SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número2Fatores biopsicossociais na história de vida de mulheres profissionais do sexo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.14 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.29223 

ARTIGOS

 

As experiências emocionais e o intelecto: Os aportes de Bion e Winnicott

 

Emotional experiences and the intellect: The contributions of Bion and Winnicott

 

Las experiencias emocionales y el intelecto: Los aportes de Bion y Winnicott

 

 

Eliane Teixeira RennóI; Alfredo Naffah NetoII

IPontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Email: elianerenno@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4462-4803
IIPontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Email: naffaneto@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1918-7878

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda como o intelecto interage com as experiências emocionais. Constata-se existir cada vez mais indivíduos, de diferentes faixas etárias, que priorizam a busca de informações instantâneas sem investir no desenvolvimento do pensar/conhecer, bem como indivíduos que se desenvolvem intelectualmente, porém não conseguem lidar de modo compatível com as experiências emocionais. Propomos, no presente trabalho, uma reflexão sobre os aspectos defensivos que permeiam o desenvolvimento emocional/intelectual segundo Bion e Winnicott.

Palavras-chave: Função alfa; Vínculo K/-K; Rêverie; Holding; Elaboração imaginativa das funções corporais.


ABSTRACT

This article discusses how the intellect interacts with emotional experiences. Evidence shows that there are more and more individuals from different age groups who prioritize the search for instant information without investing in the development of thinking / knowing, as well as individuals who develop intellectually, but cannot cope with the emotional experiences. In this paper, we propose a reflection on the defensive aspects that permeate the emotional / intellectual development according to Bion and Winnicott.

Keywords: Alpha function; K/-K bond; Reverie; Holding; Imaginative elaboration of bodily functions.


RESUMEN

Este artículo analiza cómo el intelecto interactúa con las experiencias emocionales. Existen evidencias de que hay cada vez más personas de diferentes grupos de edad que priorizan la búsqueda de informaciones instantáneas sin invertir en el desarrollo del pensamiento / conocimiento, así como personas que se desarrollan intelectualmente, pero no pueden hacer frente a las experiencias emocionales. En este artículo, proponemos una reflexión sobre los aspectos defensivos que impregnan el desarrollo emocional / intelectual según Bion y Winnicott.

Palabras clave: Función alfa; Vínculo K/-K; Ensueño; Retención; Elaboración imaginativa de funciones corporales.


 

 

O presente trabalho nasceu do interesse, surgido no início da atividade profissional de um dos autores do presente artigo, em investigar a dificuldade do aprender. Isso aconteceu, primeiramente, como professora do Ensino Fundamental, quando trabalhou com crianças de seis a dez anos de idade e; posteriormente, na clínica psicanalítica, ao acompanhar casos de crianças, adolescentes, vestibulandos, jovens iniciando o seu percurso profissional, e até adultos, que apresentavam dificuldades do aprender emocional que impediam seu percurso, mas que nada tinham a ver com seu desenvolvimento cognitivo. Motivou-se ainda mais ao aprofundamento dessa investigação a partir da proposta teórica de Bion sobre o pensar, o conhecer e o aprender com as experiências emocionais. Este artigo parte, então, das questões: Qual a relevância do pensar/conhecer nos dias atuais? Que implicações o desenvolvimento do intelecto promove na vida de um indivíduo?

Ainda neste aprofundamento, no seu percurso de mestrado, ao tomar contato com a perspectiva winnicottiana em relação ao tema, trouxe-lhe a possibilidade de um novo olhar para as questões do aprender, ou seja, os indivíduos que apresentam um desenvolvimento intelectual cindido da esfera afetivo-emocional que até pode lhes garantir um razoável desempenho profissional; no entanto, apresentam dificuldade acentuada em aprender com as experiências emocionais da vida.

Sendo assim, convidou o segundo autor deste artigo - por ele ser um estudioso da obra de Winnicott -, para escrevê-lo a quatro mãos, procurando, assim, discutir as convergências e as divergências entre esses dois psicanalistas da escola inglesa.

Cada um dos autores deste artigo manteve a sua própria perspectiva, mas ao reverem juntos o texto, alimentaram-se nas reflexões e aprofundamentos mútuos.

 

Os aportes de Bion

O vínculo K1 na clínica psicanalítica.

A clínica psicanalítica, com certa frequência, recebe crianças, pré-adolescentes e adolescentes em fase escolar, trazidos por seus pais, com queixas relacionadas a dificuldades do vínculo K.

