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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.12 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.24879/2018001200200152 

Artigo Original

10.24879/2018001200200152

 

Concepções de desenvolvimento, aprendizagem e leitura na proposta do PNAIC

 

Conceptions of development, learning and reading in the PNAIC proposal

 

Sandra Patrícia Ataíde Ferreira I;Fabíola Mônica da Silva Gonçalves II;Bruna Mércia de Melo III

Possui graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (1993), mestrado em Psicologia (Psicologia Cognitiva) pela Universidade Federal de Pernambuco (1998) e doutorado em Psicologia (Psicologia Cognitiva) pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Atualmente é professor associado, nível ii, da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: linguagem, letramentos, leitura e compreensão de texto, desenvolvimento e aprendizagem, afetividade e cognição, aprendizagem de sujeitos com desenvolvimento atípico na educação infantil, fundamental e ensino superior. Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.I

II graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrado e doutorado em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professora da Universidade Estadual da Paraíba. Tem experiência na área de Educação e de Psicologia, com atuação nos seguintes temas: (i) processos humanos de desenvolvimento e aprendizagem; (ii) condições de produção de leitura na educação básica e no ensino superior, (iii) compreensão textual; (iv) formação do professor (v) fracasso escolar e (vi) educação prisional. Universidade Estadual da Paraíba, Brasil.

IIIGraduanda da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação. Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

 

 


Resumo

Partindo da hipótese Vigotskiana de que o desenvolvimento humano é promovido pelo nexo entre as funções psicológicas, objetivaram-se (i) apreender as concepções de desenvolvimento humano e de aprendizagem que fundamentam o PNAIC, (ii) analisar a concepção de ensino e aprendizagem da leitura presente na proposta de alfabetização formulada no documento do PNAIC. Realizou-se uma análise documental dos Cadernos de Apresentação e dos Cadernos das Unidades 1 e 2 (2012) referentes ao 1º ano do Ensino Fundamental na perspectiva dos Núcleos de Significação, com foco no eixo da leitura. Os resultados indicaram que o PNAIC se sustenta na noção de que o desenvolvimento se antecipa ao aprendizado da língua e que a aprendizagem da leitura não é claramente articulada ao ensino.

Palavras chaves: produção de leitura; aprendizagem; desenvolvimento; ensino fundamental; políticas públicas.


Abstract

Based on the Vygotskian hypothesis that human development is promoted by the nexus between psychological functions, the objective was to (i) apprehend the conceptions of human development and learning that underpin the PNAIC, (ii) analyze the conception of teaching and learning of reading present in the literacy proposal formulated in the PNAIC document. A documentary analysis of the Presentation Notebooks and the Notebooks of Units 1 and 2 (2012) regarding the 1st year of Elementary School was carried out from the perspective of the Nuclei of Meaning, focusing on the reading axis. The results indicated that the PNAIC is based on the notion that development anticipates language learning and that learning from reading is not clearly articulated to teaching.

Keywords: reading production; learning; development; elementary school; public policies.

 

 

Neste trabalho, defende-se a noção de linguagem como constitutiva do sujeito e da sua história, entendendo que as práticas de linguagem situadas promovem desenvolvimento humano a partir da mediação entre ele e a sua realidade natural e/ou social. Em vista disso, assume-se a leitura como produção de sentidos que se estabelece no jogo interacional entre interlocutores (real e virtual) ou, como afirma Orlandi (2005, p. 71), como “[...] trabalho simbólico no espaço aberto de significação que aparece quando há textualização do discurso”. Ainda de acordo com a perspectiva discursiva de leitura, defende-se que esta atividade é produzida em condições determinadas, sendo um momento crítico de constituição do texto porque é nesta atividade que os interlocutores se identificam como tal, desencadeando o processo de significação (Orlandi, 2006a). Portanto, a leitura é produzida, sendo a compreensão condicionada pela relação estabelecida entre os interlocutores envolvidos nessa atividade.

Entende-se que a capacidade de leitura é construída ao longo do desenvolvimento do sujeito, não estando pronta e acabada em um só tempo, em um ponto específico da sua trajetória. Mas, ao contrário, pensa-se essa capacidade como algo que se amplia a cada experiência, em diferentes contextos de desenvolvimento, como, por exemplo, a família, a escola, a universidade, a comunidade (Ferreira, Lima & Gonçalves, 2011; Orlandi, 2006).

Desta maneira, a compreensão de que o desenvolvimento da capacidade de leitura é um processo contínuo e inconcluso, que pode acontecer em qualquer momento da trajetória das experiências culturais do sujeito, está em consonância com o que é defendido pela psicologia dialética de Vigotski[1] (1930/2004) quando trata do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Segundo a hipótese construída por esse autor para a explicação do desenvolvimento psicológico, o que se modificam não são as funções nem a estrutura, mas o nexo entre as funções, fazendo surgir sistemas complexos constituídos por mais de uma função psicológica, que se complexificam ao longo do desenvolvimento, mobilizados pela aprendizagem (Vygotski, 1991), e que resultam da vida coletiva, sendo, portanto, de origem social.

Vigotski (1930/2004), ao discutir as questões psicológicas e metodológicas relativas à psique, à consciência e ao inconsciente, assume como opção metodológica a noção de processos psicológicos para se referir às formas superiores de comportamento humano. Essa opção remete à superação do dualismo entre o físico e o psíquico, considerando a unidade desses fenômenos sem cair no erro de considerá-los como idênticos, construindo, por sua vez, o objeto de estudo da psicologia dialética: o processo integral do comportamento.

