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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.1 Juiz de Fora Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.29482 

ARTIGOS

 

Além do cristianismo: Sobre a função religiosa no pensamento de C. G. Jung

 

Beyond Christianity: On Religious Function in C. G. Jung's Thought

 

Más allá del cristianismo: Sobre la función religiosa en el pensamiento de C. G. Jung

 

 

Rodrigo Barros Gewehr

Universidade Federal de Alagoas. Email: rodrigo.gewehr@ip.ufal.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3274-7032

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os paralelos entre fenômeno religioso e funcionamento psíquico são uma constante no pensamento junguiano. Por meio deste problema, Jung aborda questões estruturais em sua teoria, tais como a tendência à unilateralidade da atividade consciente; o caráter compensatório e autorregulador da psique, resultante dessa tendência; a distinção entre confissão religiosa e religiosidade. Essas questões operam no sentido de salientar o lugar central ocupado pela função religiosa na estrutura psíquica, lugar que não se confunde, todavia, com uma adesão a dogmas religiosos. Tendo como ponto de partida o Livro vermelho, a crítica de Jung ao cristianismo nos orientará ao longo deste ensaio sobre a função da religião na vida psíquica. Duas conclusões emergem desta reflexão: a perspectiva psicológica adotada por Jung para a análise dos fenômenos religiosos, e o uso destes para demonstrar a tese da autonomia dos fatos psíquicos.

Palavras-chave: Carl Gustav Jung; Autonomia psíquica; Função religiosa; Cristianismo; Livro Vermelho.


ABSTRACT

The parallels between religious phenomenon and psychic functioning are a constant in Jungian thought. By means of this problem, Jung addresses structural issues in his theory, such as the tendency to unilaterality of conscious activity; the compensatory and self-regulating character of the psychic functioning, as a result of this tendency; the distinction between religious confession and religiosity. All of this serves to highlight the central role Jung attaches to religious function in the psychic structure, a role which is not, however, confused with an adherence to religious dogmas. Taking The Red Book as a starting point, Jung's critique of Christianity will guide us throughout this essay on the role of religion in psychic life. Two major conclusions can be outlined from these observations: the psychological perspective Jung adopted for the analysis of religious phenomena, and the use of these phenomena to demonstrate the autonomy of psychic facts.

Keywords: Carl Gustav Jung; Psychic autonomy; Religious function; Christianity; Red Book.


RESUMEN

La relación entre el fenómeno religioso y el funcionamiento psíquico es una constante en el pensamiento junguiano. A través de este problema, Jung aborda cuestiones estructurales en su teoría, como la tendencia a la unilateralidad de la actividad consciente; el carácter compensatorio y autorregulador de la psique; resultante de esa tendencia; a distinción entre confesión religiosa y religiosidad. Todo esto sirve para señalar el rol central de la función religiosa en la estructura psíquica, un rol que, sin embargo, no se confunde con una adhesión a los dogmas religiosos. Tomando el Libro Rojo como punto de partida, la crítica de Jung al cristianismo nos guiará a través de esta reflexión sobre el papel de la religión en la vida psíquica. De esta reflexión surgen dos conclusiones principales: la perspectiva psicológica adoptada por Jung para el análisis de los fenómenos religiosos, y la centralidad de estos fenómenos para demostrar la autonomía de los hechos psíquicos.

Palabras clave: Carl Gustav Jung; Autonomía psíquica; Función religiosa; Cristianismo; Libro rojo.


 

 

If the inquiry be psychological, not religious institutions, but rather religious feelings and religious impulses must be its subject (William James)

No terceiro capítulo do Livro Vermelho, Jung trava uma batalha com sua alma que, segundo relata, impele-o a escrever todos os sonhos de que se lembrava. A primeira parte do capítulo é dedicada a interrogar o sentido de tal procedimento, o que o leva a admitir sua incompreensão, sua falta de confiança no que lhe está acontecendo, seu medo "repleto de saber" (Jung, 2009/2015, p. 125) e o quanto o pensamento era em si mesmo um empecilho para lidar com aquilo que a alma lhe obrigava a ver: "Eu coxeio atrás de ti, apoiado em muletas da razão. Eu sou um homem e tu andas como um Deus" (Jung, 2009/2015, p. 125).

A própria alma o repreende pelo que seria uma quebra no laço de confiança, e este será o mote central de toda a tessitura do Livro Vermelho, na medida em que relata a penosa experiência de "confronto com o inconsciente" - tal como o autor a denomina em algumas ocasiões1 - e que diz respeito a um processo de recuperação da alma e superação do mal-estar contemporâneo da alienação espiritual, ao qual Jung também está sujeito (Shamdasani, 2009/2015, p. 43). Na segunda parte do capítulo, o estrato interpretativo, Jung admite que o aprendizado pela via do Espírito da Profundeza se dá grandemente pelo sem sentido [Sinnlose] "pois esta é a outra metade do mundo" (Jung, 2009/2015, p. 126). Abrir as portas da alma é deixar entrar as torrentes escuras do caos, as quais, não obstante, seriam a trilha incerta da síntese possível entre sentido [Sinn] e absurdo [Widersinn], na forma de um sentido supremo [Übersinn].

Ainda neste estrato do capítulo, há uma operação de aproximação entre deus e alma, na qual Jung ressalta o caráter terrível de deus, o que justificaria o pavor da profundeza e, por extensão, o pavor da alma. Se é verdade o ensinamento de cristo de que deus é amor, caberia não esquecer que também o amor é terrível [furchtbar]. É neste contexto que afirma: "Cristo venceu a tentação do demônio, mas não a tentação de Deus para o bem e o razoável. Cristo está pois submetido à tentação. Isto ainda tendes de aprender: não ficar submetido a nenhuma tentação, mas fazer tudo voluntariamente; então estareis livres e além do cristianismo" (Jung, 2009/2015, p. 126-127).

