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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.14 no.3 Juiz de Fora dez. 2020

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.30540 

Fernando Pessoa: precursor das inteligências múltiplas

 

Fernando Pessoa: precursor of multiple intelligences

 

Fernando Pessoa: precursor das inteligencias múltiples

 

 

José Aparecido da SilvaI; Rosemary Conceição dos SantosII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. E-mail: jadsilva@ffclrp.usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1852-369X
IIUniversidade de São Paulo - USP. E-mail: cienciausp@usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7304-0511

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata das relações passíveis de serem estabelecidas entre a teoria da inteligência e a prosa de Fernando Pessoa. Para tanto, aborda como argumentação e inteligência se relacionam cientificamente e são trabalhadas pelo autor na elaboração de sua obra em prosa. Destaca características peculiares da atividade em prosa em tempos da Geração de Orpheu que fundamentam a apresentação das formas de inteligência no autor, a saber, Inteligência Filosófica, Inteligência Científica e Inteligência Crítica. Na sequência, objetiva discorrer sobre a possibilidade de Pessoa ser um precursor das inteligências múltiplas

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Prosa; Inteligência; Raciocínio; Precursor.


ABSTRACT

This article deals with the relations that can be established between the theory of intelligence and the prose of Fernando Pessoa. To this end, it discusses how argumentation and intelligence are scientifically related and are worked on by the author in the elaboration of his prose work. Addresses peculiar characteristics of prose activity at the time of the Generation of Orpheu, proceeding to the presentation of forms of intelligence, namely, philosophical intelligence, scientific intelligence and critical intelligence. In the sequence, objective deals about the possibility of Pessoa being a precursor of multiple intelligences.

Keywords: Fernando Pessoa; Prose; Intelligence; Reasoning; Precursor.


RESUMEN

Este artículo trata sobre las relaciones que pueden establecerse entre la teoría de la inteligencia y la prosa de Fernando Pessoa. Com este fin, analiza cómo la argumentación y la inteligencia están cientificamente relacionadas y el autor las trabaja en la elaboración de su trabajo em prosa. Aborda las formas de inteligencia, a saber, inteligencia filosófica, inteligencia científica e inteligencia crítica cómo características peculiares de la actividad en prosa en el momento de lá generación de Orpheu. En la secuencia, trata la possibilidad de Pessoa sea un precursor de inteligencias múltiples.

Palabras clave: Fernando Pessoa; Prosa; Inteligencia; Razonamiento; Precursor.


 

 

Argumentação e inteligência

Em Ferreira (1975, p. 131), o termo argumento é definido, de modo geral, como um raciocínio pelo qual se tira uma consequência ou dedução. Nos contos de Fernando Pessoa (1995), é a forma pela qual personagens tentam provar ou refutar determinadas teses, buscando convencer outras personagens da verdade ou falsidade que identificam nas mesmas. Prática antiga, a natureza argumentativa conheceu nos sofistas, bem como em Platão e Aristóteles, esmerado interesse sobre sua validade ou ausência de validade. Neste contexto, identificando que nem todo argumento era de caráter lógico-formal, tratou distintamente os argumentos estritamente lógicos dos argumentos dialéticos e, estes, dos meros raciocínios, a partir de opiniões vulgarmente aceitas.

Por sua vez, em Bueno (1974, p. 1954), o termo inteligência é definido como intelecto, faculdade de compreender as ideias e as relações entre elas existentes. Em outras palavras, como acume intelectual, penetração do espírito, compreensão e conhecimento. Sendo necessário primeiramente compreender fatos e ideias para raciocinar sobre os mesmos e, só então, argumentar sobre, percebe-se a ínfima relação que se estabelece entre argumentação e inteligência.

Nos contos de Fernando Pessoa (1995), à argumentação e inteligência das personagens é acrescida a capacidade de refletir e analisar determinadas situações através de múltiplas perspectivas. Prática, portanto, de um tipo de inteligência, a inteligência reflexiva, na qual capacidades cognitivas como atenção, dedução, razão, memória, lógica, erudição e manipulação de conceitos são colocadas em prática, de modo que refletir viabiliza se abstrair de si para melhor observar ações e conceitos que, debatidos consigo mesmo e com outros personagens, levam a tomadas de decisão e retificações que reorientam muitas das práticas humanas (Lópes & Machluk, 2015).

Em Silva (2004) e Manktelow (2012), a inteligência, entendida como uma das formas mais importantes mediante a qual julgamos uns aos outros, é um tema fundamental e carregado de emotividade. Significando diferentes coisas para diferentes pessoas, o debate sobre si e sobre sua mensuração focaliza a questão de se é útil, ou significativo, avaliar as pessoas em função de uma simples e única dimensão de competência cognitiva. Em outras palavras, indaga se há realmente uma habilidade mental geral (g), que nós comumente denominamos de inteligência, e o quão importante ela é para as diferentes arenas práticas da vida. Ainda segundo Silva (2004), testes de habilidades mentais invariavelmente apontam a existência de um fator global que permeia todos os aspectos da cognição. E este fator parece ter considerável influência sobre as qualidades práticas da vida de uma pessoa.

