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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.2 Juiz de Fora abr./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.30067 

ARTIGOS

 

Formação em Psicologia e Políticas de Equidade: desafios para atuar no SUS

 

Training in Psychology and Equity Policies: challenges to act in SUS

 

Formación en Psicología y Políticas de Equidad: desafíos para actuar en el SUS

 

 

João Paulo MacedoI; Brisana Índio do Brasil de Macedo SilvaII; Magda DimensteinIII

IUniversidade Federal do Delta do Parnaíba. Email: jpmacedo@ufpi.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4393-8501
IIUniversidade Federal do Ceará. Email: brisanaindio@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1150-8291
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: mgdimenstein@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5000-2915

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na comemoração dos 30, anos do SUS esse artigo analisa a formação em Psicologia para saúde pública, com foco nas políticas de promoção de equidade. Trata-se de um estudo documental realizado com 21 Projetos Pedagógicos de Cursos de Psicologia no Brasil, que abordam temáticas relacionadas à saúde pública em interface com os estudos de relação de gênero e étnico-raciais. Foram identificadas 111 ementas de disciplinas com discussões sobre saúde pública. Todavia, apenas 7 apresentam interface com relações de gênero e étnico-raciais, que versam sobre: antropologia da saúde em relação ao processo saúde-doença-cuidado; marcadores de gênero, sexualidade, etnia, raça e geracionalidade no debate sobre a determinação social e promoção da equidade e; atenção à saúde dos povos indígenas. Logo, o fortalecimento desse debate é de suma importância para sustentação de um projeto de formação crítica e reflexiva na Psicologia diante do cenário de recrudescimento do projeto conservador para o país.

Palavras-chave: Psicologia; Saúde pública; Equidade em saúde; Estudos de gênero; Relações étnico-raciais.


ABSTRACT

In the 30-year anniversary of the Unified Health System, this article analyses training in Psychology for public health, focusing on policies to promote equity. It is a documental study carried out with 21 Pedagogical Projects of Psychology Courses in Brazil, which approach themes related to public health in interface with gender and ethnic-racial relationship studies. 111 subjects were identified with discussions on public health. However, only 7 present an interface with gender and ethnic-racial relations, which deal with: anthropology of health in relation to the health-care process; markers of gender, sexuality, ethnicity, race and generationality in the debate on social determination and promotion of equity and; attention to the health of indigenous peoples. Therefore, the strengthening of this debate is of utmost importance to sustain a project of critical and reflective formation in Psychology in the face of the recrudescent scenario of the conservative project for the country.

Keywords: Psychology; Public health; Health equity; Gender studies; Racial and ethnic relations.


RESUMEN

En estos 30 años de Sistema Único de Salud, hemos analizado la formación en Psicología para la salud pública, centrándonos en las políticas de promoción de la equidad. Se trata de un estudio documental realizado con 21 Proyectos Pedagógicos de Cursos de Psicología en Brasil, con temas relacionados con la salud pública y estudios de género y étnico-raciales. Se identificaron 111 disciplinas de salud pública, y sólo 7 presentan una interfaz con las relaciones de género y étnico-raciales: la antropología de la salud en relación con el proceso de atención del procesola salud-enfermedad-cuidado; los marcadores de género, sexualidad, etnia, raza y generacionalidad en el debate sobre la determinación social y la promoción de la equidad y; y la atención a la salud de los pueblos indígenas. El fortalecimiento de este debate es de suma importancia para reforzar refuerza un proyecto de formación crítica y reflexiva en Psicología ante el escenario de recrudecimiento del proyecto conservador para el país.

Palabras clave: psicología; Salud pública; Equidad en salud; Estudios de género; Relaciones raciales y étnicas.


 

 

No cenário de comemoração dos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), esse artigo pretende analisar a formação em Psicologia para o SUS, com foco nas políticas de promoção de equidade em saúde, tomando como analisador a estrutura curricular dos cursos de graduação em Psicologia e os desafios para a sustentação de um projeto de formação crítica e reflexiva, fundamental para um exercício ético-político da profissão em meio ao recrudescimento do projeto conservador em curso no país.

Desde a institucionalização do SUS, em 1988, com a garantia da saúde enquanto direito e dever do Estado na Constituição Federativa Brasileira e, posteriormente, com a regulamentação das Leis 8.080 e 8.142 em 1990, muitas foram as conquistas alcançadas no âmbito da saúde pública, inclusive, com experiências exitosas que serviram de exemplo para outros países, dando reconhecimento internacional ao Brasil. No campo da assistência, aumentou-se o patamar de estabelecimentos de saúde de 34.455, em 1988, para 331.058, em 2018, com forte impacto no âmbito da Atenção Básica em Saúde (Brasil, 2018a). Na Estratégia Saúde da Família (ESF), conta-se, até o momento, com uma cobertura de 64,19% da população brasileira (Brasil, 2018b). Trata-se de um importante vetor de acesso às ações promotoras e protetoras de cuidado e de recuperação em saúde, especialmente em áreas de vulnerabilidade social e pobreza, com impactos importantes em vários indicadores de saúde: redução da mortalidade infantil, controle de doenças crônicas (hipertensão e diabetes), saúde bucal e redução de hospitalizações (Macinko & Mendonça, 2018). Destaca-se o fortalecimento das redes de atenção em saúde, na última década, a exemplo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a Rede de Urgência e Emergência (RUE) e a Rede Cegonha, Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiências (Viver Sem Limites) e Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas, com o esforço de maior diversificação e integração do cuidado em diferentes serviços e níveis de atenção, com a coordenação de linhas/fluxos de cuidado e itinerários terapêuticos, inclusive, de forma regionalizada (Mendes, 2010).

