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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.14 no.1 Juiz de Fora jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.27570 

DOSSIÊ TEMÁTICO ENGAJAMENTO ESCOLAR

 

Envolver os alunos em processos de raciocínio matemático: as ações do professor

 

Involving students in mathematical reasoning processes: teacher actions

 

Involucrar a los alumnos en los procesos de razonamiento matemático: acciones del profesor

 

 

Lurdes SerrazinaI; Margarida RodriguesII; Eliane AramanIII

IUniversidade de Lisboa (Portugal). Email: lurdess@eselx.ipl.pt
IIUniversidade de Lisboa (Portugal). Email: margaridar@eselx.ipl.pt
IIIUniversidade Tecnológica Federal do Paraná (Brasil). Email: elianearaman@utfpr.edu.br

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O raciocínio é uma das capacidades-chave a se desenvolver desde os primeiros anos de escolaridade. Neste artigo assumimos raciocínio matemático como a capacidade de fazer inferências justificadas, isto é, de utilizar informação matemática já conhecida para obter, justificadamente, novas conclusões. Serão analisados os padrões de interação entre uma professora e seus alunos do 2º ano na discussão de uma tarefa matemática aditiva. Trata-se de um estudo qualitativo de carácter interpretativo. Concluímos que o questionamento da professora se foca em aspectos-chave do raciocínio guiando os alunos para processos de justificação, generalização e exemplificação. Neste percurso, as ações da professora foram cruciais para desafiar os alunos a apresentarem justificações das relações numéricas identificadas, não só favorecendo, mas também ampliando o seu raciocínio matemático.

Palavras-chave: Raciocínio matemático; Ações do professor; 1º ciclo do ensino básico.


ABSTRACT

Reasoning is a key ability to develop from the early years of schooling. This article assumes mathematical reasoning as being the ability to make justified inferences, that is, to use already known mathematical information to reach new conclusions. Patterns of interaction between a teacher and her 2nd graders in the discussion of an additive mathematical task will be analyzed. The study adopts a qualitative methodology within the interpretative paradigma. We conclude that the teacher's questions focus on key aspects of reasoning, guiding the students to processes of justification, generalization and exemplification. On this route, the teacher's actions were crucial in challenging the students to present justifications of the numerical relationships identified, not only favoring but also extending their mathematical reasoning.

Keywords: Mathematical reasoning; Teacher actions; Primary education.


RESUMEN

El razonamiento es una de las capacidades claves para desarrollar desde los primeros años de escolaridad. En este artículo entendemos al razonamiento matemático como la capacidad de realizar inferencias justificadas, es decir, de utilizar la información matemática ya conocida para obtener, justificadamente, nuevas conclusiones. Serán analizados los patrones de interacción entre una profesora y sus alumnos de 2° año en la discusión de una tarea matemática de adición. Se trata de un estudio cualitativo de carácter interpretativo. Concluímos que los cuestionamientos de la profesora se centran en aspectos claves del razonamiento, guiando a los alumnos hacia procesos de justificación, generalización y ejemplificación. En esta dirección, las acciones de la profesora fueron cruciales para desafiar a los alumnos a justificar las relaciones numéricas identificadas, no sólo favoreciendo sino también ampliando su razonamiento matemático.

Palabras clave: Razonamiento Matemático; Acciones Del Professor; Educación Primaria.


 

 

As orientações curriculares portuguesas (ME, 2018) e internacionais (NCTM, 2017) enfatizam a importância de desenvolver o raciocínio matemático, entendido como o processo de utilizar informação matemática já conhecida para obter novo conhecimento ou novas conclusões (Jeannotte & Kieran, 2017; Stylianides, 2009). Para promover esse desenvolvimento são fundamentais as ações do professor. Assim, a ação do professor no 1º ciclo (1º ao 4º ano de escolaridade) deve ser orientada de modo que "os alunos desenvolvam a capacidade de raciocinar matematicamente, bem como a capacidade de analisar os raciocínios de outros" (ME, 2018, p. 4).