A busca dos pais por atendimento psicanalítico para casos de dificuldades do aprender geralmente ocorre nos momentos mais críticos, quando já há o risco de reprovação escolar e já tentaram recuperar o filho (a) com várias formas de reforço escolar. Observa-se que os pais buscam pelo atendimento psicanalítico quando já estão muito angustiados e, muitas vezes, até resistentes em relação à constatação das dificuldades apresentadas pelo filho(a).

A dificuldade do vínculo K está presente nas crianças e adolescentes em queixas usuais como as de terem estudado muito e de saberem a matéria, mas na hora da prova não conseguirem resolver as questões propostas; a de ficarem muito ansiosos, pois "dá um branco". Aparecem vários sintomas somáticos e, ainda, há crianças que manifestam o desejo íntimo de ter nascido sabendo.

Entretanto, em pacientes jovens e adultos que apresentam dificuldades no vínculo K, suas queixas raramente são relacionadas a essa questão, no início do tratamento. As queixas baseiam-se nos sintomas de depressão, baixa autoestima, dificuldades acentuadas em lidar com os limites, rigidez quanto à aceitação de suas falhas, dúvidas quanto à escolha de uma profissão e dificuldades relacionais acentuadas no âmbito profissional.

Nesse aspecto, é muito significativa a contribuição de W.R. Bion em relação à questão do pensamento, principalmente em Uma Teoria sobre o Pensar (1962/1994). O autor utiliza as concepções expostas por Klein (1921/1996), que, influenciada por Ferenczi, faz referências sobre o conflito que na criança se estabelece entre o inato impulso epistemofílico, que busca o conhecimento, versus o sentimento de onipotência.

Bion (1959/1994) considera que a origem das perturbações no impulso de ser curioso pode estar ligada a dois fatores. O primeiro estaria ligado à disposição inata do indivíduo à destrutividade, ódio e inveja excessivos. O segundo estaria no ambiente que, na pior hipótese, nega ao indivíduo o uso de mecanismos de cisão e identificação projetiva2.

Para o autor, os aspectos acima citados podem levar à destruição do vínculo, do elo entre a criança e a mãe e, consequentemente, a uma grave desordem do impulso de ser curioso, do qual depende todo aprender, abrindo caminho para uma grave interrupção no desenvolvimento emocional.

O desenvolvimento emocional primitivo e a capacidade de pensar/ conhecer em Bion

A contribuição trazida por Bion (1962/1994) em Uma Teoria sobre o Pensar contraria a compreensão da gênese do processo de pensar. O autor inverte a noção convencional até então usada por Freud (1911/1996) de que há um aparelho mental onde se criam e organizam os pensamentos. Ao invés disso, propõe que os pensamentos é que levam à criação de um aparelho para pensar. O ponto de intersecção nos posicionamentos de Bion (1962/1994) e Freud (1911/1996) acerca dos pensamentos é justamente a frustração imposta ao bebê no atendimento de suas necessidades básicas. No entanto, o mais importante é a maior ou menor capacidade do ego do bebê para tolerar o ódio, que, por sua vez, também é determinado pelas características da personalidade e pelo quantum de pulsão de morte que é mobilizada por essas frustrações, para poder lidar com os pensamentos.

Bion (1962/1994) toma como modelo o vínculo do bebê com a mãe e a preconcepção inata do seio que o amamenta. Nesse contato, ocorrem experiências emocionais - tanto de ordem positiva como negativa.

Nas experiências emocionais de realização positiva, o bebê encontra a confirmação de que o seio, o objeto necessitado, está realmente presente e atende às suas necessidades, cujas experiências são denominadas de experiência emocional de satisfação. Ao contrário disso, nas experiências emocionais de realização negativa, o bebê não encontra um seio disponível para a sua satisfação. Essa ausência é vivenciada como a presença de um seio ausente. Nesse caso, a ausência do seio se torna um seio mau, dado que o bebê necessita dele e não o tem. Assim, a sua privação promove dor e é denominada de experiência emocional de frustração.

Quando o bebê opta por fugir da frustração por incapacidade de tolerá-la, ocorre um afastamento significativo dos fatos, pois o que deveria ser um pensamento torna-se um objeto mau, indistinguível, e que se presta somente à evacuação. Ou seja, o desenvolvimento do aparelho para pensar fica perturbado e dá-se o desenvolvimento hipertrofiado do aparelho de identificação projetiva.