Mesmo com a desigualdade que existe em termos do financiamento entre os níveis primário e terciário de atenção, que recai na qualidade da assistência, do quadro de transição epidemiológica e demográfica em que persistem padrões relacionados às doenças infectocontagiosas com as chamadas crônico-degenerativas, além do crescimento dos problemas em saúde relacionados à causas externas (homicídios, acidentes etc.), o SUS tem alcançado níveis positivos de respostas: no controle da AIDS; nos serviços de transplantes de órgãos e de tecidos; no controle do tabagismo; na implementação de um sistema nacional para as ações de vigilância epidemiológica e; de uma forte política nacional de imunização ampliando a cobertura vacinal (Teixeira, Costa, Carmo, Oliveira, & Penna, 2018).

Outro destaque tem relação com o próprio Movimento da Reforma Sanitária, importante ator social nos anos 1970, que participou ativamente das lutas democráticas e da construção e implementação do SUS (Paim, 2008). Ao longo desses anos, congregados em instâncias como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), o Centro de Estudos Brasileiro de Saúde (CEBES), a Associação Brasileira Rede Unida (REDE UNIDA) e os departamentos e programas de pós-graduação das áreas da saúde e afins das universidades brasileiras, trabalhadores, docentes, pesquisadores, estudantes e movimentos sociais de saúde têm produzido e sistematizado conhecimentos que, combinado com o que Campos (2018) chamou de "ativismo democrático", têm resultado em propostas inovadoras em saúde no "objetivo de reformular radicalmente o processo de trabalho e de gestão" (p. 1710). Como exemplo, o autor cita várias elaborações que se transformaram em Políticas Nacionais do SUS: Política Nacional de Saúde Mental; Política Nacional de Controle da AIDS/DST; Política Nacional de Atenção Básica; de Atenção Hospitalar; de Saúde Bucal; de Urgência e Emergência; Humaniza/SUS; de Educação Permanente; Educação Popular, dentre outras e; Programas importantes como o Mais Médicos e o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) (Campos, 2018).

Nesse bojo, não podemos perder de vista que esse ativismo democrático do Movimento de Reforma Sanitária em aproximação com outros movimentos e fóruns de coletivos sociais pela defesa de direitos das minorias sociais possibilitou a integração de novas pautas à saúde culminando na luta e aprovação de políticas de equidade importantes: Política Nacional de Saúde Integral LGBT; de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas; de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e Águas; de Saúde Integral da População Negra; Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO); de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional e; de Atenção Integral à Saúde para a População em Situação de Rua, dentre outras.

Para Siqueira, Hollanda e Mota (2017), as políticas de promoção de equidade se apresentam transversais no âmbito do SUS, envolvendo diferentes políticas e setores ministeriais para a oferta de ações de cuidado integral e de natureza universal à saúde, contemplando as particularidades de grupos sociais e populações historicamente vulnerabilizados e invisibilizados sociopoliticamente. A fim de operacionalizar tais políticas e articulá-las com outras instâncias ministeriais ou com secretarias de governo com status ministerial, como a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) e a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), estabeleceu-se no âmbito do Ministério da Saúde três eixos de trabalho para dar maior institucionalidade às ações direcionadas ao público dessas políticas: "i) transversalidade das ações; ii) formação/capacitação como elementos fundamentais para o sucesso da política, como forma de combate ao preconceito a estes grupos sociais, com impacto em sua saúde; iii) gestão participativa" (Siqueira et al., 2017, p.1399). O destaque para formação profissional diz da importância de requalificar os trabalhadores da saúde nessa direção para a garantia do acesso das populações anteriormente referidas às ações e serviços de saúde.

À vista disso, este estudo está direcionado à problemática da qualificação dos recursos humanos para o SUS a partir do campo paradigmárico da Saúde Coletiva. Embora seja uma discussão que a priori reflete em aspectos referentes à carreira, regimes de contratação e a questão salarial no SUS, interessa-nos discutir, neste artigo, o fortalecimento do trabalho em saúde de modo que as dimensões teórico-epistemológica e técnica-operativa do fazer em saúde estejam alinhadas com os princípios do SUS e que a dimensão ético-política esteja alinhada ao projeto coletivo da Reforma Sanitária.

Nesse sentido, é fundamental investir em processos formativos no âmbito das graduações em saúde, em cursos e ações de educação continuada de curta e de longa duração, incluindo a pós-graduação, e em programas e estratégias sistemáticas de educação permanente, na perspectiva de reorientar a formação profissional do modelo biomédico centrado no paradigma cura-doença para modelagens multi e interprofissionais com foco na abordagem integral do processo saúde-doença-cuidado. Para Ceccim (2018), são várias as iniciativas de fortalecimento da educação em saúde para o SUS ao longo desses 30 anos: 1) no âmbito da formação graduada: 1.1) Vivências-Estágio na Realidade do SUS (VER-SUS); 1.2) Estágio Regional Interprofissional; 1.3) Vivências de Educação Popular em Saúde; 1.4) Programa de Educação Tutorial Conexão de Saberes; 1.5) Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde e; 2) no âmbito da pós-graduação, o destaque é para os Programas de Residências Integradas Multiprofissionais em Saúde que também têm como foco qualificar a formação e o trabalho em saúde e promover a integração ensino-serviço-território.

No caso da formação em Psicologia, objeto da presente discussão, a história da profissão na saúde pública guarda relação estreita com os rumos dos Movimentos das Reformas Sanitária e Psiquiátrica Brasileiras (Dimenstein & Macedo, 2012). Foi na saúde mental que a inserção da profissão na saúde pública se fez inicialmente mais vigorosa, com a contratação de equipes multiprofissionais em serviços extra hospitalares tais como os centros e os ambulatórios de saúde. Em seguida, como desdobramento da ampliação do parque sanitário brasileiro, consolidou-se ainda mais a presença da(o) psicóloga(o) no SUS devido a: a) a significativa ampliação dos serviços da atenção básica com as equipes da ESF, acompanhado das equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), equipes de Apoio Matricial, Unidades Básicas/Centros de Saúde e Unidades Mistas, e equipes do Consultório na Rua e Centros de Convivência e; b) o crescimento das equipes multiprofissionais nos serviços especializados, notadamente nos: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos, Hospitais gerais e especializados, Unidades de referência em medicina física e reabilitação e Ambulatórios multidisciplinares especializados (Dimenstein & Macedo, 2012).

