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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.3 Juiz de Fora Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.30712 

ARTIGOS

 

Desejo, Vontade, nada: de Schopenhauer a Freud, Freud com Schopenhauer

 

Desire, Will, nothingness: from Schopenhauer to Freud, Freud with Schopenhauer

 

Deseo, Voluntad, nada: desde Schopenhauer hasta Freud, Freud con Schopenhauer

 

 

Gustavo Henrique Dionisio

Universidade Estadual Paulista - UNESP. E-mail: gustavo.h.dionisio@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3449-2595

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo visa estabelecer uma articulação entre as categorias de Vontade - referida à filosofia da Schopenhauer - e de desejo - recuperada desde o Wunsch proposto por Freud em seu Projeto para uma psicologia científica -, para, com isso, refazer o caminho percorrido por eles e indicar sua lógica interna diante de outra categoria: o nada, a elas intimamente ligada. Concluímos que há maior solidariedade entre elas do que se supõe, pois, se a Vontade é "sem extensão" e se o desejo é uma ficção cuja mecânica exige alívio, então sua própria satisfação seria uma negação interna da Vontade.

Palavras-chave: Desejo; Vontade; Nada; Freud; Schopenhauer.


ABSTRACT

The article aims to establish an articulation between the categories of Will - referred to Arthur Schopenhauer's philosophy - and desire - recovered from the Wunsch proposed by Freud in his Project for a scientific psychology - in order to retrace their path and to indicate their internal logic in the face of another category: nothingness, internally linked with them. We conclude that these concepts seem to be more intimate than it is supposed, because if Will is "without extension" and desire is a fiction whose mechanics demand relief, then its own satisfaction would be an inner denial of the Will.

Keywords: Desire; Will; Nothingness; Freud; Schopenhauer.


RESUMEN

El artículo intenta establecer una articulación entre los conceptos de Voluntad - referido a la filosofía de Schopenhauer - y de deseo - recuperado desde el Wunsch propuesto por Freud en su Proyecto para una psicología científica. Intentamos rehacer el camino para indicar su lógica interna frente a otra categoría: la nada, íntimamente ligada. Llegamos a la conclusión de que voluntad, deseo y nada parecen ser más íntimos de lo que se supone, pues si la Voluntad es "sin extensión" y el deseo una ficción cuya mecánica exige alivio, entonces la propia satisfacción sería una negación interna de la Voluntad.

Palabras clave: Deseo; Voluntad; Nada; Freud; Schopenhauer.


 

 

Desejo e Vontade

Como se sabe, este conceito, que atravessa a modernidade de cabo a rabo, encontra-se numa história que é muito anterior à Schopenhauer e Freud: de Platão a Plotino, passando por Sócrates, Aristóteles, Empédocles e pelos estoicos e epicuristas - isso para citarmos uma pequeníssima amostragem de pensadores da Antiguidade -, o desejo continua avançando até as psicanálises as mais recentes. É bem provável que uma genealogia propriamente dita dessa concepção seja impossível de se realizar, pois, se concordarmos que o desejo seria a essência do homem - como propunha Spinoza, por exemplo -, "nada seria mais fútil e perigoso que reduzí-lo a uma simples definição" (Dumoulié, 2005, p. 9).

São ressalvas que servem para indicar que tanto a noção moderna de desejo quanto a de vontade podem ser entendidas, por exemplo, como um resquício mais atualizado do conatus, que Thomas Hobbes introduziu na primeira metade do século XVII, conceito-base que viria definir a faculdade impulsionante que vetoriza o sujeito em direção ao objeto. Conatus, insistia neste sentido Hobbes, pertence ao espectro originário da vida e se expressa segundo o modelo da autoconservação - não o deixando muito distante do que propunha, um tanto monadologicamente, o próprio Spinoza, que, por sua vez, definia igualmente o conatus como luta pela autopreservação ou, ainda, como o "esforço" (Yovel, 1993, p. 361) para intensificar a vitalidade da existência.

De Hobbes a Sade [pode-se dizer que vigora uma] cristalização da ideia de que, na sua condição natural, os homens são o lugar da manifestação de uma pluralidade indefinida de desejos [...] sem que haja nenhuma hierarquia, subordinação ou mesmo valorização (Monzani, 2015, p. 105).