Num desenvolvimento primitivo que foi permeado por muitas fraturas no aspecto emocional, cabe-nos indagar: seria esta a única forma do indivíduo se defender diante da situação do não seio? Existiriam outros mecanismos para evitar a frustração e a dor da ausência do seio?

O desenvolvimento da capacidade de tolerar a frustração é muito significativo, visto que, desde a mais tenra idade, é útil que se possa permanecer na experiência e dela se possa obter algum aprendizado.

Entretanto, para que isso ocorra, como enfatiza Bion (1962/1994), depende-se de um acesso à posição depressiva3, do contrário, haverá uma tendência à onisciência, ou seja, o indivíduo racionaliza que não precisa aprender, visto que já sabe tudo, ocasionando também uma hipertrofia da onipotência.

Nesse aspecto, podemos também indagar: a intolerância à frustração repercute apenas no aprendizado escolar/acadêmico ou também no aprender com as experiências emocionais que vamos tendo ao longo do desenvolvimento? Diante da intolerância à frustração, o que tornaria possível prosseguir numa experiência?

A intolerância à frustração costuma ser muito recorrente nas muitas situações em que o indivíduo se nega a qualquer tipo de aprendizado novo, devido ao inevitável contato com a frustração que estas o remetem.

Pode-se também destacar que a presença da cisão e da identificação projetiva sinaliza uma mente fragmentada, na qual as diversas instâncias psíquicas não se comunicam, o que prejudica a capacidade de simbolizar. A limitação na capacidade de criar símbolos e a consequente capacidade de pensar as emoções de forma mais integrada gera uma atmosfera interna de vazio, de falta de sentido, o que vem sinalizando, nos dias atuais, à acentuada falta de sentido para a vida.

Depreende-se disso que, nos diversos âmbitos da vida cotidiana, bem como nas várias faixas etárias, as pessoas não sofrem somente devido aos traumas, repressões e carências; elas sofrem por falta de experiências emocionais que possibilitem um desenvolvimento mental e emocional mais saudável.

A função alfa e o vínculo K /-K

A gênese do conhecer, em Bion, refere-se ao fato de que os pensamentos, as emoções e o conhecimento são indissociáveis. Bion (1962/1991), referindo-se ao aprender com a experiência, trata, a partir do seu encontro com Klein, de um tema central para ambos, ou seja: pensamento e experiência emocional. Enquanto Klein dá ênfase ao emocional, Bion enfatiza o pensamento.

Para Bion (1962/1994), os pensamentos são indissociáveis das emoções, pois ambos se originam a partir de uma reação à experiência emocional primitiva que decorre da ausência do objeto (não-seio), promovendo, portanto, um pensamento. Sendo assim, torna-se imprescindível haver uma mente que possa dar sentido e significado às experiências emocionais.

Neste aspecto, pareceu conveniente para Bion (1962/1991) supor que existe uma função alfa que integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções, sendo essa a primeira função que existe predominantemente no aparelho psíquico. O autor descreve a função alfa como um instrumento fundamental de trabalho na análise dos distúrbios do pensamento.

A função alfa é a que transforma os dados sensoriais em elementos alfa, fornecendo à psique material para pensamentos oníricos, úteis às seguintes finalidades: elaboração de pensamentos inconscientes na vigília, produção de sonhos, memória, formação de símbolos, funções intelectuais e a capacidade de pensar.

O autor preocupa-se em tratar as emoções como parte essencial da vida mental, visto que, desde o nascimento, o indivíduo está exposto às mais variadas experiências e à possibilidade de aprender com elas ou não. De acordo com Bion (1962/1991), nos casos em que a capacidade de aprender com a experiência não se forma, ela é substituída pela onipotência e pela onisciência. Assim, perdem-se as diferenças entre o verdadeiro e o falso e se caminha para uma relação moral com a realidade, dando privilégio ao certo e ao errado.

Para Bion (1962/1991), a função de pensar não é o mesmo que a de saber (possuir pensamentos ou conhecimentos), mas ela é resultante de uma disposição do indivíduo para saber o seu não saber, pois pensar consiste em ter problemas a se solucionar e não somente em ter soluções para esses problemas.