Tal quadro resultou, ao longo desses 30 anos de SUS, em uma forte expansão de profissionais da Psicologia junto aos estabelecimentos de saúde do país constando 66.752 registros de profissionais no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde,1 muito embora somente 37.231 (55,77%) atendam nos dispositivos de saúde pública. Por este aspecto, o Sistema Conselhos de Psicologia (CFP e CRP´s), juntamente à Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e a outras entidades da profissão, têm investido em ações de qualificação da formação graduada de maneira a construir uma identidade para a profissão atrelada à saúde (Spink, 2007). A institucionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Psicologia, por meio da Resolução Nº 8 de 2004, que foi atualizada pela Resolução Nº 5 de 2011, afirmam tal investidura ao indicar que os percursos formativos dos(as) estudantes de Psicologia devem desenvolver competências e habilidade para a oferta de ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação em saúde:

Atenção à saúde: os profissionais devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde psicológica e psicossocial, tanto em nível individual quanto coletivo, bem como a realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética (Brasil, 2011). Em seguida, iniciativas como a da ABEP em articulação com o Ministério da Saúde e a Organização Panamericana em Saúde (OPAS), orientadas por ações como o AprenderSUS, política de educação para o SUS para potencializar mudanças curriculares nos cursos de graduação da saúde, culminaram na realização de encontros regionais e nacionais sobre Psicologia e Saúde Pública, acompanhado de uma pesquisa nacional, ao longo do ano de 2006. Tais ações foram importantes para consolidar propostas para fortalecer a presença qualificada de psicólogas(os) no SUS (Spink, 2007). Em função de tais investidas, o conjunto de experiências anteriormente referidas como o VER-SUS (Ribeiro, Cavalcante, Albuquerque, Vasconcelos & Teófilo, 2016). Programas de estágios interprofissionais e ações de educação popular (Rossit, Freitas, Batista, & Batista, 2018), PET-Saúde (Santos & Bernardes, 2019) e Programas de Residências Integradas Multiprofissionais em Saúde (Reis & Faro, 2016) já são uma realidade na Psicologia.

Mais recentemente, o Sistema Conselhos, a ABEP e a Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI) fomentaram debates acerca da necessidade de revisão das DCN em Psicologia. Em 2018, eleito como o Ano da Formação para a Psicologia, ocorreram diversos encontros por todo o país envolvendo profissionais, estudantes e representantes do corpo docente de cursos de graduação em Psicologia, para debater sobre a atualização das DCN, no tocante aos objetivos dos cursos, ao perfil do egresso, às competências e habilidades, aos processos de trabalho, ao núcleo comum e às ênfases (disciplinas e ementas), ao sistema de avaliação, à importância da pesquisa na formação profissional, à organização do estágio, à supervisão e o serviço-escola, à curricularização da extensão, dentre outros elementos2.

Esse debate resultou numa minuta de texto que foi submetida à etapa de consulta pública para incorporar sugestões. Algumas críticas foram apresentadas pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) e outras entidades da profissão conclamando o aprimoramento do processo de revisão e a atualização da minuta, no âmbito do Conselho Nacional de Educação, por meio de audiências públicas, que resultaram na versão final do documento - composto de diretrizes relacionadas: a) à organização dos cursos, b) às competências e habilidades, c) ao projeto pedagógico complementar e; d) à formação de professores - aprovado naquela instância por meio do Parecer CNE/CNS n.º 1.071/2019 (CNE, 2019), aguardando somente a assinatura da respectiva portaria pelo Ministério da Educação.

A saúde, enquanto campo de produção de conhecimento, saberes, ações e práticas já tinha sido reconhecida nos documentos anteriores das DCN em Psicologia (Brasil, 2004; Brasil, 2011), compondo o horizonte de competências e habilidades gerais para a formação profissional de psicólogas(os). Na atualidade , apresenta-se como horizonte ético-político, juntamente com a defesa da democracia e dos direitos humanos, do reconhecimento da diversidade da população brasileira e da promoção da cidadania e da dignidade humana, além de reconhecer a importância das políticas públicas para assegurar direitos sociais e garantir o acesso à população aos serviços psicológicos (CNE, 2019). Sem dúvida, isso representa uma importante mudança, ainda mais se considerarmos a existência de inúmeros grupos sociais vulneráveis, a exemplo da população negra, da comunidade LGBT, das pessoas em situação de rua, do povo cigano e demais povos do campo, das florestas e das águas, que são alvo das políticas de promoção de equidade em saúde e que vivem na realidade das periferias dos grandes centros urbanos e nos contextos rurais, com os quais nossa categoria têm se aproximado nas últimas décadas. Para tanto, é imprescindível considerar as condições de vida e as particularidades dos territórios e das populações, intercruzadas por marcadores sociais como gênero, classe, relações étnico-raciais, intergeracionalidade, além do acesso aos serviços e recursos comunitários, grau de integração, suporte e apoio social, o que certamente requer a incorporação de novos debates e norteadores teórico-práticos e ético-políticos na formação profissional em Psicologia (Borghi, Oliveira, & Sevalho, 2018).

