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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.1 Juiz de Fora abr. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.29218 

ARTIGOS

 

Lesbianidade e feminilidade(s) na visão do Teste de Apercepção Temática

 

Lesbianity and femininity(ies) under the sight of the Thematic Apperception Test

 

Lesbianismo y feminidad a la vista del Test de Apercepción Temática

 

 

Clara Maki InabaI; Fabiano Koich MiguelII

IUniversidade Estadual de Londrina. Email: claramaki@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2157-6733
IIUniversidade Estadual de Londrina. Email: fabiano@avalpsi.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2498-692X

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa objetivou analisar a autopercepção de mulheres lésbicas sobre sua feminilidade, ressaltando as dissonâncias entre mulheres lésbicas e heterossexuais. O instrumento utilizado foi o Teste de Apercepção Temática segundo o sistema morvaliano. Participaram 40 mulheres, entre 25 e 35 anos, metade se identificando como lésbica e a outra metade, como heterossexual. As categorias cujas diferenças de médias resultaram significativas foram Casal, Divertimento, Idealização do Herói, Excitação, Autonomia Antissocial, Dupla, Nutrição Exercida e Conformismo. Pode-se considerar que não haveria uma feminilidade "típica" que diferencie mulheres lésbicas e heterossexuais, uma vez que a feminilidade aparenta provir de vivências subjetivas.

Palavras-chave: Lesbianidade; Feminilidade; Avaliação psicológica.


ABSTRACT

This research aimed to analyze the self-perception of lesbian women about their femininity, emphasizing the dissonance between lesbian and heterosexual women. The instrument used was the Thematic Apperception Test according to the Morval system Forty women between 25 and 35 years old participated, half identified as lesbian and half as heterosexual. The categories that showed significant mean difference were Couple, Fun, Hero Idealization, Excitement, Antisocial Autonomy, Duo, Exercised Nutrition and Conformity. It can be considered that there is not a "typical" femininity that distinguishes lesbian and heterosexual women, once femininity seems to derive from subjective experiences.

Keywords: Lesbianity; Femininity; Psychological assessment.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo analizar la autopercepción de las mujeres lesbianas sobre su feminidad, destacando las discrepancias entre las mujeres lesbianas y heterosexuales. El instrumento utilizado fue el Test de Apercepción Temática según el sistema Morval. La muestra estuvo compuesta por cuarenta mujeres entre los 25 y 35 años de edad, la mitad se identificó como lesbiana y la otra mitad como heterosexual. Las categorías cuya diferencia de medias fue significativa fueron: Pareja, Diversión, Idealización del Héroe, Excitación, Autonomía Antisocial, Dúo, Nutrición Ejercida y Conformidad. Se puede considerar que no hubo una feminidad "típica" que diferenciara las mujeres lesbianas y heterosexuales, ya que la feminidad parece provenir de experiencias subjetivas.

Palabras clave: Lesbianismo; Feminidad; Evaluación Psicológica.


 

 

A homossexualidade passou por um processo de patologização e despatologização em diversas áreas da ciência ao longo da história, tendo sido retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID), em 1992, e do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM), em 1980 (Costa & Nardi, 2013). No que se refere especificamente à homossexualidade feminina, designada, neste artigo, pelo termo lesbianidade, ela obteve menos visibilidade das pesquisas científicas - fosse na medicina, na psicologia, na psicanálise ou na avaliação psicológica - se em comparação à homossexualidade masculina (Esteca, 2016; Portinari, 1989).

A lesbianidade, por carregar em si o signo do feminino, encontra-se enlaçada à feminilidade enquanto conceito subjetivo e idiossincrático. Tal feminilidade passou por denominações variadas no decorrer da história da humanidade, adquirindo um semblante passional de delicadeza, fragilidade, cuidado, passividade, vaidade (Ferreira, 2014). No campo da psicologia, as psicanálises francesa (Bonfim, 2014; Pickmann, 2005; Soler, 2005) e inglesa (Safra, 2009) contribuíram para o questionamento de tal estereótipo do feminino. Contemporaneamente, a teoria queer enriquece o debate ao interpelar o conceito de gênero e as facetas que o compõem (Butler, 1993; 2003), além de discutir a posição social e subjetiva da mulher na intersecção da orientação sexual (Rich, 2010; Wittig, 1992).

Faz-se relevante percorrer um breve trajeto teórico acerca da lesbianidade e da feminilidade no âmbito da psicanálise, a fim de tecer o cenário sobre o qual esta pesquisa se articulou. Também cabe relacioná-las à avaliação psicológica, meio pelo qual o caminho desta investigação se fez possível, e campo de pesquisa ainda pouco explorado pelos estudos de gênero e sexualidade.

A Lesbianidade

O texto de Freud (1920/2011) "Sobre a Psicogênese de um Caso de Homossexualidade Feminina" traz observações sobre o caso clínico de uma jovem mulher lésbica, Sidonie Csillag. Dessas, podemos destacar três: 1) a paciente tem reiterada sua postura libidinal quando identifica o tal desgosto que causava no pai, assumindo uma posição homossexual também em desafio a ele, que deu um filho à mãe, mas não a ela; 2) abdicando do desejo de ter um filho e do amor masculino, Sidonie encontra na amada uma substituta para sua mãe; 3) a dama por quem dedicava seus afetos se ostentava elegante, austera, sofisticada e inalcançável, atributos que rememoravam os de seu irmão mais velho, o que resultava no encontro do seu ideal de mulher e de homem na mesma pessoa, possibilitando que a paciente de Freud satisfizesse seus interesses tanto heterossexuais quanto homossexuais, quiçá bissexuais (Freud, 1920/2011).

