar juntas, não pensam se é aquilo que realmente querem, então não estão preparadas para estar juntas, hoje as pessoas têm facilidade para casar, para descasar [...]” e conclui “a base familiar está sendo desestruturada aos poucos (S.8)”. Esta afirmação desconsidera que as instituições sociais sofrem, ao longo do processo histórico, significativas mudanças e a instituição familiar não foge à regra. Ao interpretar as mudanças que vem ocorrendo no modelo familiar como “desestruturação”, o profissional parece entender que há uma estrutura familiar essencialmente estável com papéis definidos para adultos, crianças, homens, mulheres. Não há como discordar que a família e os vínculos socioafetivos que se produzem neste grupo tem papel relevante no desenvolvimento de seus integrantes, o que não significa ausência de conflitos e sentimentos ambíguos. Contudo não podemos perder de vista que a família não é uma criação natural, mas revela em seu formato características histórico-sociais. Neste sentido, a família na contemporaneidade vem a passos largos perdendo aquele formato triangular para durar “até que a morte os separe”. Outros arranjos familiares estão surgindo quer seja para atender necessidades econômicas, afetivas ou de outra natureza. (Freitas, 2014; IBGE, 2014).

Nos dados coletados neste estudo, temos ainda o clássico caso do falecimento ou da ausência da mãe e “o pai não quer saber” e o filho vai morar com a avó que “não consegue dar o limite. Então a gente percebe muito isso, essa questão da falta de limite dos pais, do uso de álcool e drogas pelos pais e, às vezes, até uma imaturidade ou abandono dos pais. (S.2) ”. A precária situação socioeconômica da família é também apontada pelo professor. Consideram que os familiares precisam trabalhar e “a criança cresce meio sozinha” ou, batendo na mesma tecla, o professor supõe que algumas famílias “não tem uma estrutura para cuidar direito [...] (Prof. 8)”. E a difícil condição econômica da família apontada pelo professor é constatada in loco pelas visitas do profissional da saúde que desabafa: “Poxa, até eu usaria droga numa situação dessa! (S.4)”. E este profissional da saúde imagina a situação deste adolescente quando ingressa na escola onde as pessoas o olham de maneira diferente “porque a roupa dele é diferente, o material dele é diferente, a cor dele é diferente, o professor trata ele diferente, então assim... como ter um outro direcionamento? (S.4)”. Reafirmando a observação do seu colega, outro profissional da saúde coloca “Você chega na casa para fazer visita, meu Deus do céu! Tudo enrolado, não é? É feio... a gente que vai realmente até o domicílio dele a gente vê a questão social mesmo. (S.7).”.

De fato, autoridades de vários setores sociais vêm se pronunciando a respeito deste assunto e trazem à tona a vulnerabilidade de jovens em situação financeira precária diante do assédio do tráfico de drogas. Este fato não passa despercebido pelo profissional entrevistado que reconhece a fragilidade da criança e do adolescente e “é sobre eles que o traficante vai trabalhar diretamente” (S.10). E confirmando os dados da literatura o profissional da saúde afirma “a gente observa o usuário com trinta, quarenta anos e que falam para gente que estão usando há quinze, vinte anos. Então eles entraram na adolescência, ou na pré-adolescência” (S.10).

Diz um ditado popular que “contra fatos não há argumentos” e a vulnerabilidade da criança e do adolescente é um destes fatos. Contudo há que se considerar que nem todos os envolvidos com o uso/abuso das drogas pertencem à classe social desfavorecida economicamente. Estudo mais recente do Carlini et al.(2010) indica que “a porcentagem de alunos das escolas particulares relatando o uso de drogas, em todas as capitais, foi maior do que a encontrada nas escolas públicas [...]”.

Merece destaque, também, a opinião de que a necessidade de a família trabalhar fora de casa, e em especial a mulher, considerada como a propulsora do interesse dos filhos pelo uso de drogas e abuso do álcool, isto é “tudo começou quando a mulher saiu de casa devido à necessidade de trabalhar e tal [...] tudo realmente começou na década de 1960, 1970, quando a mulher realmente foi procurar o seu lugar ao sol, e aí acabou ficando [...] (S.1)”. Tal pressuposto está em sintonia com a visão romântica da mulher rainha do lar dos idos das primeiras décadas do século XX. No rastro desta ideia, a entrevistada afirma que tudo era melhor quando “a criança ficava meio período na escola e outro com a mãe”. Perde-se de vista que a mulher da classe trabalhadora há séculos exerce atividades que vão além do ambiente doméstico. Este fato é fartamente registrado quer seja na literatura especializada, quer seja em outras formas de comunicação. De costas para o processo histórico entende-se que naturalmente a mulher foi formatada para ser mãe e incondicionalmente dedicada a sua prole e quando isto não acontece a responsabilidade é porque “a mulher não conseguiu trabalhar o equilíbrio, então ela foi para o extremo total e acabou deixando aquilo pelo qual ela foi criada, que é ser mãe, estar presente [...] a mulher tem que voltar a essência dela (S.1)”.

