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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.2 Juiz de Fora Apr./June 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.30255 

ARTIGOS

 

Desenvolvimento comunitário e participação: organização de consenso e hegemonia burguesa no Brasil

 

Community development and participation: consensus organization and bourgeois hegemony in Brazil

 

Desarrollo comunitario y participación: organización de consenso y hegemonía burguesa en Brasil

 

 

Larissa Soares BaimaI; Raquel Souza Lobo GuzzoII

IUniversidade Estadual Paulista. Email: baima.larissa@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4658-0448
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas. Email: rslguzzo@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7029-2913

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto busca realizar uma avaliação teórica da possível funcionalidade de um modelo de trabalho comunitário em Psicologia para a construção de uma forma passiva de consenso dentro do conjunto de transformações ocorridas no Brasil durante os recentes governos do Partido dos Trabalhadores. Esse modelo é o do desenvolvimento comunitário, e o objeto da avaliação é a concepção de participação dele apreendida, abordada a partir das contribuições teóricas de Gramsci (1891-1937) sobre o Estado e sobre a noção de revolução passiva. Analisada a partir dessas chaves conceituais, tal concepção de participação parece não romper, em seus fundamentos, com a concepção de participação dos modelos aos quais o desenvolvimento comunitário se propõe como alternativa. E, em sua funcionalidade no conjunto de transformações operadas nos referidos governos, pode ter contribuído com a organização de formas de consenso passivo e, consequentemente, com a hegemonia de frações da classe burguesa no Brasil.

Palavras-chave: Desenvolvimento comunitário; Psicologia comunitária; Participação; Revolução passiva; Sociedade civil.


ABSTRACT

This article aims to make a theoretical evaluation of the possible functionality of a community work model in Psychology for the construction of a passive form of consensus within the set of transformations that occurred in Brazil during the recent governments of the Workers' Party. This model consists in the community development one, and the evaluation object is the conception of participation apprehended from it, approached from Gramsci's (1891-1937) theoretical contributions on the State and on the notion of passive revolution. Analyzed from these conceptual keys, this conception of participation does not seem to break, in its fundamentals, with the conception of participation of the models to which community development is proposed as an alternative. And, in its functionality in the set of transformations operated in the Worker's Party governments, it may have contributed to the organization of forms of passive consensus and, consequently, to the hegemony of fractions of the bourgeois class in Brazil.

Keywords: Community development; Community psychology; Participation; Passive revolution; Civil society.


RESUMEN

Este texto busca realizar una evaluación teórica de la posible funcionalidad de un modelo de trabajo comunitario en Psicología para la construcción de una forma pasiva de consenso, dentro de las transformaciones realizadas en Brasil durante los gobiernos recientes del Partido de los Trabajadores. Este modelo es el del desarrollo comunitario y el objeto de la evaluación es la concepción de participación aprehendida de él, abordada a partir de las contribuciones teóricas de Gramsci (1891-1937) sobre el Estado y la noción de revolución pasiva. Analizada a partir de estas claves conceptuales, esta concepción de participación no parece romper con la concepción de participación de los modelos a los que se propone el desarrollo comunitario como alternativa. Y, en su funcionalidad en el conjunto de transformaciones operadas en los gobiernos antes mencionados, puede haber contribuido a la organización de formas de consenso pasivo y, en consecuencia, a la hegemonía de las fracciones de la clase burguesa en Brasil.

Palabras clave: Desarrollo Comunitario; Psicología Comunitaria; Revolución Pasiva; Participación; Sociedad Civil.


 

 

É inegável que exista, nas produções de certos campos da Psicologia brasileira, uma expressiva preocupação com o desenvolvimento de teorias e de modelos de intervenção capazes de responder aos efeitos cotidianos das diversas formas de dominação e de exploração na contemporaneidade. Pode-se verificar essa preocupação, sobretudo, naqueles campos que concentram um acúmulo de debates resultantes da politização da área nas últimas quatro décadas, a exemplo da Psicologia Comunitária e da Psicologia Política. Há, nestes campos, um grande conjunto de produções interessadas em contribuir com o desenvolvimento de modelos teórico-metodológicos de interpretação dos processos psicossociais envolvidos na produção de sofrimento, de resignação ou de estratégias de enfrentamento de grupos e sujeitos a essas condições de dominação e de exploração.

No que se refere às produções em Psicologia Comunitária, um modelo que tem apresentado importantes propostas nesse sentido é o chamado desenvolvimento comunitário (Góis, 2005; 2008) que, apesar de não ser a única proposta presente em trabalhos comunitários, tem um destaque relevante enquanto modelo de referência para o desenvolvimento desses trabalhos no Brasil, a exemplo de Goes, Ximenes e Moura Jr. (2015), Nepomuceno, Ximenes, Cidade, Mendonça e Soares (2008) e Ximenes et al. (2017). E um elemento que se destaca na importância desse modelo enquanto referência para esses trabalhos é sua proposta alternativa de fomento à participação popular. Os processos de participação, junto a processos como os de liderança, de fortalecimento, de identidade, dentre outros, são categorias centrais nas propostas de Psicologia Comunitária, não só do Brasil, mas da América Latina, de uma forma geral, como se pode verificar em produções de grande circulação e referência no campo, a exemplo de Montero (2004), Góis (2008; 2005), Nepomuceno (2009) e Freitas (1998).

Potencializar formas de participação efetivamente democráticas e horizontais parece compor um dos eixos centrais de modelos de trabalho como o do desenvolvimento comunitário. E a proposta deste artigo é a de oferecer contribuições teóricas para a avaliação dos pressupostos deste modelo, com o objetivo de delimitar suas reais condições e limites em potencializar essas formas de participação. Para isso, recorre às elaborações teóricas de Antônio Gramsci (1891-1937) sobre o Estado em sua forma integral como chave conceitual para a análise dos fundamentos da concepção de participação expressa neste modelo.