Pickmann (2005) indagou sobre o incômodo que o caso de Sidonie ainda provoca em psicanalistas não seria proveniente do fato de que sua recusa do homem, "longe de ser uma recusa da posição feminina", descortina-se como tão somente uma recusa da "norma masculina" (Pickmann, 2005, p. 87). Nesse sentido, a mulher lésbica, e, neste caso, Sidonie, coloca-se em confronto com a ordem fálica, demonstrando que esta fracassou em fazer lei a ao menos uma mulher, que tem uma escolha objetal homossexual sem renunciar de sua posição feminina.

O caso de Sidonie é singular na história psicanálise, sendo que não há outros casos a tratar diretamente de questões lésbicas manifestas. É sabido, entretanto, que a lesbianidade se faz presente em todas as épocas da História, apesar de costumeiramente não ser de interesse das ciências (Maurano, 2013). Diante disso, remetendo à atualidade, é relevante apresentar pesquisas recentes provenientes do campo teórico da psicanálise que abordam as questões da lesbianidade. Esteca (2016) realizou uma pesquisa clínico-qualitativa interessada na compreensão da vivência do preconceito lesbofóbico no enquadre conjugal entre mulheres. Para tanto, a autora entrevistou cinco mulheres que recentemente haviam passado por uma separação conjugal, sendo que analisou a influência da heteronormatividade e da lesbofobia no vínculo amoroso e na conjugalidade dessas mulheres (Esteca, 2016).

Como resultado, no discurso de três das cinco mulheres entrevistadas, foram constatados padrões heteronormativos, tendo sido identificada uma postura controladora assumida por uma das componentes do casal. Como apontado pela autora, a assunção do modelo patriarcal, até mesmo pelas mulheres de todas as famílias das entrevistadas, denuncia a influência que pode ter o machismo e a heteronormatividade na dinâmica conjugal lésbica, afetando a forma com que as mulheres possam existir em suas relações sem necessariamente ter de ser em papéis preestabelecidos e heteronormativos.

Em outra pesquisa relevante, Berttran (2017) realizou em sua pesquisa clínico-qualitativa entrevistas semidirigidas com quatro casais homossexuais (dois casais de mulheres e dois de homens), com mais de vinte anos de relacionamento. Houve, ainda, a utilização de seis pranchas do Teste de Apercepção Temática (TAT). A pesquisa objetivou investigar as relações conjugais e vinculares destes casais e de que formas seus relacionamentos eram afetados pela herança familiar heteronormativa.

Os resultados encontrados pela autora foram de que os casais apresentam uma consolidada relação conjugal e uma resolução conjunta e bem-sucedida dos conflitos que surgiram ao longo dos casamentos, alicerçados por afeto e apoio mútuos. Os casais entrevistados se mantinham juntos por desejo próprio, e desvinculados de uma expectativa ou pressão familiar ou social. Tais resultados voltaram-se, ainda, a questionar a teoria, uma vez que apresentam, na prática, que o casal homossexual mantém e fortalece seu relacionamento, mesmo que em detrimento do reconhecimento de instituições sociais e culturais (Berttran, 2017).

A Feminilidade

Da fatalidade da diferença sexual, a menina abandona a mãe enquanto objeto amoroso quando ela se apercebe de que não possui o pênis e que sua mãe, por também não possuí-lo, não se trata da mãe fálica (de posse do pênis, mas também, no sentido simbólico, da mãe onipotente, completa e a quem nada falta), que a mãe também é castrada. A menina, então, indigna-se e se revolta com a mãe, que leva a culpa de não a ter gerado menino (Freud, 1931/2018; 1933/2018). Diante e a partir dessas percepções acerca da menina, Freud (1925/2018) aborda que ela desenvolveria uma inveja do que vê no menino e sabe que não possui, isso geraria a inveja do pênis e abriria vias para o complexo de castração.

Freud (1931/2018) apresenta três saídas para a mulher quando diante deste complexo de castração: 1) afastamento generalizado da sexualidade e de demais aspectos relacionados; 2) desenvolvimento do complexo de masculinidade, no qual fica a menina a insistir e a desejar ter um pênis, o que a conduz a prosseguir seu desenvolvimento como se assim o tivesse, recusando a possibilidade de um desenvolvimento da feminilidade; 3) desenvolvimento de acordo com a norma heterossexual, tendo o pai/homem como objeto de sua escolha amorosa, a menina deslocaria seu desejo por um pênis para o simbólico desejo de ter um filho com o pai, tomando-o como objeto de amor no lugar da mãe.

Derivada dessa fase de ligação primária da menina com a mãe, Freud (1931/2018) afirmou que, mesmo quando a escolha objetal se dá de forma heterossexual para a mulher, o primeiro casamento das mulheres costuma ser permeado por conflitos psíquicos e afetivos entre mulher e homem. Tais conflitos rememoram aqueles existentes entre a filha e a mãe, na relação primária de amor, ainda que o homem que se tenha feito modelo para a filha buscar um parceiro tenha sido o pai. Diante deste apontamento, Freud (1931/2018) conjecturou que a mudança afetiva de objeto amoroso da mãe para o pai seria fundamental para o caminho que leva à feminilidade.