Nos contos de Pessoa, o ideal, implícito em muitas críticas populares das personagens acerca da inteligência, é que todas as pessoas são nascidas igualmente hábeis e que as desigualdades sociais resultam apenas do exercício de privilégios injustos. Esta reflexão sobre a realidade, em Silva (2004), encontra eco no fato de a mãe natureza não ser igualitária, fazendo as pessoas serem, de fato, desiguais no potencial intelectual. Em outras palavras, do mesmo modo que pessoas nascem com diferentes potenciais para altura, atração física, talento artístico, força atlética e outros traços, elas o nascem também para a capacidade intelectual. Embora experiências subsequentes possam modelar este potencial, nenhuma quantidade ou variedade de engenharia social pode tornar indivíduos com aptidões mentais amplamente divergentes em intelectualmente iguais. Citando Thomas Jefferson, "nada é tão desigual como o tratamento igual de pessoas desiguais".

Por sua vez, em maio de 1922, em Lisboa, no número de estreia da revista Contemporânea, dirigida pelo arquiteto, artista gráfico, cenógrafo e pintor português José Pacheco, veio a lume o único conto que Fernando Pessoa conseguiu publicar em vida: O Banqueiro Anarquista. Nele, valendo-se de um oximoro, figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem se excluir mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão inicial, o autor, de imediato, fornece um retrato inquietante da personagem banqueiro: um burguês monopolizador e fumante convicto que, ciente do poder do capital sobre o homem, busca subjugar anarquicamente este poder através da diminuição de sua influência na existência e decisões humanas até rejeitá-las por completo.

O conto, no formato de diálogo socrático, narrado ora em primeira pessoa por um amigo interlocutor, ora pelo próprio banqueiro, descortina a tentativa deste último de esclarecer ao amigo narrador tal contradição. Ao amigo cabem as perguntas e ao banqueiro, as explicações baseadas em perspectivas as mais racionais possíveis:

- Essa é boa! Você anarquista! Em que é que você é anarquista?... Só se você dá à palavra qualquer sentido diferente... [...]

- O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida como a dos tipos dos sindicatos e das bombas - isso é verdade. Mas é a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. [...] Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles, e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente.

- Mas como concilia você a sua vida - quero dizer a sua vida bancária e comercial - com as teorias anarquistas? (Pessoa, 1995, pp. 659-660).

- Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons naturais, que o meu nascimento me não podia tirar (Pessoa, 1995, p. 660).

Nota-se, nos excertos acima, que o autor propõe a existência de gradação na inteligência, bem como a existência de uma inteligência geral criando impacto na situação econômica das pessoas e, consequentemente, com algumas características podendo ser moldadas pela interação com o ambiente. Entretanto, em se tratando de inteligência geral, tanto o autor quanto pesquisadores, de modo geral, sabem-na pouco maleável, cabendo à psicometria verificar o papel da mesma na explicação das diferenças individuais.

Historicamente, até o início da década de 1990, a psicometria trazia, em seu bojo, modelos diversos sobre inteligência. Entretanto, o fato de estes se contradizerem, ora pela quantidade argumentada de níveis de habilidades cognitivas, ora pelo reconhecimento da presença do fator geral, fez com que um consenso fosse reclamado visando a unificação desse campo de estudo. Em 1993, uma publicação de Carroll (1993) reuniu todos os trabalhos importantes da psicometria publicados do início do século XX até o início dos anos de 1980 sobre inteligência. Estes, considerados pelo campo como evidências fortes a respeito da arquitetura da inteligência humana, sustentaram a gradação da inteligência pressuposta por Pessoa. Em que consistia tal sustentação? No pressuposto de inteligência ser formada por um amplo conjunto de habilidades cognitivas, atuantes e específicas, em alguns casos, no processamento cognitivo de comportamentos.

Associando o anarquismo ao livre arbítrio e ao poder da inteligência e da sensibilidade humanas, a personagem do conto analisado confere à dimensão educativa e cultural grande parte da responsabilidade da transformação social:

O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. [...] Isto era aí pelos meus vinte anos - vinte e um o máximo - que foi quando me tornei anarquista. [...] o anarquista consciente e convicto que hoje sou (Pessoa, 1995, p. 661).

Por sua vez, a narrativa estabelece, nessa base, elementos contrários geradores de tensão, a saber, lógica e imaginação, capazes de organizar, enquadrar e sustentar elementos da ficção pessoana a transitar de uma teoria geral para uma atitude hermenêutica:

Ora o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente - no fundo é só isto. E daí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico, isto é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos à parte teórica do assunto. Por agora, compreenda você bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minas circunstâncias. O que é que ele vê pelo mundo? Um nasce filho de um milionário, protegido desde o berço contra aqueles infortúnios - e não são poucos - que o dinheiro pode evitar ou atenuar; outro nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um nasce conde ou marquês, e tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o que fizer; outro nasce assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar, viajar, instruir-se - tornar-se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que naturalmente o são mais. E assim por diante, e em tudo... (Pessoa, 1995, p. 661).