A tentação aparece aqui como uma figura da unilateralidade, na medida em que se esquiva e projeta as obscuridades do inconsciente na forma de ameaças à integridade da consciência. Se Jung lança mão da ideia de tentação, inúmeras vezes ao longo de sua obra, atribui a essa noção de uso corrente - como é habitual em seu trabalho - um direcionamento interpretativo a partir da psicologia, tal qual se pode ler numa referência que faz à tentação de Jesus no deserto:

A história da tentação revela claramente a natureza do poder psíquico com o qual Jesus entrou em colisão: foi o demônio inebriado pelo poder da prevalecente psicologia dos Césares que o levou a uma terrível tentação no deserto. Este demônio era a psique objetiva que manteve todos os povos do Império Romano sob sua influência, e por isso prometeu a Jesus todos os reinos da terra, como se quisesse fazer dele um César (Jung, 1934/1981, p. 180).

A psique objetiva mostra aqui seu caráter coletivo, como uma espécie de tonalidade de fundo a tanger o modo de vida das pessoas. O "demônio" do poder secular, apresentado na forma da subjugação de todo um povo por invasores estrangeiros, incidiria no circuito dos afetos, reforçando a ideia de que o poder estaria no domínio sobre o outro e sobre os bens terrenos. O Espírito do Tempo (termo que se opõe, no Livro Vermelho, ao já mencionado Espírito da Profundeza), correlato da unilateralidade da consciência, induziria a uma "cobiça cega das coisas deste mundo" (Jung, 2009/2015, p. 117), ofertadas como promessa a um Jesus esfomeado após quarenta dias de jejum. Tornar-se um césar seria o simulacro do poder, simulacro a que estamos todos sujeitos e, não menos do que cada qual, também o personagem em questão. A vitória sobre o demônio no deserto é uma figuração do processo de integração psíquica. Trata-se, no entanto, de uma vitória tão somente parcial, como o mostraria a "tentação para o bem" aludida por Jung.

Mas a que "tentação" ele se refere especificamente neste trecho do Livro Vermelho? Trata-se aqui do acontecimento da figueira estéril, mencionado nos evangelhos de Mateus [21, 20-22] e Marcos [11, 20-26] (Bíblia, 2017). Segundo consta, num momento em que o rabi Jesus estava particularmente enfurecido, quando da entrada em Jerusalém e do encontro com os vendilhões do templo, teria ocorrido o seguinte episódio:

De manhã, voltando Jesus para a cidade, sentiu fome. E vendo uma figueira junto do caminho, aproximou-se dela e nada encontrou nela a não ser folhas, apenas. E diz-lhe: "Que nunca de ti nasça fruto até a eternidade". E subitamente a figueira secou. E os discípulos, vendo [isso], espantaram-se, dizendo: "Como é que de repente a figueira secou?". Jesus, respondendo, disse-lhes: "Amém vos digo, se tiverdes fé e não duvidardes, não só fareis o que [foi feito] desta figueira, mas também à montanha direis 'levanta-te e atira-te ao mar!' e [isso] acontecerá. E todas as coisas que pedirdes com fé na oração recebereis [Mt. 21, 18-22] (Bíblia, 2017, p. 127)2.

Jung se insurge contra essa atitude do rabi Jesus que, para ele, é profundamente não-cristã. A tentação estaria no gesto mesmo de amaldiçoar, independente da razão profética por detrás do ato. "O Cristão - minha ideia do Cristão", diz o autor alguns anos depois, "desconhece fórmulas de maldição; na verdade, ele sequer sanciona a maldição colocada sobre a inocente figueira pelo rabi Jesus, nem presta atenção ao missionário Paulo de Tarso quando este proíbe ao Cristão amaldiçoar e no momento seguinte ele mesmo amaldiçoa" (Jung, 1944/1976, p. 646). Haveria uma contradição no cerne do cristianismo, exemplificada por essa ideia da "tentação para o bem". Deixar-se possuir por um pathos da virtude pode, em última instância, ser também uma tentação de fazer valer a própria opinião, dando ares de verdade e salvação àquilo que é imposição de uma dada perspectiva, unilateralidade.

Este cenário aponta para quatro eixos fundamentais do pensamento de Jung acerca do funcionamento psíquico, e notadamente em sua relação com o fenômeno religioso, levando em conta que este constituiria expressão de uma função natural, existente desde sempre em nossa estrutura psíquica (Jung, 1956/1978): 1. O problema da unilateralidade; 2. O caráter compensatório e autorregulador da psique; 3. A distinção entre confissão religiosa e religiosidade e; por fim, 4. A função religiosa.

A tentação da unilateralidade

A unilateralidade está diretamente relacionada à questão do dinamismo psíquico e à tendência, tanto singular quanto coletiva, de se colocar a consciência como centro inconteste da vida psíquica, por vezes à custa da negação mesma do que há de obscuro no funcionamento psíquico. Essa tendência é compensada "por ideias ou imagens contraditórias vindas do inconsciente" (Agnel, 2008, p. 31) e que podem ganhar características diversas, dentre as quais as imagens que se configuram no horizonte do que denominamos religioso. Neste sentido, o perigo da unilateralidade é representado de modo amplo na forma como Jung aborda a ideia do deus summum bonum, criticada pelo autor num outro texto que gerou bastante controvérsia em torno de sua posição quanto à religião.

Com efeito, em Resposta a Jó, a interpretação psicológica de Jung (1952/1989) ao livro de Jó vai de encontro à exegese adotada pelo cristianismo ou pela tradição judaica (Maimonides, 1190/1963, p. 486-497). Tanto uma como outra tradição retiram o caráter de escândalo que Jung vê neste episódio, ao posicionarem a história de Jó numa perspectiva teológica mais ampla, seja enfatizando a misericórdia divina, na visão cristã; seja colocando o sofrimento de Jó na conta de sua incompreensão do plano divino, como em Maimônides. Jung, por sua vez, lança-se numa crítica à ideia agostiniana do mal como privação do bem (Santo Agostinho, s/ano, 1991), mostrando que esse artifício lógico nos impediria de enxergar a antinomia central de Javé, qual seja, a de uma "oposição interna total" (Jung, 1952/1989, p. 369, ver também 1952/1967, p. 14). A aposta de Deus com o Satanás, transformando a vida do fiel Jó num inferno (apesar de estar convencido da fidelidade de seu servo), significaria, noutros termos, que deus cedeu à tentação de provar para si mesmo, em última instância, sua onipotência. "Jó reconhece a antinomia interna de Deus" (Jung, 1952/1989, p. 377, ver também 1952/1967, p. 22) e desvela, quiçá, o ciúme e a inveja do criador em relação à criatura: a debilidade humana face à onipotência divina nos daria a vantagem da autorreflexão, contrariamente à monotonia sem obstáculos da condição divina.