O pensamento é tido como doloroso desde a sua origem mais primitiva. Entretanto, o primeiro pensamento útil (elemento alfa) surge quando o bebê aceita a dor da frustração, ao invés de simplesmente evacuar - por meio da identificação projetiva - a presença interna do não-seio sob a forma de elementos beta4. O pensamento é sempre doloroso por levar o indivíduo a ver a situação como ela é e não como gostaria que ela fosse, ou seja, abandonar o princípio de prazer é doloroso e pensar significa optar pelo princípio de realidade.

A importância dada por Bion (1962/1991) à função alfa para o desenvolvimento do aprender, que ocorre ao longo da vida de um indivíduo, é muito significativa, visto que os elementos alfa determinam uma exitosa evolução e utilização dos pensamentos em contrapartida aos elementos beta, que se prestam unicamente a serem evacuados.

A tendência humana é buscar situações que conduzam à zona de conforto: um indivíduo prefere interagir com algo já conhecido que ele administra bem a realizar uma atividade recreativa, esportiva ou mesmo profissional, na qual sinta dificuldade, exceto se conseguir olhar para os desafios e se mostrar curioso para superá-los.

Bion (1962/1994) ainda esclarece que o eixo central, tanto na formação do pensamento como na formação do conhecimento, é a maior ou menor capacidade do indivíduo de tolerar as frustrações nos momentos de privações. Um indivíduo pode fugir das frustrações criando mecanismos para não as conhecer. Isso evita o problema, mas não a angústia, impedindo-o de buscar uma solução, ou ao contrário, ele pode aprender a modificar a realidade por meio da atividade do pensar e do conhecer e, assim, aprender com a experiência.

É possível considerar também que o indivíduo que, desde a mais tenra idade, não adquiriu uma alfabetização emocional, desconhece o caminho real que o leva ao conhecer/aprender. Caso ainda não tenha aprendido a se manter investido o suficiente no vazio (frustração do não-seio) para alcançar o saber, poderá, diante de uma situação desafiadora, interromper o processo do aprender com a experiência, provavelmente da mesma forma como o fez, anteriormente, diante das situações do não-seio. Entretanto, vale questionar: existem indivíduos que manifestam defesas diferentes mediante a constatação do vazio (frustração do não-seio)?

Nos casos em que ocorre uma falha no vínculo inicial, devido à condição rudimentar do bebê, ele pode viver a experiência (do não seio) como uma ameaça, um medo de morrer. Nesse caso, ao invés desse medo poder ser suportável para ser modificado e reintrojetado, será um medo indefinível, inominável, um estado psíquico denominado por Bion de terror sem nome. Cabe-nos também pensar no vínculo (-K)5 que pode ser observado nos casos em que o ego não quer conhecer. Desta forma, o indivíduo substitui o enfoque científico aceito, pelo de uma moral de seu superego muito rígido - que está acima de todos - e, com isso, não desenvolve a capacidade de discriminação entre verdades, falsidades e mentiras, criando também hipertrofias dos mecanismos defensivos ligados à negação.

Bion (1962/1991) nos adverte ainda sobre outro aspecto em relação ao vínculo K. O autor considera o elemento dor inerente ao aprender e ainda enfatiza que é muito significativa a diferença entre o paciente evacuar ou enfrentar a dor psíquica, uma vez que toda mudança no psiquismo durante os processos do aprender (e o analítico é um deles), vem acompanhada de certo grau de dor.

Assim sendo, o que poderia ser feito para que a travessia do aprender com a experiência seja tolerável? Que sinais de fuga podem ser percebidos que inviabilizam o aprender com a experiência emocional?

Conforme já vimos anteriormente, nos casos em que a capacidade de aprender com a experiência não se forma, ela é substituída pela onipotência e pela onisciência, perdendo-se assim as diferenças entre o verdadeiro e o falso ao se caminhar para uma relação moral com a realidade, dando privilégio ao certo e ao errado. No espaço em que haveria disponibilidade para conhecer a verdade, fica um estado de confusão; em vez de um superego relativamente saudável, instala-se um superego rígido: o indivíduo parte da ideia de que ele tudo sabe, tudo pode e tudo controla; ele faz suas próprias leis e espera que o mundo se curve a elas. Com a pretensão da onisciência, nega-se a realidade que, seguramente, faz com que a moralidade, que nessas condições se forma, seja uma função extremamente nociva (e, segundo Bion, ancorada na psicose).