Após as postulações freudianas acerca da feminilidade, psicanalistas prosseguiram na investigação sobre ela, abordando formas de se constituir uma feminilidade subjetiva. Conforme apresentaram Bonfim (2014) e Soler (2005), a anatomia biológica é capaz de assegurar nosso registro civil, mas não tem alcance no que se refere a desejo e pulsão. Nesse sentido, o pênis é um marcador da diferença sexual, determinando quem será identificado como menino ou menina e quais modelos sociais correspondem a cada um. Em contrapartida, tais modelos são frágeis e não garantem linearidade entre sexo, gênero, orientação sexual e a organização da economia libidinal do sujeito.

Diferentemente da psicanálise freudiana, que postulou que os sexos dividir-se-iam entre portadores e desprovidos do falo, a psicanálise lacaniana indica que tal partilha dos sexos ocorreria na ocasião do posicionamento que os sujeitos tomam frente à função fálica (Quinet, 2012). Deste pensamento, convém sinalizar que o complexo de Édipo viabiliza uma posição masculina de existência subjetiva, mas não uma posição feminina (Bonfim, 2014). Soler (2005) apontou neste quesito que, evidentemente, as mulheres existem, mas tal feminilidade intangível, que não é apreensível nem pelo biológico e nem pelo registro civil, tratar-se-ia, portanto, da falta fálica, da sua essência de "ser castrada" e que a faz buscar o amor, para dele demandar o que lhe preencheria a falta simbólica.

Do outro lado, segundo Teixeira (1991), o menino obteria da identificação com o pai um traço de masculinidade identificável e apreensível por meio do significante fálico. O pai, que já viveu a experiência da castração, garantiria ao filho, nesta identificação, uma "virilidade por procuração" (Teixeira, 1991, p. 18). Entretanto, para a menina tal identificação com a mãe não seria possível, haja vista que a mãe, assim como a própria menina, não teria passado pela castração (já feita realidade pela própria anatomia) em sua própria vivência, nada havendo em si para dar à filha o que simbolize a feminilidade de todas as mulheres. Assim, de traço da feminilidade, nada existe representado na mãe. Desse modo, o desprezo da menina pela mãe decorreria não absolutamente da ausência de um órgão (da "inveja do pênis"), mas por perceber a mãe destituída de qualquer indício, qualquer significante, que lhe possa legitimar (ou sequer representar) sua feminilidade (Teixeira, 1991).

Pickmann (2005) afirmou que, diante dessa constatação, a menina se volta, então, ao pai. Contudo, se o pai tem como a única referência o falo, também não saberia entregar à filha sobre a feminilidade ou similar. Tal situação pode fazer a menina retornar, novamente, à mãe, na negação de sua castração e com a intenção de encontrar na figura materna uma identidade que fundamente o seu feminino. Ressalta-se que o retorno à mãe não remete, necessariamente, a uma escolha homossexual de objeto, uma vez que pode ocorrer, mesmo quando a escolha objetal é heterossexual.

Em algumas circunstâncias, por vezes, a mãe atua no sentido de negar à filha qualquer acesso aos signos femininos, quando dessa situação, à mulher-filha resta apenas sua própria feminilidade e a relação ainda não compreendida com esta. Ela, então, pode se ver "forçada e livre para escolher uma parceria amorosa com a qual poderá se sustentar como mulher, seja qual for o sexo desta parceria. Não raro, este primeiro contato amoroso poderia ocorrer com outra mulher, na suspeita de que a outra saiba do que se trata a feminilidade que ela mesma não conseguiu encontrar (Pickmann, 2005).

Da perspectiva da psicanálise inglesa, tem-se que Winnicott (1966/2005) considerou a construção da feminilidade (e também da masculinidade) como essencial ao desenvolvimento humano como um todo, enfatizando o papel da relação materna para tal, uma vez que seria através dela que o bebê teria para si os primeiros sinais do que constitui uma essência feminina e masculina, independente do sexo desse bebê. Ele considerou que a menina tem em sua mãe o modelo para identificação e assunção da própria feminilidade, condicionado à presença de um amor paterno como predicado da relação que futuramente terá com um parceiro (Safra, 2009).

No contexto mais recente, há que se reconhecer que as teorias de gênero, em especial a teoria queer, têm provocado inquietações em diversos campos de conhecimento. Adentrando tal abordagem, tem-se Judith Butler, filósofa norte-americana que abordou as questões do gênero em si e das intersecções entre sexo biológico (vagina/pênis), gênero (identidade feminina/masculina) e desejo (homossexual, heterossexual ou bissexual). Butler (2003) parte do princípio de que gênero é uma construção social, mas não somente ele seria, como também a construção do sexo biológico e a vinculação desse ao gênero dito correspondente (vagina-mulher e pênis-homem).

A teoria queer não desconsidera as diferenças biológicas, uma vez que estão postas, entretanto, segundo Butler (2003), seria uma construção social o discurso voltado, por exemplo, a quem nasce com vulva e vagina de que sua identidade de gênero será feminina e que seu desejo sexual voltar-se-á a homens, necessariamente e sob uma relação de causalidade. Esta concepção é aventada pela filósofa como sendo um discurso traçado em um determinado contexto histórico a fim de atender a interesses específicos e, nesse sentido, qualquer indivíduo que se desvie desse padrão seria enquadrado como aberração e caracterizado como anormal, quedando enquanto corpos abjetos. Mediante tais aspectos, Butler colocou em questão o gênero e o discurso de (a)normalidade, propondo uma fluidez identitária dos sujeitos (Butler, 2003; Guimarães, 2013).