De fato, é um espetáculo nada edificante ver quão rapidamente Javé abandona seu fiel servo ao espírito maligno e o deixa cair sem remorso ou piedade no abismo do sofrimento físico e moral. Do ponto de vista humano, o comportamento de Javé é tão revoltante que é preciso perguntar a si mesmo se não há um motivo mais profundo escondido por detrás disso. Teria Javé uma resistência secreta contra Jó? Isso explicaria ele ter cedido a Satanás. Mas o que o homem possui que Deus não o tenha? Por conta de sua pequenez, de sua punibilidade e de seu desamparo face ao Todo-Poderoso, ele possui, como já sugerimos, uma consciência algo mais apurada, baseada na autorreflexão: a fim de sobreviver, ele deve sempre estar consciente de sua impotência. Deus não tem necessidade dessa cautela, pois em lugar nenhum ele se depara com um obstáculo insuperável que o force a hesitar e, por conseguinte, que o faça refletir sobre si mesmo (Jung, 1952/1989, p. 375).

Jung assume declaradamente um olhar que parte "do ponto de vista humano", reforçando o caráter psicológico de sua análise (como já o advertira no início da obra em questão) e, com isso, abstém-se do plano teológico de interrogação. Apesar disso, ele não deixa de inserir algumas inferências que poderiam ser lidas como teológicas, na medida em que define indiretamente um estatuto ontológico para deus ao distinguir onisciência e consciência reflexiva, sendo esta um atributo humano que, a partir da frustrada tentativa de prejudicar Jó, acaba também por provocar uma transformação em Deus3. Pela derrota moral diante de Jó, Javé, na sua onisciência, passaria de um estado de mera primitive awareness ou de irresponsabilidade a uma condição reflexiva que culmina no surgimento de Jesus: "Javé deve tornar-se homem precisamente por ter causado injustiça ao homem" (Jung, 1952/1989, p. 405). Noutros termos, Jesus seria um efeito da consciência de culpa de um deus cuja onipotência cega teria levado à arbitrariedade de ferir seu servo mais fiel; gesto esse que, do ponto de vista humano, ativa um índice de angústia na relação com a divindade. Ainda mais importante, esse gesto divino relembraria aos cristãos a parcialidade ou, quiçá mesmo, a insustentabilidade da ideia de um deus sumum bonum.

Ainda que mantenha uma linguagem de inspiração empírica, remetendo o drama divino ao crivo da interpretação das operações inconscientes em ação nestas imagens, é difícil escapar da impressão de que aí também ocorre uma exegese bíblica e, por conseguinte, um exercício de quase-teologia. Jung, no entanto, alerta para o equívoco que seria tomar seu livro por este prisma4 e insiste que o que lhe interessa de fato na história de Jó é o impacto psicológico que ela causa em quem a lê e o quanto essa sua interpretação psicológica de deus é não só incompatível como também mais realista que a ideia cristã de deus. Jung afirma que o episódio de Jó aponta para um Javé amoral, num ato que exterioriza a maldade e a selvageria divinas. Mas adverte, tanto na introdução quanto na abertura do livro: trata-se de uma reação subjetiva. Não seria tanto questão de coletar e analisar minuciosamente os testemunhos da sagrada escritura, mas sim abordar a "forma pela qual uma pessoa criada e instruída no cristianismo se confronta com as trevas divinas" (Jung, 1952/2001, p. 07).

O deus cristão, na sua representação como sumo bem, com o esvaziamento da substancialidade do mal que lhe seria inerente, recoloca o problema dos opostos pela recusa da oposição interna, pelo cultivo da imagem de um deus sem contradições, sem agendas ocultas para as "pessoas de boa vontade" [Lc. 2,14] (Bíblia, 2017). Essa imagem, diz Jung, é insustentável do ponto de vista da realidade psíquica e dos afetos que esta engendra5.

O drama divino pode ser lido como análogo ao drama da vida psíquica: se naquele a paixão da onisciência leva à afirmação de sua obscuridade pelo uso "arbitrário" do poder; nesta, a tendência à recusa do complexo de opostos (Cs - Ics) tem como consequência a valorização excessiva da consciência, que se arvora com isso uma pretensão à autoridade moral e epistêmica sobre a vida. Jung lembra que "a crença de que Deus é o Summum Bonum é impossível para uma consciência reflexiva" (Jung, 1952/1989, p. 419), pelo fato de essa imagem não dar conta das contradições internas - não só da experiência psíquica como também da própria experiência religiosa.

Nesse sentido, a figura do cristo se mostra ambígua, parcial e potencialmente temível, donde o paralelo medieval de cristo com a serpente6 - não somente pela sabedoria que representa, mas também pelo seu caráter teriomórfico; bem como a necessidade psicológica do anticristo: "O Anticristo se desenvolve na lenda como um perverso imitador da vida de Cristo. Ele é um verdadeiro άντίμιμον πνεύμα, um espírito do mal imitador que segue os passos de Cristo como a sombra segue o corpo" (Jung, 1950/1970, p. 42). Esse espírito opositor opera como um complemento à unilateralidade da bondade divina pregada pelo rabi Jesus, e, no plano psicológico, seria o contraponto à luminosidade da consciência. É o conflito implícito na unilateralidade, afirma ainda Jung, que torna inevitável a Jesus inserir, na oração do pai nosso, um apelo cuidadoso e uma advertência: "...não nos leve para a tentação" [Lc. 11,4] (Bíblia, 2017, p. 264). Apesar da confiança ilimitada de Jesus em Deus, tendo vencido o satanás pela fé, "Cristo acha oportuno lembrar ao Pai, na oração, os pendores perniciosos dele em relação aos homens, e rogar-lhe que se desfaça deles" (Jung, 1952/1989, p. 411).

No mesmo capítulo do evangelho de Lucas [Lc. 11, 14 - 24], a dimensão do espanto é evocada pelas pessoas ao verem o rabi expulsar demônios. É apoiado em Belzebu, dizem, que ele expulsa os demônios. A Jesus de se explicar e, por fim, lançar sua sentença: "Quem não está comigo está contra mim; e quem não junta comigo, dispersa" [Lc. 11, 23] (Bíblia, 2017, p. 265). Não estaria aqui, também, operando o pathos da decepção? E com este a tentação para o bem, a compulsão de provar a virtude de seus atos? Nisso residiria a ambiguidade que, para Jung, é indício da insustentabilidade do sumo bem como representação da divindade e, no que diz respeito ao ângulo propriamente psíquico do fenômeno religioso, mais uma expressão da unilateralidade da consciência.