Ao constatar os agravos ao desenvolvimento da capacidade de pensar face ao grande bombardeio das identificações projetivas, Bion (1962/1994), movido pela necessidade de contê-las, introduziu a noção de capacidade de rêverie por parte da mãe real. Isso significa que a consciência rudimentar do bebê (limitada consciência, para Freud), não está vinculada a um inconsciente, ou seja, todas as impressões têm valor igual com relação ao self, o que significa o mesmo que serem todas conscientes.

A capacidade de rêverie da mãe é o órgão receptor da colheita de sensações que o bebê experimenta em relação a si mesmo pelo seu consciente. A mãe capta o que se passa com seu filho, não tanto pela atenção provinda dos órgãos dos sentidos, mas muito mais pela intuição, ou seja, uma menor concentração da mãe no plano sensorial possibilita maior afloramento da capacidade intuitiva.

Entende-se, nesse caso, a importância fundamental dada à capacidade de rêverie da mãe externa real, pois, se ela for capaz de conter as angústias do bebê e, ao mesmo tempo, prover as necessidades que o seu filho tem de leite, calor, paz, amor, dentre outras, tanto as realizações positivas como as negativas serão utilizadas para o aprender com a experiência, que requer o enfrentamento e a modificação da dor para que ocorra o desenvolvimento mental.

Podemos inferir que, caso a mãe consiga aceitar com equilíbrio o temor do bebê, fará com que este sinta que está recebendo de volta a sua própria personalidade amedrontada, porém de um modo tolerável. Dessa forma, gradativamente, os temores passam a ser manejáveis pelo bebê.

Depreende-se disso que a função alfa é necessária para o pensar consciente, para o raciocínio, bem como para relegar o pensar ao inconsciente e, quando necessário, aliviar o consciente da sobrecarga do pensamento, aprendendo uma habilitação. Os ataques de ódio e inveja à função alfa impossibilitam o indivíduo de ter contato consciente consigo mesmo e com outrem, como objetos vivos. Nesse aspecto, denota-se a importância da rêverie materna e da função alfa para que o bebê possa desenvolver a capacidade de pensar, aprender com a experiência e tornar-se, no futuro, um indivíduo mais saudável.

 

Os aportes de Winnicott

A função intelectual em Winnicott.

Em primeiro lugar, é preciso entendermos que, para Winnicott, a função intelectual ou mental - termos que, para ele, são sinônimos6 - desenvolve-se, primeiramente, como uma forma de o bebê poder prever e de alguma maneira, defender-se das falhas ambientais de adaptação materna às suas necessidades. Winnicott diz:

Poderia ser dito que, no início, a mãe necessita adaptar-se quase exatamente às necessidades do infante, a fim de que a personalidade do mesmo se desenvolva sem distorções. Entretanto, ela pode falhar na sua adaptação, e falhar cada vez mais, porque a mente e os processos intelectuais do infante são capazes de levar em conta e de permitir falhas de adaptação. Desta forma, a mente é aliada da mãe e assume parte da sua função. (...) É função da mente catalogar eventos, acumular memórias e classificá-las, porque a mente do infante está apta a fazer uso do tempo como medida e também de mensurar o espaço. A mente também relaciona causa e efeito (Winnicott, 1965, p. 7).

Entretanto, essa capacidade da mente do bebê de assumir parte das funções maternas de adaptação é limitada; se são ultrapassados certos limiares de tolerância do bebê - ou seja, se as falhas ambientais ultrapassam um nível suficientemente bom -, a mente infantil pode se hipertrofiar no seu desenvolvimento e se cindir do restante da personalidade do bebê, como forma de protegê-lo das falhas ambientais. É o que Winnicott denomina "intelecto cindido" (split-off intellect).

Para que isso não aconteça, o bebê necessita de uma mãe suficientemente boa, ou seja, capaz de se identificar com as suas necessidades e atendê-las a tempo. É preciso considerar que, para Winnicott, o bebê recém-nascido possui uma identidade e uma experiência de mundo totalmente evanescentes, vivendo momentos desconexos no tempo e sem qualquer alocação espacial fixa7. Se sofre integrações no tempo e no espaço nos períodos excitados - quando algum impulso instintual aflora -, trata-se de um mínimo de integração psicossomática necessário para que possa ter algum movimento dirigido ao seio, com a finalidade da satisfação instintual. Mas, terminada a mamada, volta a um estado de fusão com o ambiente. E isso funciona assim até que, gradativamente, o processo de amadurecimento infantil venha a produzir uma integração do self no tempo e no espaço (isso, em torno de 1 ano de idade). Nesse início, pois, qualquer continuidade de ser do bebê é propiciada pelo holding e pelo handling (sustentação e manuseio) maternos, nesse universo totalmente fragmentado.