As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções - essas, por que não evitá-las? Aceito - não tenho mesmo outro remédio - que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu - o talento, a força, a energia; mas não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram por bamburrio logo que ele apareceu cá fora - a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc. (Pessoa, 1995, p. 661).

Indagado sobre o porquê de ter escolhido o anarquismo e não o socialismo e similares, o amigo interlocutor ouviu uma explicação teórica: escolheu-a devido às convenções e às ficções sociais:

- O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais - tudo, desde a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. A gente nasce homem ou mulher - quero dizer, nasce para ser, em adulto, homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês. É todas estas coisas em virtude das ficções sociais (Pessoa, 1995, p. 662).

O que quer o anarquista? A liberdade - a liberdade para si e para os outros, para a humanidade inteira. [...] Nem todos podem ser iguais perante a Natureza: uns nascem altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos, uns mais inteligentes, outros menos... Mas todos podem ser iguais daí em diante; só as ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais é que era preciso destruir (Pessoa, 1995, p. 666).

Na busca racional por algo que destruísse as ficções sociais sem criar implicações à criação da liberdade futura, o personagem anarquista descobriu a criação da tirania, exatamente o contrário do preconizado em sua doutrina anarquista. Em outras palavras, um grupo constituído de pessoas já oprimidas pelas ficções sociais, ao criar a tirania, destruía a liberdade futura:

- Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam. [...] Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. [...] Isso era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer assim... Isto é, nunca era por uma razão lógica (Pessoa, 1995, p. 670).

Na sequência deste raciocínio, o personagem anarquista, ampliando o recorte de influência desses tiranos para um grupo muito maior e mais influente identifica outra tirania: a tirania do auxílio. Vejamos como a retrata:

- Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. [...] Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de quem outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade. [...] tirania exercida por nós, os oprimidos, uns sobre os outros (Pessoa, 1995, p. 672).

Na perspectiva teórica da inteligência, portanto, a desigualdade pode ser provocada por um traço que o autor acredita ser hereditário e a pessoa, o tendo inato (nasce com a pessoa), que é a inteligência, deve compreendê-lo como geneticamente determinado.

 

Formas de inteligência na prosa de Fernando Pessoa

Embora o período compreendido pela produção literária da Geração de Orpheu (1915 a 1927) configure um acentuado esmorecimento da atividade em prosa, ocupados que estavam seus integrantes na decifração do enigma poético, alguns destes se dedicaram também ao conto. A importância disso? O fato de, quando o fizeram, continuarem respeitando a perspectiva poética em que se encontravam, estendendo-a na elaboração de prosa poética e poema em prosa, bem como, na criação de contos policiais. Destes últimos, merece destaque o poeta Fernando Pessoa, que, como contista, em suas narrativas em prosa procurou expressar o mesmo impulso multiplicador que originou seus heterônimos.

De modo geral, o autor apresenta um conjunto de textos que trata de crimes e outro voltado à temática policial. Dentre os primeiros, encontram-se um conto de horror (Um Jantar Muito Especial), pelas mãos do heterônimo Alexander Search, e um fragmento (provavelmente núcleo inacabado de conto) intitulado Czarkresko. Dentre os segundos, temos Prefácio a Quaresma, A Janela Estreita, O Caso Vargas, em conjunto, esboço de ideias para narrativas futuras, bem como O Roubo na Quinta das Vinhas e A Carta Mágica, em conjunto, contos inconclusos, mas já com desenvolvimento de personagens e enredo, os quais organizam um crime, os suspeitos que o cometeram, o local, seu detetive e o desfecho revelando a identidade do criminoso.

Admirador confesso da obra de Edgar Alan Poe, do qual traduziu e teceu suas considerações sobre o poema O Corvo e a obra Poemas Finais para a revista Athena, da leitura deste surgiu o interesse de Pessoa pela criação de contos policiais. "Como é evidente, a escolarização em língua inglesa condicionaria fortemente as suas preferências de leitura e o seu processo de maturação como escritor, apesar de todo o esforço que coloca na aquisição de uma cultura mais universalista" (Reis & Lourenço, 2015, p. 74). Estes, delineados através de um raciocínio frio e lúcido, quando justapostos a uma imaginação de definições e aprofundamentos deixam entrever o principal motivo do interesse do leitor pelos mesmos: a intrínseca conexão do mistério com o raciocínio (Rosenblat, 1988).

Em Castelo Branco (2006), afirma-se que os contos de raciocínio de Fernando Pessoa, ainda que em fragmentos aparentemente desordenados, mostram, em raciocínio dedutivo, a transição de uma teoria geral e suas contradições específicas para uma prática policial em 1ª pessoa que sugere, entre outras, a possibilidade de a atitude hermenêutica ser condição e possibilidade de construção de uma literatura policial. No caso, a compreensão de tal fenômeno encontrando-se repousada no tripé compreender, interpretar e aplicar. Entretanto, com uma exigência: que o leitor reordene os fragmentos, fazendo-os interagir de tal forma que se mostrem semanticamente interdependentes sem deixarem de ser promotores, como a alegoria, de transtextualidade. Vejamos, na prática, como isso ocorre.