O dinamismo psíquico entre compensação e autorregulação

Essa tensão interna na ideia de um deus que seria benevolente, gracioso, e que operaria por meio de uma justiça amorosa, contraposta à potencial arbitrariedade que subjaz à sua onipotência, leva-nos a um segundo eixo de análise da crítica de Jung ao cristianismo. É interessante notar que Jesus venceu a tentação do mal no deserto, superando o apelo à idolatria, afirmando o princípio cardinal da fé, porém mais adiante cede à tentação da virtude. Ao ferir de morte a figueira, o rabi Jesus se deixa levar pela potência que lhe garante a fé, e faz desta uma arma de sua missão - ou de sua arbitrariedade. Mais ainda, pelo prisma da unilateralidade, esse gesto ratifica no cerne da fé certo princípio de barganha com a divindade, o que podemos pensar como sendo uma forma de racionalização, de mais-valia da consciência e, no limite, de sectarismo.

Na dinâmica autorregulatória da vida psíquica, a arbitrariedade que extravasa no cerne da virtude é compensação de um excesso de ânsia pela luminosidade da consciência e da vontade e da presença, o arremedo de um ser humano que se quer imagem de deus. Aqui talvez se possa pensar o trecho de uma inscrição que Jung gravou na torre de Bollingen: "arrependimento de Fausto" (Shamdasani, 2009/2015, p. 70). Não poucas vezes a fé foi usada como justificativa da barbárie, embalada pela precisão dos artifícios mais engenhosos da consciência, realizados no labor da ciência e tendo por miragem a ideia de que a razão seria o (único?) farol da condição humana. E se essa fé pode mover montanhas, pode também provocar deslocamentos forçados de populações, mortes em massa, ascensão e derrocada de impérios - o que corrobora o poder mobilizador atribuído à fé, mas também alerta para o perigo inerente ao que se pede em seu nome.

Inspirado no Zaratustra de Nietzsche7, Jung afirma, novamente no Livro vermelho: "Tanto o escravo da virtude quanto o escravo do vício não encontram o caminho" (Jung, 2009/2015, p. 127). O problema da virtude está na inflação da consciência, no perigo de criar para si uma redoma que justificaria a eliminação da figueira, ou de porcos8, ou, até mesmo, em última instância, a eliminação do outro, em nome da fé, como a história do cristianismo o mostra largamente. Estar submetido ao imperativo da virtude é também uma forma de alienação, um modo sutil de acreditar-se senhor da própria alma. Atento ao princípio de autorregulação que se tornou norteador de seu pensamento teórico, Jung finaliza o estrato interpretativo do capítulo III do Livro vermelho afirmando: "Se achas que és o senhor de tua alma, torna-te seu servo; se fores seu servo, assume o poder sobre ela, pois então ela precisa de domínio. Que estes sejam teus primeiros passos" (Jung, 2009/2015, p. 127). A compensação exigida pela unilateralidade do deus sumo bem, ou pela tentação da virtude, implica integrar o que há de obscuro no próprio deus, na religião e na alma. Que Jesus se autorize a matar uma figueira ou porcos, para ensinar, ensina também o quanto a virtude pode ser perigosa e o quanto a bondade arrasta atrás de si uma sombra, que no mais das vezes encontra aconchego, projetada, na própria vítima da boa ação.

Victor White mostra que Jung, antes de 1914, tendia em parte a um "otimismo humanista" e talvez também a

esperanças exageradas de que a análise psicológica pudesse exaurir os conteúdos inconscientes; que todas as atividades religiosas, representações e origens, ao serem submetidas à investigação analítica, e desta forma tornadas inteiramente conscientes e racionalmente explicadas, seriam capturadas, deixando ao homem o máximo controle de sua alma, supremo, autônomo e sem Deus (White, 1952/1953, p. 53).

Ainda que, no prefácio a essa obra de White, Jung se mostre crítico a algumas conclusões do autor, ele admite que com este livro se estabeleceu um diálogo produtivo entre seu ponto de vista empírico e a perspectiva teológica do padre dominicano. Se ele concorda com o caráter numinoso da imagem divina, novamente contesta a ideia da privatio boni como explicação para o mal, atribuindo a insistência nesse ponto, e a diferença entre ambos, à aproximação metafísica de White ao problema. Noutros termos: a necessidade que o padre tem de afirmar a bondade de deus o impede de identificar o quanto essa ideia é contraditória do ponto de vista empírico. Por meio de uma análise lógica e psicopatológica, Jung chega à conclusão que "distinções morais bem definidas [clear-cut] (...) são aquisições recentes do homem civilizado" (Jung, 1952/1953, p. XX), chamando atenção ao que já apontara quando da escrita do Livro vermelho.

As afirmações teóricas de Jung vão ganhando contornos distintos ao longo de sua obra, no entanto, a insistência no ponto de vista empírico permanece uma constante em seu trabalho. Por outro lado, certa tendência a um racionalismo cientificista, tal qual aludido por White, é gradativamente abandonado pelo autor suíço, não sem grandes esforços, como fica evidente no Livro vermelho, sobretudo se considerarmos que Jung trabalhou neste livro por 16 anos e que um de seus elementos centrais é justamente o confronto com a atitude racionalista que o saber científico lhe autorizava; atitude na qual ele se fiava em grande medida.

De toda sorte, o Livro vermelho é também um acontecimento que situa a questão da alma - e sua concomitante dimensão religiosa - no processo pessoal de Jung, o qual aponta para sua desidentificação gradativa com o saber racionalista sobre a psique, que é diferente do saber da psique, e do que Jung denomina como espírito da profundeza. No capítulo II do Livro vermelho, Jung já afirmava essa posição de relativização do saber científico sobre a psique: "Naquele tempo estava ainda totalmente preso ao espírito dessa época e pensava de outro modo sobre a alma humana. Eu pensava e falava muita coisa da alma, sabia muitas palavras eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto da ciência" (Jung, 2009/2015, p. 117).