É do pensamento do marxista italiano que também se toma como referência um outro conceito que pode contribuir para a crítica e a definição da funcionalidade desse modelo na história recente brasileira. O conceito de revolução passiva, proposto aqui como chave conceitual para a interpretação crítica de certos programas de transformação burgueses, pode oferecer uma angulação interessante sobre as transformações políticas e econômicas recentes do capitalismo brasileiro, como defendem Bianchi (2017) e Bianchi e Braga (2005). E o que se busca realizar, neste artigo, é a articulação da concepção de participação expressa no modelo do desenvolvimento comunitário com esse conjunto de transformações político-econômicas.

Assim, o texto apresenta, primeiramente, uma breve síntese do que seria o modelo do desenvolvimento comunitário, tal como proposto por Góis (2005; 2008). Em seguida, recorre às elaborações gramscianas a respeito do Estado em sua forma integral para instrumentalizar teoricamente a análise dos pressupostos da concepção de participação expressa nesse modelo. Apresenta, posteriormente, o conceito de revolução passiva, tal como definido por Gramsci, que pode fornecer subsídios para o entendimento de alguns processos de transformação político-econômicos brasileiros, mais especificamente ocorridos nos recentes governos federais do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016). Por fim, discute a possível funcionalidade do modelo do desenvolvimento comunitário, no que se refere aos seus fundamentos, a esse conjunto de transformações.

 

O modelo do desenvolvimento comunitário

O desenvolvimento comunitário é um modelo de trabalho comunitário apresentado por Góis (2003; 2008) como um dos pilares da chamada Psicologia Comunitária do Ceará. Junto às noções de Saúde Comunitária (Góis, 2008; Sarriera, 2011), de Ação Municipal (Góis, 2003), dentre outras, o desenvolvimento comunitário seria um dos fundamentos da perspectiva de mudança social desta proposta de Psicologia Comunitária. Uma de suas premissas seria a do desenvolvimento de um modelo de trabalho comunitário que se colocasse como alternativa aos modelos ortodoxos de trabalho comunitário, a exemplo do que foram os trabalhos de desenvolvimento de comunidades (Ammann, 1987) ou os historicamente dominantes em políticas públicas, marcados pela verticalização, pela burocratização e pela instrumentalização da participação popular.

Nas palavras do autor, seria uma "... prática coletiva que facilita, concentra e utiliza os esforços comunitários dentro de uma estratégia de combate à pobreza, de proteção à Natureza e de fortalecimento do poder popular" (Góis, 2008, p. 98). Não se trataria, então, do modelo tradicional de desenvolvimento de comunidades, tal como o dos trabalhos descritos por Amman ou mesmo daqueles presentes em políticas públicas nas quais os objetivos e ações são definidos por agentes externos à comunidade, aliados ao desenvolvimento nacional. A referência do desenvolvimento comunitário se encontraria na própria cultura local, no potencial, na experiência e na vontade dos moradores, na integração e na cooperação entre agentes internos e agentes externos, e na atividade comunitária. E continua:

Não é uma ação de fora para dentro, sem considerar fundamental a história, cultura e capacidade de agir da comunidade, nem uma ação fechada em seu interior, cabendo exclusivamente a iniciativa, controle e sentido do desenvolvimento à própria comunidade. Nem uma nem outra coisa, mesmo que, ainda hoje, a iniciativa e o rumo do desenvolvimento continuem nas mãos do governo ou de outras agências externas, como as do terceiro setor, e não nas mãos dos moradores (Góis, 2008, p. 98).

Nessa forma de desenvolvimento, que se configuraria como um desenvolvimento local, a integração entre agentes internos e agentes externos seria fundamental para a definição de consensos, ou de objetivos "compartilhados de comum acordo" (Góis, 2008, p. 98).

A imposição vertical, por parte de agentes governamentais, e a aceitação passiva, por parte dos agentes internos da comunidade, poderiam, desta maneira, ser combatidas com a interação dialógica e consciente entre estes agentes. O desenvolvimento comunitário, neste sentido, visaria o desenvolvimento de sujeitos conscientes e aptos para disputar os espaços de diálogo e a participação entre agentes internos da comunidade e representantes do Estado. Estaria sempre articulado ao desenvolvimento da municipalidade e seus antagonismos se dariam muito mais com os interesses do capital global do que internamente ou com a localidade (Góis, 2003, 2005, 2008).

Resta saber, então, se um tipo de trabalho como o apresentado no modelo do desenvolvimento comunitário, que se propõe à formação conscientizadora e dialógica da população para a disputa de espaços de interlocução com o Estado, pode, efetivamente, superar os limites dos modelos ortodoxos dos trabalhos em comunidades. Sobretudo no que se refere à concepção de participação popular que se pode apreender do modelo, é possível dizer que o desenvolvimento comunitário diverge substancialmente dos clássicos modelos de desenvolvimento de comunidades? Acreditamos que as formulações gramscianas a respeito do Estado em sua forma integral possam fornecer importantes subsídios teóricos para a análise da questão. Isso porque elas nos ajudam a identificar os fundamentos dos principais agentes dessa interação dialógica que se espera do trabalho de desenvolvimento comunitário. Quem é, afinal, este corpo mais ou menos harmônico de agentes internos da comunidade que entra em diálogo com o Estado e disputa as direções das ações tiradas nesses espaços de interlocução? Que convergências e que antagonismos existem entre os interesses da comunidade e os interesses do Estado?