Quando o intelecto infantil necessita substituir a ausência dos cuidados maternos (ou de outro cuidador qualquer), ele necessariamente precisa se hipertrofiar e se cindir, devido às razões já expostas.

A pessoa com o intelecto hipertrofiado e cindido funciona com a função intelectual totalmente a serviço de mecanismos de defesa, dissociando-se da esfera dos afetos e emoções - portanto, do corpo, que é a sua sede - e filtrando o mundo subjetivo e objetivo nos seus aspectos puramente racionais, como forma de proteger o self dos impactos emocionais originários de ambos. Funciona, pois, numa função de eterna vigilância, que pode beirar a paranoia; nesse estado, o indivíduo vive em tensão contínua, não consegue nunca relaxar e está sempre em estado de alerta.

Além disso, a dissociação psicossomática produz uma interrupção da elaboração imaginativa das funções corporais8, na medida em que encapsula e encobre o self, dificultando ou mesmo impedindo que determinadas sensações, tensões instintuais e emoções possam ser elaboradas e ganhar algum sentido psíquico; nesse sentido, não podendo ser apropriadas - porque não elaboradas -, elas podem ser vivenciadas como "corpos estranhos" invadindo e corrompendo o corpo: é o advento da hipocondria.

Além disso, outras capacidades humanas, como a de permanecer quieto e concentrado - tão necessária à aprendizagem escolar -, pode não chegar a se constituir, se a fragmentação do universo infantil não tiver uma continuidade-de-ser garantida pelos cuidados maternos. Winnicott diz:

A criança cujo padrão é o da fragmentação da linha de continuidade de ser tem uma tarefa de desenvolvimento que é, desde o início, sobrecarregada na direção da psicopatologia. Assim, pode haver um fator muito precoce (datando dos primeiros dias ou horas de vida) na etiologia da inquietude, da hipercinesia e da desatenção (posteriormente denominada incapacidade de se concentrar) (Winnicott, 1962/1990, p. 60-1).

Em paralelo com as disfunções do intelecto, temos o seu funcionamento saudável, sempre que ele não necessita se hipertrofiar e se cindir, podendo contar com a ajuda de uma mãe suficientemente boa. Nesse caso, ele se desenvolve em sintonia com a unidade psicossomática do indivíduo, articulado às suas emoções e afetos, podendo garantir que o mesmo possa aprender com a experiência, ao longo da vida.

 

O desenvolvimento do intelecto: convergências e diferenças entre Bion e Winnicott.

O intelecto e seu desenvolvimento ocupa lugares bastante diferentes na teoria de Bion e na teoria de Winnicott, conforme pudemos ver ao longo desse percurso, muito embora os dois autores tenham um ponto comum de convergência, qual seja: ambos consideram que um intelecto funcionando dissociado da esfera afetivo-emocional constitui uma patologia grave e impede um aprendizado a partir da experiência.

Entretanto, as condições para que essa patologia não venha a acontecer são bastante diferentes em ambas as visões.

Como um bom descendente da linhagem kleiniana, Bion considera os fatores constitucionais do bebê numa escala muito maior do que Winnicott, para quem o principal fator etiológico da patologia se encontra nas condições ambientais.

Explicando melhor: para Bion, uma disposição inata de maior destrutividade e inveja - associada a uma menor resistência à frustração9 - pode produzir ataques maciços ao seio materno e mesmo à capacidade de rêverie da mãe, diminuindo o seu valor na constituição do psiquismo infantil. Entretanto, não podemos negar que Bion valoriza, também, o ambiente e a função materna, já que, segundo a sua concepção, o bebê recém-nascido não dispõe da função alfa e depende de que um adulto - no caso, a mãe -, venha a desempenhá-la para ele, podendo assim digerir e transformar os dados sensoriais brutos em componentes utilizáveis nas diversas operações psíquicas. Se essa operação correr bem - considerando todos esses fatores, constitucionais e ambientais -, o bebê terá condições intelectuais sadias e um aparelho de pensar sintonizado à esfera afetivo-emocional.