No debate sobre o processo de significação, a grande contribuição de Vigotski (2001), quando das considerações sobre as relações entre pensamento e linguagem, foi assumir o significado como em constante desenvolvimento e mudança. Sobre isso, ao falar sobre a origem da consciência, afirma que o que a move, o que determina o seu desenvolvimento é a cooperação entre consciências, que ele chama de “O processo de alteridade da consciência” (Vigotski, 1968/2004, p. 187), fazendo referência, em última instância, ao papel do outro na constituição do sujeito.

Ainda no debate sobre a relação pensamento e linguagem, Vigotski (2001) assume a palavra com significado como o amálgama, unidade entre esses dois fenômenos. Ao considerar o movimento do significado da palavra, Vigotski (1968/2004) afirma que ele se transforma em função da mudança da consciência e que esta transforma todas as relações e todos os processos quando a palavra cresce na consciência.

Em relação à categoria do sentido, Vigotsky (2001) o discute dentro do domínio da semântica da linguagem interior e destaca que uma das peculiaridades dessa semântica refere-se ao fato de haver nela a predominância do sentido sobre o significado. Logo, o sentido muda para uma mesma consciência e de acordo com as circunstâncias, bem como é determinado pelos momentos existentes na consciência e relacionados aquilo que é expresso por determinada palavra, sendo construções históricas.

Deste modo, assume-se o significado como historicamente construído e socialmente compartilhado, como mediador do processo de comunicação; e o sentido, como uma transformação subjetiva do significado, que carrega em si a realidade objetiva e que mobiliza vivências afetivas e cognitivas do sujeito; é a síntese psicológica que expressa a subjetividade e revela a história do sujeito e as suas contradições.

Como afirmam Aguiar, Liebesny, Marchesan & Sanchez (2009), “falar de sentidos é falar de subjetividade, da dialética afeto/cognição, é falar de um sujeito não diluído, de um sujeito histórico e singular ao mesmo tempo” (p. 65). Neste caso, como já mencionado, significado e sentido são assumidos como uma unidade dialética.

Assim, para apreender os sentidos é necessário compreender os seus determinantes; é necessário confrontar o discurso do sujeito sobre a sua história com o processo histórico na tentativa de ultrapassar as aparências. Então, no que se refere à leitura, entendida como atividade discursiva e de produção de sentidos, assume-se que ela condensa a subjetividade do sujeito-leitor e, portanto, a sua história de leitura, já que como afirma Vigotski (1968/2004), o sentido vai além do pensamento verbal e o significado não se confunde com o significado lógico.

Ao se considerar as condições de produção de leitura do texto na escola, no que se refere especificamente ao contexto sócio-histórico, faz-se necessário considerar os documentos que constituem os discursos sociais e os significados e sentidos que determinam, condicionam a subjetividade e as condições objetivas do ensino e da aprendizagem da leitura. Dentre esses documentos que orientam as ações dos professores quanto ao ensino da leitura e que faz parte da política de formação desses profissionais hoje, no Brasil, refere-se à proposta do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa.

 

Proposta do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa: percurso de construção

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) é uma síntese de diversas experiências de alfabetização no Brasil articulada à formação de professores, a exemplo do Pró-Letramento. Outra fonte de inspiração para a criação do PNAIC foi um programa de erradicação do analfabetismo que nasceu em 2004 na cidade de Sobral/CE, assumido em 2007 no âmbito estadual e batizado de Programa pela Alfabetização na Idade Certa (PAIC).

A partir da inspiração de políticas de erradicação do analfabetismo como o PAIC e o Pró-Letramento, e consoante com a meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE) – Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do Ensino Fundamental (Brasil, 2014) - o PNAIC foi criado em 2012, e tem como principal desafio garantir que todas as crianças brasileiras até oito anos sejam alfabetizadas plenamente. Para atingir tal meta, o PNAIC contempla a participação da união, estados, municípios e instituições de todo Brasil.

De acordo com Frade (2012), o Pacto é uma política de continuidade do governo brasileiro em relação à formação dos educadores. Para esta autora:

Ele é uma política educacional mais aprofundada, pois reúne três vertentes indispensáveis para o seu êxito: o processo de formação, de avaliação e a disponibilidade de materiais didáticos nas escolas, para o uso do educador e do aluno. (Plataforma do Letramento, acesso em 25.03.2016)

Com intuito de garantir a implementação das três vertentes apontadas por Frade, verificou-se que no fim do ano de 2012, muitas universidades compuseram as equipes de formação que iriam atuar nos municípios que aderiram às ações do PNAIC, se constituindo em um momento de grande aprendizado para todos os participantes: gestores, coordenadores, supervisores, orientadores e professores. Dada a dimensão do programa e a universalidade de seu alcance, os aprendizados foram distribuídos pelas instâncias pedagógica, administrativa e técnica, mobilizando variada gama de saberes. O ano de 2013 foi, então, marcado pela implantação desta ação educacional de grande escala: o maior programa de formação de professores já desenvolvido pelo Ministério da Educação – MEC.

No ano de 2014, a ênfase do trabalho de formação ocorreu com o componente curricular Matemática, com a preocupação de não se abandonar o trabalho desenvolvido anteriormente com a Língua Portuguesa. A preparação e o desenho do processo exigiram constante articulação entre as universidades parceiras e o MEC, resultando na definição da possibilidade de manutenção das equipes de formadores de Linguagem, trabalhando conjuntamente com uma nova equipe de formadores, a de Matemática, inaugurando um modelo de formação inovador, que permitiu a continuidade dos trabalhos com as duas áreas, e que acarretou um grande aprendizado a todos os envolvidos.