 

Gramsci e a noção de Estado integral

Dentre as importantes contribuições, na tradição marxista, para a discussão da problemática do Estado estão os escritos de Antônio Gramsci, que ampliou a clássica concepção marxista de Estado como "comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia" (Marx & Engels, 1848/2003, p. 28), ou como conjunto de aparelhos coercitivos a serviço dos interesses desta classe, propondo a noção de Estado integral (Gramsci, 2004) ou, na expressão de Buci-Glucksmann, Estado ampliado (Liguori, 2017).

O Estado em sua forma integral, de acordo com o marxista italiano, seria mais que um aparato com função coercitiva, mas uma síntese do que se poderia identificar como sociedade política, de um lado (ou Estado em sentido estrito), e sociedade civil, de outro. Na sociedade política, estariam contidos os aparelhos que promoveriam a adequação das massas à ordem social através de uma função coercitiva. Na sociedade civil estariam os aparelhos privados do tipo dos sindicatos, igrejas, partidos de massa etc., cuja função seria a de promover difusão ideológica. Apesar das distintas formas de operação entre uma e outra, o objetivo de ambas seria o mesmo: assegurar a realização dos interesses de uma classe (Gramsci, 2001). Assim, diz o autor:

Por enquanto, podem-se fixar dois grandes "planos" superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como "privados") e o da "sociedade política ou Estado", planos que correspondem, respectivamente, à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de "domínio direto" ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "jurídico" (Gramsci, 2001, p. 20-21).

As condições de produção e o caráter fragmentário da obra de Gramsci, entretanto, resultaram em uma difusão e interpretação bastante contraditórias de seu pensamento. Dentre as distintas interpretações de sua obra, uma, inegavelmente, tornou-se hegemônica, como afirma Bianchi (2007). Nela, conceitos como o de sociedade civil e sociedade política, ou outros problematizados por Gramsci, como hegemonia e ditadura, por exemplo, são abordados a partir de uma leitura que resulta na produção de certos antagonismos. Tal interpretação, desenvolvida, sobretudo, a partir da leitura de Norberto Bobbio (1909-2004), propõe que Gramsci teria elaborado uma noção de sociedade civil distinta daquela desenvolvida por Marx, que a identificou com a base material da economia. Nesta leitura, Gramsci, diferentemente de Marx, teria localizado a sociedade civil no âmbito da superestrutura (Bianchi, 2007).

Bianchi (2007), no entanto a partir de esforços no sentido de uma reconstrução genético-diacrônica da produção do italiano, oferece-nos algumas indicações para uma retomada de seu pensamento a partir de uma abordagem orgânica e unitária. Tais esforços vêm resultando em observações como, por exemplo, a de que entre as esferas da sociedade civil e da sociedade política, componentes do Estado em sua integralidade, não existe uma relação de oposição, como a que resulta de leituras como a de Bobbio e de seus herdeiros. Em seu lugar, Bianchi aponta para uma relação, entre essas duas esferas, de unidade distinção, como entendido por Gramsci (2007). O que isso quer dizer?

Quer dizer que, na análise de Gramsci, a separação feita entre sociedade civil e sociedade política se trata apenas de um recurso metódico de análise dos movimentos e articulações entre a economia e o Estado burguês. Uma reconstrução genético-diacrônica do texto gramsciano, tal como aquela a que Bianchi tem se dedicado, possibilita a verificação de que a economia capitalista e a sociedade civil não comporiam duas esferas de fundamentos distintos, como se depreende de suas leituras hegemônicas. Não há, em Gramsci, um rompimento com Marx no sentido de atribuir à sociedade civil uma fundamentação exclusiva do âmbito superestrutural, pelo contrário. Tanto a sociedade civil quanto a sociedade política têm sua determinação material na propriedade privada e nos antagonismos de classes. A relação entre os diferentes âmbitos desse Estado, portanto, não seria de negação ou de oposição, mas de correlação, ou de unidade distinção (Bianchi, 2007; Liguori, 2017; Thomas, 2009). A sociedade civil, nesse sentido, deixa de poder ser entendida como um momento de positividade imanente do Estado e os processos de construção de hegemonia de uma ou outra classe passam a poder ser entendidos como processos que envolvem não só a esfera das superestruturas.

O problema de se atribuir um caráter de positividade à esfera da sociedade civil, opondo-a ao que se supõe o momento negativo e coercitivo do Estado, ou seja, à sociedade política, é o de produzir expectativas irrealistas quanto ao caráter de oposição dela - sociedade civil - aos projetos burgueses. Tais expectativas abrem margem para estratégias que abdicam do enfrentamento direto ao Estado e privilegiam, como algo possível e desejável, a construção de consensos, pelas classes subalternas, no âmbito da sociedade civil (Bianchi, 2007).

Neste tipo de leitura, sociedade civil e sociedade política são abordadas em termos de uma relação de antagonismo que, como tem indicado Bianchi (2007) e Thomas (2009), consiste em um falso antagonismo se entendermos que as duas esferas existem em uma unidade dialética que, combinadas é que conformam a hegemonia. Os mecanismos típicos de cada uma dessas instâncias, ou seja, os mecanismos de coerção e de consenso, são acionados em uma relação de unidade distinção em que, entretanto, a hegemonia está do lado da sociedade política, que busca manter as condições de produção e reprodução capitalistas. Como afirma Thomas (2009), o âmbito da sociedade civil seria aquele por onde a racionalidade da sociedade política se difundiria, não existindo e nem atuando por fora do Estado propriamente dito.