A unilateralidade da aproximação ao problema da alma está em consonância com a unilateralidade representada pela privatio boni e suas consequências para a integração da função religiosa, bem como para a confusão entre a moral convencional das confissões religiosas e a experiência da realidade viva, numinosa, que seria subjacente às religiões. Da mesma forma que a não integração da realidade viva da alma conduz a uma tentativa de apropriação desta pela via do intelecto, gerando com isso, como compensação, a perda da alma; o deus cristão, em sua bondade infinita, perde de vista o dinamismo compensatório que demanda que se preste conta também da obscuridade - tanto da divindade quanto da vida psíquica.

A irredutibilidade do sentimento religioso à confissão religiosa.

Ao trazer novamente à tona o episódio da figueira, em 1944, num trecho de carta (não enviada) a H. Irminger, Jung está discutindo a questão da confissão religiosa. Neste texto denominado "Por que não sou católico?", Jung afirma que "entende o confessionalismo como completamente não cristão" (Jung, 1944/1976, p. 645), pois frequentemente fecha as portas e exclui pessoas que são, como consequência, tidas por renegadas, perdidas, caídas, hereges, e assim por diante. Não há razão alguma para se assumir que o εὐαγγέλιον, a boa nova, tenha sido enviada apenas em grego e não também em outras línguas, para outros povos. Em suma, o que está em jogo neste contexto é a pretensão de se possuir uma verdade, de ter em mãos uma chave qualquer para o sagrado, o que denunciaria uma soberba latente no centro mesmo da modéstia cristã e, uma vez mais, a unilateralidade.

"Não consigo entender por que motivo um credo deveria possuir a única e perfeita verdade. Cada credo reivindica esta prerrogativa, donde o desacordo geral! (...). Penso que é a imodéstia da pretensão à onipotência divina dos fiéis que compensa suas dúvidas internas" (Jung, 1957/1976, p. 728). Se considerarmos que, para Jung, o fanatismo está diretamente relacionado a compensações para dúvidas inconscientes, que podem tanto se efetivar nalguma forma de fervor religioso, quanto nalgum delírio coletivo de estado - e mais do que de estado, de governança; avança-se ainda um passo na compreensão da parcialidade e da mundanidade do aspecto confessional da religião, que não abarca a amplitude do sentimento religioso, nem o inclui necessariamente. É por isso, escreve Jung, "que os convertidos são sempre os piores fanáticos" (Jung, 1920/1981, p. 398) - sejam eles religiosos ou laicos.

Há no fanatismo uma parcialidade que ilustra o caráter compensatório da operação psíquica em jogo e que independe do objeto no qual se irá efetivar. O confessionalismo, neste sentido, está mais diretamente relacionado à tentativa de controlar o "fenômeno psíquico irracional" (Jung, 1948/1989, p. 153) que estaria na base do impulso religioso. Trata-se de uma atitude que, tanto quanto o racionalismo fanático, acaba por fossilizar o impulso epistêmico e, da mesma forma, o impulso religioso. O fanatismo, não importa a confissão à qual esteja associado, deixa atrás de si apenas "a submissão à fé e a renúncia ao próprio desejo de compreender" (Jung, 1948/1989, p. 153). É importante notar que há uma distinção entre o que seria da ordem de uma experiência religiosa, que não se dá sem sacrifícios e é em grande medida independente da religião, e o que seria tão somente - mesmo que não desnecessariamente - uma forma de laço social; de manutenção de nossas vidas cotidianas na segurança parcial que a ignorância, ainda que ilustrada, nos garante.

O problema da confissão religiosa remete, a um só tempo, ao lugar central que o fenômeno religioso ocupa, não só nas sociedades como também na estruturação psíquica individual, e à necessária distinção entre religião e religiosidade. Este terceiro eixo de análise nos leva à ideia de base de que "consciente ou inconscientemente, a religião afeta toda nossa vida", como afirma Victor White (1952/1953, p. 59). No entanto, para nos aproximarmos mais da perspectiva junguiana, é preciso também dizer que a psique não cabe em nenhuma confissão e que as confissões religiosas podem até mesmo representar um entrave ao que ele denomina experiência religiosa. Em Presente e futuro, texto de 1956, Jung afirma, entre outras coisas, que a confissão religiosa é uma convicção coletiva, uma profissão de fé em face do mundo, que coincide com a igreja de Estado, sendo, pois, uma questão intramundana. A confissão "forma uma instituição pública que agrupa não apenas verdadeiros fiéis, mas também uma vasta quantidade de pessoas que só podem ser descritas como religiosamente indiferentes e que pertencem a ela simplesmente pela força do hábito" (Jung, 1956/1978, p. 257, ver também 1956/1957, p. 10).

É por esta via que Jung faz a distinção fundamental entre confissão religiosa e religiosidade, afirmando ainda que "o pertencimento a uma confissão, por conseguinte, não é sempre uma questão religiosa, mas ao contrário [uma questão] social e nesse sentido não contribui em nada para dar fundamento ao indivíduo" (Jung, 1956/1978, p. 257, ver também 1956/1957, p. 10). Da mesma forma que a circunscrição da alma pelos conceitos científicos é limitada e mesmo impeditiva da vivência deste fenômeno, assim também as confissões podem ser limitadoras de uma experiência não obstante tida como possível. E mesmo que Jung tenha assinalado em alguns momentos que extra ecclesiam nulla salus (Jung, 1916/1977, 1934/1978, 1939/1989, 1944/1993), ele o faz de forma crítica, enfatizando, por um lado, o desamparo que resulta da queda do simbolismo religioso como realidade viva; e, por outro lado, o caráter emancipatório do extra ecclesiam, como locus privilegiado da experiência religiosa, que, na visão de Jung, não pode prescindir da vivência subjetiva.

Ninguém pode conhecer a realidade última das coisas. Devemos, por conseguinte, toma-las como as experimentamos. E se esta experiência auxilia a tornar a vida mais saudável, mais bela, completa e significativa para si e para quem se ama, pode-se tranquilamente dizer: "isto foi graça de Deus". Nenhuma verdade transcendente é deste modo demonstrada e devemos confessar humildemente que a experiência religiosa é extra ecclesiam, subjetiva, e sujeita a erros ilimitados. A aventura espiritual de nosso tempo é a exposição da consciência humana ao indefinido e indefinível, embora nos pareça - e não sem motivos - que o ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o homem não inventou... (Jung, 1944/1989, p. 105).