Posto isso, perguntamos: como a formação graduada em Psicologia tem considerado as discussões de gênero e de relações étnico-raciais no âmbito da promoção da equidade e em interface com a saúde? Tomar esses marcadores sociais na formação implica na ampliação da concepção do processo saúde-doença-sofrimento-cuidado por parte das(os) psicólogas(os), bem como dos meios e modos com que operam o trabalho em saúde junto a essas populações. Assim, objetivamos, com o presente estudo, analisar a formação em Psicologia para a Saúde Pública com foco nas políticas de promoção de equidade em saúde. De forma mais específica, pretendemos: a) mapear os Projetos Pedagógicos de Cursos (PPC´s) de graduação em Psicologia que abordam temáticas relacionadas à saúde pública em interface com os estudos de gênero e étnico-raciais e; b) problematizar como os componentes curriculares (disciplinas e ementas) articulam saúde pública, estudos de gênero e relações étnico-raciais.

Com esse estudo, intencionamos contribuir para o debate em torno da formação em Psicologia para a Saúde Pública, no intuito de fomentar discussões relacionadas ao instrumental técnico-prático e ético-político que orienta o saber-fazer profissional das psicólogas(os) no âmbito do SUS, tomando como foco as políticas de promoção de equidade em saúde. Ressaltamos a importância desse debate no cenário em que se acirra os desafios e obstáculos históricos que dificultam a garantia da institucionalidade e a efetivação dos princípios do SUS, a exemplo do subfinanciamento crônico, agora, constitucionalizado com a Emenda Constitucional Nº 95/2016, que aprovou o teto dos gastos públicos; do mix público-privado na oferta de serviços e formas de gestão com tratamento desigual dos recursos e os interesses privados de setores das empresas médicas, planos de saúde, indústria farmacêutica e de equipamentos médico-hospitalares; da interferência partidária e uso clientelista dos serviços e da máquina pública; da precarização do trabalho e da terceirização; além dos valores e da produção micropolítica da subjetividade de trabalhadores, gestores e sociedade em geral, inclinados para o individualismo e diminuição da solidariedade política, e a resistência de setores profissionais e da grande mídia ao SUS (Paim, 2018).

Método

Trata-se de um estudo com delineamento documental, focado nos Projetos Pedagógicos de Cursos de Psicologia (PPC) do Brasil. Haja vista que se trata de um documento normativo que contém informações referentes à estrutura curricular de cada curso ofertado em cada instituição de ensino, no intuito de orientar as ações e as práticas a serem desenvolvidas no decorrer do processo formativo e acadêmico. No caso dos cursos de Psicologia, os PPC englobam informações acerca de fundamentos teóricos, filosóficos e pedagógicos; ênfases curriculares; disciplinas e práticas profissionais (Seixas, Coelho-Lima, Silva, & Yamamoto, 2013).

Apesar de serem documentos públicos, estes não se encontram públicos na base de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e muito menos em todos os endereço eletrônicos das instituições de ensino superior que ofertam cursos de Psicologia. Para contornar tal obstáculo, adotamos como procedimentos: 1) identificar o quantitativo e a lista nominal dos cursos de psicologia em funcionamento no país no Censo do Ensino Superior no Brasil e; 2) realizar busca dos PPC, disponíveis em domínio público, na página eletrônica de cada IES e/ou através de contato direto por e-mail solicitando o respectivo documento para fins de pesquisa.

Dos 526 cursos de Psicologia em funcionamento no país (438 em IES privadas e 88 em públicas), de acordo com o Censo do Ensino Superior (Brasil, 2017), acessamos 54 PPC, que retornaram na busca realizada em domínio público, os quais foram armazenados e sistematizados, em um banco de dados em planilha Excel, a partir das seguintes variáveis: região do país, estado brasileiro, capital/interior, porte do município, nome da IES, pública/privada, ano de início, turno de funcionamento, quantidade de vagas, nome da disciplina, período letivo, obrigatória/optativa, ementa, eixo comum/profissionalizante e carga horária.

Após a localização dos referidos documentos, foi realizada uma busca nos componentes curriculares, por meio dos seguintes descritores: "saúde coletiva"; "saúde pública", "saúde mental"; "SUS"; "políticas públicas"; "atenção à saúde"; "equidade em saúde", "direitos humanos", "gênero"; "sexualidade", "etnia"; "raça", "afro descendência", no intuito de localizar disciplinas e ementas relacionadas à saúde pública e ao SUS e/ou estudos de gênero e relações étnico-raciais. Deste modo, do total de PPC inicialmente localizados, 21 currículos constituíram o corpus de análise da pesquisa, por apresentarem alguma disciplina, informação na ementa ou menção às temáticas relacionadas à saúde pública, gênero, raça e etnia. Por fim, por questões éticas, mesmo se tratando de documentos disponíveis em domínio público, consideramos o anonimato dos cursos na apresentação das informações.

 

Resultados

Em linhas gerais, dos 21 Projetos Pedagógicos dos Cursos de Psicologia selecionados, 11 são provenientes de IES Públicas e 10 de IES Privadas, sendo 11 universidades, 6 faculdades e 4 centros universitários. São cursos que, em sua maioria, foram criados a partir de 2001 (n=13), funcionam em regime integral (n=13) e ofertam de 81 a 100 vagas por ano letivo (n=10). Além disso, encontram-se distribuídos, em sua maior parte, na região Nordeste (n=8), seguido das regiões Sul (n=6), Norte (n=3), Centro Oeste (n=3) e Sudeste (n=1). Quanto à localização, estão situados nas capitais (n=9) e em cidades do interior (n=12), sobretudo, em municípios de porte médio-grande (n=3), de porte médio (n=3), de porte médio-pequeno (n=3) e de pequeno porte (n=3).