Nas trilhas de Marx, Gramsci não deixou de tratar do Estado moderno tendo em vista seu caráter de classes, mais propriamente como resultante da emancipação política não de toda a humanidade, mas da burguesia (Marx, 1843/2010). Este Estado que, na busca por promover as condições de manutenção da ordem social burguesa e de reprodução do capital, não pode explicitar sua unilateralidade, lança mão da operação de tal racionalidade no âmbito da sociedade civil. Desta maneira, os projetos dominantes não são realizados explicitamente como tais, mas realizam-se como se se tratassem de projetos universais. Esta operação é viabilizada justamente pelo caráter orgânico e unitário deste Estado, que consegue incorporar demandas e projetos dos grupos subalternos, capturando e assimilando as lutas sociais aos limites da ordem vigente (Bianchi, 2007).

Todo esse processo só é possível porque entre sociedade política e sociedade civil não existe uma relação de negação ou de oposição, nem em seus fundamentos nem em seus objetivos. São os imperativos de acumulação e expansão do capital que, em última instância, determinam a legalidade de ambas as esferas. Por esta razão é que a função do consenso, comumente vista como própria da sociedade civil, pode servir a propósitos distintos daqueles de canalização dos interesses subalternos, mas de sua acomodação à ordem social. Quer dizer, nesta tal esfera da sociedade civil não temos, nem em termos de conteúdo nem de funcionalidade, um rompimento ou oposição com os interesses presentes no Estado burguês. A sociedade civil não é composta de um todo homogêneo e destituído de divisão de classes, pelo contrário, nela estão presentes as mais diversas expressões do antagonismo classista. Ou seja, nesta sociedade civil circulam interesses e projetos dos mais anticapitalistas e radicais aos mais inofensivos e conservadores, que o Estado consegue articular através do recurso ao consenso, dissimulando sua unilateralidade de classe.

Voltemos agora às concepções de participação possíveis de serem apreendidas dos dois modelos gerais de trabalho comunitário, ou seja, os do tipo ortodoxo, de caráter verticalizado e hierarquizado, e o presente na proposta do desenvolvimento comunitário, que visa superar tais características dos trabalhos ortodoxos. No primeiro, não dificilmente, percebe-se o caráter instrumental e induzido da participação popular na determinação dos rumos da comunidade. Ammann (1987) nos oferece a análise de um conjunto desses trabalhos que confirmam esse caráter de participação popular de tal modelo.

Contudo, a proposição de que a participação popular poderia, efetivamente, construir-se em dimensões horizontais e democráticas a partir de um franco diálogo entre sociedade política e sociedade civil, como se pode depreender do modelo alternativo de desenvolvimento comunitário, não parece romper com os fundamentos do primeiro. A análise gramsciana do Estado em sua forma integral nos fornece um bom instrumental para a verificação do caráter problemático da concepção de participação presente tanto em um como em outro dos referidos modelos de trabalho comunitário. Isso porque Gramsci, ao tomar a separação entre as duas referidas esferas do Estado apenas como um recurso metódico, explicita que entre as duas não há contradição.

Assim, propostas, mesmo alternativas, dentro desses parâmetros, como é o caso do desenvolvimento comunitário, não superam um grande problema dos modelos ortodoxos, que é o fato de ignorarem o caráter de classes e de subsunção à propriedade privada desse Estado tanto no que diz respeito à esfera da sociedade política quanto da sociedade civil. Isso acontece a despeito de sua capacidade de promover conscientização e a formação crítica dos cidadãos da comunidade. Dessa forma, apesar de se colocar como uma alternativa crítica a tais modelos ortodoxos, o desenvolvimento comunitário reproduz o que há de fundamental nesses modelos: a despolitização da questão social e a destituição dos conflitos sociais de seu caráter de classes.

Feita esta reflexão, buscar-se-á, a partir de agora, discutir as possíveis relações entre a presença desse tipo de concepção de participação nos trabalhos em comunidades com o processo histórico recente brasileiro. Será abordado, mais especificamente, o período dos recentes governos federais do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016), entendendo-se que, neste período, ampliou-se a criação de espaços de diálogo entre Estado e sociedade civil, como os Fóruns e Conselhos Participativos, e o estímulo à participação popular na elaboração, execução e avaliação de políticas públicas, em especial as de assistência (Santos & Gugliano, 2015).

Como auxílio teórico para essa reflexão, recorrer-se-á, aqui, a outro conceito gramsciano, que é o de revolução passiva, que pode oferecer uma importante angulação sobre a relação entre Estado, economia e sociedade civil dentro do conjunto de mudanças sociais e econômicas ocorridas no país no referido período.

 

A noção de revolução passiva e as recentes transformações político-econômicas brasileiras

Gramsci, ao tratar da noção de revolução passiva, não nos fornece apenas um significado para o termo. Buscando responder teórica e politicamente à situação europeia do pós-Primeira Guerra Mundial marcada pelos efeitos da Revolução Russa, da crise econômica de 1929 e da ascensão do fascismo na Itália, é que Gramsci extrai e reformula o conceito. É da obra de Vicenzo Cuoco (1770-1823) que o marxista, primeiramente, retoma o termo, reelaborando-o como chave interpretativa para analisar o caso da constituição do capitalismo na Itália e da formação de seu Estado moderno pelo Risorgimento (Gramsci, 2002; Voza, 2017). Gramsci descreve o processo como uma modernização do "Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino" (Gramsci, 2011, p. 315).