Baseando-se em três formas de inteligência, a saber, Inteligência Filosófica, Inteligência Científica e Inteligência Crítica, Pessoa concebeu, respectivamente, três heterônimos investigadores de polícia: Dr. Quaresma, Chefe Guedes e Tio Porco. Manifestação da superior capacidade especulativa do poeta, tal concepção revela a capacidade pessoana de fazer dialogar uma teoria do conhecimento, a saber, a teoria das inteligências múltiplas, ainda que em suas ruminações científicas, com a capacidade inventiva da teoria literária.

Em O Roubo na Quinta das Vinhas (composto por cinco fragmentos), temos o seguinte enredo: em setembro de 1905, acontece, meia-noite, um arrombamento, causado por uma explosão, numa casa na Quinta das Vinhas. Estavam presentes a família do proprietário, José Mendes Borba, e dois amigos da família: Maria Elisa e o engenheiro Augusto Claro. Do cofre, foram roubados cem títulos da Dívida Externa Portuguesa. Intrigada, a polícia desconfia da ação de uma quadrilha, ao mesmo tempo em que acredita, devido às circunstâncias do roubo, ter havido colaboração de pessoas próximas às vítimas. Desconfia-se do filho do dono da casa e do jardineiro, que acaba sendo preso. Para evitar uma injustiça, Augusto Claro procura o nosso protagonista, o médico-detetive Dr. Quaresma, para que auxilie na solução do caso. O narrador não é Dr. Quaresma, mas o engenheiro Augusto Claro.

No primeiro fragmento, somos apresentados ao Dr. Quaresma, que conversa com o narrador. No segundo, há um diálogo inconcluso. No terceiro, o Dr. Quaresma revela que já conhece o criminoso, apenas a partir das informações colhidas através de Augusto Claro. No quarto fragmento, parte relevante pelo debate de ideias acerca da criminologia, dos processos cognitivos e dedutivos humanos, um discurso feito pelo Dr. Quaresma ao engenheiro Claro aponta a solução do crime e a identidade do criminoso através de diversas considerações sobre métodos de investigação e de raciocínio lógico.

No quinto fragmento (Soares, 1976), o engenheiro Claro reconhece sua derrota e é remoído pela culpa:

A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: "o que pensa fazer?" Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: "não sei". E acrescentei, passado um momento: "o doutor dirá o que quiser". O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: "eu não tenho nada a dizer". Como já compreendeu, decifrei - posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade - o seu caso. O resto é consigo.

Ou seja, é a inteligência e sua ciência que, na habilidade do detetive, conseguiram reconstituir a verdade.

Circunscritos à tradição inaugurada por Edgar Allan Poe e ao detetive Dupin, apreços literários do autor, tais textos pessoanos dialogam com tratados filosóficos da inteligência, revelando o profundo conhecimento do autor acerca de um gênero pouco valorizado no Portugal de então. Pelo viés da Teoria da Inteligência, o princípio fundador desses fragmentos reside na seguinte assertiva: um investigador ficcional de qualidade deve ser, sobretudo, um exímio exercitador de raciocínios via argumentação.

 

Raciocínio lógico e ficcionalidade

Constatando que a tirania do auxílio não era derivada das ficções sociais, mas sim das qualidades naturais, a saber, "o grau de inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce", e considerando que um anarquista não buscava naturalmente o domínio sobre outro anarquista, "seu camarada natural", o personagem anarquista concluiu que tal tirania advinha de uma aplicação errada, pervertida, das qualidades naturais, proveniente de um homem naturalmente mau, caso em que todas as qualidades naturais destes seriam consideradas pervertidas, ou resultantes da longa permanência da humanidade em uma atmosfera de ficções sociais, "todas elas criadoras de tirania".

Tal constatação levou a personagem a concluir, então, que, para se ser anarquista, era preciso que cada camarada atuasse individualmente, uma vez que, em grupo, as tiranias e demais pontos negativos se reforçavam. A saber:

Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao menos não estorvávamos a liberdade, não criávamos tirania nova; o que conseguíamos, pouco que fosse, era realmente conseguido, sem desvantagem nem perda. E, de mais a mais, trabalhando assim separados, aprendíamos a confiar mais em nós-mesmos, a não nos encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais livres já, a prepararmo-nos, tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso exemplo, para o futuro (Pessoa, 1995, p. 674).

Mas, qual não é sua surpresa quando, expostos seus argumentos aos camaradas, estes se revoltarem contra a lógica de seu raciocínio. Entretanto, mais que a revolta, é a falta de vocabulário argumentativo dos camaradas, ilustrada em frases soltas de quem não tem resposta nenhuma, "lixo" nas palavras do personagem, que o irrita, fazendo-lhe perceber que estava, sim, envolvido com um grupo ignorante que queria, nada mais, que uma liberdade conseguida pelo esforço alheio.

