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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.14 no.spe Juiz de Fora  2020

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.30561 

Percepção auditiva categórica como estratégia de investigação das dificuldades de percepção de fala

 

Categorical auditory perception as a strategy for studying speech perception difficulties

 

La percepción auditiva categórica como estrategia de investigación sobre las dificultades de percepción del habla

 

 

M. Angela G. FeitosaI; Marta Regueira Dias PrestesII; Maiara Maia SantanaIII; Vanessa Cristina Bastos SenaIV

IUniversidade de Brasília - UnB. E-mail: feitosa.mag@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2114-0988
IISecretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. E-mail: prestes.marta3@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4750-7015
IIIHospital da Criança de Brasília José Alencar. E-mail: maiaramsantana@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7292-0322
IVUniversidade de Brasília - UnB. E-mail: vanessatitina@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3948-1692

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo metodológico de um procedimento experimental com duas tarefas de processamento categórico auditivo para fala. Na tarefa de identificação, o participante ouve sons que variam em duração de VOT e é solicitado a identificar a que palavra correspondem. Na tarefa de discriminação, o participante deve indicar se dois estímulos de VOT adjacentes são iguais ou diferentes. As estratégias de análises de dados para caracterizar o grau de categorização são apresentadas e são discutidas possibilidades de uso do procedimento em estudos.

Palavras-chave: Categorização; Desenvolvimento de fala; Envelhecimento; Psicofísica.


ABSTRACT

This article presents a methodological study of an experimental procedure with two tasks of categorical auditory processing for speech. In the identification task, the participant hears sounds that vary in VOT duration and is asked to identify which word they correspond to. In the discrimination task, the participant must indicate whether two adjacent VOT stimuli are the same or different. The data analysis strategies to characterize the degree of categorization are presented and possibilities of using the procedure in studies are discussed.

Keywords: Categorization; Speech development; Aging; Psychophysics.


RESUMEN

Este artículo presenta un estudio metodológico de un procedimiento experimental con dos tareas de procesamiento auditivo categórico para el habla. En la tarea de identificación, el participante escucha sonidos que varían en la duración del VOT y se le pide que identifique a qué palabra corresponden. En la tarea de discriminación, el participante debe indicar si dos estímulos VOT adyacentes son iguales o diferentes. Se presentan las estrategias de análisis de datos para caracterizar el grado de categorización y se discuten las posibilidades de utilizar el procedimiento en los estudios.

Palabras clave: Categorización; Desarrollo Del Habla; Envejecimiento; Psicofísica.


 

 

Percepção categórica refere-se ao fenômeno de perceber itens de um conjunto grande e variado de estímulos acústicos em termos de um conjunto pequeno de categorias perceptuais discretas (Cleary & Pisoni, 2001). Este fenômeno foi inicialmente descrito por Liberman e colaboradores no Laboratório Haskins (vide Liberman, Harris, Hoffman, & Griffith, 1957) para percepção de sons da fala. Foi hipotetizado como um fenômeno especial de percepção auditiva, com base em dados mostrando vantagem do hemisfério esquerdo para processamento de sons da fala (vide Liberman, Cooper, Shankweiler, & Studdert-Kennedy, 1967). Além disso, Liberman et al. (1957) indagaram se, frente a diferenças acústicas semelhantes, um ouvinte pode discriminar melhor entre sons que estão em lados opostos de uma fronteira fonêmica do que sons dentro da mesma categoria. Essas questões centrais estão por trás do protocolo para verificar percepção categórica usando experimentos distintos, o de identificação e o de discriminação de fonemas.

Percepção categórica tem valor adaptativo. Isto já era reconhecido por Liberman e colaboradores em 1967, ao afirmarem que a complexa codificação da fala torna esses sons especialmente eficientes como veículos para a transmissão de informação fonética. O valor adaptativo continua sendo enfatizado por autores mais recentes (vide Burghard, Voigt, Kral, & Hubka, 2019) quando sustentam que "o agrupamento de informação sensorial [...] permite a generalização de características sensoriais, a construção de objetos sensoriais internos, desta forma dando saliência à detecção e à codificação de objetos sensoriais novos e familiares" (p. 2).