Nesse movimento de busca por respostas teóricas e políticas ao contexto italiano da época, Gramsci (2002) aproxima a reformulação por ele operada do conceito de revolução passiva com a fórmula de revolução-restauração de Edgar Quinet (1803-1875). A fórmula buscava explicar o processo revolucionário burguês francês, que contou com um primeiro momento de ruptura revolucionária, em 1789, seguido, a partir de 1848, por um momento de restauração, que não reconstituiria a velha ordem, mas reconciliaria o velho e o novo sob a hegemonia burguesa. Assim, além da análise do caso italiano, a noção de revolução passiva passa a comparecer no texto gramsciano como recurso de análise de processos de ascensão burguesa que se efetivaram sem o aparelho revolucionário francês clássico ou sem o aparato jacobino (Bianchi, 2006; Voza, 2017).

Como um terceiro caso analisado por Gramsci, temos a forma americana de atualização do processo de organização e acumulação capitalista, promovida com a introdução do fordismo, a implementação do New Deal e o intervencionismo do Estado na esfera da economia. O caso do chamado americanismo-fordismo (Gramsci, 2007) se apresentaria, então, como uma terceira forma de revolução passiva nas análises gramscianas e promoveu um processo de inovação-conservação, não propriamente no âmbito das forças políticas, mas das forças produtivas (Bianchi, 2017).

As três formas analisadas por Gramsci são formas que poderíamos identificar como tipos ideais, dificilmente se reproduzindo na história enquanto processos puros. Como afirma Bianchi (2017), é na combinação desses diferentes tipos que o modelo de transformação burguês da revolução passiva se generaliza na história. E, apesar das diferenças que marcam cada um desses tipos ideais, é possível indicar alguns aspectos gerais dessa forma de transformação. Primeiramente, no que diz respeito às condições que a viabilizam, Gramsci aponta duas: 1) a ausência de uma iniciativa popular unitária e; 2) a impossibilidade de as classes dominantes conseguirem o consenso ativo das classes subalternas (Bianchi, 2006).

Tais condições, destaca Bianchi (2006), não apontam necessariamente para uma total passividade das classes subalternas nem de uma completa ausência de consenso. Diz o autor:

A ausência de iniciativa popular e de um consenso ativo não indica total passividade das massas populares e nem ausência total de consenso. O que de fato há é um subversivismo "esporádico, elementar e inorgânico" que, pelo seu primitivismo, não elimina a capacidade de intervenção das classes dominantes, muito embora fixe seus limites e imponha a necessária absorção de uma parte das demandas de baixo, justamente aquelas que não são contraditórias com a ordem econômica e política. Cria-se, assim, o consenso passivo e indireto das classes subalternas (Bianchi, 2006, p. 47).

O referido "subversivismo elementar e inorgânico", que não assimila ao projeto burguês as demandas subalternas em sua totalidade, mas apenas aquelas que a ele não sejam contraditórias, combina-se a outro processo. Esse processo é o da absorção dos elementos ativos dos antagonistas ao projeto burguês, tanto de seus grupos aliados quanto de seus adversários, que Gramsci chama de transformismo. Essa absorção, entretanto, não se processa com a realização de tais elementos antagônicos no projeto burguês. O que ocorre é a cooptação de dirigentes, de representantes, de porta-vozes ativos desses elementos, que são disfarçadamente silenciados, anulados ou dissimulados. Com esses dois processos de construção de consenso, na sua forma passiva e ativa, a hegemonia burguesa pode se efetivar. Contudo, ela se realiza na forma de uma hegemonia restrita, que, desde 1848, quando burguesia e proletariado assumem lados opostos nas trincheiras das lutas sociais, não promove a assimilação das demandas subalternas ao projeto de sociedade burguês (Bianchi, 2006).

Assim, podemos indicar o traço geral do processo de transformação promovido pela revolução passiva: trata-se da efetivação da hegemonia de uma fração das classes dominantes sobre o seu conjunto, e não exatamente de uma classe sobre a totalidade das classes sociais. Nela, processa-se um movimento molecular de inovação e conservação política e econômica, em que o Estado, em sua forma integral, assume a posição de iniciativa na busca por evitar a intervenção ativa da classe trabalhadora no processo (Bianchi, 2006).

Mas o conceito de revolução passiva pode oferecer alguma contribuição para a análise de processos históricos de períodos recentes e tão distantes do contexto europeu do pós-Primeira Guerra Mundial? Faria algum sentido abordar o processo histórico brasileiro, mais propriamente dos recentes anos de governos do PT, sob o prisma desse conceito? Algumas leituras do pensamento gramsciano rejeitam a noção de revolução passiva como chave conceitual para explicar as transformações desse referido momento brasileiro, a exemplo do que propõe Coutinho (2010) ao defender, em seu lugar, o uso da noção de contrarreforma. Outras leituras até a reivindicam, contudo, a partir da positivação de uma certa fórmula de revolução passiva, transformada em uma espécie de programa de transição socialista sem revolução. Esta segunda perspectiva pode ser verificada no historicismo de Benedetto Croce (1866-1952) (Bianchi, 2006) e no caso brasileiro da leitura de Luiz Werneck Vianna (1998).

A perspectiva assumida aqui é outra. Acredita-se que esse conceito pode oferecer contribuições importantes para a análise do referido período histórico, com vistas a não se perder a articulação entre seus movimentos orgânicos e permanentes com aqueles conjunturais e imediatos. Assim, parte-se da perspectiva de que as mudanças políticas e econômicas mais importantes do mencionado período não romperam com o mesmo velho padrão de transformações da formação social capitalista brasileira. E, no que se refere ao modelo de trabalho em Psicologia problematizado, o modelo do desenvolvimento comunitário, acredita-se que as formas de participação por ele incrementadas foram funcionais à manutenção desse padrão. Isso por quê?