A experiência dita religiosa participa de um dinamismo que vai além da consciência de cada qual, mas que não se realiza sem que a pessoa esteja intimamente implicada, sem que a pessoa seja atravessada pelo que, para Jung, é da ordem do arrebatamento, mas de um arrebatamento que precisa ser manejado pelo discernimento (Jung, 1958/1989), a fim de não se converter em patologia ou nalguma espécie de fanatismo sectário. O problema com as confissões religiosas, neste sentido, é que, dado seus movimentos de codificação da doutrina, das concepções e costumes, chegam a um tal grau de exterioridade que seu elemento autenticamente religioso passa a segundo plano (Jung, 1956/1978).

Sobre a função religiosa

Mas que experiência é essa que se afirma como religiosa, muitas vezes independentemente e apesar da religião? O quarto eixo de análise nos conduz, por fim, à noção de função religiosa. Apoiado em William James, Lévy-Bruhl, Rudolf Otto e Erwin Rohde, entre outros, Jung vai explorar este hiato entre confissão religiosa e religiosidade, ressaltando, inicialmente, o aspecto fenomênico da experiência religiosa. "A religião como observância", lembra Michel Cazenave, "não é mais do que a consequência da religião como observação escrupulosa e discernimento da tendência dos numina" (Cazenave, 2008, p. 160). Essa ênfase na observação remete à insistência de Jung em associar o termo religião a relegere, significando "cuidadosa observação e consideração do numinoso" (Jung, 1949/2010, p. 19).

Pensa-se, em geral, que a fé [Glaube] esteja na base da experiência religiosa, todavia se esquece com isso que, muitas vezes, a religião não repousa sobre a experiência pessoal e, sim, numa fé irrefletida [unreflektierten Glauben]. A fé das igrejas é, por esta via, um fenômeno secundário e que se esvai ou se cristaliza nalguma espécie de fanatismo quando destituída de uma experiência interior [innere Erfahrung]. "Designa-se a fé como a autêntica experiência religiosa mas não se leva em conta que ela é, mais propriamente, um fenômeno secundário que depende de um acontecimento primeiro, em que algo nos atinge e inspira a 'pístis', isto é, lealdade e confiança" (Jung, 1956/2011, p. 28).

A crença religiosa estaria, pois, sustentada numa experiência do que Jung, inspirado notadamente em Rudolf Otto, chamará de numinoso. Trata-se aqui de salientar a autonomia dos processos psíquicos, os quais têm como uma de suas resultantes as imagens religiosas que emergem na cultura, mas também as formações psíquicas de cada qual, os sonhos ou os delírios da psicose. A estruturação dessas imagens em torno de um dado conjunto de preceitos e práticas é que forja as confissões religiosas, mas o fenômeno subjacente não é necessariamente religioso no sentido confessional do termo. Trata-se, antes, da experiência de um impulso mobilizador que escapa ao controle consciente, ou mesmo à compreensão, donde a ênfase no aspecto irracional da experiência numinosa9, bem como os paralelos possíveis entre deus e alma ou entre deus e self.

Já na primeira versão de Transformações e símbolos da libido, publicada no Jahrbuch de 1911, Jung menciona um religiöse(r) Trieb, mesmo termo empregado por Erwin Rohde, no seu livro Psyche, e utilizado num sentido muito semelhante ao deste autor. Com efeito, Rohde fala num impulso religioso que se pode encontrar em toda terra e que surgiria em cada estágio da civilização. "Ele deve responder, de fato, a uma necessidade instintiva da natureza humana, e estar enraizado na constituição física e psíquica do homem" (Rohde, 1925/2010, p. 261). Embora esse termo (religiöse(r) Trieb) desapareça das edições subsequentes e ampliadas desta obra de Jung, o seu sentido permanece o mesmo, bem como a proximidade com o texto de Rohde. Podemos ler, em Símbolos da transformação, que "do ponto de vista psicológico, a imagem de Deus é um complexo de ideias de natureza arquetípica, e [por conseguinte] deve necessariamente ser vista como representando certa soma de energia (libido) que aparece como projeção" (Jung, 1952/1990, p. 56), ou ainda que "o conceito de Deus não é apenas uma imagem mas também uma força elementar" (Jung, 1952/1990, p. 57). É enquanto "força elementar" que a imago dei surge como um complexo autônomo, com todo seu potencial curativo e também destruidor, como o mostram a história de Jó ou o episódio da figueira seca na trajetória do rabi Jesus.

A perspectiva de Jung a respeito da experiência religiosa, embora ganhe contornos diversos ao longo de sua obra (notadamente com os estudos de alquimia e da filosofia oriental), manteve sempre essa coerência de base, de garantir a legitimidade empírica do fenômeno, resguardando-se de operações metafísicas a seu respeito. Nem religião nem religiosidade são, para Jung, uma questão metafísica, e, por essa razão, teve de insistir reiteradas vezes que sua perspectiva não era a de um teólogo, que suas pesquisas visavam a estabelecer fatos verificáveis. Admitia, no entanto, que diante de um material de comparação tão "exótico", o leitor que se contentasse com apenas folhear seus livros, ao invés de lê-los, poderia acreditar que estava diante de um sistema gnóstico, o que seria uma ilusão. "Por conta disso eu sou acusado de misticismo" - diz Jung, num texto de 1929, no qual busca firmar as diferenças entre sua perspectiva e a da escola freudiana. O autor ainda acrescenta: "Eu não me julgo responsável, no entanto, pelo fato de o homem ter desenvolvido espontaneamente, sempre e em todo lugar, uma função religiosa; e que a psique humana, desde tempos imemoriais, tenha sido atravessada por sentimentos e ideias religiosas" (1929/1989, p. 339).