Acompanhando o desenvolvimento da teoria queer, a norte-americana Adrienne Rich e a francesa Monique Wittig. Rich (2010) abordam as conceituações de heterossexualidade compulsória e de existência lésbica: a primeira, é apresentada enquanto sistema político imposto socialmente, alimentado desde a infância, por meio da idealização do casamento heterossexual e da extrema valorização do homem na vida das mulheres, restringindo a autonomia delas e controlando seus corpos e sexualidades; a segunda conceituação é tratada enquanto subjetividade consistente, em termos de vivência não-heterossexual validada, opondo-se ao escopo clínico que costumeiramente é atribuído à lesbianidade, quanto à utilização da homossexualidade masculina como ponto de referência das existências lésbicas. Wittig, por sua vez, buscava repensar o movimento feminista a fim de elaborar um feminismo lesbiano e questionar a maternidade e o matrimônio compulsório, assim como elevar a lesbianidade a uma categoria política, revolucionária e reivindicatória (Lessa, 2007).

A Avaliação Psicológica

A escolha de testes psicológicos se encontra habitualmente preterida pelas pesquisas em gênero e sexualidade. Ainda assim, cabe relatar sobre as pesquisas recentes que investigaram temas correlatos à lesbianidade ou feminilidade vinculados com a avaliação psicológica. Barros, Natividade e Hutz (2013) contextualizaram e descreveram o processo de construção e validação de um instrumento de medida de papéis de gênero, baseado no estrangeiro Bem Sex Role Inventory (BSRI) e composto por duas escalas: uma, de Feminilidade e outra, de Masculinidade. O inventário apresenta uma lista de adjetivos e o sujeito deve assinalar se considera os adjetivos como sendo característicos de homens ou mulheres. Dentre os resultados apontados pela pesquisa, no que tange à orientação sexual dos participantes, foram comparadas as médias dos resultados de mulheres heterossexuais e não-heterossexuais, assim como de homens de ambas as categorias.

Os resultados obtidos por mulheres "não-heterossexuais" apresentaram pontuação mais elevada na escala de Masculinidade se em comparação às mulheres heterossexuais. Os autores assinalam como motivação para tal resultado a diminuição gradativa da participação de figuras masculinas na vida de mulheres não-heterossexuais e, em consequência, elas deparar-se-iam com a necessidade de desenvolver maior autonomia e independência, características que são frequentemente relacionadas a aspectos masculinos. Há a ressalva dos autores, entretanto, de que isso não implica em uma "masculinização" - no sentido comum do termo - dessas mulheres.

Outra pesquisa a ser apresentada é a de Gato, Fontaine e Leme (2014) e refere-se à validação e adaptação (do contexto de Portugal ao do Brasil) do instrumento Escala Multidimensional de Atitudes Face a Lésbicas e Gays (EMAFLG). Este trabalho resgatou que, historicamente, instrumentos semelhantes vinham sendo desenvolvidos a fim de verificar o preconceito contra pessoas homossexuais, para além dos estereótipos de masculinidade e feminilidade que percorrem o senso comum, entre outros aspectos. O instrumento avaliado apresentou indicadores satisfatórios de validade do construto em três componentes: fatorial, convergente e discriminante. Do mesmo modo, foi verificada a legitimidade de sua utilização em uma cultura diferente daquela na qual foi originalmente idealizada e aplicada.

Consta abordar, novamente, a pesquisa de Berttran (2017) anteriormente citada, que utilizou seis pranchas do Teste de Apercepção Temática (TAT), além das entrevistas realizadas com os casais homoafetivos longevos. Seus resultados demonstraram relações conjugais saudáveis, estáveis e de apoio mútuo. Salienta-se que apenas a última pesquisa citada utilizou um instrumento projetivo que abarca, em sua perspectiva idiográfica, a possibilidade da emergência de conteúdos subjetivos de forma indireta, evitando possíveis resistências. Ademais, colabora para que o aspecto eleito como objeto de estudo possa ser representado pelo sujeito e seja por ele significado a partir de sua realidade e suas experiências particulares (Campos, 2013). Neste contexto, a presente pesquisa teve como objetivo abarcar a feminilidade que comparece na lesbianidade por meio do escopo da avaliação psicológica, elegendo um instrumento projetivo para a investigação da feminilidade de mulheres lésbicas e as divergências entre este grupo e o de mulheres heterossexuais.

 

Método

Sendo a pesquisa de delineamento descritivo e exploratório, a amostra foi composta por 40 mulheres que se encontravam na faixa etária de 25 a 35 anos, metade se identificava como lésbica (homossexual) e a outra metade, como heterossexual. A busca pelas participantes ocorreu por meio de convites em redes sociais e por meio de contatos da rede pessoal da pesquisadora, sendo que a seleção da amostra se deu por conveniência. A participação foi voluntária e sucedeu-se de modo presencial e individual nas dependências da Clínica Psicológica da Universidade Estadual de Londrina.

Houve a aplicação de um questionário de informações sociodemográficas e, em seguida, a aplicação de 13 cartões selecionados dos 31 que compõem o Teste de Apercepção Temática (TAT). Cada prancha do teste apresenta uma ilustração acerca da qual a participante tinha a tarefa de elaborar uma história com início, meio e desfecho. Cada prancha do TAT é identificada em sua parte posterior por um número que designa a ordem em que o estímulo deve ser apresentado. Este número pode ser acompanhado ou não de letras que indicam o gênero e a faixa etária a quem as pranchas são recomendadas, sendo que MF se refere ao sexo feminino (moças e mulheres); HF se refere a adultos (homens e mulheres) e; RH se refere ao sexo masculino (rapazes e homens) (Murray, 1943/2005). A seleção de cartões foi: 1, 2, 3RH, 5, 6MF, 7MF, 9MF, 10, 11, 13HF, 14, 16, 18MF.