Primeiro, por que tratar como revolução passiva o conjunto de transformações realizadas pelos governos do PT no âmbito da economia, da política em geral, das políticas públicas etc.? Na análise realizada por Bianchi e Braga (2005) do programa político e econômico que se implementava no início do primeiro governo do Partido, o de Lula (2003-2006), o que se tinha era um programa de articulação entre os imperativos do capital e algumas demandas sociais. O que se promoveu não foi a superação do capitalismo, mas sua atualização. Essa atualização foi viabilizada, fundamentalmente, por uma reforma no sistema de seguridade social, que já vinha sendo implementada pelo governo anterior, mas que, sob sua gestão, logrou conciliar uma positiva movimentação do mercado financeiro com a disponibilização de algumas políticas sociais compensatórias.

Tais políticas compensatórias, realizadas, sobretudo, na forma de alguns programas assistenciais, não produziram grande modificação social estrutural, tampouco expandiram direitos sociais. A função cumprida por essas políticas, propiciadas pelo remanejo dos fundos da seguridade social, foi, propriamente, a de legitimação social do governo. De um lado, o crescimento dos subsídios acumulados nesses fundos possibilitou o importante financiamento da atividade produtiva nacional e a expansão do mercado financeiro, em um processo plenamente articulado às tendências econômicas globais. De outro, promoveu a ampliação da base social do Estado através das políticas sociais compensatórias (Bianchi & Braga, 2005).

O que nos permite entender esse conjunto de transformações como um processo de revolução passiva, de acordo com os autores, é o fato de elas terem se processado a partir da combinação de três elementos centrais. Em primeiro lugar, foram mudanças operadas, fundamentalmente, pelo Estado. Em segundo, foram mudanças que promoveram inovação no terreno da economia e conservação no terreno político-social. Isso porque ampliou a atividade produtiva e expandiu o capital financeiro, ao mesmo tempo que preservou a legalidade da reprodução do capital dentro dos mesmos velhos quadros de um capitalismo dependente e financeirizado, e de uma forma político-institucional quase nada democrática. Em terceiro lugar, porque promoveu a combinação de formas de consenso ativo e passivo, ao mesmo tempo. Ativo quando cooptou lideranças dos movimentos sindicais e populares, aderindo-os ao Estado na figura de gestores dos fundos da seguridade social. E passivo quando consagrou uma base social que possibilitou a ampliação e legitimação do Estado, por via das políticas assistenciais (Bianchi & Braga, 2005).

As análises realizadas pelos autores, ainda no início do primeiro governo do PT, são reiteradas por Bianchi (2017) que destaca, além disso, a característica fundamental da revolução passiva brasileira do recente período histórico desses governos. Foi uma revolução passiva que se processou, propriamente, no âmbito das forças produtivas, atualizando o capitalismo no país sob uma nova forma. Nisso residiria o caráter de inovação de seu conjunto de transformações. O caráter de conservação, por sua vez, estaria, sobretudo, no âmbito da forma político-institucional brasileira, que preservou seu caráter historicamente antidemocrático.

Agora, voltando ao modelo de trabalho comunitário problematizado neste texto, retomemos a pergunta: por que afirmar que as formas de participação incrementadas pelo modelo do desenvolvimento comunitário podem ter sido funcionais a esse padrão de transformação?

 

Desenvolvimento comunitário, consenso e hegemonia burguesa no Brasil

Ao analisar a dialética do processo de transformação operado na consolidação do capitalismo e do Estado moderno italiano, Gramsci (2002) chega à formulação de que ali se poderia verificar a existência de uma dialética própria. Se, no plano político, o programa das alas moderadas do Risorgimento poderia ser definido como um programa de revolução passiva, no plano teórico, seu método se configurava como uma forma específica de dialética, algo como a mutilação realizada por Proudhon do hegelianismo e de sua dialética ou, nas palavras de Bianchi e Braga (2005), uma dialética mutilada. O que configuraria essa dialética mutilada?

No movimento contraditório de elementos do real, a dialética, em sua forma mutilada, apresenta, como resultado do confronto entre tese e antítese, uma síntese que não se realiza por inteiro, ou uma espécie de síntese parcial. Nela, a tese não é anulada ou superada pela síntese, mas se conserva no produto do movimento contraditório a partir da absorção de elementos da antítese. Essa absorção de elementos da antítese pela tese não realiza uma síntese total justamente em virtude da mutilação que se processa no movimento. Essa tese, ao se confrontar com a antítese, absorve, dela, exclusivamente aqueles conteúdos que a ela não sejam antagônicos, residindo nisso seu caráter de mutilação (Gramsci, 2002; Maciel, 2006).

Assim, no que resulta enquanto síntese, o que se tem não é o surgimento de uma forma inteiramente nova, mas de uma forma que conserva os elementos fundamentais da tese, modificada apenas em razão da assimilação de um ou outro conteúdo da antítese que à tese não sejam contraditórios. Trata-se, portanto, de um movimento que preserva a continuidade sobre a ruptura, configurando a dinâmica fundamental do processo de manutenção da ordem pela revolução passiva que, no limite, tem como resultado o reforço da hegemonia dominante (Maciel, 2006).

E de que maneira o trabalho proposto pelo modelo do desenvolvimento comunitário poderia ser funcional a essa lógica? Para responder a essa questão, retornemos ao elemento do modelo destacado neste texto, qual seja, a concepção de participação discutida anteriormente. Apreende-se, desse modelo, uma concepção de participação que, embora busque superar os limites das formas de participação dos modelos ortodoxos de desenvolvimento de comunidades, preserva seus principais fundamentos. Como já discutido, a preservação desses fundamentos se expressa no entendimento de que a participação popular se efetivaria com a abertura de canais de comunicação ou de diálogo entre sociedade civil e Estado. Um entendimento que perde de vista o fato de que entre um e outro não há uma relação de oposição, mas de unidade distinção.