Os dados analisados neste artigo foram recolhidos no âmbito do projeto Flexibilidade de cálculo e raciocínio quantitativo, financiado pelo Instituto Politécnico de Lisboa, que tinha como objetivo caracterizar o desenvolvimento do raciocínio quantitativo e da flexibilidade de cálculo dos alunos entre os 6 e os 12 anos e descrever e analisar práticas dos professores que facilitem esse desenvolvimento. O objetivo do artigo é analisar os padrões de interação entre uma professora do 2º ano de escolaridade e seus alunos durante a discussão de uma tarefa matemática aditiva, focando as ações da professora para envolver os alunos em processos de raciocínio.

 

Raciocínio Matemático

Vários autores dedicaram os seus estudos ao raciocínio matemático, evidenciando a sua relevância e pertinência para a aprendizagem matemática, salientando que o raciocínio matemático é uma capacidade-chave que deve ser desenvolvida desde os primeiros anos de escolaridade (Lannin, Ellis, & Elliot, 2011; Mata-Pereira & Ponte, 2018; Stylianides, 2009).

A definição de raciocínio matemático foi apresentada por diversos investigadores. Para Stylianides (2009), o raciocínio matemático é um processo de inferência que utiliza informação matemática já conhecida para obter novo conhecimento ou novas conclusões. Para Lannin, Ellis e Elliot (2011), este consiste em um processo conjunto de conjeturar, generalizar, investigar o porquê, argumentar e refutar se necessário.

No entendimento de Jeannotte e Kieran (2017, p. 7), o raciocínio matemático é um "processo de comunicação com outros ou consigo mesmo que permite inferir enunciados matemáticos a partir de outros enunciados matemáticos". Mata-Pereira e Ponte (2018, p. 728) definem-no como o "processo que utiliza informação já conhecida para obter, justificadamente, novas conclusões". Já Morais, Serrazina e Ponte (2018) reconhecem o raciocínio matemático como um conjunto de processos mentais complexos através dos quais se obtêm novas proposições (conhecimento novo) a partir de proposições conhecidas ou assumidas como verdadeiras (conhecimento prévio).

Jeannotte e Kieran (2017) referem que o raciocínio matemático é composto por dois aspectos que, embora diferentes, se complementam: o estrutural e o processual, tendo o primeiro uma natureza abstrata e, o segundo, uma natureza mais dinâmica e temporal. As formas mais citadas do aspecto estrutural são a dedução, a indução e a abdução. Jeannotte e Kieran (2017) caracterizam vários processos associados ao raciocínio matemático, entre os quais, os relacionados com:

(i) a procura de semelhanças e diferenças, como sejam os processos de generalizar, conjeturar, identificar um padrão, comparar e classificar;

(ii) a validação, como sejam os processos de justificar e provar e;

(iii) o suporte a outros processos de raciocínio, como seja o processo de exemplificar.

Para Stylianides (2009), o processo de generalizar inclui identificar um padrão e formular uma conjetura, sendo que se distinguem pelo fato de apenas a este último se poder associar um valor epistêmico de provável ou talvez. Para este autor, o processo de identificar um padrão implica reconhecer uma relação geral num determinado conjunto de dados, já o processo de conjeturar envolve formular uma hipótese sobre uma relação matemática geral, tendo por base uma evidência incompleta. Nesta perspectiva, os alunos conjeturam quando formulam hipóteses sobre as quais não têm a certeza se são verdadeiras ou falsas e que necessitam de ser experimentadas ou examinadas.

Para Jeanotte e Kieran (2017), os processos de validação têm como objetivo mudar o valor epistêmico das afirmações para verdade, falso ou mais provável, daí incluírem o justificar e o provar. O processo de provar pode acontecer através de um exemplo genérico (usa-se um caso particular como representativo de um caso geral) ou de uma demonstração (Stylianides, 2009).

Neste artigo, interessam-nos os processos de raciocínio evidenciados pelos alunos a partir das ações da professora, de acordo com os padrões de interação discutidos na próxima seção.