Sobre o material didático e pedagógico desenvolvido, tanto os Cadernos de 2013 como os de 2014, abordam a interdisciplinaridade, sem, com isso, esquecer as especificidades das áreas do conhecimento e das disciplinas de tradição curricular. Assim, após reuniões entre as universidades e o MEC, optou-se por considerar a interdisciplinaridade como a tônica do trabalho de formação em 2015, e, na mesma direção dos anos anteriores, mantendo a discussão focada em torno das especificidades das diferentes áreas.

A proposta de implantação de programas de formação continuada de professores alfabetizadores preconizado no PNAIC originou-se em um contexto de mudança curricular, provocada pela ampliação do Ensino Fundamental para nove anos (Lei 11.274/2006). A partir da elaboração de diferentes avaliações de larga escala sobre o nível de alfabetização no Brasil, novos conceitos foram criados e, considerando os resultados insatisfatórios de tais ações, amplia-se a preocupação com a alfabetização no cenário brasileiro, bem como a proposição de políticas públicas com vistas a alterá-lo (Brasil, 2015).

Indicadores insatisfatórios de alfabetismo funcional favoreceram o aparecimento de medidas que incidiram diretamente sobre as práticas pedagógicas, em especial, dos professores alfabetizadores, tornando-os o centro do debate pedagógico. Para isso, as temáticas sobre alfabetização e letramento ganharam relevância e ainda mobilizam reflexões acerca de processos de formação continuada para professores dos sistemas públicos de ensino, bem como a apropriação do conhecimento escolar pelas crianças (Brasil, 2010).

Embora a taxa de analfabetismo funcional decline, de modo geral, ano a ano, o quantitativo de analfabetos funcionais ainda é expressivo. Em 2012, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou 27,8 milhões de analfabetos funcionais, definidos por esse Instituto como pessoas de 15 anos ou mais que possuem menos de anos de estudos completos. Este quantitativo parece ter mobilizado os implementadores de políticas públicas para a educação(IBGE 2013).

Esses dados justificam a preocupação do MEC com a baixa consistência entre a escolaridade e desempenho dos alunos, bem como com a necessidade de repensar a escola devido à grande porcentagem de evasão no decorrer da vida escolar. Tais fatos favoreceram o estabelecimento de propostas para lidar com a precariedade qualitativa dos sistemas de ensino. Para isto, foi importante iniciar o debate sobre a temática do analfabetismo funcional, cujas reflexões culminaram de forma uníssona à construção de estratégias que possibilitassem a diminuição dessas estatísticas nas futuras gerações de estudantes.

Em vista disso, pergunta-se: Quais as concepções de aprendizagem e desenvolvimento humano fundamentam o PNAIC? Que concepção de leitura pode ser evidenciada nessa Proposta de orientação das ações do professor alfabetizador? Assim, tem como objetivos: (i) apreender as concepções de desenvolvimento humano e de aprendizagem que fundamentam o PNAIC, (ii) analisar a concepção de ensino e aprendizagem da leitura presente na proposta de alfabetização formulada no documento do PNAIC.

Deste modo, busca-se, de modo geral, compreender as condições de produção de leitura na escola a partir dos seus múltiplos determinantes contextuais, incluindo as concepções de desenvolvimento humano e de aprendizagem, e, assim, contribuir para as possíveis reformulações sobre o processo de ensino e aprendizado dessa atividade social na escola básica, favorecendo, em última instância, para o desenvolvimento do leitor crítico, considerado a partir de sua história de leitura e, portanto, de sua subjetividade.

 

MÉTODO

Foi realizada uma análise documental, que teve como objetivo fazer a apreciação das políticas públicas de formação de professores e das concepções de aprendizagem, desenvolvimento e leitura que atravessam o documento de Proposta do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).

 

Análise dos dados do PNAIC

Para a seleção dos Cadernos, procedeu-se uma leitura inicial do conjunto de material voltado para o Ano 1 (total de 08 Cadernos) que abordasse a discussão sobre a alfabetização e sobre os eixos de ensino da língua. Isso no sentido de selecionar aqueles cadernos que apresentam a discussão especificamente sobre o eixo da leitura, com o objetivo de se apreender a concepção de leitura explicita ou implicitamente existente no Programa, além das concepções sobre desenvolvimento e aprendizagem. Foram, então, selecionados os seguintes cadernos: (i) Caderno de Apresentação, título: “Formação do professor alfabetizador” (2012a; 40p.); (ii) Caderno ano 1 – unidade 1, título: “Currículo na alfabetização: concepções e princípios”, (2012b; 47p); (iii) Caderno ano 1 – unidade 2, título: “Planejamento escolar: alfabetização e ensino da língua portuguesa” (2012c; 48p).

Para a análise dos documentos foi adotada a perspectiva dos Núcleos de Significação proposta por Aguiar e Ozella (2006, 2013), fundamentada na abordagem sócio-histórica de Vigotski e que visa à apreensão dos sentidos. Esta proposta está organizada em quadro momentos: a pré-análise, quando se realiza a leitura flutuante do material transcrito e organização desse material; a identificação de pré-indicadores que poderão aparecer por maior frequência, pela importância enfatizada nas falas dos informantes, pela emoção demonstrada, pelas contradições e ambivalências ou pelas insinuações. Em geral, são em grande número e compõem um quadro grande de possibilidades. São exemplos de pré-indicadores identificados: diversidade de práticas de ensino e de leitura da língua escrita; diferentes práticas de alfabetização; currículo como construção de identidade; desenvolvimento do ensino de leitura e escrita; currículo como produção ou reprodução da cultura.