Na prática, em que implica a proposta de participação inerente a esse modelo? Pode-se dizer que implica em uma relação com dois polos em movimento dialético. De um lado, tem-se a formação conscientizadora e política dos membros da comunidade que os prepara para a apresentação de demandas, projetos, propostas, reclamações etc., que são dirigidas ao Estado, ou a seus representantes. De outro, o Estado, que recebe o conteúdo a ele dirigido, supostamente buscando atendê-lo, dentro de suas possibilidades legais, orçamentárias, de planejamento etc. Ou seja, pode-se dizer que, nesta configuração, tem-se teses e antíteses em disputa, conteúdos oriundos das reivindicações da sociedade civil, de um lado, e conteúdos oriundos das respostas do Estado, de outro.

Como analisa Jacobi (1989), nessa dinâmica de disputa de interesses, o que comumente se tem como resultado não é o atendimento a projetos de caráter anticapitalista, popular, ou que modifiquem radicalmente a ordem. O Estado tem mecanismos de exclusão, seleção e justificação da escolha de pautas a serem atendidas nas suas supostas aberturas de canais de diálogo com a sociedade, que são bastante eficazes nesse processo. As demandas atendidas ao final da disputa de interesses estabelecida nesse diálogo são, quando muito, aquelas que não são contraditórias com a ordem econômica e social, o que acaba resultando na criação de um consenso passivo das classes subalternas.

Mas por que isso acontece? A proposta do desenvolvimento comunitário não seria, justamente, a de capacitar os membros da comunidade para uma ocupação e uma disputa crítica desses espaços? Não seria objetivo desse modelo de trabalho comunitário, a formação conscientizadora dos cidadãos da comunidade em relação à sua posição social de dominação, em um sistema social estruturalmente desigual? Munidos dessa leitura crítica de realidade e formados para a disputa dialógica e consciente dos espaços de interlocução com o Estado, por que razão esses cidadãos não têm, frequentemente, como resultado de sua participação, o atendimento de suas reivindicações mais radicais e transformadoras? É possível que o referencial gramsciano possa nos indicar algumas pistas para a resposta a essas questões.

Como se buscou argumentar anteriormente, há uma aparente homogeneidade nisso que se identifica como comunidade ou, nos termos gramscianos, sociedade civil. Aparente porque, em sua efetividade material, não há qualquer harmonia ou homogeneidade, uma vez que nesse bloco da sociedade civil estão presentes diferentes grupos sociais e diferentes projetos políticos, ou seja, diferentes classes sociais e projetos de sociedade. Como já se afirmou, sociedade civil e sociedade política não são opostas, nem entre si nem à lógica do capital. A determinação, em última instância, da legalidade de todas essas esferas é a mesma velha propriedade privada e o antagonismo de classes.

Ou seja, do lado da sociedade civil, tem-se classes sociais distintas e antagônicas e, dessa mesma sociedade civil, portanto, emergem tanto projetos de ruptura, quanto projetos de conservação. Quer dizer, na antítese apresentada pela comunidade, ou pela sociedade civil, tem-se não só elementos antagônicos com a tese, que emerge do outro polo do espaço dialógico entre Estado e comunidade. Se, nessa sociedade civil, tem-se não só porta-vozes das demandas subalternas, mas representantes de frações das classes dominantes, com projetos que não são de ruptura, mas de preservação da ordem social, a antítese pode ser preenchida de conteúdos antagônicos, mas também não antagônicos com a tese.

E o fator que torna possível a absorção de pautas da comunidade na realização de algumas mudanças, que não rompem, mas conservam, está contido na própria natureza da sociedade civil, que não se opõe, nem em seus fundamentos materiais nem em seus objetivos, à sociedade política e às necessidades de acumulação e reprodução do capital. O mecanismo de supressão do conteúdo antagônico dos projetos acordados entre sociedade civil e Estado, propriamente dito, resulta, no final das contas, portanto, na construção de um consenso de tipo passivo que, em última instância, estabelece a conciliação entre dominantes e dominados, sob a hegemonia, contudo, dos interesses dos primeiros.

Na medida em que o modelo do desenvolvimento comunitário propõe o desenvolvimento de formas de participação que se inscrevem nesses limites e não na construção de espaços não institucionais e autônomos da classe trabalhadora, pode-se afirmar que, ao menos em termos de seus fundamentos, os resultados de seus esforços apontam para o desenvolvimento de um consenso de tipo passivo no trabalho comunitário. Este, por sua vez, instrumental às transformações sociais do tipo das promovidas pela forma da revolução passiva.

Como se argumentou ao longo do texto, os governos brasileiros do PT, antes de entrarem em crise, realizaram um programa político que pode ser caracterizado como uma forma de revolução passiva, que atualizou as relações capitalistas brasileiras dentro do quadro de um capitalismo dependente e financeirizado, e preservou a histórica institucionalidade política antidemocrática do país. Se os trabalhos comunitários orientados por concepções de participação como aquela presente no modelo do desenvolvimento comunitário tiverem sido funcionais à construção de consenso passivo nestes governos, é possível que esteja correta a suspeita de que tais trabalhos, em última instância, acabaram contribuindo com a manutenção da hegemonia de frações da classe burguesa no Brasil.