Winnicott, por sua vez, não desconsidera a herança constitucional: ele jamais negaria, por exemplo, que um bebê possa ser mais voraz do que outro; que possa necessitar de um tempo maior de mamada para se saciar ou mesmo que possa ser mais agitado e agressivo. Entretanto, é difícil saber o que vem da constituição biológica e o que resultou das condições intrauterinas, das disposições emocionais da mãe ao longo da gravidez etc. O que importa, para ele, é que - quaisquer que sejam as suas características próprias - o bebê possa encontrar uma mãe suficientemente boa, capaz de cuidados suficientes para que e função intelectual nascente não venha a se hipertrofiar e a se cindir do restante da personalidade. Nessa direção, é preciso frisar que mãe suficientemente boa significa precisamente isso: que os seus cuidados são suficientes para que o bebê não forme defesas psicóticas (como a cisão, por exemplo)10. Além disso, Winnicott afasta-se da linhagem kleiniana, propondo que não existe inveja inata, mas que a inveja do bebê está sempre associada ao que ele nomeia como mãe "tantalizadora", que é aquele tipo de mãe que oferece uma boa adaptação ao bebê, de início, mas - por alguma razão -- a retira logo em seguida (Winnicott, 1959/1997, p. 445).11

Mas, além da importância maior ou menor delegada à constitucionalidade, Bion e Winnicott também divergem no que consideram a questão fundamental nos tipos de cuidado materno. Para Bion, o mais importante é que os dados sensoriais do bebê possam sofrer a ação transformadora da função alfa, para que ele possa vir a constituir um aparelho de pensar saudável. E, nesse caso, a mãe tem um papel mais ativo, já que é ela quem tem a função de realizar essa tarefa para o bebê, que é visto como não possuindo condições para tal.

Para Winnicott, entretanto, a questão fundamental dos cuidados maternos é garantir uma continuidade-de-ser para o bebê, sustentando-o ao longo do tempo e do espaço (holding e handling), para que ele possa, gradativamente, sair do universo fragmentado em que vive e venha a se integrar num self unitário. Nesse sentido, a formação do intelecto ocorre espontaneamente, em sintonia com a constituição psicossomática do indivíduo (desde que o bebê não possua qualquer disfunção cerebral), e a mãe tem um papel menos ativo, já que não lhe cabe um papel de intérprete, prioritariamente, mas de sustentadora da elaboração imaginativa das funções corporais, que é desempenhada pelo próprio bebê.

Entretanto, a que pesem as diferenças entre os dois autores, não podemos negar a importância da contribuição de ambos nessa intrincada tarefa de desvendar os mistérios que envolvem a constituição, seja de um intelecto sadio e capaz de aprender com a experiência, seja das disfunções intelectuais que dificultam ou impedem essa capacidade.

 

Referências

Bion, W. R. (1991). O Aprender com a Experiência. (P. D. Corrêa, trad., pp. 25-63). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Ataques à ligação. In Wilfred R. Bion Estudos psicanalíticos revisados - Second thougts.(W. M. de M. Dantas, trad., pp. 109-114). 3ª ed. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1959)        [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Wilfred R. Bion Estudos psicanalíticos revisados - Second thougts. (W. M. de M. Dantas, trad., pp. 127-137). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Freud, S. (1996). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Sigmund Freud: Obras psicológicas completas de Edição Standard Brasileira (J. O. de A. Aguiar, trad.,Vol. XII, pp. 233-244). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Hinshelwood, R. D. (1992). Dicionário pensamento kleiniano (J. O. de A. Abreu trad., p.152). Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul.         [ Links ]

Klein, M. (1996). O desenvolvimento de uma criança. In Melanie Klein Amor, culpa e reparação e outros trabalhos: 1921-1945. Obras completas (A. Cardoso, trad., Vol. I, pp. 81-99). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2012). Sobre a elaboração imaginativa das funções corporais: corpo e intersubjetividade na constituição do psiquismo. In: Coelho Jr., N. E., Salem, P., & Klatau, P. (orgs.). Dimensões da Intersubjetividade. (pp. 39-56), São Paulo: FAPESP/Escuta.         [ Links ]

Rennó, E. T. (2018). Por trás do não aprender: Um olhar psicanalítico. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Universidade Pontifícia Católica de São Paulo, São Paulo, SP.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1965). The Family and Individual Development. London/New York: Routledge.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Ego integration in child development. In Donald W. Winnicott The Maturational Processes and the Facilitating Environment (pp. 56-63), London: Karnac (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1997). Review of Envy and Gratitude. In Donald W. Winnicott Psycho-Analytic Explorations. (C. Winnicott, R. Shepard, M. Davis, ed., pp. 443-446) Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press (Trabalho original publicado em 1959).         [ Links ]