Jung não se lança numa cruzada genealógica para explicar o que, para ele, é um dado inequívoco da realidade. Criticar a existência da imago dei, seja lá como esse complexo afetivo se configure numa dada cultura, é tão impossível quanto criticar a existência de elefantes, diz o autor em Espírito e vida (1926/1981). Independente de crença, a ideia mesma de uma experiência de deus é um fato de cultura e "como um fato que ocorre com relativa frequência, deve ser reconhecido por uma psicologia científica10". E o reconhecimento deste complexo afetivo é tanto mais importante que ele incide diretamente na vida cotidiana das sociedades. Não apenas como traço cultural, mas também como estruturante da mundivisão das pessoas, em torno da religião conjugam-se fatores psíquicos que vão da valoração que cada qual dá à existência, passando pela organização da vida em comum e chegando às psicoses coletivas. O caráter paradoxal da experiência numinosa - seja descrita como mágica, religiosa, arquetípica ou psicopatológica - é que ela pode ser "regeneradora ou destrutiva, mas nunca indiferente" (Jung, 1947/1981, p. 205).

A função religiosa não aponta para nenhuma especulação a respeito de uma substância divina e sim para a afirmação radical de que "a alma é um fator autônomo" (Jung, 1952/1989, p. 360), assim como são autônomas as formações religiosas que emergem na vida dos povos. Tanto quanto a alma, a função religiosa é força que mobiliza mas também pode engendrar entusiasmos perigosos (Jung, 1920/1981, p. 315). Não há dúvida de que esse fator se apresenta através de imagens que dependem da fantasia humana e suas condicionantes, singulares e coletivas. No entanto, "há algo na base destas imagens que transcende a consciência e opera de tal modo que seus enunciados não variam de maneira ilimitada e caótica, mas mostram que eles estão relacionados com uns poucos princípios..." (Jung, 1952/1989, p. 361)11.

Parte-se da constatação de uma realidade empírica para a investigação de sua função na organização da vida psíquica. Ao invés de especular sobre a origem do sentimento religioso, Jung se limita a constatar sua insistência ao longo do tempo, as variadas formas de sua manifestação e, também, suas invariâncias. Dedica-se ainda a pensar a relação desta função religiosa com a estrutura e o funcionamento psíquicos em geral, uma vez que, sendo esta uma função primordial, possui implicações diretas nos agenciamentos da vida cotidiana. Se isso vale para o potencial curativo dos complexos autônomos, vale também para a psicopatologia, e se isso se aplica à psique individual, vale de igual modo para a psique coletiva.

A desvalorização e repressão de uma função tão poderosa quanto a função religiosa tem naturalmente sérias consequências para a psicologia do indivíduo. O inconsciente é prodigiosamente fortalecido pelo refluxo [Rückfluss] da libido e, por meio de seus conteúdos coletivos arcaicos, passa a exercer uma influência [Einfluss] poderosa sobre a mente consciente. O período do Iluminismo encerrou-se, como sabemos, com os horrores da Revolução Francesa. E atualmente estamos uma vez mais experienciando este levante das forças destrutivas da psique coletiva. O resultado tem sido o assassinato em massa numa escala sem precedentes12 (Jung, 1917/1977, p. 94).

A intrincada e fundamental relação entre singular e coletivo é delineada aqui, e Jung avança afirmando que tanto indivíduo quanto nação, mobilizados por forças inconscientes indiferenciadas, por conseguinte de caráter numinoso, são igualmente impelidos a viver o irracional. O racionalismo da vida moderna teria condenado a dimensão irracional da experiência psíquica, e também a função religiosa, ao ostracismo no inconsciente. Entretanto, uma vez reprimida, esta função se potencializa, torna-se autônoma, como uma doença incurável, e até mesmo contagiosa. É nesse sentido que indica como a "psicologia do cristianismo" mostra impressionantes exemplos de recalque das pulsões [Verdrängung der Triebe] que levam a formações substitutivas religiosas de evidente caráter sexual (Jung, 1928/1981, p. 20, ver também 1928/1948, p. 36). É também numa aproximação crítica à religião que sinaliza as distorções da função religiosa nas derivas da deificação do estado e do ditador.

Isso, todavia, não esgota o problema colocado pela função religiosa. Tão irracional quanto negar a potência contida nas imagens religiosas é a afirmação, com graves consequências, de que se poderia eliminar ou conter esse complexo afetivo pela via do criticismo racionalista. A função religiosa diz respeito a um dinamismo intrínseco à alma humana e, nesse sentido, remete ao processo central de todo o pensamento junguiano que é a individuação: "é evidente que a individuação, ou o tornar-se uma inteiridade, não é nem um summum bonun nem um summum desideratum, mas sim a dolorosa experiência da união dos opostos" (Jung, 1950/1969, p. 382). Eis a razão pela qual nem a imago dei, nem a alma, são para Jung um lugar de repouso.

 

Agradecimentos

Trabalho apresentado no I Simpósio de História e Filosofia da Psicologia, realizado pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora entre os dias 4 e 6 de junho de 2019, a quem agradeço vivamente o convite.

 

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Endereço para correspondência:
Rodrigo Barros Gewehr
rodrigo.gewehr@ip.ufal.br
poesiatododia@hotmail.coms

Recebido em: 27/01/2020
Aceito em: 17/02/2020

 

 