Em relação aos componentes curriculares dos 21 PPC´s, 111 ementas de disciplinas apresentaram discussões relacionadas aos fundamentos epistemológicos, metodológicos e ético-políticos da saúde. Em sua maioria, são ementas de disciplinas de núcleo comum (n=72) das matrizes curriculares, de natureza teórica (n=74), obrigatória (n=102), do 4ª ano de curso (n=39), com carga horária teórica de 30h - 60h (n=79) e carga horária prática de 10h-60h (n=20), conforme ilustrado na Tabela 1.

Tais disciplinas, em suas ementas, versam sobre discussões relacionadas: a) ao histórico das políticas públicas e políticas de saúde, incluindo os processos de reforma sanitária e psiquiátrica (n=34); b) às concepção de saúde ou de saúde mental (n=29); c) às ciências sociais e humanas em interface com a saúde (n=30); d) às políticas de planejamento em saúde/saúde mental (n=35); e) à epidemiologia (n=3) e; f) à atuação da(o) psicóloga(o) nas políticas de saúde/saúde mental (n=47).

No tocante ao histórico das políticas públicas e de políticas de saúde, as ementas das disciplinas, em sua maioria, fazem uma contextualização socio-histórica da saúde pública e da saúde mental, relacionando-as aos movimentos sanitaristas e de luta antimanicomial no mundo e no Brasil. Além disso, mostram o desenvolvimento da legislação e da própria constituição das políticas públicas de saúde e de saúde mental como subsídio para a execução das atividades gerenciais e assistenciais nas unidades locais, em consonância com os modelos vigentes de atenção à saúde integral.

As temáticas sobre a reforma sanitária e a reforma psiquiátrica proporcionam em algumas ementas discussões que versam sobre a concepção de saúde e de saúde mental, relacionadas à promoção da saúde e da saúde mental na comunidade, levando em consideração aspectos psicossociais e culturais do processo saúde-adoecimento-cuidado. Nesse âmbito, as ementas das disciplinas das ciências sociais e humanas em interface com a saúde têm grande contribuição no processo formativo nos currículos analisados, pois dão subsídios teóricos para ações de promoção de saúde nas instituições, mediante discussões sobre o conceito saúde, doença, loucura. Além disso, sinalizam a relação entre saúde e comunidade como uma estratégia de base da cidadania, que perpassa discussões relacionadas a: saúde e cultura; saúde e meio ambiente; saúde e qualidade de vida; saúde e direitos humanos; saúde e trabalho; saúde e condições de vida.

Nesse bojo, algumas ementas das disciplinas trazem discussões relacionadas à política de planejamento em saúde e de saúde mental e abordam temáticas sobre as políticas e modelos de atenção à saúde e de saúde mental, as diretrizes do SUS, processo de regionalização da atenção à saúde, pacto pela saúde. Além do mais, abordam estratégias de planejamento, execução e avaliação de programas de promoção de saúde no âmbito comunitário e institucional, para assim pensar as práticas em saúde no que se refere ao território, ao cuidado, ao vínculo, à humanização, à intersetorialidade, à co-gestão do trabalho interdisciplinar em saúde, à integralidade na atenção e à vigilância em saúde. Porém, as ementas em análise abordam com menor ênfase discussões relacionadas à epidemiologia, sempre com foco na epidemiologia social, envolvendo temáticas de vulnerabilidade social e risco.

Por fim, em sua maioria, as ementas das disciplinas buscam discutir a atuação da(o) psicóloga(o)nas políticas de saúde e de saúde mental, com foco na atenção básica (ESF e NASF) e na saúde comunitária/bases de apoio social; ambulatório em saúde, CAPS, serviços residenciais terapêutico e pensões abrigadas e; o contexto hospitalar (geral e especializado). Também abordam o trabalho interdisciplinar, discutindo aspectos éticos, os limites e as possibilidades da atuação da(o) psicóloga(o) nos diversos níveis de atenção em saúde, além de buscarem articular teoria e prática, sobretudo, nas disciplinas de estágios profissionalizantes, que têm como objetivo identificar as relações estabelecidas entre o processo de saúde, cuidado e adoecimento, elaborar e executar projetos de intervenção e/ou de pesquisa na área de atenção à saúde.

Chamamos a atenção para o fato de que, das 111 ementas de disciplinas analisadas, 7 abordam discussões relacionadas à interface saúde e relações de gênero e étnico-raciais, a saber: "Psicologia e Povos indígenas", "Psicologia das populações indígenas", "Saúde e qualidade de vida", "Fundamentos das ciências sociais", "Saúde e Direitos Humanos", "Antropologia da Saúde" e "Processos psicológicos na idade adulta e velhice". Essas disciplinas são, em sua maioria, de núcleo comum (n=6), de natureza teórica (n=6), com carga horária de 60h-80h (n=6), obrigatórias (n=4), ofertadas no primeiro (n=2), quinto (n=1) e sétimo semestres (n=1); as demais, são ementas de disciplinas eletivas que podem ser ofertadas ao longo do curso, conforme podemos observar na Tabela 2.

Os cursos que ofertam tais disciplinas estão situados em universidades (n=4), centros universitários (n=1), faculdades (n=2), de natureza pública (n=4) e privada (n=3), distribuídos em três regiões brasileiras (Sul=3; Nordeste=2; Norte=2) e em cidades da capital (n=4) e do interior (n=3), em municípios de grande porte (n=4), pequeno porte (n=2) e de porte médio-pequeno (n=1). De modo mais detalhado, disciplinas como "Saúde e Direitos Humanos", "Antropologia da Saúde" e "Processos psicológicos na idade adulta e velhice" foram ofertadas em cursos da região Sul do país, em localidades como Porto Alegre e Florianópolis. Já as disciplinas "Saúde e qualidade de vida" e "Fundamentos das ciências sociais" foram visualizadas em cursos da região Nordeste, no interior do estado do Ceará e do Rio Grande do Norte. Por fim, disciplinas como "Psicologia e Povos indígenas" e "Psicologia das populações indígenas" foram ofertadas em cursos da região Norte, mais especificamente, em Porto Velho-RR e em localidade do interior do estado de Rondônia.