O processo de aglutinação dos pré-indicadores pela similaridade, complementaridade ou pela contraposição, resultou num conjunto reduzido de indicadores e conteúdos temáticos, como, por exemplo: métodos sintéticos e analíticos; currículo e diversidade cultural; direitos de aprendizagem; ensino focado no gênero textual.

Por fim, foi realizada a releitura do material para a organização em núcleos de significação, iniciando sua análise por um processo intranúcleo e, em seguida, avançando para uma articulação internúcleos. Nesse processo de análise, foram consideradas as falas que ressoam nos documentos, articulando-as com o contexto social, político, econômico e histórico.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os Núcleos de Significação, como orienta a própria perspectiva de análise, foram construídos com enunciados existentes nos próprios documentos analisados, levando-se em consideração também os objetivos pretendidos neste artigo. Assim, foram elaborados os Núcleos de Significação 1 e 2, bem como a Análise entre os Núcleos, os quais são apresentados a seguir.

 

Núcleo 1. “Aprender a ler e escrever é um direito de todos”

Criado com a missão de favorecer a superação dos índices de analfabetismos no país, o PNAIC tem como foco primordial a aprendizagem das crianças e dos demais grupos envolvidos no ensino, compreendendo a escola como uma instância que dialoga com as demais instituições sociais, em uma perspectiva de rede de apoio para vencer o desafio imposto. Deste modo, compreende “[...] que a instituição escolar é um espaço plural e, nesse sentido, a diversidade tem que ser considerada como parte da sua essência e não como algo que justifique a exclusão do aluno.” (Brasil, 2012a, p.6).

Assim, defende o pressuposto de que são vários os percursos de aprendizagem humana e que esse é um fenômeno em constante mudança e construção. E, em consonância com essa concepção de aprendizagem, assume a noção de sujeito ativo, constituído socialmente e multideterminado (Vigotski, 1930/2004). Portanto, compreende a escola como um contexto de desenvolvimento e aprendizagem, bem como entende que os percursos de aprendizagem são determinados pelas condições materiais disponíveis aos sujeitos. Deste modo, ressalta que

[...] o aprendiz conquista o lugar social de um sujeito de direitos e a educação inclusiva viabiliza a efetivação da sua cidadania à medida que busca respeitar as peculiaridades de cada sujeito por meio de práticas de ensino acessíveis. (Brasil, 2012b, p.13)

Na materialização de um processo de ensino que busca o alcance de uma aprendizagem que visa às peculiaridades dos sujeitos, a proposta do PNAIC assume a ideia de currículo como fenômeno cultural, que se abre às distintas manifestações culturais e que lida com as diferenças entre os sujeitos, incluindo as suas possibilidades e dificuldades de aprendizagem. Deste modo, entende que a aprendizagem não acontece de forma linear, mas por desvios e recuos, defendendo que:

[...] um determinado conhecimento ou capacidade pode ser introduzido em um ano e aprofundado em anos seguintes. A consolidação também pode ocorrer em mais de um ano escolar, dado que há aprendizagens que exigem um tempo maior para a apropriação (Brasil, 2012b, p.31.

Isso faz inferir da relevância dada ao outro no processo de aprendizagem e de constituição do sujeito, ou como diria Vigotski (1968/2004, p. 187), aponta para “O processo de alteridade da consciência”. O professor, então, assume o lugar de mediador da aprendizagem, aquele que intervém e auxilia o aluno para que se aproprie dos significados compartilhados cientificamente acerca do objeto de conhecimento em destaque e possa avançar cognitivo e afetivamente (Vigotsky, 2001; Aguiar et. al, 2009). Desse modo, o PNAIC compreende que:

[...] De acordo com as abordagens construtivistas e sócio-interacionistas de ensino-aprendizagem, é preciso que o professor saiba os conteúdos e procedimentos de ensino e conheça seus alunos, e o que eles sabem sobre determinados conteúdos, para que possa planejar atividades que os façam evoluir em suas aprendizagens, na interação com o docente e com os pares em sala de aula. (Brasil, 2012c, p. 19).

Assim observa-se que, é também fundamentado nas noções de sujeito e de aprendizagem já explicitadas, que o PNAIC defende que o professor assume o papel de protagonista em uma perspectiva coletiva de construção de conhecimento, em que se reafirma a relevância do diálogo entre as várias instâncias envolvidas no processo de alfabetização da criança, valorizando-se os conhecimentos teórico-práticos desse profissional.

A equipe central, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (SMED), deve agir na definição de princípios gerais e construção de orientações globais de trabalho, atuando na articulação entre as unidades escolares. As equipes das escolas devem definir planos de ação por unidade escolar e coordenar o trabalho coletivo, no universo dessas unidades. Para a articulação entre estas duas instâncias, sugere-se a criação de um Conselho ou um Núcleo de Alfabetização que se responsabilize e discuta as políticas da rede de ensino destinadas ao atendimento das crianças dos anos iniciais. (Brasil, 2012a, p. 08).