Estes argumentos soam como eco, nos idos de 1890, do escritor José Verissimo (1857-1916):

A mulher brasileira, como a de outra qualquer sociedade da mesma civilização, tem de ser mãe, esposa, amiga e companheira do homem, sua aliada na luta da vida, criadora e primeira mestra de seus filhos, confidente e conselheira natural do seu marido, guia da prole, dono e reguladora da economia de sua casa, com todos os mais deveres correlativos a cada uma dessas funções. [...]. (Veríssimo, 1985, p. 122,).

Décadas mais tarde, Fontenelle (1925, p.8), tradicional integrante da LBHM, chama a atenção para “(...) a necessidade de ensinar às mães como formar os primeiros hábitos de seus filhinhos, adaptando-os da melhor maneira aos problemas iniciais de vida, como a alimentação, o sono, o asseio, a disciplina etc.”. E tece severas críticas às mães que por não estarem preparadas para esta tarefa “abandonam os cuidados educativos iniciais a amas e criadas” não levando em conta que “amas e criadas” não eram possibilidades extensivas à mulher da classe trabalhadora.

Estes discursos proferidos há séculos sobre a responsabilidade da mulher pelo bom andamento da família confundem-se com as explicações que coletamos no desenvolvimento do presente estudo. A diferença é que o discurso atual está acrescido de um caráter divino: “Eu acho que quando Deus deu essa função para a mulher é porque viu que a gente é capaz, então a gente tem que ser muito forte e lutar, com todo o esforço, para poder defender, proteger” (S.10).

Interessante notar que a ausência da figura paterna, de certa forma, é naturalizada. “[...] Eu não digo um pai, porque nem todos têm, mas precisa muito a mãe escutar, olhar o filho de frente, arrumar um tempinho (S.5)”. Na visão deste profissional, atualmente “essas mães pensam mais no financeiro, no dinheiro, na beleza e acho que esquecem um pouco os filhos. (S.5)”. E diante do “descuido” da mãe, e por entender que em vários casos “o problema é a própria mãe” o profissional de saúde impõe à mãe fazer terapia ou ir ao psiquiatra caso contrário “não vai ter como a gente ajudar o filho”(S.2). Neste ponto, há que se considerar duas questões: fundamentada em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, realizado em 2010, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), revela que 38,7% dos 57,3 milhões de domicílios registrados já eram comandados por mulheres” e que “em mais de 42% destes lares, a mulher vive com os filhos, sem marido ou companheiro” (Mulheres, 2015).

Outra consideração é relembrar que a responsabilidade de resguardar os direitos das crianças e adolescentes, bem como acompanhá-los em seus deveres, atualmente não é uma função restrita à mulher ou à família (Brasil, 1988). E esta determinação, em outros termos, está presente no Plano Municipal para a infância e adolescência 2014/2023 (Campo Mourão, 2014) do município em pauta ao considerar como “basilar” a necessidade de “compreensão do termo “família”, bem como “a compreensão da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento e as demais questões abordadas” (p.12) o que parece ser desconhecido ou ignorado pelos profissionais entrevistados.

A demanda e o atendimento ao segmento infanto-juvenil

Na saúde

Não obstante o CAPSad ter sido inaugurado há pouco tempo já faz diferença no atendimento à pessoa com transtorno mental e/ou dependência química. “A gente corria atrás de paciente. Naquele tempo se usava uma camisa de força, com a polícia. Uma vez, eu sai correndo no meio da rua, todo mundo gritando, não tinha opção. Daí pegava e ia para internação”(S.9). Com duração média de 28 dias, continua o profissional, a internação em hospital psiquiátrico não tardava a se repetir, mas com o CAPS a situação se altera por que “tem muita gente que não precisa de internação, porque não entra em surto. Consegue um tratamento prévio como dizem, porque já está diagnosticado antes. ” (S.9).