Posteriormente aos estudos iniciais na década de 1950 sobre percepção categórica em adultos em condições perceptuais usuais, surgiram estudos sobre o desenvolvimento da percepção categórica de fala (vide Eimas, Siqueland, Jusczyk, & Vigorito, 1971; Iverson & Kuhl, 2000) e sobre alterações em percepção categórica em associação a alguma alteração no desenvolvimento da linguagem (vide Thibodeau & Sussman, 1979; e revisão por Protopapas, 2014). Linhas de pesquisa contemporâneas utilizam esse arcabouço para explorar se alterações em percepção categórica são causa do transtorno específico de leitura e escrita, dislexia (Noordenbos & Serniclaes, 2015; Prestes, 2016; Snowling, Lervåg, Nash, & Hulme, 2019). Delineamentos que incluam a verificação das habilidades de identificação e discriminação de continuum surdo/sonoro, construído com base na manipulação do VOT, podem evidenciar dificuldades na percepção de fala que podem não ser verificadas em outros tipos de tarefas, como a discriminação auditiva de pares mínimos, sendo VOT definido como o intervalo de tempo entre o início do som da fala (ou soltura) e o início da vibração das cordas vocais (ou vozeamento).

Este artigo descreve um protocolo de controle experimental desenvolvido para estudar a identificação e discriminação de estímulos que se diferenciam em relação ao VOT; descreve a estratégia utilizada de análise de dados; e apresenta dois cenários de investigação em que o método desenvolvido tem potencial de utilização no estudo de demandas para o estudo de percepção categórica. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa FEPECS com parecer número 1.056.692.

 

Método

Estímulos

Os estímulos utilizados foram retirados de um banco de áudio de palavras gravadas por uma voz feminina em formato WAV (Andrade, 2010). A palavra selecionada, /bala/, foi manipulada por meio do software PRAAT 5.1.32 gerando estímulos, com cinco diferentes valores de VOT, de -40 a 0 ms, em passos de 10 ms, conforme ilustrado na Figura 1, formando o par perceptual /bala-pala/.

 

 

Painel A: Espectrograma da palavra /bala/. No segmento superior a distribuição de energia ao longo da emissão da palavra /bala/. No segmento inferior o espectro de frequência (ordenada) e intensidade relativa (grau de cinza) ao longo do tempo de emissão da palavra (abcissa). Painel B: Estímulos usados no experimento de percepção categórica com reduções em VOT.

O fonema /b/ da palavra selecionada, /bala/, se enquadra nos parâmetros acústicos de plosivas sonoras do português brasileiro (Melo et al., 2012). A manipulação realizada para a construção do continuum foi exclusivamente relacionada ao tempo de início de sonorização do fonema (/b/), as demais características acústicas mantidas constantes (/ala/).

Procedimento

O experimento de percepção categórica foi desenvolvido em um sistema informatizado de controle experimental em ambiente Microsoft Access, para aplicação individual, utilizando notebook e fone de ouvido. O procedimento é composto por três etapas, sendo elas de treinamento, experimento de reconhecimento (identificação) e experimento de discriminação auditiva, cujas telas estão reproduzidas na Figura 2.

 

 

Etapa de treinamento. São apresentados cinco estímulos, sendo três com VOT de 0 ms e dois com VOT de -40 ms. É esperado que os estímulos de VOT de 0 ms sejam percebidos como /pala/ e os estímulos com VOT de -40 ms sejam percebidos como /bala/. A instrução da tarefa é: "Você deverá pressionar a tecla espaço do teclado para ouvir o som e em seguida selecionar a palavra ouvida (pala ou bala). Pressione a tecla com o símbolo da seta para esquerda, caso o som ouvido seja /bala/ e pressione a tecla com o símbolo da seta para direita, caso o som ouvido seja /pala/". Caso o participante acerte 80% dos estímulos, segue para a etapa de identificação.

Experimento de identificação. Os cinco estímulos (de VOT -40, -30, -20, -10, 0 ms) são apresentados 6 vezes cada, em ordem aleatória, de acordo com o método de estímulos constantes. A tarefa do participante repetia a do treinamento. Os intervalos entre os estímulos são controlados pelo participante. Após pressionar a tecla de resposta a próxima tela é apresentada. Para ouvir o estímulo o participante deve pressionar a tecla espaço. Não é fornecido feedback para as respostas.

Telas do experimento de percepção categórica, indicando as fases de treinamento, de reconhecimento (identificação) e de discriminação.