O PNAIC, no sentido de promover o atendimento das crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental em seu processo de alfabetização, propõe a perspectiva do alfabetizar letrando e ressalta a importância de um ensino que garanta a reflexão do Sistema de Escrita Alfabética aliado a práticas sociais de uso da escrita. Nesse sentido, critica os modelos sintético, analítico e analítico-sintético de ensino da língua, apoiando-se na perspectiva construtivista de Emília Ferreiro para discutir o desenvolvimento ontogenético da escrita. Argumenta, então, que “[...] trabalhar sistematicamente com as unidades sonoras das palavras (como as sílabas e fonemas) não significa que estamos voltando ao passado, defendendo um trabalho baseado em métodos silábicos ou fônicos de alfabetização [...]” (Brasil, 2012c, p. 27).

Desse modo, busca superar a noção de ensino da língua amparado na memorização, na ênfase nas habilidades perceptíveis e motoras, e na ideia de prontidão individual para aprender, sem perder de vista a reflexão sobre o Sistema de Escrita Alfabética. Por outro lado, reafirma o lugar do erro no processo de aprendizagem e a importância da avaliação formativa e processual, ressaltando a relevância da avaliação diagnóstica e do acompanhamento do aluno ao longo do ano letivo, em uma perspectiva também dialogada com as várias instâncias e grupos envolvidos no processo de alfabetização da criança.

[...] é necessário garantir que dimensões importantes da aprendizagem não sejam esquecidas. Por exemplo, ao tratarmos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, é prioritário o trabalho que garanta o domínio do sistema de escrita, de modo articulado ao domínio de habilidades de compreensão e de produção de textos orais e escritos. Assim, planejar atividades diversificadas que possibilitem que a criança compreenda o funcionamento do sistema de escrita e que possa utilizá-lo nas situações de interação social é uma tarefa básica no ciclo de alfabetização. (Brasil, 2012a, p. 20).

Embora ressalte a importância do planejamento diversificado e, portanto, a relevância da mediação docente no processo de alfabetização, bem como enfatize um ensino que atenda à diversidade de trajetórias dos sujeitos, indicando uma abordagem que entende que a aprendizagem promove desenvolvimento (Vygotski, 1991), ao explicar a apropriação da escrita em uma abordagem que se ancora na perspectiva construtivista de Emília Ferreiro, percebe-se uma ênfase na compreensão de que é o desenvolvimento que leva à aprendizagem.

Portanto, reconhecem-se duas concepções de aprendizagem e desenvolvimento na proposta do PNAIC que estão em contradição, visto que a primeira, defendida pela abordagem sóciointeracionista, compreende que no domínio inicial da linguagem escrita, por exemplo, os processos de desenvolvimento não estão completos ou consolidados, como é defendido pela segunda abordagem aqui referida, mas apenas começando, fazendo realçar o processo de aprendizagem na constituição humana.

Ao defender implicitamente que primeiro é necessário que as crianças se desenvolvam para que depois aprendam e que, portanto, aquelas “que já dominaram os princípios básicos da escrita alfabética.” sejam auxiliadas para “[...] compreender o funcionamento do sistema de escrita e a consolidar as correspondências grafofônicas” (Brasil, 2012a, p. 20), a proposta do PNAIC revela outra contradição: embora assuma uma perspectiva inclusiva de educação e a noção de que são vários os percursos de aprendizagem, parece não considerar que os caminhos de apropriação da escrita por parte, por exemplo, de crianças com deficiência, requer outro tipo de compreensão sobre o processo de aprendizagem da escrita.

De acordo como Vigotski (2011), no qual o PNAIC se fundamenta para a discussão sobre a aprendizagem de pessoas com deficiência (ver Caderno de Educação Especial, Brasil 2012d), os caminhos percorridos por essas pessoas não repetem os caminhos percorridos pelas pessoas sem deficiência, levando o autor defender a criação de caminhos indiretos de desenvolvimento na qual

a educação surge em auxílio, criando técnicas artificiais, culturais, um sistema especial de signos ou símbolos culturais adaptados às peculiaridades da organização psicofisiológica da criança anormal[2] [porque] Todo o aparato da cultura humana (da forma exterior de comportamento) está adaptado à organização psicofísiológica normal da pessoa. (p. 867)

Assim, embora o PNAIC avance propondo uma abordagem de alfabetizar letrando que visa à apropriação da língua em funcionamento a partir da noção de que é preciso refletir sobre ela para dela se apropriar e se constituir como cidadão, defendendo um aprendizado que garanta o uso social da língua(gem) por todos “na idade certa”, esbarra na noção de que existe um caminho predeterminado para a apropriação dessa capacidade, que dificulta a materialização da tese de que “Aprender a ler e escrever é um direito de todos” (Brasil, 2012b, p. 5).

 

Núcleo 2. “Espera-se [...] que a pessoa alfabetizada seja capaz de ler e escrever em diferentes situações sociais, para [...] inserir-se e participar ativamente de um mundo letrado”

Ao defender a perspectiva de alfabetizar letrando, o PNAIC supera a proposta dos métodos sintético, analítico e analítico-sintético no que se refere à noção de leitura e escrita como decodificação e codificação, assumindo o texto como unidade do ensino e da aprendizagem da língua a partir da interação das crianças com diferentes gêneros textuais em situações escolares significativas. No entanto, destaca que

[...] apenas a interação com textos que circulam na sociedade não garante que os alunos se apropriem da escrita alfabética, uma vez que, no geral, essa aprendizagem não acontece de forma espontânea, mas exige um trabalho de reflexão sobre as características do nosso sistema de escrita. (Brasil, 2012b, p. 18).