 

Ações Dos Professores Que Envolvem Os Alunos Em Processos De Raciocínio

Para criar oportunidades para o desenvolvimento do raciocínio matemático, os professores precisam repensar as normas estabelecidas em sala de aula, criando ambientes que proporcionem oportunidades para pensar, em vez de ambientes que privilegiem a implementação de regras e procedimentos iguais para todos. Precisam considerar as diferentes maneiras pelas quais diferentes pessoas podem pensar e resolver problemas. Assim, é preciso que os professores revejam "certas expetativas para criar um ambiente em que as crianças expressem o seu pensamento" (Wood, 1998, p. 37).

Ponte, Mata-Pereira e Quaresma (2013) esclarecem que, nos últimos anos, o raciocínio matemático tem sido considerado como uma importante vertente transversal no ensino desta disciplina, desde que aliado à realização de tarefas desafiantes e discussões coletivas com a turma acerca da resolução das mesmas. Afirmam ainda, no que diz respeito ao papel do professor, que as pesquisas têm dado atenção a aspectos relacionados com a "seleção das tarefas e a comunicação na sala de aula, sublinhando a natureza do questionamento, a negociação de significados e os processos de redizer" (Ponte et al., 2013, p. 55). Estes autores estudaram as ações dos professores que promovem o raciocínio matemático e categorizaram-nas em quatro categorias: ações de Convidar, quando os professores fazem questões com a finalidade de inserir os alunos no contexto de discussão; ações de Guiar/Apoiar, que englobam aquelas por meio das quais os professores conduzem os alunos a fornecerem explicações sobre como estão a pensar; ações de Informar/Sugerir, quando os professores fornecem informações, sugestões, explicações que apoiam o raciocínio dos alunos e; ações de Desafiar, nas quais os professores desafiam os alunos a estenderem o seu raciocínio matemático, colocando-os na situação de serem eles próprios a avançarem em terrenos novos, "seja em termos de representações, da interpretação de enunciados, do estabelecimento de conexões, ou de raciocinar, argumentar ou avaliar" (Ponte et al., 2013, p. 59).

Por sua vez, Wood (1998) considera que, para aprender matemática com compreensão, isto é, entender o significado dos conceitos, relacionando-os com outros conceitos matemáticos e não matemáticos, perceber a razão de ser dos algoritmos e de outros procedimentos de rotina e os princípios que os regem, é necessário criar nas salas de aula situações que encorajem o pensamento e o raciocínio dos alunos. Refere, ainda, que diferentes interações, quer entre alunos, quer entre estes e o professor, criam diferentes contextos de aprendizagem. Assim, aulas em que os alunos expressam os seus pensamentos, explicando-os e justificando-os, constituem ambientes propícios ao desenvolvimento do seu raciocínio matemático. Criar oportunidades para que isto aconteça depende das ações do professor. Neste artigo, assumimos a categorização estruturada por Wood (1998), que considera três tipos de padrões de interação.

O primeiro padrão de interação (Tipo 1) ocorre quando o aluno conta como resolveu o problema. O professor é visto como participante da troca, colocando questões ao aluno que o levem a explicar o que fez e como fez. A explicação fornecida pelo aluno consiste na descrição de seu pensamento. O detalhe de tais descrições "pode variar dentro destes contextos, dependendo da medida em que o professor estabelece as expectativas para a compreensão e clareza das explicações" (Wood, 1998, p. 38).

No segundo padrão de interação (Tipo 2), o aluno (estudante que explica) continua a contar como resolveu o problema, mas o professor solicita que ele explique novamente, só que agora apresentando razões de modo a esclarecer o professor e os demais alunos por que fez assim. Ao solicitar que os alunos expliquem o porquê, o professor "exige que os alunos forneçam razões para a sua explicação", esclarecendo o seu pensamento (Wood, 1998, p. 39).

No terceiro padrão de interação (Tipo 3), os alunos contam como resolveram o problema, clarificando seus significados e fornecendo razões, entretanto, o professor faz também perguntas de justificação, como "Como é que sabes isso? Consegues provar isso?" (Wood, 1998, p. 39). Estas perguntas levam o estudante a justificar e fundamentar o seu pensamento.

Em continuidade aos padrões de interação organizados nos três tipos referidos, Wood (1998) elaborou um quadro teórico (Tabela 1) que tem como base as diferentes situações de aprendizagem conceitual.