Haveria ainda, no primeiro, uma relação entre desejo e verdade difícil de se menosprezar, uma vez que, fundante e indomável, é o desejo quem aciona toda a máquina passional do Sujeito, revelando assim a sua verdade enquanto pathos incontornável - traço que tanto nos interessa aqui. Para que haja um pacto social, contudo, é preciso que os humanos saibam renunciar "aos próprios desejos irrestritamente considerados" (p. 112), a fim de dominar suas possibilidades mais ou menos irrestritas - e é neste sentido que o filósofo teria justamente identificado o desejo com o campo dos afetos.

Inquietum est cor nostrum: em Malebranche, por outro lado, trata-se de uma inquietude que se desdobra e se afirma como a "faculdade da alma que chamamos de vontade [grifo nosso]" (Monzani, 2015, p. 147), isto é, afã natural e irresistível de felicidade. A humanidade estaria dotada, já em suas bases, de uma insatisfação irresoluta que nos faria errar, ad eternum, de objeto em objeto. Assim, portanto, o desejo, insistente em sua própria natureza, projeta-se em busca de prazer e repouso que possam apaziguar a inquietação. Verifica-se, então, com Malebranche, um pequeno avanço em relação a Hobbes, passo que no entanto antecipa em boa medida o pensamento de Schopenhauer.1

Locke, por sua vez, reitera o quanto essa insatisfação define o sopro movente da existência: uneasiness, ele diz. Grosso modo, aqui o desejo (inquietude e desejo funcionam como sinônimos para ele) seria a falta de um bem que produz prazer. Porém, para Locke, a vontade não equivale ao desejo: entendida como poder de volição, a primeira se define enquanto o ato mental que dirige o pensamento para determinada ação (ou mesmo para uma abstenção dessa ação). Deste modo, é justamente o desejo (uneasiness) quem conduz à vontade, embora não se confunda com ela.

Caberia verificar, por fim, que estas três categorizações compartilham mais ou menos de um mesmo caráter energético e originário, pois exigem pensar numa certa constituição que se engendra a partir de um "princípio desejante" (Yovel, 1993). E aprofundando a linha do raciocínio, também se poderia dizer que, além de ser tratado como uma força perene que não se extingue senão com a morte, ao menos desde o Leviatã,2 este conceito moderno de desejo supõe, inevitavelmente, uma ausência do objeto.

Não obstante, será preciso igualmente reconhecer que essa gênese é tudo menos retilínea porque se, por um lado, o desejo "será encarado (de Platão a Freud, passando por Santo Agostinho, Descartes e Schopenhauer) como desiderium", como aponta Rodrigues Júnior. (2006, p. 329), quer dizer, "uma carência, uma falta, um sofrimento, uma fraqueza ou uma possessão demoníaca" (p. 329), por outro, ele "será tomado (de Aristóteles a Nietzsche, passando por Lucrécio, Hobbes e Spinoza) por um apetite, uma potência positiva da existência, uma força atuante e afirmativa" (p. 329) contrária àquela. Este avesso da primeira concepção de desejo indica, consequentemente, a necessária relativização da falta como origem, o que nos obriga a aquiescer diante da circunstância binária e de difícil conciliação em que se define o conceito.Conclusão: Freud leu Locke, que carrega historicamente o legado de Hobbes, Spinoza e Malebranche, mas, no sentido de pensar a "felicidade" (as aspas servem para Freud, não para os demais), não mais como realização de desejo, mas como ausência de desprazer, ou seja, satisfação do princípio de prazer.

 

Vontade e Desejo

"A partir de uma experiência genuinamente retrógrada", escreveu com genialidade Thomas Mann (2015, p. 17), "a metafísica schopenhaueriana teria corrigido a maneira ilustrada de considerar a história, e só depois que a justiça obteve esse grande resultado é que poderíamos continuar de novo empunhando a bandeira da ilustração" (p. 17). E assim conclui: "Da reação nós fizemos um progresso" (p. 17). Ora, se concordamos com o autor, não seria incorreto considerar que a filosofia de Schopenhauer tenha verdadeiramente reinaugurado a constatação de que da negatividade se pode extrair uma potência, ela mesma desejante, ao partir desse axioma que reduz3o mundo à Vontade, coisa-em-si da qual Kant não ousou "levantar o véu" (Bossert, 2011, p. 266).Embora apareça como representação, isto é, fenômeno correlato sob a forma da vida que permite a percepção de uma existência para o pensamento, a Vontade está logicamente fora do seu registro, e, em iguais condições, não submetida ao princípio da razão - pressupostos que a definiriam como substância sem fundamento (grundlos).