Para tal, ressalta a importância do planejamento escolar que é tomado como uma atividade imprescindível e que reporta à participação de diferentes instâncias e âmbitos que constituem a escola e o processo educativo, enfatizando o acompanhamento das aprendizagens ao longo do ciclo de alfabetização em uma perspectiva de avaliação formativa que é articulada à orientação de elaboração de planejamento anual, semanal e diário de modo a garantir os direitos e aprendizagem dos alunos.

[...] para que de fato as aprendizagens sejam garantidas, é necessário investir no planejamento, concebendo que as ações de planejar: orientam a intervenção pedagógica e possibilitam maior articulação dos conhecimentos desenvolvidos nas diferentes etapas de escolaridade; evitam a improvisação desnecessária; permitem aos educadores avaliar seu processo de trabalho e possibilitam o diálogo dos docentes com seus pares e com a coordenação pedagógica. (Brasil, 2012a, p.12)

Também supera a noção de planejamento e de rotina escolar como atividades repetitivas e mecânicas, tomando a ideia de que essas atividades configuram-se como uma situação de autoformação para o professor, bem como exigem por parte desse profissional conhecimento teórico-prático. Argumenta, então, que:

Planejar e organizar uma rotina voltada para reflexão constante sobre a prática social, considerando uma boa formação dos conhecimentos específicos, sistematizados, selecionados das bases das ciências é o que propõem os novos estudos sobre ensinar e aprender. (Brasil, 2012c, p.20).

Assim, entende que a formação de professores precisa refletir sobre o que significa ensinar, que não é entendido pelo PNAIC como um processo mecânico de transmissão de conhecimento, mas como uma atividade reflexiva e dialogada que exige planejamento constante, mas que, por outro lado, depende das condições materiais oferecidas ao professor. Em consonância com a noção de que as atividades devem acontecer de forma compartilhada entre as diferentes instâncias do processo educativo, recomenda que:

Seria tarefa do Conselho, portanto, discutir e fazer propostas de organização do trabalho dos professores, assegurando que estes profissionais tenham: disponibilidade de tempo para planejar sua prática, coletivamente e individualmente; para selecionar materiais; para confeccionar recursos didáticos; para registrar ações; para criar instrumentos de avaliação e de registro e utilizá-los; para estudar e participar de atividades de formação continuada. (Brasil, 2012a, p. 11).

Dessa maneira, faz entender que a organização do trabalho do professor não depende de uma atividade individual, mas de uma ação colegiada que remete à compreensão dos múltiplos fatores sócio-históricos envolvidos na ação de planejar, ensinar e aprender. É considerando, ainda, esses diferentes fatores implicados no processo de alfabetização, os quais indicam o fracasso da escola para favorecer o desenvolvimento de leitores e produtores de textos capazes de atuar nas diferentes práticas sociais, que o PNAIC defende “que as crianças possam vivenciar, desde cedo, atividades que as levem a pensar sobre as características do nosso sistema de escrita, de forma reflexiva, lúdica, inseridas em atividades de leitura e escrita de diferentes textos [...]” (Brasil, 2012b, p. 22).

Pensando, então, na superação dos baixos índices no desempenho em leitura apontados pelas avaliações internacionais (Programme for International Student Assessment - PISA, por exemplo) e nacionais (Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB, Prova Brasil) em leitura, o PNAIC propõe um planejamento do processo de alfabetização/aprendizagem da língua portuguesa que considere os quatro eixos: leitura, produção de texto escrito, oralidade e análise linguística, incluindo a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética. Assim, defende que

o papel da escola, quando se trata do processo de alfabetização, é ensinar o sistema de escrita e propiciar condições de desenvolvimento das capacidades de compreensão e produção de textos orais e escritos. Isto é, desde os primeiros anos de escolarização, espera-se que os docentes planejem situações de escrita que, ao mesmo tempo favoreçam a aprendizagem do funcionamento da escrita alfabética e possibilitem o acesso aos textos escritos de modo a garantir a inserção social em diversos ambientes e tipos de interação. (Brasil, 2012a, p. 26).

A ênfase está na apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, mas em uma perspectiva de letramento. Dessa maneira, no que se refere ao eixo leitura, foco desta análise, verifica-se que ela é tomada como uma prática social, que envolve a interação entre interlocutores (leitor real/vitual-autor), como se afirma em uma perspectiva discursiva (Orlandi, 2005), a qual o desenvolvimento de diferentes capacidades, como, por exemplo, a identificação de informação no texto, a geração de inferência e a intertextualidade, que estão relacionadas com o conhecimento de que a leitura implica sempre um objetivo e que, portanto, para cada leitura/leitor são gerados diferentes sentidos.

Logo, na proposta do PNAIC a leitura não é entendida como uma atividade de decodificação, mas de compreensão que envolve aspectos estéticos e emocionais (Aguiar, et. al., 2009). Estes, ao mesmo tempo em que remetem à noção de polissemia como uma condição da atividade de leitura (Orlandi, 2006a, 2006b), permitem o entendimento de um sujeito integral (socioafetivo e cognitivo), como, aliás, está posto nos direitos gerais de aprendizagem da Língua Portuguesa e que apontam para um planejamento de ensino que permita:

Compreender e produzir textos orais e escritos de diferentes gêneros, veiculados em suportes textuais diversos, e para atender a diferentes propósitos comunicativos, considerando as condições em que os discursos são criados e recebidos.

Apreciar e compreender textos do universo literário (contos, fábulas, crônicas, poemas, dentre outros), levando-se em conta os fenômenos de fruição estética, de imaginação e de lirismo, assim como os múltiplos sentidos que o leitor pode produzir durante a leitura. (Brasil, 2012b, p. 32).