De acordo com a Tabela 1, duas dimensões estão presentes na estrutura, a responsabilidade pelo pensamento e a responsabilidade pela participação. Em relação à primeira, Wood (1998) salienta que, nas salas de aula em que ocorrem trocas entre professor e alunos, é possível observar três padrões de interação (ver as colunas Estudantes que explicam e Ouvintes - professor da Tabela 1).

A coluna intitulada Atividade Matemática descreve a natureza do pensamento matemático e do raciocínio dos alunos quando eles fornecem as suas explicações. Ainda, a coluna denominada Contexto de Discussão identifica a categoria geral para os três padrões de interação e discussão em sala de aula. Deve-se considerar que estes contextos são inclusivos, por exemplo, no contexto de discussão Inquirir, o aluno também vai contar como fez, enquanto que no contexto de discussão Argumentar, além de explicar, o aluno justifica matematicamente o que fez.

É possível perceber a correspondência entre os três padrões de interação e as oportunidades de os estudantes desenvolverem o seu pensamento matemático. "Ao se mover da categoria Relatar para Argumentar podemos ver que cada contexto de discussão cria exigências crescentes para o pensamento do aluno" (Wood, 1998, p. 39). Os questionamentos feitos pelo professor estão diretamente relacionados com as oportunidades de desenvolvimento das capacidades de pensamento matemático dos alunos. Além disso, a forma como os professores iniciam os seus alunos nas discussões bem como as rotinas de participação que eles proporcionam estão diretamente relacionados com um papel mais ativo desempenhado pelos alunos. É nesta perspectiva que Ponte et al. (2013) apresentam um quadro de análise das ações do professor na promoção do raciocínio matemático dos alunos, quando estes estão envolvidos em tarefas exploratórias (Ponte, 2005), já referido antes.

Neste artigo, os dados são analisados tendo em conta os padrões de interação definidos por Wood (1998) e as ações do professor apresentadas por Ponte et al. (2013).

 

Método

Esta investigação segue uma abordagem qualitativa com caráter interpretativo. Como referido, insere-se num projeto mais amplo que utiliza uma metodologia de investigação baseada em design (Ponte, Carvalho, Mata-Pereira & Quaresma, 2016).

O presente estudo analisou os padrões de interação de uma professora ao conduzir discussões com a sua turma do 2º ano de escolaridade quando resolviam uma tarefa matemática cujo objetivo era o de desenvolver a flexibilidade de cálculo em tarefas de adição e subtração.

A aula analisada foi realizada em 28 de outubro de 2015 numa turma de uma escola pública da periferia de Lisboa, composta por 26 alunos, cujos nomes foram alterados para garantir a confidencialidade. Os dados foram recolhidos através da observação participante das duas primeiras autoras, apoiada pelas gravações áudio/vídeo, que foram posteriormente transcritas. A tarefa desenvolvida na aula apresenta características exploratórias e consiste em distribuir aos alunos um conjunto de 18 cartões (Figura 1), que deveriam ser separados em dois grupos: o grupo das expressões cujo resultado era conhecido e o grupo com as expressões cujo resultado era desconhecido, mas cujos valores poderiam ser obtidos relacionando-os com os cartões conhecidos. As expressões eram depois registradas em duas colunas que constavam na folha do enunciado da tarefa distribuído previamente pelos alunos.

Os alunos estavam organizados em pares, o que permitiu a interação entre eles e, após a etapa de exploração autônoma realizada pelos pares, a professora conduziu uma discussão coletiva sobre a resolução da tarefa, cuja análise é o foco do presente artigo. Analisamos os padrões de interação evidenciados durante a discussão com a turma, tendo em conta os padrões de interação indicados por Wood (1998), bem como as ações do professor que estão presentes, de acordo com Ponte et al. (2013).

 

Resultados E Discussão

Para a apresentação dos resultados foram selecionados três episódios ocorridos durante a discussão coletiva, cuja análise se apresenta a seguir.