Etapa de Discriminação. A tarefa psicofísica utilizada é de escolha forçada AX, na qual a resposta solicitada é "igual" ou "diferente". A tarefa é precedida pela instrução: "Você vai ouvir duas palavras e deverá responder se as duas são iguais ou diferentes". Após a instrução, o participante é posicionado de costas para a tela do computador e o aplicador pressiona a tecla espaço para emitir o som e o participante responde oralmente. O aplicador registra a resposta pressionando a tecla com o símbolo da seta para a esquerda quando o participante diz que são iguais, e o símbolo da seta para direita quando o participante diz que são diferentes. O software também permite que o próprio participante inicialize a tentativa e registre a resposta no teclado. Para o experimento de discriminação cada estímulo é apresentado pareado com ele mesmo (0/0; -10/-10; -20/-20; -30/-30; -40/-40 ms) e com estímulos adjacentes em ordem temporal balanceada (0/-10; -10/0; 0/-20; -20/0; 0/-30; -30/0; 0/-40; -40/0;-10/-20; -20/-10; -10/-30; -30/-10; -10/-40; -40/-10; -20/-30; -30/-20; - 20/-40; -40/-20; -30/-40; -40/-30 ms). Cada par é apresentado quatro vezes em ordem aleatória totalizando 100 apresentações. O intervalo entre os estímulos do par é de 1.200 ms.

 

Análise de dados para resultados hipotéticos

Análise gráfica

Na Figura 3 estão representados três perfis de resultados hipotéticos em um experimento de categorização para as tarefas de identificação e de discriminação de fonemas. Em cada painel a função em losangos representa desempenho com forte categorização, a função em quadrados representa desempenho com categorização lábil e a função em triângulos, forte categorização, mas com fronteira fonêmica distinta.

 

 

No painel superior, relativo à tarefa de identificação, o sujeito identifica os sons dos três primeiros valores de VOT sempre como sendo de uma palavra e os três últimos sempre como sendo de outra palavra; e há uma rápida transição de uma resposta para outra. Na ordenada está a probabilidade de o sujeito identificar uma das palavras. Na abscissa as variações fonêmicas produzidas pela manipulação do VOT, em intervalos iguais. Três medidas podem descrever este perfil de resposta: a distância entre os valores de maior e menor probabilidade para uma classe de resposta, a inclinação da zona de transição e a fronteira fonêmica, que é o valor de VOT (empírico ou interpolado) com probabilidade 0,5 de resposta da classe. A função em quadrados mostra distância menor entre os valores de maior e menor probabilidade, uma transição com menor inclinação; a fronteira fonêmica podendo ser a mesma. Esta segunda função caracteriza uma condição com dificuldades de processamento da fala. A função em triângulos pode representar uma condição natural em que o ambiente linguístico para desenvolvimento da língua materna é diferente, ou uma condição experimental em que o sujeito foi preliminarmente exposto a apresentação repetida ao estímulo com VOT 7, mostrando adaptação.

Perfil de resultados hipotéticos em experimentos de categorização de fonemas inseridos em palavras. Em losangos, representação de desempenho diferenciado; em quadrados desempenho mostrando dificuldade de categorização; em triângulos desempenho diferenciado, mas mostrando outra fronteira fonêmica. No painel superior, há resultados para tarefa de identificação. No painel inferior, resultados para tarefa de discriminação.

No painel inferior estão representados três perfis de resultados hipotéticos em um experimento de discriminação. Na ordenada está a probabilidade de o sujeito identificar um som como diferente de outro com o qual está sendo comparado (pares de palavras ou sílabas, no caso da discriminação de um fonema consoante). Na abscissa as variações em pares de fonemas adjacentes produzidos pela manipulação do VOT, em intervalos iguais. Na função em losangos o desempenho hipotético mostra discriminação melhor para valores em redor da fronteira fonêmica, contrastando com discriminação pobre ou ausente para valores de VOT dentro da categoria percebida como tal no experimento de identificação. Na função em quadrados o desempenho hipotético mostra um achatamento da função, com menor diferenciação entre os valores de discriminação ao longo da sequência de pares comparados. Comparando as duas funções observa-se que a função em quadrados mostra um pouco mais de discriminação entre os pares intracategoria perceptual e menor discriminação entre categorias. A função em triângulos, paralela à em quadrados, mostra a consistência entre a posição da fronteira fonêmica e a região de melhor discriminação entre os fonemas, um resultado hipotético consistente com o pertencimento do sujeito a um ambiente linguístico diverso.

Análise matemática

Para a função de identificação. Para que a série de estímulos seja analisada como um continuum, o recurso estatístico, que costuma ser usado para inferir o trajeto entre as respostas é a regressão logística (Bogliotti, Serniclaes, Messaoud-Galusi, & Charolles, 2008; Medina, Hoonhorst, Bogliotti, & Serniclaes, 2010; Schöner, 1988), método recomendado para o processamento multivariado quando a variável dependente é a proporção (Serniclaes, Van Heghe, Mousty, Carré, & Sprenger-Charolles, 2004).