Além disso, existe a compreensão de que a leitura não se refere apenas à produção de sentidos de deferentes gêneros textuais, mas à de diferentes modalidades de linguagem que circulam socialmente e que possibilitam a inserção do sujeito em diferentes contextos sociais, promovendo a sua cidadania e autonomia, como expressam alguns dos direitos de aprendizagem da Leitura.

  • Ler textos não-verbais, em diferentes suportes.
  • Ler textos (poemas, canções, tirinhas, textos de tradição oral, dentre outros), com autonomia.
  • Compreender textos lidos por outras pessoas, de diferentes gêneros e com diferentes propósitos.
  • Antecipar sentidos e ativar conhecimentos prévios relativos aos textos a serem lidos pelo professor ou pelas crianças.
  • Realizar inferências em textos de diferentes gêneros e temáticas, lidos com autonomia.
  • Relacionar textos verbais e não-verbais, construindo sentidos. (Brasil, 2012b, p. 33).

O PNAIC também explicita que alguns gêneros textuais podem ser prioritários no ensino e aprendizagem da leitura, destacando os gêneros da esfera literária, que remetem à dimensão lúdica da atividade de aprendizagem da leitura. Dimensão essa essencial para o desenvolvimento das crianças do ciclo de alfabetização, em especial, às do 1º ano do Ensino Fundamental, em geral, com 6 anos de idade. Isto porque a literatura promove o desenvolvimento socioafetivo e cognitivo da criança, favorecendo atuação e adaptação do mundo, por exemplo, via acesso às experiências históricas (transmitidas de gerações anteriores), sociais (vivida por outras pessoas) e duplicadas (aquela inicialmente elaborada mentalmente para depois ser realizada através do trabalho humano) (Vigotski, 1925/2004).

Por outro lado, quando se pensa o aspecto do ensino da leitura e, portanto, da formação de professores elaborada pelo PNAIC para favorecer a aprendizagem desse eixo da língua, observa-se pouca expressão atribuída a ele em termos de lugar que ocupa em uma das secções do Caderno 01, Unidade 02 (2012c, p.08-09), bem como se verifica pouca ênfase na explicitação de estratégias de mediação docente, especificamente, quando se compara a discussão de planejamento desse eixo com os demais, a exemplo do que se segue.

A leitura [...] No processo inicial de apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, cabe ao professor ser o mediador da turma, auxiliando os alunos na elaboração de objetivos e expectativas de leitura, na criação de hipóteses antes e durante o ato de ler, correlacionando os conhecimentos prévios dos aprendizes com aqueles que se pode reconhecer no texto, sejam explícitos ou implícitos. (Brasil, 2012c, p. 08).

A produção de textos [...] Levar a criança a escrever “do jeito que acha que é” é uma maneira de incentivá-la a buscar estratégias para colocar no papel o que quer informar ao seu leitor. Quando solicitamos que a criança faça um desenho sobre a parte de que mais gostou de uma história ouvida e escreva sobre esta parte para divulgar em um mural para que outras pessoas possam ler, propiciamos a reflexão sobre a escrita e a busca de soluções para questões que se colocam acerca da apropriação do sistema de escrita. (Brasil, 2012c, p. 09).

Na proposta do PNAIC, verifica-se que há a compreensão de que a aprendizagem escolar não acontece sem a articulação com o ensino, priorizando-se a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética a partir da assunção de uma posição política no debate nacional sobre o método de alfabetização.

temos vivido [...] um amplo debate sobre que métodos/metodologias utilizar para alfabetizar nossos alunos.

Reportagens publicadas em revistas de grande circulação criticam o ensino da leitura e escrita com base em uma abordagem construtivista de alfabetização, afirmando ser tal abordagem responsável pelo baixo índice de leitura apresentado por nossos educandos nos processos de avaliação.

Defender, no entanto, a alfabetização centrada em qualquer método sintético ou analítico, como meio de superar o atual contexto de fracasso escolar na alfabetização, é desconsiderar as contribuições das pesquisas que analisam o processo de construção dos sujeitos na aprendizagem da leitura e da escrita e os estudos sobre letramento. (Brasil, 2012b, p. 18).

Nesse cenário, o eixo de ensino e aprendizagem da leitura mostra-se de maneira tímida nos Cadernos analisados. Por outro lado, há uma compreensão no PNAIC da necessidade de favorecer diferentes contextos de leitura na escola e de se possibilitar a professores e alunos o contato com diferentes materiais escritos, em uma abordagem de incentivo à leitura e não propriamente de ensino de estratégias docente para o ensino dessa atividade. Portanto, a explicitação e a reflexão sobre os tipos de questão (literais, inferenciais) que o professor como mediador poderá realizar na interlocução com o autor e a criança, sobre o lugar das imagens na relação com o texto escrito nas obras literárias, bem como a conversa sobre os diferentes sentidos que aparecem na interlocução com o autor do texto e a articulação com outras linguagens (Orlandi, 2006b), como apontado nos direitos de aprendizagem da leitura já explicitados, não são priorizadas para favorecer o desenvolvimento de um leitor autônomo como é entendido no documento, ou seja, aquele que domina o sistema de escrita alfabética e é capaz de ler sem o auxílio de um ledor.

Então, a noção de processo de alfabetização que pretende que o aprendiz use a leitura e a escrita em diferentes situações sociais, para inserir-se socialmente, parece, contraditoriamente, promover uma compreensão de que seja suficiente favorecer a interação da criança com diferentes textos que circulam socialmente sem a mediação de um adulto, no caso da escola, sem uma intervenção intencional como a que caracteriza o ensino.