Episódio 1 - Cartão 100 - 48

São afixados todos os cartões no quadro. A professora inicia a discussão, pedindo para os alunos indicarem quais os cartões mais difíceis. Pede ao par Gil e Mónica para ir ao quadro.

Professora: Vamos ver se conseguimos, a partir dos outros cartões, ajudar...

Gil retira o cartão 100 - 48 como tendo sido difícil.

Professora: Qual é o cartão parecido com este que possa ajudar?

Gil retira o cartão 100 - 50 e coloca-o por baixo de 100 - 48 e Mónica retira 100 - 52, colocando-o por baixo.

Professora: Por que é que esse (referindo-se a 100 - 52) também pode ajudar?

(...)

Alexandre e Maria vão ao quadro para apresentarem as suas justificações.

Alexandre: Este (apontando para 100 - 50) ajuda mais do que este (apontando para 100 - 52).

Professora: Por quê?

Alexandre: Porque este (apontando para 50) é metade deste (apontando para 100).

Professora: Porque 50 é metade de 100. Quanto é que dá 100 - 50, Maria?

Maria: Porque 50 está mais perto de 48.

Professora: Então, quanto é 100 menos 50?

Alexandre: Este (apontando para 100) menos 50 vai dar 50.

Professora (registra "= 50" à frente do cartão 100 - 50): Como é que este pode ajudar a fazer 100 menos 48? Vamos pensar.

(...)

Renato (apontando para 100 - 48): Aqui é 52.

Professora: Por quê?

Renato: Porque 100 - 50 vai dar 50. E como 48 é menos 2, vai dar 52.

Em relação ao padrão de interação do Tipo 1, a professora faz questões que possam contribuir para os alunos descreverem como resolveram a situação. Por exemplo, ao questionar: "Qual é o cartão parecido com este que possa ajudar?"

A professora também aceita as respostas corretas fornecidas pelos alunos e elabora-as em forma de uma nova questão ("Porque 50 é metade de 100. Quanto é que dá 100 - 50?").

Mas há momentos em que a professora coloca questões que levam os alunos a explicarem e fornecerem razões que apoiam essa explicação e que os auxiliem a clarificar as suas ideias. Essas questões se relacionam com o padrão de interação do Tipo 2. Por exemplo, quando pergunta aos alunos "Por que é que esse (referindo-se a 100 - 52) também pode ajudar?", ou ainda, quando registra o resultado 50 à frente do cartão 100 - 50 e, em seguida, pergunta "Como é que este pode ajudar a fazer 100 - 48? Vamos pensar". Nestes casos, a professora espera que os alunos forneçam razões para suas respostas, ajudando os alunos a clarificarem as suas ideias. Em termos de ações da professora, esta começa por convidar os alunos a expressarem a sua proposta, mantendo a interação entre ela e os alunos através das ações de guiar/apoiar e de informar/sugerir (Ponte et al., 2013).

No trecho a seguir, a professora desafia o aluno, perguntando-lhe por que o resultado é 52, conduzindo-o a elaborar uma justificação para a sua resolução ou a sua maneira de pensar. Esse questionamento se enquadra no padrão de interação do Tipo 3. O aluno corresponde à pergunta da professora, num processo de justificação, pois ao explicar o porquê desse resultado, apresenta uma justificação recorrendo a conhecimentos anteriores (100 menos 50 é 50 e, ao tirar 2 do subtrativo, deve-se somar ao resultado) que permite mudar o valor epistêmico da narrativa.

Episódio 2 - Cartões 100 - 48 e 100 - 52

A professora retira os cartões 100 - 52 e 100 - 48 e coloca-os por baixo do cartão 100-50, registrando à frente os respetivos resultados (obtidos anteriormente), chamando a atenção dos alunos para a relação entre eles (Figura 2).

 

 

Professora: 100 menos 52, tenho de retirar ao 100 menos 50, menos 2 e ao 100 menos 48, como tiro menos 2 ao 50, o resultado é 48.

Paulo: A resposta que está aqui (apontando para a resposta 48), está aqui (apontando para o subtrativo de 100 - 48 e apontando para a resposta 52) está aqui (apontando para o subtrativo de 100 - 52).

Professora: Por que é que isso acontece?