1  Notadamente em Memórias, sonhos, reflexões, ao falar sobre o Livro vermelho, Jung afirma a respeito desse processo: "From the beginning I had conceived my voluntary confrontation with the unconscious as a scientific experiment which I myself was conducting and in whose outcome I was vitally interested. Today I might equally well say that it was an experiment which was being conducted on me" (Jaffé & Jung, 1961/1989, p. 178). A biografia de Jung escrita por Deirdre Bair traz também algumas referências importantes acerca da escrita do Livro vermelho, dentre elas : « Désignant [à soixante-dix ans] Le Livre rouge comme le « creuset de son œuvre », à l'origine de tout ce qu'il avait pu créer, il concluait qu'il « [lui] avait fallu pour ainsi dire quarante-cinq ans pour rassembler tout ce qu'[il] avait écrit à l'époque ». Maintenant, il avait le courage de le dire et, de ce fait, la « béatitude » de ses délires prenait fin, cédant le pas à une « analyse objective » de ce qui lui était tombé dessus... » (Bair, 2003/2007 p. 757).
2 Do ponto de vista da exegese bíblica, esse episódio está relacionado aos profetas Jeremias, Oséias e Ezequiel, para os quais a figueira representa o povo de deus. "Nos tempos messiânicos, as árvores produzirão a cada mês uma nova colheita (Ez. 47, 12). O povo do Senhor deveria estar pronto para a vinda do Messias. O exemplo desta figueira testemunha a decepção de Jesus em relação aos que ainda não o reconhecem como enviado de Deus" (La Bible expliquée. Société biblique française, 2004, NT-70). Numa outra versão da bíblia, a explicação se dá da seguinte maneira: "Ez. 47, 12 profetizara que o vale do Cedron, em Jerusalém, seria um novo paraíso, regado por águas abundantes e adornado com as mais variadas árvores de fruto. Chega o Messias a esta cidade, procura o jardim anunciado; mas encontra tudo seco e estéril. Jerusalém fora infiel aos planos de Deus" (Bíblia Sagrada, 1982, p. 1470). Essas leituras apontam para o fato de que Jung não está fazendo teologia e sim uma interpretação psicológica. Além disso, a própria menção a uma "decepção" do rabi corrobora a análise junguiana do fato psíquico em questão: a tentação da virtude movida por um pathos da decepção.
3  "Some such process [a passagem de uma attitude irreflexiva a uma outra, autoconsciente] can be observed in the curious change which comes over Yahweh's behaviour after the Job episode. There can be no doubt that he did not immediately become conscious of the moral defeat he had suffered at Job's hands. In his omniscience, of course, this fact had been known from all eternity, and it is not unthinkable that the knowledge of it unconsciously brought him into the position of dealing so harshly with Job in order that he himself should become conscious of something through this conflict
" (Jung, 1952/1989, p. 404). Segue-se ao episódio de Jó, para Jung, a recuperação da Sofia e do aspecto feminino da divindade, bem como o processo que resulta no evangelho.
4  Respondendo a uma das muitas críticas que recebeu por conta da publicação desse livro, Jung escreve a G. A. van den Bergh von Eysinga, em 13/02/1954: "É lamentável que o senhor não tenha lido minhas notas introdutórias. Teria descoberto ali meu ponto de vista empírico, sem o qual - eu lhe garanto - meu pequeno livro não tem sentido algum. Do ponto de vista filosófico, sem considerar sua premissa psicológica, é pura imbecilidade; do ponto de vista teológico é nada mais do que crassa blasfêmia; e do ponto de vista do senso comum racionalista é um monte de fantasmagorias ilógicas e cretinas" (Jung, 2002, p. 323).
5  A figura de Jó será evocada no novo testamento, na epístola de Tiago, mas enfatizando o caráter misericordioso de deus, o qual é contestado pela análise psicológica que Jung faz da narrativa: "Eis que consideramos bem aventurados os que perseveraram. Ouvistes [falar da] perseverança de Job e vistes a finalidade do Senhor, porque o Senhor é muito misericordioso e compassivo" [Tg. 5, 11] (Bíblia, 2017, p. 485-486). Uma referência a Jó também ocorre no Corão, Sura 38 [Sad], 40-43: "E lembra-te de Jó, Nosso servo, quando apelou para seu Senhor: "O demônio tem-me afligido com a desventura e o sofrimento." Dissemos-lhe: "Bate na terra com o pé: terás um manancial de água para refrescar-te e para beber." E restituímos-lhe a família em dobro: uma misericórdia Nossa e uma recordação para os homens dotados de inteligência." (O Alcorão, s/d, p. 278). Aqui também é ressaltada a misericórdia e não a "arbitrariedade".
6  "Serpens, Christus, proper sapientiam". Referência à João 3, 14-15: "E tal como Moisés içou a serpente no deserto [a serpente de Airan], do mesmo modo é preciso que o Filho da Humanidade seja içado ao alto, para que todo que nele crê tenha vida eterna" (Bíblia, 2017, p. 332).
7 Cf. nota 70 do Livro vermelho (as notas são de Sonu Shamdasani): "Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: 'E mesmo se tivessem todas as virtudes, uma, pelo menos, dever-se-ia de ter: mandar dormir a tempo as próprias virtudes'. 'Das cátedras da virtude' (...). Em 1939, Jung comentou o conceito oriental de libertação das virtudes e vícios em 'Comentário ao livro tibetano da grande libertação' (OC, 11, § 826)". (Jung, 2009/2015, p. 127).
8  Os possessos de Gádara [Mt. 8, 28-34; Mc. 5, 1-20, Lc. 8, 26-39] (Bíblia, 2017). Jung não faz referência a esse episódio, mas podemos ler em Fernando Vallejo uma insurgência contra essa ação, mostrando uma vez mais que teologia e psicologia não podem ser reduzidas uma à outra: "¡Como va a estar metido el demonio en un cerdo, que es un animal inocente!" (Vallejo, 2013, § 737). Outro episódio que nos poderia remeter à "tentação da virtude", e que não é trabalhado por Jung, é a ressureição de Lázaro. É necessário, todavia, frisar que essas interpretações seriam todas elas contestáveis a partir de uma perspectiva teológica.
9  Em seu livro O sagrado, Rudolf Otto afirma, na abertura do capítulo a respeito do conceito de numinoso: "Detectar e reconhecer algo como sendo "sagrado" é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso. Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou "momento" bem específico, que foge ao acesso racional (...), sendo algo árreton ["impronunciável"], um ineffabile ["indizível"] na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual" (1917/2007, p. 37). O sagrado é tão somente uma das formas do numinoso, que se apresenta como uma experiência de caráter limiar, um fator incondicionado que mobiliza a ação humana e que, em termos junguianos, pode ser lido como complexo autônomo inconsciente (Cf. Jung, 1920/1981).
10  "[...] the experience of God has general validity inasmuch as almost everyone knows approximately what is meant by the term "experience of God." As a fact occurring with relative frequency it must be recognized by a scientific psychology" (Jung, 1926/1981, p. 328).
11  "Unzweifelhaft liegt diesen Bildern ein bewußtseinstranszendentes Etwas zugrunde, welches bewirkt, daß die Aussagen nicht schlechthin grenzenlos und chaotisch variieren, sondern erkennen lassen, daß sie sich auf einige wenige Prinzipien bzw. Archetypen beziehen" (Jung, 1952/1967, p. 7).
12  Uma nota de rodapé, nesta mesma página da versão inglesa do texto acrescenta: "escrito em 1916; supérfluo assinalar que isso segue sendo verdade nos dias atuais [1943]".

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