Para a categorização das aplicações do teste, foi utilizado o sistema morvaliano, desenvolvido por Monique Morval em 1982, baseado na personologia de Murray e em aspectos da Psicologia do Eu. O sistema morvaliano foi padronizado para o contexto brasileiro por Scaduto (2016). Este sistema objetiva categorizar os resultados do TAT em propriedades "que permitam conhecer o nível de funcionamento dos mecanismos de defesa (...) e das chamadas funções egoicas, por ela entendidas como os recursos positivos da personalidade necessários à adaptação à realidade e à construção de um senso de identidade" (Scaduto, 2016, p. 41).

Todas as participantes assinaram duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, em seguida, iniciava-se a coleta dos dados, com apresentação das instruções da tarefa a ser realizada e apresentação das pranchas selecionadas, uma a uma. A duração média de tempo para aplicação do instrumento foi de 60 minutos, variando entre 45 minutos e 2 horas.

Todas as histórias coletadas foram transcritas integralmente, categorizadas e analisadas por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), em que foi realizada análise de comparação de médias entre dois grupos. Também foi realizada a análise e a interpretação do conteúdo das histórias produzidas com base na padronização apresentada por Scaduto (2016), referenciados no sistema morvaliano. As 60 categorias selecionadas a partir dos critérios de codificação do TAT (Scaduto, 2016) utilizadas para análise nesta pesquisa foram:

  • Tipo de herói: Nome Próprio, Mesmo Sexo, Sexo Diferente, Sem Sexo Definido, Criança, Não-Humano, Dupla, Casal, Grupo;

  • Escala de Complexidade dos atributos do herói: escala de 0 a 3, considerando o nível de profundidade e detalhamento dos sentimentos e pensamentos do herói;

  • Escala de Idealização dos atributos do herói: escala de 0 a 4, considerando o nível de profundidade e detalhamento das características subjetivas do herói;

  • Necessidades do herói: lista que compreende 47 necessidades psicológicas do herói em relação a objetos, situações, a outrem e em reação às ações de outrem, alguns exemplos são: I) Divertimento (cuja definição é jogar, dispor-se à diversão, sair de casa para atividades agradáveis, festejar, rir); II) Autonomia Antissocial (que tem sua definição por roubar, enganar, obter bens por meio ilícito) e; III) Conformismo (sendo sua definição a aceitação de situações ou condições das quais não se possui controle, submissão ao outro de modo passivo). Diante da inviabilidade de abordar todas as necessidades do herói, apenas estas encontram-se apresentadas, contudo, para maior compreensão da categoria e a lista completa de necessidades, recomenda-se a leitura de Scaduto (2016);

  • Tipo de Pressão do meio sobre o herói: escala de 0 a 5, considerando a intensidade da influência do meio sobre o herói no enredo;

  • Desfecho da História: escala de -4 a 4 acerca do sucesso e autonomia do herói, considerando o grau de satisfação das necessidades deste.

Ressalta-se que a diretriz desta pesquisa está orientada a investigar a autopercepção da feminilidade em mulheres lésbicas (grupo L), sendo que os dados coletados do grupo de mulheres heterossexuais (grupo H) foram utilizados no intuito de compreender se e como a autopercepção da feminilidade se diferencia ou se aproxima nos dois grupos. Evidencia-se que em nenhum momento ou aspecto da pesquisa reside a intenção de utilizar os dados do grupo H como normativos, sendo a intenção meramente de investigar a autorrepresentação da feminilidade em ambos os grupos, todas integrantes de um grupo maior, denominado mulheres.

Esta pesquisa obteve parecer favorável pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, aprovado sob o n° 3.092.965. Por meio do TCLE, foram assegurados o sigilo e a confidencialidade das informações coletadas, assim como o encaminhamento a atendimento psicológico, caso houvesse necessidade.

 

Resultados

Do total de 60 categorias de análise obtidas, serão apresentadas aquelas que apresentaram diferenças significativas entre as médias. Duas categorias demonstraram nível de significância p < 0,050 e outras seis categorias apresentaram nível de significância p < 0,100. Ressalta-se que, em 52 categorias de análise (86,6%), não foi constatada diferença significativa entre os grupos de mulheres lésbicas e heterossexuais. A Tabela 1 apresenta as categorias que serão alvo de discussão, além das médias, desvios padrões e teste t de Student das respectivas categorias. O grupo H se refere ao grupo de mulheres heterossexuais e o grupo L se refere ao grupo de mulheres lésbicas.

Diante desses dados, apresenta-se que as participantes do grupo L desenvolveram mais histórias cujas heroínas compunham um casal (lésbico, gay ou heterossexual) se em comparação às histórias das participantes heterossexuais, sendo que esse dado representa uma diferenciação significativa entre os grupos, com nível de significância p = 0,034. Houve também uma diferenciação significativa (p = 0,012) quanto à categoria de necessidade Divertimento, no qual as participantes do grupo L construíram menos histórias nas quais consta tal necessidade psicológica, se em comparação com as participantes do grupo H.