Vários alunos vão ao quadro, mas não conseguem justificar.

Professora: Há coisas que são iguais.

Para sair do impasse, a professora pede outro exemplo em que isso aconteça, dizendo que podem ser quaisquer números.

Alexandre começa por escrever no quadro "100 - 51 = 47".

Professora: Ao 100, se tirar 51, fico com 47? (aponta para os números no quadro ao mesmo tempo que os verbaliza) Alexandre, se ao 100, tirar 50, fico com 50. Ao 100, se eu tirar 51, fico com 47, perco logo 3, daqui (aponta para 50) para aqui (aponta para 47)?

Paulo: Não, perdes 1. Dá 49.

Alexandre: Dá 49. (retifica)

(...)

Professora: E agora?

Paulo: 100 menos 49, igual a 51. (Alexandre registra no quadro - Figura 2)

Professora: Então, por que é que aparece trocado? Já perceberam que se pode trocar. Por quê? Por que é que se pode trocar?

Os alunos não respondem por um breve momento.

Professora: Se calhar, se pensarmos ao contrário, ajuda um bocadinho...

Luís (dirige-se ao quadro e aponta para os números quando os verbaliza): Porque 49 mais 51 dá 100 e 51 mais 49 dá 100. (aponta para os cartões de cima) 48 mais 52 dá 100. E 52 mais 48 dá 100.

(...)

Luís: E acontece em tudo.

No início do episódio 2, a professora organiza no quadro os cartões 100 - 52 e 100 - 48 de forma que seja possível aos alunos observarem a relação existente entre eles. Em seguida, ela dá uma explicação ("100 menos 52, tenho de retirar ao 100 menos 50, menos 2 e ao 100 menos 48, como tiro menos 2 ao 50, o resultado é 48") com o intuito de guiar/apoiar o pensamento do aluno. Essa ação se caracteriza como sendo do Tipo 1.Na sequência, o aluno consegue perceber a existência de uma relação, num processo de comparar, mas ainda não a justifica.

Com relação ao padrão de interação do Tipo 2, ele acontece quando a professora pergunta ao aluno "Por que é que isso acontece?", numa tentativa de que ele consiga dar razões que apoiem a sua ideia. Ainda, ao reparar que os alunos não conseguem apresentar uma justificação, solicita que os mesmos apresentem um exemplo em que a relação esteja presente, numa tentativa de os ajudar a clarificar as suas ideias, através de uma ação de informar/sugerir.

O aluno dá como exemplo o 100 - 49 e o 100 - 51, num processo de exemplificar. Entretanto, apresenta um resultado incorreto. Neste momento, a professora apresenta uma explicação, ajudando o aluno a reelaborar sua resposta. Tal ação se enquadra nas do Tipo 1.

Após a correção do aluno, a professora questiona a turma: "Então, por que é que aparece trocado? Já perceberam que se pode trocar. Por quê? Por que é que se pode trocar?". Mais uma vez, a professora desafia os alunos, conduzindo-os a elaborar uma justificação para a sua resolução ou a sua maneira de pensar, ações relacionadas com o padrão de interação do Tipo 3.

Em consequência desse conjunto de ações, Luís consegue apresentar uma justificação ("49 + 51 dá 100 e 51 + 49 dá 100. 48 + 52 dá 100. E 52 + 48 dá 100"), apoiada pelo processo de comparar, pois as duas situações são colocadas em paralelo, conduzindo ao processo de generalizar, quando o aluno afirma "E acontece em tudo", estendendo a relação observada nestes casos particulares para todos os outros nos quais essa estrutura esteja presente. Luís utiliza um exemplo genérico (Stylianides, 2009) para validar a sua afirmação.

Episódio 3 - Cartões 50 - 29 e 52 - 29

O par João e Paulo vai ao quadro. São colocados os cartões 52 - 29 e 50 - 29 como difíceis, relacionando-os com 50 - 30.

Professora: Quanto é 50 menos 30?

Paulo: É 20 (escreve no quadro à frente do cartão).