Apesar da pouca experiência em CAPS, o profissional aponta alguns dos princípios que sustentam a reforma psiquiátrica, a saber, a rejeição a violência no atendimento a pessoa com transtorno mental, a ineficácia da internação em hospital psiquiátrico materializada pelas recorrentes internações, o desamparo da família que entende a internação como a solução do problema e a prevenção do surto ao evitar o agravo. E outro profissional, conclui: “ [...] minha abordagem diferenciou [...] pode ser que seja necessário o uso de algumas medicações, para tirar a ansiedade, tirar aquela fissura [...] está tendo mais resultado, então eles ficam menos receosos quando vamos atender, mais fácil também” (S.8).

Porém, o otimismo parece não ser generalizado quando o paciente é o adolescente: “eu cheguei num gás, pensando ´ah!, nós vamos dar conta!´, mas o adolescente não quer ajuda. Ele acha que a maconha faz bem, que está tudo legal (S.7)”. E esta angústia estimula os profissionais a buscarem orientação na Promotoria Pública, no caso da não aderência ao tratamento pelo adolescente. Fato importante a ressaltar é que a busca por ajuda, por parte do adolescente, nem sempre é espontânea (S.10). Enquanto estão contornando a situação, é rara a procura por ajuda e quando isto acontece “noventa por cento vem graças ao principal cuidador: a mãe, o pai ou o conselho tutelar. Na grande maioria das vezes pela mãe mesmo (S.8)”. Diante deste fato, o profissional levanta algumas hipóteses: primeiro “o medo de exposição, cidade pequena [...]tem também a questão da cultura do álcool, que as pessoas aceitam isso, não se vê dentro de um problema (S.6)”. Quanto à dependência química, são “outros quinhentos” e mesmo assim “a aderência é muito baixa, quando chegam, geralmente acabam interrompendo (S.6)”. Outra hipótese sobre a não aderência ao tratamento, o profissional supõe que o debate que se faz atualmente sobre a descriminalização da maconha a exemplo de outros países pode estar favorecendo os argumentos em prol do consumo: “aí vem com aquelas conversas: ‘porque é natural, porque lá na Holanda, no Uruguai ...’. O adolescente já chega cheio de argumentos (S.6)”.

Seguindo orientação do Ministério da Saúde, os profissionais promovem reuniões semanais com os familiares dos usuários. Entretanto, no caso do adolescente, muitas vezes há resistência quanto à participação nas reuniões de pessoas do seu meio familiar e são diversas as justificativas “‘Não, nem quero que ela venha’, ‘Ah, ela é idosa, acho melhor ela não vir’, ‘Ah, vai pegar no meu pé’(S.2)”.

Em relação ao Programa Redução de Danos previsto no Plano Municipal para a Infância e adolescência/2014/2023 (Campo Mourão, 2014, p. 42), o profissional afirma que há tempos viabilizaram este programa, mas no momento não está acontecendo. Não obstante, o profissional comemora a abstinência: “A gente está tendo um índice muito bom de abstinência principalmente de bebida alcoólica [...] a maconha é mais difícil, porque é um número grande de adolescentes e mulheres” (S.6). Lembramos que o Programa Redução de Danos é um complemento das abordagens convencionais. É uma mudança de foco de atenção, ou seja, é também a valorização dos danos reduzidos e não apenas a valorização da abstinência. Em outras palavras, há que se valorizar os resultados alcançados, sem, contudo, “deixar de explorar os novos caminhos do paradigma de redução de danos” Brasil (2004, p.122).

Apesar do entusiasmo em relação ao índice de abstinência alcançado no que se refere à dependência da bebida alcoólica, o profissional reconhece que “a coisa está feia nas escolas públicas [...] a gente não consegue ver alguma medida que, tanto as escolas, quanto a própria justiça ou o município possa fazer para melhorar” (S.6).

Sobre possíveis ações tendo como foco as crianças e adolescentes que vivem na rua não há menção nos planos municipais (Campo Mourão, 2014) consultados, bem como não há informações ou discussões registradas nas atas referentes às reuniões do Conselho Municipal de Saúde. A ausência deste segmento social nos documentos oficiais do município é confirmada pelo profissional da saúde: “Eu não sei, a gente não tem dados.”. E o profissional lamenta a falta destas informações o que dificulta a elaboração de um projeto para a saúde mental ou um simples levantamento como orientação das ações. E na falta destas informações é reconhecido como usuário de drogas “quem está em tratamento, ou quem vai preso” (S.4).