Enfurecido, o personagem anarquista relata seu afastamento do grupo e sua decisão, dias depois, de seguir individualmente o anarquismo em que acreditava. E isto, soube-o mais tarde, após muito refletir, podendo ser feito de duas maneiras: através de ação indireta (propaganda) e ação direta (de qualquer espécie). Não se julgando orador nem escritor, o personagem optou pela segunda, buscando, uma vez que não podia destruí-las, coisa que só a revolução conseguiria, subjugar as ficções sociais. Em outras palavras, vencê-las, reduzindo-as à inatividade.

Sendo o dinheiro a mais importante ficção social da época, o personagem anarquista entende que, para subjugá-lo, não poderia somente combatê-lo, pois isso seria fugir do problema, mas, sim, adquiri-lo, e em quantidade, evitando sua influência e tirania. E, uma vez que, quanto mais o adquirisse, mais se sentiria livre, buscou a profissão que exercia naquele momento, bancária e comercial, que elevavam, sobremaneira, sua convicção de anarquismo:

O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é com ele e com a Natureza [...] Há qualidades naturais, como eu já lhe disse, que se pode presumir que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais: mas a perversão não está no grau da qualidade, que é absolutamente dado pela Natureza, mas na aplicação da qualidade (Pessoa, 1995, p. 681).

O construto de inteligência geral, ou 'g', concebido, em 1904, por Spearman (1904), é, conceitualmente, bastante diferente daquele conhecido como inteligência em geral, (como um construto psicológico) e do QI (como um particular indicador deste construto, usualmente refletido através de um escore padronizado num particular teste mental). A ênfase de Spearman (1904; 1927, pp. 70-71) sobre essa diferença entre "inteligência em geral", como uma mistura dos escores de diversos testes, e "inteligência geral", como o fator comum (ou fonte de diferenças individuais) entre todos os variados testes, é uma das distinções mais importantes na psicometria contemporânea, desde o desenvolvimento da teoria do traço latente. Mas, não tem sido suficientemente reconhecido que o 'g' de Spearman foi o primeiro traço latente a ser identificado na história da psicologia (Jensen, 1980).

Cem anos depois da descoberta de Spearman, o 'g' tem estado presente de forma absolutamente inequívoca, em certo grau, em cada tipo de tarefa mental. Em Pessoa (1995), todos os tipos de desempenho cognitivo, ainda que muito diferentes, são positivamente correlacionados um com o outro em praticamente todos os excertos extraídos de seus contos para nossa exemplificação.

Destacando a importância de 'g' nos escritos de Pessoa, entendemos que, na declaração de Meehl abaixo, a ênfase do autor recai sobre as evidências de que 'g' pode, realmente, ser interpretado como a "habilidade para aprender", contanto que seja claro que estes termos se referem a processos e habilidades complexos e que de algum modo diferentes misturas desses constituintes podem ser requeridos em diferentes contextos e tarefas de aprendizagem:

quase todas as disposições para o desempenho humano (competência para o trabalho), se cuidadosamente estudadas, são saturadas em algum grau pelo fator de inteligência geral, g, o qual por razões ideológicas e psicodinâmicas tem sido de alguma forma negligenciado nos últimos anos, mas merece voltar à condição anterior (1990, p. 124).

Entretanto, apesar desse renovado interesse pela inteligência geral (g), nenhuma teoria real tem sido ainda desenvolvida para explicar os fatos pelos quais ela é responsável e determina. A formulação nascente conhecida como "teoria do g" está em processo de contínua descoberta e revisão. Isto também é verdadeiro, e ocorre com a teoria geral da gravitação, um construto igualmente central na física.

Mas, ao lado da teoria, a existência psicométrica de 'g' é um dos fatos mais bem estabelecidos em toda a psicologia. Analogamente, a lei de gravitação de Newton não é uma teoria ou uma explicação da gravitação, mas, ao contrário, é um fato observado sobre a gravitação. O mesmo é verdadeiro para a inteligência psicométrica 'g': ela é um fato empírico, mas não é uma explanação daquele fato. O pequeno 'g' da psicologia e o grande 'G' da física têm muitas outras coisas em comum: ambos são conceitos centrais em seus respectivos campos científicos; seus efeitos são objetivamente observáveis e mensuráveis; muitas generalizações empíricas e fatos importantes têm sido descobertos e podem ser preditos a partir deles; há ainda várias teorias e controvérsias sobre a teoria explanatória e causal, tanto de 'g' quanto de 'G'.

Por sua vez, em Rosenblat (1988, p. 167), temos que reside nas obras de Austin Freeman, em 1924, as menções iniciais de que é a relação do mistério com o raciocínio que motiva leitores a buscarem por obras de cunho policial. Em 1928, outro escritor, S. S. Van Dine, viria a estabelecer 20 regras para a construção de romances do gênero, privilegiando a lógica dedutiva. Como a teoria da inteligência se relaciona a isso? Com Spearman, que, segundo Silva (2004), sugeriu três grandes leis de raciocínio que cobririam todos os usos do pensamento abstrato.