Professora: Quanto é 50 - 29? (Paulo registra 19 no quadro à frente do respetivo cartão) 19? (aproxima-se do quadro) 50 menos 30 é 20. Aqui tiras menos 1 (aponta para 29), tem de lá ficar. (Paulo retifica para 21)

Professora: O que é que se passa daqui (aponta para 50 no cartão 50 - 29) para aqui (aponta para 52)?

Paulo: É mais 2.

Professora: Numa subtração, nós já vimos que se queremos manter o resultado, o que eu faço no aditivo, tenho de fazer no subtrativo (aponta para os respetivos números). Se eu só estou a fazer no aditivo, o resultado vai mudar. Se eu estou a pôr mais 2, o que vai acontecer aqui (aponta para o local à frente do sinal de igual em 52 - 29)?

Paulo: É mais 2 ou menos 2?

Professora: Boa questão. Vocês já sabem que quando eu aumento 1 ao aditivo, tenho que aumentar 1 ao subtrativo. Não estou a mexer no subtrativo (aponta para os cartões 50 - 29 e 52 - 29), estou a mexer aqui (aponta para o aditivo nos dois cartões). Faço mais 2. Mas aqui (aponta para o subtrativo nos dois cartões) não faço mais 2. O que é que acontece na resposta? Vai mudar.

Paulo: É 23. (Paulo registra 23)

Professora: Se eu estou a pôr mais 2 aqui (aponta para 52), estou a tirar o mesmo (aponta para 29), fico com mais 2, é o que estás a dizer.

No episódio 3, a professora coloca questões de confirmação, como "Quanto é 50 menos 30?", e de focalização guiando os alunos para que estes digam os valores expressos nos cartões e para que estabeleçam relações de compensação. Essas ações se caracterizam por serem do Tipo 1.

Na sequência, a professora corrige o erro de Paulo, interrogando-o sobre o resultado 19, apresentado por ele, e apresenta a explicação conceptual da estratégia de compensação que fundamenta por que tem de ser 21 e não 19 (compensação com menos 1): se o subtrativo 29 é menos 1 do que 30, então tem de se compensar a diferença com mais 1 ("Aqui tiras menos 1, tem de lá ficar"). Ao apresentar a explicação, a professora fornece elementos para que os alunos reparem na relação numérica entre 52 e 50, comparando as semelhanças e diferenças entre as duas expressões 50 - 29 e 52 - 29.

Em seguida, a professora começa por mobilizar a propriedade da invariância do resto ("Numa subtração, nós já vimos que se queremos manter o resultado, o que eu faço no aditivo, tenho de fazer no subtrativo") para explicar a necessidade de compensar a diferença ("Se eu só estou a fazer no aditivo, o resultado vai mudar") fornecendo, novamente, uma explicação conceptual. Por fim, guia os alunos, colocando uma questão de focalização sobre essa compensação ("Se eu estou a pôr mais 2, o que vai acontecer aqui?"). Tais ações se enquadram na categoria Tipo 2.

A professora reage à dúvida de Paulo, sobre se compensaria adicionando ou subtraindo 2, valorizando a dúvida como oportunidade de clarificar a questão com todos os alunos da turma. Assim, apresenta as razões que explicam (explicação conceptual) por que ao transformar o aditivo com mais 2, tem de se compensar a diferença com mais 2, embora não explicite que a compensação será aditiva, para voltar a guiar os alunos com a questão de focalização "O que é que acontece na resposta?". Ao questionar os alunos e fornecer razões, a professora executa ações do Tipo 2.

Diante da resposta correta de Paulo (23), a professora valida-a e representa-a novamente, ampliando-a com as razões que fundamentam a compensação aditiva e de forma que todos os alunos possam ouvir, o que caracteriza ações do Tipo 1.

A forma como a professora promoveu a interação entre os alunos e consigo própria, percorrendo os diferentes tipos de interação definidos por Wood (1998), foi determinante para que os alunos progredissem na discussão da tarefa proposta. Com relação às ações do padrão de interação do Tipo 1 (Wood, 1998), destacamos que a professora colocou questões que contribuíram para que os alunos descrevessem como fizeram, convidando-os a se inserir na discussão; aceitou, validou e reelaborou respostas dadas pelos alunos, guiando e apoiando suas maneiras de pensar e, consequentemente, o seu raciocínio matemático.