Na educação

Em geral, as professoras entrevistadas alegam dificuldades na experiência com alunos usuários de drogas e embora reconheçam que o abandono da escola é algo que deve ser evitado, confessam sentir medo e quando o aluno “[...] abandonou a escola, foi um alívio para mim, porque eu pude dar aula e não correr aquele risco com os outros alunos” (Prof.8.). Sobre os recursos existentes no município e quais são as ações realizadas no âmbito escolar as respostas ficaram circunscritas ao Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência) [4]realizado no interior da escola e citam alguns recursos do município sem fazer qualquer menção a atenção à saúde mental da rede pública de saúde, com exceção de uma afirmação um tanto vaga “soube que há uma psicóloga que dá uma orientação, um suporte. Eu sei que eles ligam, vão na casa se a pessoa falta na consulta [...]” (Prof. 4). Vale observar que no Plano Municipal para a infância e adolescência 2014/2023 (Campo Mourão, 2014), deste município, consta atividades que indiretamente podem contribuir para a atenção da criança e do adolescente usuário de substâncias psicoativas. Todavia, a única atividade nomeada e valorizada pelas entrevistadas e que trata especificamente desta questão no interior da escola é o Proerd sendo considerado um trabalho “louvável” (Prof.4). Estudos indicam que a abordagem do Proerd é questionável diante da complexidade do uso de drogas, ilícitas ou não. Duarte, J. G. P. G., França, Í. V., Souza, L. L. de & Scardua, A. (2016). Além disto, a considerar o depoimento dos profissionais da saúde, os resultados deste programa deixam a desejar porque “aqui, a coisa está feia nas escolas públicas. ” (S.6).

Nestes últimos depoimentos merece destaque a falta de diálogo entre as instituições. Em tempos de Sistema Único de Saúde/SUS, Rede de Atenção Psicossocial/RAPS, as educadoras entrevistadas revelam total desconhecimento da possibilidade de atenção no SUS. Vale a pena lembrar que em 2010, a última Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, realizada em Brasília/DF, já trazia em sua denominação a importância do diálogo com outros setores. No presente estudo, esta parceria ou a intersetorialidade não vem ocorrendo, apesar de que intuitivamente esta necessidade é apontada pelos profissionais: “Parece que saúde mental é só da saúde, não é da educação, não é da assistência, então empurra para saúde que é deles. E isso não é verdade” (S.4). E enfaticamente outro profissional afirma que o cuidado à saúde mental é responsabilidade de todos, concluindo que “o assunto saúde mental deve ser abordado nas escolas, igreja, etc.” (S.5).