Acerca destes dados, é válido apresentar que, dentre as histórias do grupo L que apresentaram casais como protagonistas, 62,85% das histórias eram compostas por casais homossexuais (duas mulheres ou dois homens). Destas, 77,14% possuíram enredo e/ou desfecho de cunho positivo, ainda que houvesse adversidades ao longo da trama. A significância positiva apresentada na categoria Casal demonstra que este achado não ocorreu ao acaso e não se deve a erro amostral.

Quanto aos resultados que se aproximaram do nível de significância estatística, apresentando p 0,100, têm-se que houve diferença de média entre os grupos nas categorias Idealização do Herói (p = 0,079), Excitação (p = 0,093) e Autonomia Antissocial (p = 0,077), com o grupo L apresentando médias mais elevadas nas três categorias. De modo similar, com p 0,100 e aproximando-se do nível de significância, o grupo H ressaltou-se na diferença entre grupos nas variáveis Dupla (p = 0,060), Nutrição Exercida (p = 0,069) e Conformismo (p = 0,087).

No que se refere à categoria Dupla, dentre as participantes do grupo H, houve 40 produções com este tipo de classificação na descrição das(os) heroínas(heróis). Destas, 77,5% (30 histórias) foram compostas de duplas femininas, dentre as quais, a grande maioria (67,5%) representa duplas com vínculos afetivos próximos (amigas, mãe e filha, irmãs ou primas).

 

Discussão

Acerca das categorias que apresentaram diferença de médias significativa, Casal e Divertimento, faz-se pertinente apresentar a definição de Scaduto (2016) para cada categoria. Casal indica uma descrição de protagonistas na história que mantém entre si relacionamento conjugal; a categoria Divertimento, por sua vez, indica atividades como sair de casa para realizar atividades prazerosas, participar de festas, jogar, fazer piadas etc. Nesse sentido, uma vez que as mulheres lésbicas apresentaram média maior na categoria Casal, pode-se conjecturar que, apesar do preconceito contra a homossexualidade, também representado na tecedura das histórias (na forma de exclusão social e familiar, também violência física, psicológica, moral e sexual), ainda remanesce e persiste a resiliência de um relacionamento homossexual para enfrentar dificuldades e otimismo na crença de que tais histórias de amor possam ter um "final feliz", a despeito das circunstâncias de hostilidade e intolerância. Tal proposição corrobora com Riggle, Whitman, Olson, Rostosky e Strong (2008), uma vez que os autores constataram, por meio de entrevista online, ter a população homossexual (n = 553), em sua grande maioria (95%), uma visão positiva quanto às vivências e experiências homossexuais, mesmo considerando as situações de discriminação, preconceito e exclusão.

A respeito da categoria Divertimento, em que o grupo L produziu menos histórias com esta necessidade psicológica se em comparação ao grupo H, é possível relacionar que, frequentemente, mulheres lésbicas (individualmente ou acompanhadas de suas namoradas ou esposas) relatam possibilidades mais limitadas e menos abrangentes de atividades externas de lazer e de socialização. Põe-se tal questão considerando que as mulheres lésbicas não contam com a mesma aceitação social de sua orientação sexual e de sua composição conjugal com que contam mulheres heterossexuais.

Alicerçado no conceito de Butler (1993) de corpos abjetos, que se refere aos corpos localizados para além das rígidas fronteiras normativas demarcadas pela sociedade nas relações de gênero e sexualidade e que os definem, portanto, como corpos indignos, inválidos e desprezíveis, depreende-se uma motivação para que as participantes do grupo L não tenham apresentado histórias com tantas possibilidades externas ou sociáveis de lazer quanto as participantes do grupo H. Se, à visão da sociedade em geral, os corpos lésbicos são indignos de transitar em espaços públicos, considerados como inválidos enquanto existências, tal coação poderia gerar o enfrentamento ou evitação à situação, esta segunda saída sendo o que configuraria um rol menor de possibilidades externas de lazer, no caso das histórias formuladas pelas participantes do grupo L. Nesse mesmo sentido, paralelamente, as participantes do grupo H representariam com mais frequência e habitualidade, em suas histórias, situações externas de atividades de lazer, uma vez que a representação social de seu corpo e sexualidade encontrar-se-iam em conformidade à heteronormatividade.

Em relação às categorias que demonstraram nível de significância p < 0,100, cabe abordá-las com suas definições. Idealização do Herói indica a predominância dos atributos do herói (positivos ou negativos); Excitação remete à busca por se mostrar audacioso ou impulsivo, à busca pelo perigo como forma de estimulação pessoal e; Autonomia Antissocial se refere a realizar algo não permitido, opor-se às normas morais e sociais, cometer delitos diferentes do roubo (Scaduto, 2016).

Uma hipótese viável acerca da aproximação das categorias Excitação e Autonomia Antissocial do nível de significância para o grupo L é que a comunidade lésbica vivencia não apenas a misoginia e o machismo, mas também a lesbofobia, termo que denomina o preconceito contra lésbicas, tendo como principal fator de discriminação sua lesbianidade, conforme apresenta o 1º Dossiê sobre lesbocídio no Brasil, publicado em 2018 (Peres, Soares, & Dias, 2018). Diante disso, a comunidade lésbica possui maiores probabilidades de se deparar com situações de opressão, injustiça, censura, preconceito e violência contra suas expressões de afeto. Portanto, conjectura-se que elas se encontrem em uma posição em que se vejam impelidas a reagir a tais circunstâncias nos mais variados contextos, aspectos que podem ter sido projetados na composição das histórias.