Zimerman, D. E. (2004). Bion da teoria à prática: uma leitura didática. Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Eliane Teixeira Rennó
elianerenno@yahoo.com.br

Recebido em: 10/12/2019
Aceito em: 23/01/2020

 

 

1 Vínculo K - Denominado por Bion (1962/1991), é o vínculo entre os pensamentos e as emoções, sempre presente em qualquer relação humana. A função K (inicial de knowledge) não se refere à posse de um conhecimento ou saber, mas sim ao enfrentamento do não saber, de modo que o saber resulte da difícil tarefa do descobrir e do aprender com as experiências vividas, quer sejam as boas ou, principalmente, as más.
2 Essa questão será mais bem explicitada no desenvolvimento do artigo. Por trás do não aprender: Um olhar psicanalítico. Dissertação de mestrado em Psicologia Clínica pelo Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP. (Rennó, 2018, p. 21)
3 Posição depressiva: A confluência de ódio e amor na direção do objeto dá origem a uma tristeza particularmente pungente, denominada por Klein de "ansiedade depressiva" (ou "anseio", "anelo" [pining]). A posição depressiva expressa a forma de culpa mais arcaica e angustiada, devido a sentimentos ambivalentes para com um objeto. [...] A ansiedade depressiva é o elemento decisivo dos relacionamentos maduros, a fonte dos sentimentos generosos e altruístas que são devotados ao bem-estar do objeto. (Hinshelwood, 1992, p. 152)
4 Os elementos beta são as preconcepções, ou seja, as experiências sensoriais e emocionais muito primitivas, as quais adquirem uma natureza de coisas em si mesmas, concretas, porquanto não puderam ser pensadas até um nível de conceituação ou de abstração, como é o destino dos elementos alfa. (Zimerman, 2004, p. 131)
5 Vínculo (-K) - Termo designado para evitar a dor das verdades intoleráveis, ou para não enfrentar o medo do desconhecido, ou para não transgredir as proibições. (Zimerman, 2004, p. 161)
6 Nesse sentido, Winnicott diferencia psique de mente, utilizando o último termo como sinônimo de intelecto, já que, para ele, a mente se forma como uma área diferenciada do psicossoma, destinada às funções intelectuais.
7 Nesse período, a identidade do bebê pode assumir a forma do seio, quando mama; a forma do colo da mãe, quando é embalado por ela; a forma expressa no reflexo do olhar materno e assim por diante. Ou seja, adquire a forma e os contornos das diferentes partes do ambiente que o envolvem e sustentam.
8 A elaboração imaginativa das funções corporais designa, para Winnicott, a função constituinte da psique, que vai se processando, desde o início, totalmente apoiada nas funções corporais. Com o desenvolvimento do processo de amadurecimento infantil, ela virá a constituir uma unidade psicossomática, formada pela alocação da psique no corpo (processo de personalização). De início, entretanto, a elaboração imaginativa é uma função bastante precária, funcionando como doadora de sentido a funções básicas: por exemplo, o bebê pode sentir a mamada como satisfatória ou insatisfatória; o colo da mãe como seguro ou inseguro, ou seja, como suficiente ou insuficientemente bons. Com o passar do tempo, a elaboração imaginativa se complexifica, vindo a formar as fantasias e sonhos (cf., nesse sentido, Naffah Neto, 2012).
9 Pode-se considerar que esses fatores constitucionais envolvem as constelações singulares na relação disjuntiva entre as pulsões (ou instintos) de vida e de morte, presentes em cada bebê, conforme Bion afirma em vários artigos.
10 É bastante comum uma compreensão errônea desse conceito, que caminha no sentido de uma idealização da função materna, chegando à pretensão de conceber uma mãe sem falhas, o que, obviamente, é impossível.
11 O termo "tantalizadora" está associado ao mito grego de Tântalo que, por ter desafiado os deuses, recebeu como castigo ser lançado ao Tártaro, onde havia árvores frutíferas e nascentes de água. Mas, cada vez que ele esticava a mão para pegar uma fruta ou um pouco de água, a árvore e a nascente se distanciavam dele, impedido que ele se saciasse. O sofrimento de Tântalo remete, pois, à impossibilidade de desfrutar de algo presente, mas inalcançável.

Creative Commons License