Avaliação da formação profissional

Merece destaque o fato de que a fragilidade (ou inexistência) da formação para atuar no campo da saúde mental nos moldes de atenção psicossocial não é restrita a esta ou aquela profissão. Isto é notado nas diferentes áreas de conhecimento que atuam no campo da saúde. Outro fato inusitado é concluir a formação na área da saúde desconhecendo o Centro de Atenção Psicossocial/CAPS tal como nos revela o profissional da saúde “eu saí da faculdade sem saber o que é um CAPS” (S.2). Assim não é difícil entender porque a pessoa com transtorno mental percorre apenas uma via de ida ao isolamento no hospital psiquiátrico e se existe uma via de volta, na maioria dos casos, a reinternação é quase uma certeza. Isto é confirmado pelo profissional que completa 11 anos de formação e relembra que durante a sua formação a única opção era o hospital psiquiátrico, até porque “tinha muito mais hospitais psiquiátricos na época [...] (S.8). E na Unidade de Pronto Atendimento/UPA onde atuou até pouco tempo sempre havia pacientes para internação e “e eu seguia o que eu aprendi, que era obrigatoriamente internar” (S.8). Encerra afirmando que há oito meses atua no CAPSad , cuja dinâmica está contribuindo para fazê-lo mudar de ideia. Sobre dependência química, os profissionais, em geral, reconhecem que “não há preparo para saber como trabalhar” (S.10). Além de a formação profissional apresentar fragilidades para atuar no campo da saúde mental e em particular no setor que atende o usuário de álcool e outras drogas, a inserção do profissional nesta área pode ocorrer por obra da necessidade: “É uma área onde eu caí de paraquedas [...] na hora eu me desesperei mesmo, mas hoje eu gosto bastante. Então não foi uma escolha minha, foi uma escolha do concurso” (S.2). A inexistência da formação dos professores para atuar junto a crianças e adolescentes que fazem uso de álcool ou outras drogas é unanimidade entre os entrevistados. Seguem alguns exemplos: “quanto a minha formação, zero” (Prof. 3), (Prof. 4), “não existe, não sei como lidar” (Prof. 7), “não estudo sobre isso, minha formação é mais espiritual” (Prof. 9). A nosso juízo, o agravante desta situação é o desconhecimento dos recursos no campo da saúde, que revela a ausência de ações intersetoriais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Registramos alguns avanços no setor de atenção à saúde mental, todavia parafraseando Roberto Schwarz (2014) diríamos que, em geral, “as ideias estão fora [do seu tempo]”. Em outras palavras, os depoimentos coletados nos permitiram constatar que tal e qual a intelectualidade brasileira, em geral, do início do século XX, seguimos acreditando que a tríade família x mulher x pobreza cabe a responsabilidade por grande parte das mazelas sociais e dentre elas o uso das drogas e o abuso do álcool. Seguimos acreditando que ao fugir do padrão estabelecido (família monogâmica constituída de pai-mãe-filhos) a família assim “desestruturada” está exposta a sérios problemas, perdendo de vista que a família, bem como qualquer outra instituição social, tem um caráter histórico e, portanto, transitório. Isto significa que o arranjo familiar não existe naturalmente, mas vai sendo formatado de acordo com as necessidades do seu tempo histórico. E a vulnerabilidade, ou não, de algumas famílias não necessariamente tem relação direta com o modelo familiar. Como nos ensina a sabedoria popular “problemas existem até nas melhores famílias”. Seguimos acreditando que a mulher por uma questão de descaso com a sua função de “rainha do lar” busque trabalhar fora de seu ambiente familiar, esquecendo-nos que a mulher pertencente à classe trabalhadora, há séculos, vê-se diante da necessidade de compartilhar ou de fato assumir integralmente o papel de provedora do lar. Enfim, estes depoimentos pautados em explicações centenárias perdem de vista que há um jogo de interesses da indústria (de bebidas alcoólicas, de produtos destinados ao refino das drogas etc.) e como corolário variadas pressões subjazem à produção e distribuição das drogas, lícitas e ilícitas. Obviamente são interesses velados, via de regra, sustentáculos de interesses e encaminhamentos políticos e, portanto, de difícil visualização. Aliás, talvez a única visualização aparente e até citada em uma das entrevistas é a valorização do consumo, quer seja como fonte de prazer ou fuga dos entreveros cotidianos que a vida nos apresenta, quer seja pela valorização social do consumo. Aqui vale lembrar a valorização do consumo de tabaco (Machado, s/d) e cerveja (Marques, 2003, 2012). Assim, seguimos há séculos criando mitos a respeito do uso de drogas e abuso do álcool. Estes mitos trazem em seu bojo o moralismo e o medo como pano de fundo para explicar a ocorrência desse fenômeno. Desvelar o que está além das aparências é uma possibilidade para desconstruir estes mitos centenários e mistificadores das mazelas sociais, de alcançar a raiz da questão e favorecer explicações assertivas sobre as drogas de qualquer natureza e sobre a efetividade dos encaminhamentos adotados.