Cabe salientar que Eribon (2008) conjectura que toda pessoa homossexual tenha vivenciado, em algum momento da vida, uma situação de ofensa direta ou indireta com relação a sua parceria amorosa ou à possibilidade de expressar seu afeto para além da heterossexualidade. Dessa forma, pode-se pensar que as lésbicas obtiveram médias mais elevadas em Autonomia Antissocial e Excitação dadas as defesas que a lesbofobia exige que desenvolvam. Tal hipótese se edifica, ainda, sobre aspectos históricos, uma vez que, no Brasil, mesmo no contexto do movimento feminista e do movimento gay houve confrontos que chegaram à violência física em clara demonstração de oposição destes movimentos em relação à comunidade lésbica que, no final do século XX, buscava se firmar enquanto movimento social (Góis, 2003).

Também embasa tal reflexão, a questão trazida por Rich (2010), em que afirma constituírem as lésbicas juntamente às mulheres que não cedem à maternidade ou ao matrimônio compulsórios uma subversão de um sistema predominante que as despersonaliza e nega-lhes a autonomia sobre seu próprio corpo e sexualidade. Diante desta conjuntura, portanto, configura-se a possibilidade pela qual houve uma aproximação ao nível de significância das participantes do grupo L nas categorias Excitação e Autonomia Antissocial, que caracteriza o colocar-se em perigo e violar normas morais e sociais.

Com relação à categoria de Idealização do Herói, as heroínas e heróis das histórias do grupo L apresentaram atributos predominantemente positivos, como pensamentos e sentimentos agradáveis, bem como características socialmente desejáveis. Este dado pode ser ponderado a partir da concepção histórica sobre a homossexualidade enquanto categoria social que, conforme apresentado no segundo capítulo, passou pela trajetória de ser caracterizada e perseguida como pecado, crime e doença (Paoliello, 2013).

Sob a sombra destes estigmas, a imagem que se construiu sobre as pessoas homossexuais foi tomando um viés negativo, significando-as como se fossem vis, imorais, de mau caráter, indignas de respeito. Ainda atualmente, lésbicas e gays podem ser vistos como pecadores, criminosos ou doentes, a depender de seu contexto religioso, social e cultural. Assim, a homossexualidade pode, no contexto desta hipótese, exigir uma ênfase individual maior em atributos pessoais que sejam valorizados e aceitos socialmente (como a gentileza, empatia, simpatia, solidariedade, entre outros), servindo como uma forma de sistema compensatório para conquistar minimamente o respeito e a aceitação da sociedade, da família, do outro, uma vez que não há um enquadre dessas pessoas nos padrões heteronormativos da sociedade. Faz-se relevante reafirmar o que Eribon (2008) apresenta em relação à necessidade das pessoas homossexuais em criar e manter mecanismos de defesa para lidar com o preconceito, neste caso, lesbofóbico.

Nesse sentido, corrobora-se com Esteca (2016), quando esta apresenta que uma das mulheres lésbicas que entrevistou temia decepcionar seus familiares devido a sua lesbianidade, o que a levou a construir "mecanismos subjetivos de compensação" (p. 107), ao buscar corresponder às expectativas deles em outras áreas (estudos e trabalho, por Exemplo), no intuito de "restituí-los" por sua orientação sexual. Considerando que Campos e Guerra (2016) apresentaram ser a aceitação e o apoio social e familiar essenciais para a promoção e a manutenção do bem-estar de uma pessoa homossexual, é possível cogitar que tal forma de mecanismo subjetivo possa se enquadrar como um modo de sublimação, ao levarmos em conta o efeito socialmente construtivo que gera.

Também com nível de significância p < 0,100, têm-se as categorias nas quais o grupo H obteve médias mais elevadas. As categorias e suas respectivas definições são: Dupla indica protagonistas que compõem dupla de irmãs, amigas, entre outros; Nutrição Exercida remete à busca ou preparação de alimentos como forma de trabalho ou cuidado a outrem; Conformismo se refere à aceitação de situações ou condições sobre as quais não se tem controle ou possibilidade de contornar, trata-se de uma submissão passiva (Scaduto, 2016).

Em relação à categoria Dupla, tendo o grupo H obtido uma média maior, pode-se remeter a uma homossexualidade feminina primária (considerando a relação mãe-filha e a mãe enquanto primeiro objeto de amor das meninas), mas sobretudo conjectura-se que jaz nestes dados a busca pela questão (ou, talvez, pela solução) da feminilidade, seja via identificação materna ou via uma outra mulher, enquanto a Outra, imaginariamente capaz de fornecer a marca da feminilidade e certificá-la.

Nessa direção, Pickmann (2005) esclarece que a menina, quando cogita a mãe como modelo de identificação para sua própria feminilidade, depara-se com um obstáculo, uma vez que a mãe que serviria de modelo para tal tarefa é aquela mãe primária, fálica, não castrada, absoluta e que tudo pode. Trata-se de uma mãe idealizada e tal mãe em condição de soberania nega a existência da mulher na figura da mãe. Não seria possível, portanto, que tal identificação reflita o "ser mulher" à menina, uma vez que tudo que apreenderia dela seria a negação da castração do Outro, em desencontro à realidade.