 

Considerações finais

Os desenvolvimentos teóricos e as propostas de intervenção que vem sendo elaboradas por um grupo de psicólogos (as) e pesquisadores (as) que reivindicam o campo da Psicologia Comunitária no Brasil têm sido de importante referência para diversos trabalhos comunitários em Psicologia. Esses trabalhos, em grande medida, realizam-se no campo das implacáveis condições resultantes das refrações da questão social, marcadas por profundas iniquidades sociais, diversas e graves violações de direitos e de ampliação, cada vez maior, de um quadro de profunda barbárie social. Os anseios por contribuir com a produção de teorias e práticas que instrumentalizem mecanismos de enfrentamento e de transformação desse quadro social são expressivos nas preocupações de profissionais e pesquisadores da Psicologia brasileira há algumas décadas.

Na atualidade de recrudescimento da barbárie neoliberal, esses anseios tornam ainda mais urgente a busca por respostas teórico-metodológicas de nossa ciência e profissão. O desenvolvimento dessas respostas, entretanto, não deve renunciar a uma rigorosa crítica teórica e política que revele as reais condições de cada uma delas em romper com os mecanismos de preservação da ordem social, de produzir sistemas de resistência e de fomentar processos insurgência. Nesse sentido, a retomada do pensamento de Marx e de algumas contribuições no campo da tradição marxista parecem não ter perdido sua capacidade de instrumentalizar a interpretação e a transformação da realidade social, ainda fundada no antagonismo entre capital e trabalho.

Dentre essas contribuições, o pensamento de Gramsci demonstra sua profunda vigência ao nos oferecer uma ferramenta teórica que nos possibilita desmistificar a natureza de certas instâncias sociais, como a da proclamada sociedade civil e a do Estado, propriamente dito, frequentemente entendidos como instâncias de materialidade e funcionalidade distintas. A atualidade do pensamento de Gramsci não só nos auxilia na desmistificação desse entendimento como nos oferece condições para a realização de análises que estabelecem a necessária articulação entre os movimentos orgânicos e os movimentos conjunturais do processo social.

O conceito de revolução passiva, entendido como chave conceitual para uma interpretação crítica do programa da burguesia (Bianchi, 2017), pode, como se buscou demonstrar neste texto, oferecer importantes contribuições teóricas para a análise dos pressupostos do modelo de trabalho comunitário problematizado. A análise do que, efetivamente, se produziu como resultado, no processo histórico brasileiro, das intervenções e projetos, em Psicologia, guiados pelo referencial do modelo do desenvolvimento comunitário exige, contudo, a realização de investigações que ultrapassam os limites do trabalho teórico aqui realizado. Assim, o presente texto tem, como uma de suas limitações, a não verificação do que se produziu de ações e de resultados de intervenções em Psicologia guiadas pelo referencial do modelo, que merecem ser explorados em outros trabalhos.

Entretanto, as reflexões possibilitadas pela problematização dos pressupostos desse modelo, especialmente no que se refere à concepção de participação que dele pode ser apreendida, possibilita-nos obter, ao menos no plano de seus fundamentos, indícios de alguns de seus limites fundamentais. Um desses limites pode ser expresso na impossibilidade de superação dos elementos centrais da forma de participação que o modelo busca combater, ou seja, aquelas verticalizadas e instrumentalizadas pelo Estado, típicas dos modelos ortodoxos de trabalho em comunidades. Ao conceber a relação dialógica entre comunidade e Estado como uma relação de agentes de natureza distinta, perde-se de vista o fato de que sociedade política e sociedade civil existem em relação de unidade distinção, em que a hegemonia tende a ser das classes dominantes que as conformam. E, ao desenvolver trabalhos comunitários fundados nessa forma de participação, acabam promovendo condições de desenvolvimento de formas de organização de consenso passivo, entre as classes subalternas.

Se o consenso passivo foi um importante instrumento de consolidação de uma base social do Estado nos recentes governos do PT no Brasil, talvez não seja incorreto avaliar que os fundamentos do modelo de trabalho comunitário analisado apontam para sua possível funcionalidade no referido processo de revolução passiva tratado. E, assim, não parece equivocado ajuizar que os fundamentos desse modelo sugerem sua funcionalidade, portanto, na manutenção da hegemonia burguesa no país, mais especificamente das frações da burguesia que se beneficiaram das transformações sociais e econômicas proporcionadas pela realização do programa político desses governos.

Se as formulações gramscianas nos oferecem contribuições para a avaliação dos problemas ou dos limites de certas formas de participação, oferecem-nos, também, aportes para o desenvolvimento de formas efetivas de auto-organização popular antiestatais e anticapitalistas. No que se refere a propostas de trabalho comunitário desenvolvidas na Psicologia ao longo de sua história no Brasil, o resgate dos pressupostos de experiências como as realizadas, por exemplo, pelo próprio autor enfatizado nesta reflexão, sob a denominação de Psicologia Popular (Góis, 2003), pode ser interessante. A retomada de propostas como a da Psicologia Popular, desenvolvida por Góis e outros pesquisadores durante a década de 1980, no Ceará, talvez possa indicar caminhos verdadeiramente alternativos de rompimento com as formas de participação instrumentais à manutenção dessa ordem, na medida em que, ao menos em seus fundamentos, propõe-se à construção de espaços de organização autônomos, anticapitalistas e não institucionais da classe trabalhadora. Na atual conjuntura de intensificação da ofensiva neoliberal e de endurecimento das condições de vida das classes subalternas, faz-se atual, como nunca, a necessidade da construção de formas de organização e de luta que não resultem em manutenção ou atualização das formas de exploração do trabalho, mas que sejam estratégicas no rompimento com a ordem do capital.

 

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Endereço para correspondência:
Larissa Soares Baima
baima.larissa@gmail.com

Recebido em: 16/04/2020
Aceito em: 26/05/2020

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