Reunimos o material colhido das 7 ementas em três eixos. O primeiro abarca temáticas da antropologia da saúde com discussões sobre o corpo e o processo saúde-doença a partir dos sistemas médicos ocidentais; a construção cultural do paciente; representações sociais e processos simbólicos do corpo, da doença, da terapêutica e da morte; práticas de cura, eficácia ritual, itinerário terapêutico; a relação entre sistemas religiosos, cosmológicos e a saúde, incluindo sistemas xamânicos, religiões afro-brasileiras e medicina popular, a exemplo das ementas de "Antropologia da Saúde" e "Fundamentos das ciências sociais". O segundo, aborda os marcadores de gênero, sexualidade, etnia, raça, identidade e geracionalidade no debate sobre a determinação social da saúde e da promoção da equidade, relacionado com temas da saúde coletiva e saúde pública, tais como as ementas das disciplinas "Saúde e qualidade de vida", "Processos psicológicos na idade adulta e velhice" e "Saúde e Direitos Humanos". Já o terceiro, foca especificamente na realidade indígena com temas que compreendem a política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas; o processo saúde-doença desses povos; epidemiologia e fatores de risco; trajetórias terapêuticas e a intervenção clínica junto a esses povos e; formas de atuação da psicologia com a questão indígena. Como exemplo, observamos as ementas das disciplinas "Psicologia e Povos indígenas" e "Psicologia das populações indígenas".

 

Discussão

A formação em Psicologia no Brasil carrega, em sua história, a marca identitária da profissão ainda fortemente ligada ao lugar do especialista, associada ao fazer clínico-privativo e forjada no modelo médico-liberal (Dimenstein, 2011). Esse modelo de profissão povoa o imaginário e perdura como sonho de muitos daqueles que ingressam nas graduações em Psicologia (Spink, 2007). Atrelado a isso, é comum, entre os recém chegados aos cursos de graduação, uma adesão às áreas da psicologia norteadas pelo modelo hegemônico de ciência "enquanto área do conhecimento que propicia a adaptação e o ajustamento do indivíduo consigo mesmo, com os demais e com o próprio meio no qual está inserido" (Nascimento, Manzini, & Bocco, 2006, p. 18). Por outro lado, as mudanças curriculares e a incorporação de novos debates no âmbito das políticas públicas, do mundo do trabalho, da saúde coletiva/mental, do campo da educação, além das perspectivas críticas nas ciências humanas e sociais ao longo das duas últimas décadas, têm suscitado importantes reflexões e deslocamentos acerca dos paradigmas que orientam as bases teórico-metodológicas e ético-políticas da nossa ciência e profissão (Ceccim, 2018; Santos & Bernardes, 2019).

O campo de tensão gerado por essas diferentes concepções, visões de ciência, de mundo e de profissão, têm produzido cenários de disputa entre diferentes percursos formativos e projetos de formação em Psicologia no Brasil. De um lado, os estudantes são tomados por conhecimentos ancorados na neutralidade da ciência, no reducionismo teórico-metodológico, na separação entre Psicologia e Política, com processos formativos apoiados no tecnicismo, no consumo e na reprodução acrítica de métodos e procedimentos, que reafirmam a tradicional cultura profissional da Psicologia e respondem ao mandato social da profissão de adaptação e de ajustamento dos indivíduos. Do outro, são confrontados por perspectivas que rompem com tal entendimento, com análises históricas e sociais da própria conformação da Psicologia, condições de emergência e possibilidades de suas teorias e conhecimentos, e crítica do seu comprometimento político com determinado projeto de modernidade de programa normativo/corretivo (Hüning & Guareschi, 2005).

Certamente, tais disputas e embates permearam o processo de revisão e atualização das DCN para os cursos de graduação em Psicologia. Apesar dos consensos e avanços para o fortalecimento da qualificação da presença da Psicologia em vários espaços profissionais, inclusive na saúde pública, com a aprovação do novo documento das DCN no âmbito do CNE, em 2019, se comparado com os processos anteriores, destacamos um aspecto: trata da supresão do artigo 3º da minuta do documento, que indicava, como meta central para formação de psicólogas(os),o desenvolvimento de "capacidade para atuar com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral e tendo como transversalidade, em sua prática, a determinação social dos fenômenos e processos humanos" (Conselho Federal de Psicologia, 2018, p.1). Muito embora o referido texto com o artigo 3º tenha sido aprovado na íntegra pelo Conselho Nacional de Saúde, a versão final do documento aprovado pelo CNE, após as audiências públicas realizadas, tal trecho foi suprimido, desconsiderando um pressuposto importante para a Psicologia: a compreensão de que fenômenos e processos psicológicos e processo saúde-doença-sofrimento-cuidado só podem ser compreendidos à luz do paradigma da Determinação Social da Saúde e da Vida. Inclinar a formação em Psicologia sob a perspectiva da saúde integral e da determinação social é um projeto desafiador, pois exige que sejam consideradas múltiplas determinações sobre as condições de saúde de uma coletividade e dos lugares em que vivem, perspectiva que não é hegemônica em nossa ciência e profissão, ainda mais se considerarmos a existência de inúmeros grupos sociais vulneráveis, a exemplo da população negra, da comunidade LGBT, das pessoas em situação de rua, do povo cigano e demais povos do campo, das florestas e das águas, que são alvo das políticas de promoção de equidade em saúde.