Pickmann (2005) ainda apresenta que a menina, já mulher, não tendo encontrado a marca da feminilidade em suas figuras parentais, pode buscar solucionar tal enigma da feminilidade na relação com uma Outra mulher, supondo que esta possa deter o conhecimento acerca da feminilidade cujo acesso não lhe foi ofertado. Assim, compreende-se que os resultados da pesquisa demonstram essa reflexão nas relações de amizade constituídas nas histórias do grupo H, considerando uma bissexualidade latente que, na mulher, proviria do vínculo primário com a mãe - mesmo que na vida adulta a escolha de objeto seja direcionada aos homens (Freud, 1931/2018). Ademais, tem-se a definição de que as amizades se edificam sobre impulsos de cunho sexual, em sua origem (Freud, 1923/2011). Essa busca pelo que distingue o "ser mulher", seja por meio da mãe ou das amigas ou de outros vínculos com os quais possa ser estabelecida uma relação de intimidade, poderia ser, portanto, vista como marcadamente feminina.

A respeito das categorias Nutrição Exercida e Conformismo, nas quais as participantes do grupo H também obtiveram médias mais elevadas, hipotetiza-se que representem simbolicamente o papel preconizado de que a mulher é responsável pelo cuidado. Seja pelo cuidado que remete à atenção materna, de proteção e amparo, ou pelo cuidado que se destinaria ao homem, considerando um contexto social machista.

Nesta segunda perspectiva, pode-se abarcar o conceito de heterossexualidade compulsória, de Rich (2010), cujo alcance não se limita às mulheres lésbicas e bissexuais, mas atua também sobre as heterossexuais, uma vez que se trata da limitação da autonomia da mulher sobre si mesma, independente de orientação sexual ou de outro aspecto. O mecanismo da heterossexualidade compulsória é alimentado social e culturalmente desde a infância, quando às meninas é apresentada de maneira romantizada a relação heterossexual, à qual são levadas a desejar, por meio dos contos de fadas, filmes, propagandas, a grandeza da festa de casamento, resultando deste processo a extrema valorização da presença masculina na vivência de uma mulher (Morais, 2017).

Constata-se, entretanto, que nas produções das participantes, apesar desse discurso opressivo comparecer, as heroínas se colocam como opositoras desse sistema, revolucionárias e com intenções diversas à norma vigente. Mesmo que no enredo não obtenham sucesso em subverter o sistema hegemônico (provavelmente porque a maioria situou as histórias em um determinado tempo histórico, ressaltando que "naquela época" as mulheres ainda não tinham conquistado muitos direitos), todas apresentaram em suas heroínas posturas que reivindicavam a subjetivação da mulher enquanto detentora de direitos igualitários.

No que se refere especificamente à Nutrição Exercida, as participantes também contradisseram a ideia machista de que as mulheres cuidam dos homens (entendendo que preparar alimentos é, simbolicamente, uma forma de cuidado), apresentando em suas histórias homens que cozinham para suas esposas e delas cuidam ou, como em um caso, o casal prepara sua refeição em conjunto. Compreende-se que tais projeções ainda estejam repletas de símbolos referidos ao cuidado, acalento e aconchego, conforme representa Collette (1978), mas diante da configuração das personagens e seus papéis, assume-se que representam uma alteração na compreensão da relação conjugal entre homem e mulher que as mulheres vêm construindo. Destaca-se como uma possível reflexão a ser promovida a questão de que as participantes do grupo L possam ter apresentado uma média menor na categoria Conformismo exatamente porque expressaram uma média mais elevada na categoria Autonomia Antissocial, o que evoca a predisposição a contrariar normas morais e sociais estabelecidas.

 

Considerações Finais

À luz dos resultados obtidos e das discussões elaboradas, é possível constatar e refletir que a constituição da feminilidade decorre de experiências individuais e podem estar relacionadas a vivências próprias da realidade social homossexual ou heterossexual. Entretanto, especialmente diante das hipóteses acerca das médias elevadas do grupo H nas categorias Nutrição Exercida e Conformismo, pode-se pensar que as mulheres, independentemente de orientação sexual, estejam movimentando-se no sentido de questionar e alterar as normas padrões vigentes, conforme pode ser observado pelos dados da pesquisa e, principalmente pelo movimento feminista que vem se potencializando exponencialmente (Matos, 2010).

Retomando que foram obtidas 60 categorias de análise, sendo que apenas seis demonstraram diferenciação significativa ou aproximaram-se deste parâmetro, na grande maioria das categorias não foi constatada diferença significativa entre os grupos de mulheres lésbicas e heterossexuais, conforme apresentado. Com base nesse dado, considera-se que não foi possível identificar a existência de uma feminilidade "típica" para mulheres lésbicas que seja diferente de uma feminilidade das mulheres heterossexuais. Enfatiza-se, ainda, que os grupos não são homogêneos, haja vista que em ambos os grupos há mulheres que produziram mais histórias com enredos e desfechos de teor positivo e também mulheres que produziram mais histórias com enredos e desfechos de teor negativo.

Aventa-se a pesquisas futuras que busquem investigar como decorre a autopercepção das feminilidades que ultrapassam a fronteira cisgênera (aquela que se identifica com o sexo atribuído no nascimento, em oposição às pessoas transgêneras) e monossexual (cuja orientação sexual se volta a mais de um gênero). Dessa perspectiva, permanece extenso o campo de pesquisa com que se depara a avaliação psicológica, uma vez que podem ser pesquisadas as feminilidades expressas pelas mulheres bissexuais, pansexuais, transexuais, travestis e outras que venham a identificar-se similarmente. As vastas possibilidades que podem ser elaboradas a partir desta pesquisa abrangem-se não apenas à avaliação psicológica, mas também às demais vertentes teóricas da Psicologia, convocando também as demais áreas a refletirem sobre as feminilidades, no plural.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Clara Maki Inaba
claramaki@gmail.com

Recebido em: 08/12/2019
Aceito em: 11/04/2020

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