 

Análise internúcleos

Como ressaltado na análise dos dois Núcleos de Significação, o PNAIC enfatiza o ensino e a aprendizagem do Sistema de Escrita Alfabética com o objetivo de formar professores para lidar com um problema histórico da educação brasileira: o analfabetismo de crianças e adultos. Além disso, sustenta-se nas pesquisas sobre o letramento para propor um ensino baseado na proposta de situações significativas de uso de diferentes textos que circulam socialmente.

Sustentado em avaliações de larga escala que demonstram os baixos rendimentos em tarefas de compreensão, leitura e/ou escrita de textos dos estudantes da Escola Básica, como é o caso do resultado do PISA 2015 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2016), o PNAIC fundamenta-se em uma proposta de ensino dos diferentes eixos da língua (leitura, produção textual, oralidade e análise linguística) na articulação com a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, com o objetivo de ultrapassar os métodos de alfabetização fundamentados na memorização e na ideia de decodificação e codificação da leitura e escrita, e favorecer o desenvolvimento de sujeitos que refletem sobre a língua para além do seu uso.

Em consonância com outros documentos brasileiros que orientam as práticas de ensinar e aprender, a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa, o PNAC assume o texto como unidade dessas atividades, baseando-se na ideia de gênero textual e, portanto, na funcionalidade da língua e na noção de sujeito ativo e reflexivo, seja ele o professor ou o aluno.

Na defesa de um currículo multicultural, aposta na diversidade e na variedade de percursos de aprendizagem em consonância com uma abordagem construtivista do ensino da língua, notadamente, a perspectiva psicogenética de Emília Ferreiro. Ao fazê-lo, demonstra uma contradição, visto que essa abordagem considera que para aprender é necessário desenvolver, ao passo que, uma abordagem que enfatiza diferentes possibilidades de aprendizagem a depender das condições oferecidas, como pretende o PNAIC, estaria fundamentada em uma noção de que para se desenvolver é necessário aprender. Nesse caso, são poucas as possibilidades para se pensar, por exemplo, o desenvolvimento das pessoas com deficiência mesmo dentro de uma proposta inclusiva como defende o documento em análise. Por exemplo: como pensar o caminho de apropriação da escrita por uma criança com deficiência intelectual e/ou com impedimentos de linguagem? Seria necessário partir do que ela já sabe para intervir?

Na proposta de uma formação de professores que atente para a promoção da aprendizagem dos diferentes eixos da língua no sentido de garantir os direitos de aprendizagem definidos para a Língua Portuguesa, no que se refere ao eixo da leitura, embora esta seja tomada como compreensão, lançando luz sobre a sua condição como uma atividade polissêmica e estética, constituída na relação entre os interlocutores participantes da leitura, não se identifica o avanço no que se refere à discussão da mediação docente para promover a constituição do sujeito-leitor compreendido como aquele que toma o texto como um discurso que se articula com outros discursos para além dele.

Assim outra contradição se revela: ao mesmo tempo em que pretende um leitor capaz de se inserir nas diferentes situações de leitura da contemporaneidade, como cidadão, as condições para a constituição desse leitor não parecem garantidas, já que a compreensão do processo de aprendizagem da leitura ainda é secundarizada na formação de professores quando comparada à atividade de produção escrita, por exemplo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os objetivos pretendidos com a análise documental realizada, verificou-se que a Proposta do PNAIC embora sustentada em uma perspectiva inclusiva e na noção de que existem diferentes caminhos de aprendizagem (Brasil, 2012d; Vigotski, 2011, 1991) ainda esbarra na noção de que primeiro é necessário que o sujeito se desenvolva para que depois apreenda a língua. Além disso, embora aposte no ensino e aprendizado da leitura em uma perspectiva de letramento, não parece superar a ideia de que existe uma inclinação natural para o aprendizado dessa atividade, como se esse processo não mantivesse uma relação de interdependência com o ensino, exigindo a mediação de um leitor mais capaz.

Diante disso, postula-se a necessidade de se formular pesquisas que pretendam compreender a apreensão do Sistema de Escrita Alfabético a partir dos diferentes caminhos de aprendizagem, em especial, considerando as pessoas com deficiência, a partir de procedimentos metodológicos que considerem a necessidade de caminhos indiretos de desenvolvimento (Vigotski, 2011), bem como os domínios cognitivos desses sujeitos em suas especificidades.

Além disso, acredita-se que os resultados desse estudo demonstram que, no âmbito da leitura como um dos eixos da alfabetização, é necessário o investimento em políticas públicas que invistam na formação do professor leitor de forma mais sistematizada, considerando o desenvolvimento de estratégias de mediação docente que promovam, na escola, a conversa sobre o texto e, portanto, a noção de que a leitura é compreensão e que são vários os sentidos a depender das condições de produção, incluindo a própria subjetividade dos leitores em formação (Aguiar et. al, 2009; Orlandi, 2006a).

 

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Endereço para correspondência:

Sandra Patrícia Ataíde Ferreira

Universidade Federal de Pernambuco - Centro de Educação -

Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais

Av. da Arquitetura, s/n

Cidade Universitária, Recife - PE.

E-mail: tandaa@terra.com.br

Recebido em 25/05/2017

Aceito em 11/08/2017

 

[1] Neste artigo, o nome de Vigotski será grafado de acordo com a edição da obra consultada.

[2] Hoje, o termo adotado é pessoa com deficiência e não pessoa ou criança anormal como utilizava Vigotski no início do século XX.

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