No âmbito da formação para o SUS, conforme vimos nos currículos analisados, apesar de não haver muitas ementas de disciplinas relacionadas à área da saúde (média de 5 por curso), a incorporação do histórico das políticas públicas e das políticas de saúde e os debates em torno dos processos de reforma sanitária e psiquiátrica nos currículos de Psicologia é uma importante estratégia para fortalecer o debate crítico na profissão ao ampliar as concepções de saúde, os modos e os meios de trabalho na saúde pública. Sabemos o quanto a formação do trabalhador em saúde se constitui como pilar de sustentação do SUS. Certamente, um dos maiores focos de discussão da Psicologia no SUS é o campo das práticas em saúde e, nesse sentido, foram identificadas pelo menos 47 disciplinas voltadas para atuação da(o) psicóloga(o) nas políticas de saúde/saúde mental. Isso implica em termos das formações em saúde, investimento na mudança da cultura profissional de atenção aos usuários e da gestão dos processos de trabalho (Merhy, 2002; Santos-Filho & Barros, 2007).

Para fortalecer a emergência de outra cultura profissional na Psicologia, que encontra potência nos valores afirmados pelo SUS, é preciso trabalhar com uma ideia de formação profissional que vai além da aquisição de conhecimentos e do desenvolvimento de habilidades, atitudes e competências profissionais para atuar na saúde pública, conforme visualizado nos currículos analisados. Indicam dispositivos de subjetivação pelos quais incidem práticas de objetivação, relações de saber-poder e regimes de verdade em que os estudantes acabam produzindo outras relações consigo mesmos, numa operação ao mesmo tempo de dessubjetivação e subjetivação de determinadas racionalidades, valores, princípios éticos-políticos e modos de ser profissional.

A aposta nesse sentido, ao incorporar debates e temas envolvendo as ciências sociais e humanas em interface com a saúde (n = 30), políticas de planejamento em saúde e saúde mental (n = 35), conhecimentos em torno da epidemiologia social (n = 3) e ferramentas teórico-práticas para atuação nos dispositivos de saúde pública (n = 76), a exemplo das muitas ementas de disciplinas identificadas nos currículos analisados, que por muito tempo estiveram ausentes da formação em Psicologia, é para que nossa categoria profissional possa afirmar o caráter público, universal, equânime e coletivo da produção da saúde; conhecer a conjuntura e, na relação interprofissional, apreender as múltiplas determinações em operação na compreensão dos problemas, necessidades e demandas da população; reconhecer o caráter histórico das pessoas e coletividades; tomar os acontecimentos da vida cotidiana com foco da análise e intervenção, desconstruindo a tendência em privilegiar a vida intimizada à margem do social e da história; investir na construção de estratégias de ação/intervenção que sejam participativas, inclusivas e colaborativas; garantir uma formação de forma transversal articulando política, teoria e prática, rompendo com o modelo técnico, super especializado, aplicável a realidades estáticas (Dimenstein, 2011).

A disputa por diferentes projetos de formação em Psicologia tem sido colocada à prova, na atualidade, diante do acirramento do conservadorismo na cena política brasileira, pós-impeachment da Presidente Dilma Rousseff, e na guinada (neo)conservadora e ultraliberal do atual Governo Jair Bolsonaro. Neste pacote, inclui-se: o desmonte e retrocessos impostos às políticas estruturantes no âmbito da saúde, a exemplo da alteração da Política Nacional da Atenção Básica e os retrocessos anunciados na Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas; adesfinanceirizaçãoe a desprofissionalização das políticas sociais; as ofensivas no âmbito dos direitos humanos e das políticas de equidade com desestruturação de suas secretarias; limitação e encerramento das atividades dos conselhos de direitos; aumento dos índices de feminicídio, violência contra mulher e LGBTfobia; além da insegurança dos povos indígenas e das comunidades tradicionais com o avanço dos conflitos agrários e socioambientais em decorrência da grilagem e invasão de terras, da expansão desenfreada do agronegócio, mineradoras e projetos de infraestrutura (rodovias, hidrelétricas, barragens); acompanhado, ainda, de dificuldades de acesso a serviços de saúde e de atenção qualificada por parte dos profissionais de saúde, para que não recaiam na prática do racismo institucional, fruto de racismo estrutural que orienta a formação social brasileira presente nas instituições e serviços das políticas públicas ao hierarquizar e estabelecer oportunidades diferenciadas para o acesso a direitos em razão da raça e etnia.

Para avançar na afirmação de um projeto de formação em Psicologia que dê sustentação às políticas sociais, aos direitos humanos, as políticas de equidade e ao próprio SUS, inclusive, defendido pelas novas Diretrizes Curriculares para nossa área, entendemos que os currículos de todo o país precisam avançar em discussões que abarquem as singularidades dos modos de vida, dos territórios, das necessidades sociais e de saúde das populações em situação de vulnerabilidade social, a saber: negros, comunidade LGBT, pessoas em situação de rua, ciganos e povos do campo, das florestas e das água, e que contribuam para a superação das desigualdades em saúde dessas populações, já que fatores como condições de vida; qualidade e acessibilidade aos serviços e ações de saúde, recursos comunitários e de suporte social, gênero, raça e etnia interferem diretamente e indiretamente nas disparidades observadas no processo saúde-doença-cuidado de indivíduos e coletividades (Almeida-Filho, 2009). Na análise aqui realizada, das 111 ementas de disciplinas identificadas, somente 7 abordam discussões relacionadas à interface saúde e relações de gênero, étnico-raciais e geracionalidade, o que qualifica muito pouco psicólogas(os) a atuarem em equipamentos das políticas sociais de todo o país, especialmente em áreas periféricas de grandes centros urbanos e municípios mais interioranos, que contam com populações rurais e povos tradicionais. Além disso, as ementas das disciplinas pesquisadas se voltam mais especificamente para os povos indígenas, o que é um avanço importante, pois transitam por discussões gerais sobre a determinação social da saúde e de marcadores de gênero e relações étnico-raciais, porém outros grupos acabam invisibilizados nesse debate.