No que diz respeito às ações do padrão de interação do Tipo 2 (Wood, 1998), a professora propôs questões que conduziram os alunos a fornecerem razões que apoiam as explicações dadas por eles; forneceu explicações conceituais que contribuíram para que os alunos fundamentassem suas explicações; organizou a informação no quadro de forma que os alunos pudessem perceber relações entre elas e; solicitou aos alunos exemplos que pudessem ajudar a clarificar suas ideias.

Com relação ao padrão de interação do Tipo 3 (Wood, 1998), a professora desafiou os alunos a elaborarem e a apresentarem justificativas para suas explicações. Destacamos que as ações do Tipo 1 e do Tipo 2 conduzem e suportam as ações do Tipo 3, ou seja, para que os alunos consigam apresentar justificações, várias ações anteriores são necessárias.

As ações da professora (Ponte et al., 2013), inicialmente convidando os alunos a partilhar as suas resoluções, explicando-as e conduzindo-os, depois, através de ações de guiar/apoiar e de informar/sugerir, mas, também, desafiando-os, parecem ter sido cruciais para que os alunos avançassem nos diferentes processos de raciocínio (Jeannote & Kieran, 2017).

Com o objetivo de ajudar a clarificar o pensamento dos alunos e a ampliar o seu raciocínio, a professora não se limita a pedir explicações, desafiando-os também a apresentarem justificativas ("Por que que é que ajuda?") para as escolhas feitas. Sugerindo a apresentação de um outro exemplo e, através do processo de comparar, conduz, ainda, o aluno ao processo de generalizar. Consegue, assim, o envolvimento dos alunos na discussão, promovendo simultaneamente o desenvolvimento do seu raciocínio matemático.

Conclusão, limitações e perspectivas futuras

O questionamento da professora, mantendo o constante envolvimento dos alunos, parece ter sido crucial para que estes avançassem nos diferentes processos de raciocínio matemático. Como afirmam Wood, Merkel e Uerkwitz (1996), os alunos aprendem melhor se estiverem em situações que lhes permitam interagir com os outros, no sentido de partilhar e comunicar as suas ideias sobre a Matemática. Para isso, os professores devem promover discussões na aula, num ambiente em que os alunos possam expressar livremente as suas ideias e queiram fazê-lo. Os diferentes tipos de interação apresentados por Wood (1998) mostraram ser fundamentais para a criação desse ambiente propício à discussão matemática.

Os dados analisados evidenciam que é possível envolver os alunos em processos de raciocínio matemático desde os primeiros anos de escolaridade, embora esses dados correspondam apenas à discussão de uma tarefa, inserida numa sequência de tarefas, eles são indicativos dessa possibilidade. Devem ser realizados estudos mais continuados que permitam evidenciar que é possível manter aquele envolvimento em todas as aulas de Matemática. As evidências apresentadas permitem ainda ilustrar a importância do papel da professora na forma como promove interações entre os alunos e com os alunos e em como os leva a viver diferentes processos de raciocínio matemático (Jeanotte & Kieran, 2017; Stylianides, 2009), tendo sido possível identificar esses processos apesar de se tratar de alunos do 2º ano de escolaridade.

É importante continuar a pesquisar de modo a criar conhecimento sólido sobre o como envolver os alunos em processos de raciocínio, um aspecto fundamental do currículo de Matemática, o que, como referido, passa pela criação de um ambiente de sala de aula onde as ações dos professores parecem ser cruciais. Essas pesquisas devem também ser realizadas em outros anos de escolaridade, nomeadamente no 1º ano, e mesmo na educação pré-escolar.

 

Agradecimento

Agradecemos à Capes pelo apoio recebido pela terceira autora na realização desta pesquisa, por meio do Programa PVEX (Programa de Professor Visitante no Exterior)/Processo nº 88881.170306/2018-01.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Lurdes Serrazina
lurdess@eselx.ipl.pt

Recebido em: 08/08/2019
Aceito em: 24/10/2019

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