A primeira foi a Lei de Apreensão, isto é, o fato de que uma pessoa aborda a estimulação que recebe de todas as fontes internas e externas, via os nervos ascendentes. Simples tempos de reação e de inspeção podem medir este aspecto elementar do funcionamento mental e a discriminação sensorial também parece se enquadrar neste campo. Spearman presumiu que, quanto maior a esfera de experiências com a qual um indivíduo está envolvido, tanto mais complexa é a solução de problemas que ele pode empreender.

Em seguida, ainda segundo Silva, vem a Lei de Dedução de Relações. Por exemplo, dado dois estímulos, ideias ou impressões, nós podemos imediatamente descobrir quaisquer relações existentes entre eles - um é maior, mais simples, mais forte ou qualquer coisa em relação ao outro. Ela indica a extração de relações lógicas entre dois estímulos.

E, finalmente, temos a Lei de Dedução de Correlatos. Exemplificando, dado dois estímulos, agrupados por uma dada relação, e um terceiro estímulo, nós podemos produzir um quarto estímulo que mantém a mesma relação com o terceiro, tal como aquela que o segundo mantém com o primeiro. Por exemplo: o vocábulo "alto" é diretamente apreendido. As palavras "alto" e "baixo" dão origem a uma relação antagônica, isto é, de oposição. E dado "alto" e "baixo", e "grande" como o terceiro estímulo, nós podemos usar o fundamento, "grande", e a relação de oposição, para chegar ao correlato, "pequeno". Este processo envolve a extração de semelhanças entre dois ou mais estímulos.

Em A Arte de Raciocinar, Pessoa traz a apreensão, a dedução de relações e a dedução de correlatos ao fazer sua personagem explicar a relação existente entre raciocínio e sentidos:

O raciocínio, ou mais latamente a inteligência, trabalha sobre sensações, dados fornecidos pelos sentidos, nossos ou alheios, a que juridicamente se chama testemunho. Quando, uma vez, o raciocínio trabalha sobre esses dados, pesando o que vale o testemunho, comparando uns com os outros, e, quando isso seja possível, por uns dados ir obtendo outros até ali desconhecidos, chegamos à posse do que chamamos "fatos". Ao raciocínio que, trabalhando sobre os dados dos sentidos, deles extrai os fatos, podemos chamar o raciocínio concreto (Pessoa, 1995, p. 704).

Supondo que Spearman esteja correto, Silva entende que, então, o uso de apreensões, deduções de relações e deduções de correlatos geraria as melhores medidas de 'g'; isto é, correlacionar-se-iam melhor com todos os outros testes. De fato, entre os testes envolvendo matrizes progressivas de raciocínio, por exemplo, aquele mundialmente conhecido como Teste das Matrizes Progressivas de Raven, foi construído seguindo explicitamente as ideias de Spearman.

Certamente por causa disso, ele tem sido considerado o teste que fornece a medida mais pura de 'g' e é, provavelmente, aquele mais bem-sucedido e amplamente usado quando comparado a qualquer outro teste de grupos. Jensen (1980) uma vez disse que "o Teste de Raven aparentemente mede 'g' e alguma coisa a mais" (p. 646). Vejamos dois exemplos que confirmam esse raciocínio:

A Inteligência Humana, disse o Tio Porco, pertence a uma de três categorias. A primeira categoria é a inteligência científica. É a sua, Sr. Chefe Guedes. A inteligência científica examina os fatos, e tira deles as suas conclusões imediatas. Direi melhor: a inteligência científica observa, e determina, pela comparação das coisas observadas, o que vêm a ser os fatos. A inteligência filosófica - esta é a tua, Abílio - aceita da Inteligência científica, os fatos já determinados e tira deles as conclusões finais. Direi melhor: a inteligência filosófica extrai dos fatos o fato. [...] além destes dois tipos de inteligência, há outro, a meu ver superior, que é a inteligência crítica. Eu tenho a inteligência crítica, acrescentou com naturalidade. [...] A inteligência crítica nem possui a observação que é a base da inteligência científica, nem o raciocínio que é o fundamento da inteligência filosófica. Parasitária, indolente até, por natureza, como são as classes cultas e aristocráticas em relação às outras, ela vive apenas de ver as falhas que as suas antecessoras, por assim dizer tiveram. Sobretudo vê as falhas da inteligência filosófica, que, por abstrata, é mais da natureza dela. A inteligência crítica é de dois tipos - instintivo e intelectual. A inteligência crítica e instintiva vê, sente, aponta as falhas das outras duas, mas não vai mais longe: indica o que está errado, como se o cheirasse, mas não passa disso. A inteligência crítica propriamente intelectual faz mais que isto: determina as falhas das outras duas inteligências, e depois de as determinar constrói, reelabora o argumento delas, restitui-o à verdade onde ela nunca esteve. A inteligência crítica do tipo intelectual é o mais alto grau da inteligência humana. Eu tenho a inteligência crítica do tipo intelectual (Pessoa, 1995, p. 682).