Agregar o debate acerca dos processos de determinação social às iniquidades étnico-raciais em saúde e de gênero é de suma importância para compreendermos a complexidade de tais intersecções na conformação da identidade dos sujeitos e no modo como estes lidam com o processo saúde-adoecimento-cuidado (Borde, 2014). Os marcadores de gênero, raça, etnia e geração delimitam experiências particulares de adoecimento e cuidado em saúde, bem como em relação ao acesso a recursos e serviços de saúde dessas populações (Caldwell, 2017). Casos de preconceito e discriminação envolvendo tais grupos populacionais são recorrentes, como o caso das pessoas LGBT quando buscam atendimento nas unidades públicas ou privadas de saúde, pois, em sua maior parte, os profissionais reproduzem práticas e saberes fincados na lógica da heteronormatividade, pouco dialogam com as necessidades e especificidades em saúde desse público, e acabam se contrapondo aos princípios da universalidade, integralidade e equidade do SUS (Mello, Perilo, Braz, & Pedrosa, 2011).

Ao longo desses anos, muitos têm sido os esforços para a implementação das políticas de equidade no âmbito do SUS, sobretudo, no que se refere: a) ao reconhecimento dos distintos modo de viver; b) à luta contra o racismo institucional; c) à luta contra a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero; d) à luta contra a violência e a negação de direitos que acomete a população em situação de rua e; e) à redução dos riscos e agravos à saúde decorrentes do processo de trabalho e das tecnologias agrícolas (Siqueira et al., 2017). Deste modo, é estratégico o investimento na formação/capacitação dos profissionais em torno das políticas de promoção de equidade em saúde, numa perspectiva interseccional e intersetorial, aliado a um conjunto de conhecimentos que todos os profissionais devem ter acerca dos modos e meios de atuar no SUS como: responsabilização, vínculo, acolhimento, gestão da clínica e demais dispositivos que garantam no âmbito da assistência a integralidade e a continuidade do cuidado, a educação permanente e ações no âmbito da vigilância sanitária e epidemiológica, além da promoção de saúde (Almeida & Mishima, 2001; Borde, 2014).

 

Considerações Finais

O estudo realizado permitiu conhecer como a formação em Psicologia tem abordado as discussões sobre gênero e relações étnico-raciais no âmbito da saúde pública, tomando como analisador a estrutura curricular dos cursos de graduação e os desafios para sustentação de um projeto de formação crítica e reflexiva para a atuação das(os) psicólogas(os) no âmbito do SUS, inclusive, voltado para a promoção de políticas de equidade em saúde. De modo geral, percebemos que a interface saúde e relações de gênero e étnicos-raciais ainda é pouco abordada no processo formativo em Psicologia, visto que das 111 ementas de disciplinas relacionadas ao campo da saúde, somente 7 apresentam tais discussões. No entanto, apesar da limitada expressividade, tais ementas contribuem para a compreensão dos processos simbólicos do corpo, da doença, da saúde, da terapêutica e da morte das populações de matriz afro-brasileira; além disso, sinalizam a importância de se considerar os marcadores de gênero, etnia e raça no processo saúde-adoecimento-cuidado, e, por fim, retratam de modo particular a realidade das populações indígenas no âmbito da saúde, dando subsídios teóricos e práticos para a atuação das(os) psicólogas(os) com tal população. Todavia, gostaríamos de chamar a atenção para a importância de ampliar o debate para os demais grupos (população negra, da comunidade LGBT, das pessoas em situação de rua, do povo cigano e demais povos do campo, das florestas e das águas), a fim de pensar a promoção e a equidade em saúde, contribuir com o caráter público do SUS, fortalecendo a participação popular e controle social. Alertamos para os limites desse estudo, considerando o número de PPC analisados. Por isso, é fundamental que as instituições de ensino superior que ofertam cursos de Psicologia sejam obrigadas a divulgarem tais documentos. Assim, será possível ter uma visão panorâmica da realidade dos cursos e o investimento em novos estudos acerca da formação em Psicologia no Brasil.

Sabemos que, entre o currículo prescrito e o real, ou até mesmo o oculto, há inúmeras possibilidades formativas. Porém, importa questionar qual projeto de formação em Psicologia se pratica: o que afirma os valores do intimismo, do individualismo competitivo, da autonomia individual e da noção de saúde e bem-estar com base em uma normalidade institucionalizada, presa a um ideal de cura, de ajuste e correção, por técnicas restauradoras de uma harmonia abalada? Ou o que afirma a invenção de uma atuação ético-politicamente comprometida, que produz rupturas com sua tradicional cultura profissional, ainda presa ao reducionismo psicologicista, individualizante e objetificador, ancorada por valores de um sujeito universal, estável e interiorizado, situada por um modelo liberal de atuação e operadora de mecanismos regulatórios e de controle? Cabe continuar apostando numa Psicologia de posturas implicadas, que não empobrece sua capacidade de ação, envolvida num cotidiano de indagações ético-políticas e alerta aos efeitos de suas práticas e saberes para não reproduzir padrões estruturais de dominação, exploração e marginalização.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
João Paulo Macedo
Email: jpmacedo@ufpi.edu.br

Recebido em: 28/03/2020
Aceito em: 14/05/2020

 

 

1 Consulta realizada em julho/2019 no sítio http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/prid02br.def
2 *http://www.abepsi.org.br/2020/02/11/aprovado-no-conselho-nacional-de-educacao-o-projeto-de-resolucao-sobre-as-novas-diretrizes-curriculares-nacionais-para-os-cursos-de-graduacao-em-psicologia-mais-uma-etapa-vencida-pelos-coletivos-e-en/

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