No que tange à formação, estas entrevistas confirmam que as agências formadoras contribuem precariamente na preparação do profissional da saúde e da educação para atuar junto a pessoa que sofre psiquicamente, seja em decorrência do abuso do álcool e/ou uso de outras drogas ou outras questões relativas à saúde mental E o despreparo parece ainda maior quando se trata do segmento infanto-juvenil. O profissional segue aprendendo com a experiência do dia a dia e com as esporádicas capacitações oferecidas pelos gestores da saúde ou por iniciativa particular reúne-se com seus pares para “aprender a lidar, a fazer”. Desta maneira, não é de se estranhar que os antigos mitos sirvam de fundamentos para explicar e na sequência sirvam também para atuar sobre os graves problemas de transtorno mental e/ou uso de drogas que se apresentam a estes profissionais da saúde e da educação. Sobre a formação profissional lembramos aqui a ampla discussão ocorrida em âmbito nacional por ocasião das mudanças estruturais do ensino superior e implantação das novas diretrizes curriculares aprovadas pelo Ministério da Educação em 2004. Estas novas exigências frutificaram valiosas discussões em variados tons. E ao fim e ao cabo não houve, e acreditamos que não há discordância, quanto ao que queremos, ou seja, uma formação em sintonia com o clamor social e afinada, especialmente, com valores democráticos. Não obstante, em geral, há poucas novidades no front dos currículos das agências formadoras que seguem de costas para as necessidades concretas da sociedade. Isto sem contar com o agravante das contingências do mercado de trabalho, dentre outras, que nem sempre o profissional da saúde escolhe trabalhar com a pessoa com transtorno mental e/ou usuário de álcool e outras drogas, mas é “escolhido pelo concurso”. Cabe também ao profissional ter clareza e compreensão do significado e da responsabilidade de suas práticas e, como diria Mello & Patto (2008), referindo-se à formação do psicólogo: “sem a consciência da imensa responsabilidade dessas práticas, esses profissionais podem lesar direitos fundamentais das pessoas e, no limite, colaborar para a negação de seu direito à vida. ”. A nosso juízo, esta consciência sublinhada por Mello et al. (2008) cabe ser generalizada para as demais profissões, em especial aos profissionais que atuam no campo da saúde e da educação.

Enfim, é inegável os múltiplos fatores que compõem a complexidade do fenômeno do uso e abuso de drogas, licitas ou ilícitas. Complexidade que se potencializa quando se trata do envolvimento de crianças e adolescentes. Todavia, se por um lado por mais impecáveis que se apresentem os fundamentos teóricos e metodológicos dos profissionais da saúde e da educação, por si só, não são suficientes para superar os limites estruturais do fenômeno em pauta, por outro lado, o desconhecimento dos recursos da saúde, já existentes no município em questão, somado as ideias mistificadoras sobre o assunto, tal como constatamos neste estudo, certamente, em nada favorecem o cuidado necessário a este adolescente em situação tão vulnerável, sobretudo quando se trata de usuário de álcool ou outras drogas.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:

Maria Lucia Boarini

UEM/PPI

Avenida Colombo, 5790 - campus universitário, Bloco 10, sala 10

CEP: 87.020-900 – Maringá /Paraná

E-mail: mlboarini@uol.com.br

 

Recebido em 14/06/2017

Aceito em 09/08/2017

 

[1] Cidade localizada na Região Centro-Oeste do Paraná, com 757,875 km² de área territorial sua população é estimada 92.930 habitantes, sendo que destes, 27.649 tem menos de 19 anos de idade. Sua densidade demográfica é de 120,87 hab/km2 com grau de urbanização de 94,82% e IDH 0,757 e taxa de analfabetismo de 7,31%. IPARDES (2015).

[2] Os serviços oferecidos pela atenção básica da rede pública de saúde de Campo Mourão são distribuídos em 11 Unidades Básicas de Saúde, 1Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24 horas, e 6 Unidades Básicas de Saúde na zona rural. Nas Unidades Básicas de Saúde estão alocadas 17 equipes de Estratégia de Saúde da Família sendo que 08 contam com equipe de saúde bucal. Existe ainda 1 equipe do NASF (Núcleo de Apoio a Saúde da Família). 01 Ambulatório Especializado e 02 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo um CAPS II e 01 CAPS AD. Conta ainda com uma Unidade Móvel de Nível Pré-Hospitalar - Urgência/Emergência e uma equipe de Núcleo de Apoio a Saúde da Família. IPARDES (2015). O Centro de atenção psicossocial álcool e drogas/CAPSad foi iniciado em julho 2014 sendo porta de entrada para pessoas que buscam tratamento para recuperação da dependência química e alcoolismo. É oferecido para adolescentes e adultos. Na época não havia o CAPSi.

[3] A sereia é mais uma das inúmeras personagens da mitologia grega. Trata-se de um ser constituído da metade mulher e metade peixe. O canto desta mulher híbrida tinha um intenso e perigoso poder de sedução.

[4] O Programa Educacional de Resistência às Drogas - Proerd é a adaptação brasileira do programa norte-americano Drug Abuse Resistence Education - D.A.R.E., surgido em 1983. No Brasil, o programa foi implantado em 1992, pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, e hoje é adotado em todo o Brasil.

* Agradeço a Daniela Galeti da Silva e a Renata Bolonheis pela participação na realização das entrevistas.

 

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