Ora as falhas da inteligência científica e da inteligência filosófica são de duas ordens - as falhas gerais e as falhas particulares. Por não pertencerem à essência desse tipo de inteligência, mas ao seu contato com determinado assunto. Por falhas gerais entendo, é claro, aquelas que são substanciais nesses tipos de inteligência. Ora a falha essencial da inteligência científica é crer que há fatos. Não há fatos, meus amigos, há só preconceitos. O que vemos ou ouvimos, ou de qualquer modo percebemos, percebemo-lo percebemos através de uma rede complexa de preconceitos - uns longinquamente hereditários como são os que constituem a essência dos sentidos, outros proximamente hereditários como são os que constituem a orientação dos sentidos, outros propriamente nossos, derivados da nossa experiência, e que constituem a infiltração da memória e do entendimento na substância dos sentidos. [...] Vejo aquela mesa. O que vejo, antes de mais nada - antes num sentido lógico, ou biológico, se quiserem - é uma coisa de determinada forma, de determinada cor, etc. Isso é o que é da longínqua hereditariedade dos sentidos [...] Vejo, depois, no mesmo sentido de depois, uma mesa - o que só pode "ver" quem tenha vivido num lugar ou numa civilização onde existem 'mesas'. É esta a visão nascida da minha hereditariedade próxima - próxima, é claro, em relação ao que a outra é de longínqua. E vejo, finalmente, uma mesa que está associada no meu espírito a variadas coisas. Vejo tudo isso, todos estes três elementos de preconceitos, com a mesma visão, com o mesmo golpe de vista, consubstanciados, unos. Ora, o defeito central da inteligência científica é crer na realidade objetiva deste triplo preconceito. É claro que à medida que nos afastamos do preconceito pessoal em direção ao preconceito por assim dizer orgânico, aproximamo-nos, não direi do fato, mas da oportunidade de impressões com as outras pessoas, e assim do "fato" efetivamente, mas não num sentido teórico, senão num sentido prático. A realidade é uma convenção orgânica, um contrato sensual entre todos os entes com sentidos (Pessoa, 1995, p. 683).

O narrador em primeira pessoa se manifesta, dizendo a Tio Porco que, embora sem condições de contradizer tais argumentos, o que ele entendeu da explanação ouvida é a crença daquele na inutilidade absoluta da observação da ciência e de tudo o mais. Tio Porco o corrige, afirmando que tais argumentos "levam a crer". E continua:

a verdade ou meia verdade subjetiva tem a sua utilidade... social: é o que é comum a todos nós... na maioria das circunstâncias da vida prática, nós não necessitamos conhecer os fatos, mas apenas uma ou outra faceta deles, relativa a nós ou aos outros, para nossa utilidade (Pessoa, 1995, p. 684).

Seguindo esse raciocínio, observa-se que, em A Janela Estreita, fragmento de conto de raciocínio não terminado por Fernando Pessoa, Berardinelli (citado por Pessoa, 1995, p. 682), em nota de rodapé, menciona ter entendido ser útil a publicação desse fragmento porque ele constitui, ainda que ficcionalmente, o ensaio de uma análise qualitativa da inteligência, diferente da análise que Pessoa (1980) fizera na crítica ao livro Ciúme, de António Botto, publicada em março de 1935 no Diário de Lisboa. Nessa crítica, ao afirmar que a obra poética de António Botto "gira e se anima em torno de quatro ideias, ou estados mentais - a emoção sem paixão, a inteligência das superfícies, o sentimento contraditório, e a ironia emotiva", Pessoa ressalta, contrariamente ao que fez nos contos, o uso negativo desses quatro elementos efetuado por Botto, "diversos, desconexos ou simplesmente justapostos: derivam de um mesmo fundo temperamental, que por todos eles igual e concordantemente se manifesta".

Em outras palavras, Berardinelli chama a atenção do leitor para o fato de, em um mesmo autor, a alusão autoral à valoração da inteligência/argumentação/raciocínio lógico-dedutivo como elemento capaz, dependendo do foco que lhe é dado, tanto enaltecer quanto esmorecer uma determinada personagem.

O interesse pelo raciocínio dedutivo (Quelhas & Juhos, 2013) tem sua origem em Aristóteles, no século IV, nos estudos filosóficos, particularmente nos recortes sobre lógica, com sua influência sendo experienciada em psicologia tanto de modo teórico como empírico, com os primeiros estudos tendo os silogismos categóricos como objetos de estudo. Entretanto, sua influência também recai sobre o modo como o desempenho das pessoas era avaliado, a saber, se as conclusões destas podiam ser consideradas para mais acertos ou para menos acertos, o que a distinguia como mais inteligente ou menos inteligente.