Os parâmetros da função de identificação (valor da inclinação da curva e a fronteira fonêmica) podem ser calculados com base na regressão logística em que, no caso específico, os cinco pontos do continuum (VOT -40, -30, -20, -10 e 0 ms) foram usados para predizer o resultado do trajeto das respostas nas 6 apresentações de cada estímulo. Os estímulos de diferentes VOT foram as variáveis independentes e as respostas de cada participante foram as variáveis dependentes na regressão logística. O teste t pareado foi usado para verificar as diferenças na consistência das respostas aos diferentes estímulos e a média de desempenho do grupo foi calculada a partir da porcentagem de respostas de identificação para cada estímulo do continuum.

Para a função de discriminação. Existem basicamente duas formas para o cálculo dos resultados na tarefa de discriminação AX (Medina et al., 2010; Serniclaes et al., 2004). Uma possibilidade é utilizando a média das respostas "igual-diferente" para os pares de estímulos diferentes. A outra possibilidade é de se calcular apenas a porcentagem de discriminação correta (respostas "diferente") para os pares diferentes. Segundo Serniclaes et al. (2004), o uso da média de resposta "igual-diferente" no cálculo da tarefa de discriminação permite uma medida genuína de discriminabilidade independente do viés de resposta, e está relacionado com o coeficiente d'. No entanto, a porcentagem de respostas corretas "diferentes" para pares diferentes é bastante usada, sobretudo nas situações em que o desempenho é fraco, e a função de discriminação tende a ser ao acaso (50%) quando analisadas com base nas respostas de escolha igual-diferente. Além disso, as diferenças entre os grupos ficam menos aparentes quando se usa a porcentagem de respostas "diferentes". Assim, ao usar a porcentagem de respostas "diferentes", o efeito é amplificado, embora à custa de uma diminuição da precisão quanto à natureza desse efeito. No presente estudo foi usada a porcentagem de respostas "diferentes" nas análises da tarefa de discriminação.

Discriminação esperada. A discriminação esperada foi calculada com base no desempenho na tarefa de identificação. A fórmula utilizada para o cálculo da discriminação esperada foi adaptada de Pollack e Pisoni (1971):

Proporção da discriminação = P(bala/S1) x P(pala/S2) + P (pala/S1) x P(bala/S2)

Na fórmula o P(bala/S1) refere-se à porcentagem de respostas /bala/ para o primeiro estímulo do par (S1), por exemplo, considerando o caso hipotético do par de VOT -40 /-30 ms, o VOT -40 ms configura-se como o primeiro estímulo do par. Considerando que ele foi 100% das vezes identificado como bala e o -30 ms também identificado como bala em 100% das apresentações, o cálculo seria:

Proporção da discriminação = (1.0 x 0) + (0 x 1) = (0) + (0) = 0

Discriminação observada. Os dados da tarefa de discriminação são representados numa função de discriminação, que mostra a relação entre a posição no continuum e a porcentagem de respostas corretas na tarefa AX. Tipicamente, a função de discriminação obtida não é uniforme, exibindo picos de alta discriminabilidade entre estímulos previamente identificados como diferentes e vales de baixa discriminabilidade entre estímulos percebidos como iguais (Schöner, 1988). No presente estudo, a discriminação observada foi calculada com base na porcentagem de respostas "diferentes" para cada par de estímulos do continuum /bala/-/pala/.

Relação entre discriminação esperada e discriminação observada. A percepção categórica foi aferida por meio da comparação dos dados, em porcentagem, da discriminação observada com os da discriminação esperada com base na tarefa de identificação. Os escores da discriminação observada e da esperada foram comparados por meio do teste t de amostras pareadas.

 

Características de resultados encontrados e discussão

A funcionalidade do procedimento

Em experimento já realizado (Prestes, 2016), 45 estudantes com idades entre nove e 15 anos, incluindo leitores típicos e disléxicos, foram submetidos ao procedimento e não encontraram dificuldade de compreensão das instruções e de execução das tarefas. O tempo aproximado para a realização do experimento foi de 12 min. Como capacidade intelectual abaixo da média foi critério de exclusão, é possível que a aplicação do instrumento em indivíduos com déficit intelectual, requeira adaptação no treinamento e na forma de resposta. Os resultados mostraram-se consistentes com os obtidos em outros laboratórios, validam o protocolo de controle experimental desenvolvido e mostram que percepção categórica parece não ser tão boa em escolares com dislexia. A extensão do uso do protocolo para adultos, em fase preliminar, sugere que ele também pode ser usado em outras faixas etárias. Analisamos a seguir o potencial do protocolo desenvolvido para dois outros contextos de pesquisa em percepção de fala.