 

Considerações finais

A separação entre psicologia e filosofia levou os interesses intelectuais sobre ambas a se tornarem distintos: à lógica coube buscar compreender como devemos raciocinar, visando a assegurar a validade das conclusões, enquanto que à psicologia coube o interesse a como o ser raciocina. Em Pessoa (1995), erros da inteligência científica em geral e erro do Sr. Chefe Guedes em particular, também são destacados:

Um erro típico da inteligência de tipo científico [...] Em vez de partir, como faria a inteligência filosófica... Sr. Chefe Guedes ligou dois fenômenos simplesmente por serem fatos, e apenas por uma certa contigüidade, por assim dizer, o que é tão lógico como se ligasse o fato de que me caiu agora a cinza do cigarro, com o fato ali daquele senhor se estar a assoar, simplesmente por esses dois fenômenos se darem dentro do mesmo quarto. O Tio Porco [...] tornou a acender o cigarro. - Isto, porém, é um pouco fora do assunto, porque não são os erros da inteligência científica em geral, e do Sr. Chefe Guedes em particular, que neste momento interessam (Pessoa, 1995, p. 684).

bem como os defeitos da inteligência filosófica em geral e aos de Abílio Quaresma em particular:

A inteligência científica cai no erro de crer nos fatos como fatos porque é essencialmente baseada na observação que dá aos fatos. A inteligência filosófica cai no seu erro próprio, porque é essencialmente baseada no raciocínio que dá às conclusões. Ora o erro essencial da inteligência filosófica [...] é objetivar-se, ou antes, objetivar o que não é senão o seu método, quer atribuindo às abstrações de que forçosamente se serve, um caráter de "coisas", quer atribuindo ao descurso das coisas aquela regularidade, aquela lógica, aquela racionalidade que são forçamente pertença do raciocínio, mas não daquilo sobre o que se raciocina. Os raciocinadores dos séculos XVII e XVIII, sobretudo em França, que supunham que o homem procede racionalmente, erraram toda a psicologia que tinham com essa presunção racional, mas absurda. [...] esse erro tem formas mais subtis... Uma delas é a de supor que todo o procedimento pensado é necessariamente racional, em outras palavras, que toda a premeditação é lógica. [...] Quero dizer que o raciocinador nunca crê que a razão possa ser substancialmente irracional, que o raciocinador não admite o irracional como elemento positivo, e não simplesmente negativo (Pessoa, 1995, pp. 684-685).

O que se verifica, em ambos, é que Pessoa, de modo progressivo no conto, vai se interessando mais pela apresentação de tarefas de raciocínio cotejadas a formulações as mais próximas possíveis do comportamento das personagens analisadas em seu cotidiano. Neste exercício, o que o autor consegue desenvolver? Um paradigma ficcional de investigação e de construção de teorias psicológicas sobre a dedução humana.

Com isso, em O Roubo da Quinta das Vinhas e A Carta Mágica, Pessoa exercita o raciocínio lógico para esclarecer crimes. Por sua vez, em Um Paranoico com Juízo, o autor sugere, nas entrelinhas, que o exercício de diversos raciocínios tem suas raízes na paranoia, mas não em uma paranóia doentia, mas, sim, especializada em relacionar juízos os mais diversos. Finalmente, em O Vencedor do Tempo (Conto Filosófico de Pero Botelho), o exercício da inteligência-raciocínio chega ao ápice, com a especulação de cada um dos seres ser "Deus sendo ele", ou, em outras palavras, "Deus pensando-se ele".

A história dos crimes, propriamente dita, serve, então, de pano de fundo para o exercício autoral de uma dialética do argumento, levando os motes ensaísticos a se sobreporem ao núcleo ficcional, pretexto último para Pessoa alinhavar suas explanações a uma retórica argumentativa paradoxal. Sobrepostos à ficção narrativa, argumentações persuasivas da teoria da inteligência vão sendo cotejadas a raciocínios os mais diversos, simulando paradoxos num sistema fechado de manipulações do raciocínio lógico.

Em relação à prática de raciocínio sobre intenções, na narrativa, entendendo intencionalidade como uma das principais categorias da vida mental, verifica-se, nos contos de Fernando Pessoa, que seus personagens raciocinam com condicionais intencionais, congregando, em seus argumentos, diferentes tipos de razões - crenças, objetivos, obrigações e normas sociais, por exemplo - para suas ações. Por que o fazem? A hipótese principal é a de que, distinguindo a existência de diferentes tipos de razões consoante a sua força, a saber, razões fracas, fortes, medianas e ausência de razão, a personagem, uma vez inteligente, lançará mão da que melhor favorece a razão interna - crença ou objetivo - de suas argumentações, de modo o leitor fique implicado com a condução do raciocínio da mesma, agindo sob a influência de tais estados intencionais propositalmente simulados na narrativa.

 

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Endereço para correspondência:
Rosemary Conceição dos Santos
cienciausp@usp.br

Recebido em: 11/05/2020
Aceito em: 20/08/2020

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