Desenvolvimento da percepção categórica

Percepção categórica e precisão da fronteira fonêmica são conceitos independentes, mas relacionados. Pesquisas mais recentes mostraram que os teóricos ao se referirem ao termo desenvolvimento da percepção categórica, estavam de fato se referindo às mudanças de precisão das fronteiras fonêmicas (Hoonhorst et al., 2011; Medina et al., 2010). Zlatin e Koenigsknecht (1975), também encontraram mudança na fronteira fonêmica comparando crianças de três anos, de seis anos e adultos.

Embora alguns pesquisadores tenham mostrado que a percepção categórica sofre mudanças com o desenvolver da idade (Elliott, Longinot, Meyer, Raz, & Zucker, 1981), Hoonhorst et al. (2011) enfatizaram em seus achados que a percepção categórica, para os grupos de crianças de cinco, seis e sete, anos de idade e adultos de 19 anos, não se altera, acrescentado que as mudanças observadas estão relacionadas especificamente à precisão da fronteira fonêmica; e observaram que os artigos por eles revisados não realizaram o experimento de discriminação na avaliação da categorização. Como relatado por eles, a maioria dos estudos apresentados até o ano de 2009 referiam-se à localização e à precisão da fronteira fonêmica e essas propriedades mudavam com maturação cognitiva.

Medina et al. (2010) investigaram o desenvolvimento da localização e precisão da fronteira entre o final da infância e a fase adulta, e buscaram evidências de diferenças na percepção categórica entre esses grupos. Coletaram dados de identificação e discriminação por falantes do francês em crianças com média de 9 anos, adolescentes com média de 17 anos e adultos com média de 43 anos. Os resultados confirmaram o efeito da idade sobre a precisão da fronteira, o desempenho das crianças diferindo do grupo de adolescentes e adultos, mas não confirmaram efeito da idade sobre localização de fronteira. Comparando o desempenho de percepção categórica em adultos analfabetos e alfabetizados, cuja língua nativa era o Português europeu, para o contínuo /ba/-/da/, Serniclaes, Ventura, Morais e Kolinsky (2005) constataram que a percepção categórica não diferiu entre os grupos, no entanto, as pessoas analfabetas exibiam uma fronteira categórica menos precisa.

Liberman et al. (1957) hipotetizaram que os resultados apresentados por eles provavelmente não seriam encontrados com a mesma configuração em outras línguas. Estudos posteriores com crianças e adultos falantes do francês, inglês americano e britânico e português europeu (Collet et al., 2012; Elliot et al., 1981; Gibbs, 1996; McMurray, Tanenhaus, & Aslin, 2002; Miyawaki et al., 1975; Serniclaes et al., 2005; Shu, 2014; Zlatin & Koenigsknecht, 1975) evidenciaram que a manipulação do início de sonorização é uma pista relevante para a identificação das plosivas surdas/sonoras em diferentes contextos linguísticos, a despeito de peculiaridades em localização e precisão da fronteira fonêmica. Em seu conjunto esses dados sugerem que o estabelecimento da fronteira fonêmica é precoce e que sua localização e precisão podem estar relacionados ao grau de diferenciação no domínio da linguagem e ao contexto linguístico específico. Mais especificamente encorajam o aprofundamento do conhecimento do desenvolvimento da percepção categórica para o falante do português brasileiro.

Percepção categórica da fala no idoso

Clinicamente, idosos com comprometimento auditivo costumeiramente se queixam de dificuldade gradual em comunicação oral e de como ouvir a fala pode ser cansativo. E, interessantemente, mesmo na aparente ausência de elevação de limiares tonais, pessoas de meia idade já se queixam de dificuldade de compreensão da fala, quer porque as frequências com alteração em sensibilidade estão acima dos valores usualmente testados em protocolos clínicos (Silva & Feitosa, 2006), ou talvez porque a degeneração primária seja neural (Eggermont, 2019). Se o comprometimento auditivo em idosos for de grande porte, pode ser acompanhado de perda cognitiva, perda de autonomia, isolamento social, depressão e alucinações, tendo prevalência maior as alucinações simples do tipo zumbido e em raras ocasiões as alucinações complexas do tipo musical (Feitosa, Moraes Jr., Nozima, & Castilho, 2019; Linszen et al., 2018).

Prejuízos na percepção de fala já podem ser identificados na quinta década de vida, comparando-se com o desempenho de adultos jovens e com a audição em condições de silêncio ambiental, a magnitude do efeito aumentando com o aumento na idade e nos limiares audiométricos (Eggermont, 2019). Mais especificamente, os limiares para recepção de fala são mais elevados em idosos quando comparados com adultos com audição normal e dentre os idosos são mais elevados para os idosos com perda auditiva quando comparados com idosos sem perda auditiva (Caporali & Da Silva, 2004).

As consoantes são importantes para a compreensão da fala e a perda auditiva de frequências altas costuma causar problemas na discriminação de consoantes, especialmente para idosos e mais ainda se em ambientes ruidosos (Eggermont, 2019). O decréscimo no acerto em reconhecimento de consoantes se relaciona ao parâmetro articulatório, sendo de maior magnitude para fricativas e oclusivas (Gelfand, Piper, & Silman, 1985). Características interessantes da dificuldade de compreensão da fala no idoso são que os fatores idade e magnitude da perda neurossensorial, especialmente para frequências altas, têm efeito independente, o fato de que o som competitivo com efeito mais devastador é o da própria fala de outras pessoas, e a presença de queixa do maior esforço necessário para ouvir. Essas duas últimas características sugerem a contribuição de um componente cognitivo na percepção de fala.

Lembrando que consoantes são especialmente importantes para a percepção de fala, um corpo de estudos menor quando comparado com o conhecimento já estabelecido para a percepção de fala no adulto diz respeito à qualidade da categorização de fonemas em função de degradação do sinal integrando palavras. Consoantes podem ser discriminadas com base na duração do VOT e a manipulação do VOT pode levar à distinção entre consoantes. Uma estratégia metodológica tem sido o uso das tarefas comportamentais propostas por Liberman e colaboradores, manipulando VOT associado à consoante, em pares de fonemas inseridos em sílabas ou palavras, e registrando respostas comportamentais de identificação ou discriminação em combinação ou não com medidas neurofisiológicas.

Alguns estudos têm procurado responder se a dificuldade em compreensão de fala e os erros cometidos em identificação e discriminação estão relacionados a prejuízo em percepção categórica. Strouse, Ashmead, Ohde e Grantham (1998) submeteram ouvintes jovens e idosos, com audição normal e pareados para sexo e sensibilidade auditiva, a um conjunto de tarefas que incluiu tarefas de identificação e discriminação de sons para o contínuo /ba/-/pa/. Jovens e idosos apresentaram a mesma fronteira fonética, mas idosos apresentaram uma categorização mais lábil, com inclinação da função menor para os idosos; a porcentagem de discriminação para os diferentes pares de VOT foi mais alta para os estímulos próximos à fronteira fonética, mas, em geral, mais baixos do que para os jovens. Esta labilidade na percepção categórica para idosos também foi encontrada para o mandarim, uma língua tonal, quando é manipulado o perfil de modulação da frequência fundamental do primeiro formante da vogal /a/ naquela língua (Wang et al., 2017).

A razão para esta labilidade pode estar associada a uma degradação externa, do sinal propriamente dito, ou interna, da qualidade do processamento do sinal pelo sistema auditivo, como poderia ocorrer em pessoas com comprometimento de processamento auditivo. Metodologicamente a degradação externa pode ser abordada comparando desempenho para um sinal claro ou em presença de ruído e, com este tipo de manipulação Bidelman, Bush e Boudreaux (2020) mostraram que em adultos jovens sinais degradados geram categorização mais lábil. Já a degradação interna recomenda manipulações psicofísicas sensíveis a processamento auditivo, em combinação ou não com estudos neurofisiológicos. Em síntese, é possível que as dificuldades em reconhecimento da fala no idoso estejam relacionados a labilidade em categorização, comprometendo a adaptação a condições ecológicas de produção da fala. O corpo de evidência para isto ainda é limitado, requerendo adensamento de evidência experimental psicofísica.

Agradecimentos

A pesquisa teve financiamento de: CAPES (auxílio à segunda autora), CNPq (bolsa à terceira autora), FAPDF (bolsa à quarta autora).

 

Referências

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Recebido em: 12/05/2020
Aceito em: 17/05/2020

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