Autodeterminada e fora das coordenadas espaço-temporais, para Schopenhauer a Vontade apenas é - em virtude de sua incondicionalidade (grundlosigkeit). Além disso, tem-se que está diretamente relacionada à ideia de vida, já que a Vontade quer, obviamente, viver: "propulsor infatigável, impulso irracional que não possui o seu fundamento suficiente no mundo exterior" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 230), o imperativo da Vontade, assim, revela-se em Die Welt als Wille und Vorstellung: o mundo, sendo o espelho dessa Vontade e tendo como substratum o sujeito, afirma-se somente sob a condição de que é o produto objetivado daquela.

Contudo, não é possível que a Vontade sobreviva sozinha porque qualquer força implica necessariamente uma resistência ao se afirmar, isto é, uma contra-Vontade. Desse modo, conquanto a vida seja o seu emblema pulsante, esta não passa de um pêndulo que vaga entre a insatisfação e o tédio: eis a síntese de um sentimento tão inclinado à melancolia e ao cinismo, resultado direto do cansaço generalizado no pós-guerras napoleônicas (1814-18) - como bem recorda Thomas Mann - e que tomara de assalto o espírito alemão no século XIX. Situação crítica em si, a Vontade se revela como um "querer em disputa, em contradição, em desavença originária" (Barboza, 2005, p. 130), ou seja, inapelavelmente em conflito consigo mesma. De consequências significativas, tal paradoxo nos permitiria colocar uma questão imediatamente consequente, haja vista que a Vontade carregaria consigo esse pressuposto reflexionante de autodiscórdia: ora, se se encontra em conflito permanente, a Vontade seria então consciente ou, melhor, auto-consciente? Bem o contrário, responde Schopenhauer, pois como impulso cego e esforço inconsciente, a Vontade se manifesta

em toda a natureza inorgânica, em todas as forças primeiras de que é tarefa da física e da química procurar conhecer-lhes as leis e das quais cada uma nos aparece em milhões de fenômenos completamente semelhantes e regulares, não mostrando nenhum traço de caráter individual (Schopenhauer, 1819/2005, p. 158).

"Fruto de uma sarabanda energética", acrescenta Vartzbed (2003, p. 78) nesta mesma direção, "uma forma viável se desenha, uma forma cujas fontes permanecem, contudo, obscuras, retiradas de vista, inconscientes" (p. 78). Em paralelo à teoria psicanalítica, a Vontade estaria para o inconsciente assim como a representação para o consciente e, por conseguinte, deve ser entendida como substância a mais íntima e ao mesmo tempo força natural e cega. Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto estas teses adiantam a noção de conflito psíquico que Freud elevará à última potência em sua concepção do aparato mental.4

Condenado a esta trágica condição, restaria ao homem uma única saída: a negação da vontade. Lê-se na obra magna de Schopenhauer que

É então evidente que a satisfação que o mundo pode dar aos nossos desejos se assemelha à esmola dada hoje ao mendigo e que o faz viver o suficiente para ter fome amanhã. A resignação, pelo contrário, assemelha-se a um patrimônio hereditário: aquele que o possui está livre das preocupações para sempre (1819/2005, p. 409).

Proposições desta ordem poderão ser novamente constatadas nos Aforismos sobre a sabedoria (Schopenhauer, 1823/2002) escritos pouco depois da publicação de O Mundo (1819/2005):

a experiência não tarda a nos convencer de que a felicidade e o gozo são uma fata morgana visível apenas de longe, que desaparece tão logo dela nos aproximamos, ao passo que o sofrimento e a dor são reais, nos abordam diretamente e não esperam que nós os procuremos (Bossert, 2011, p. 125).

Logo, "o melhor meio de não ser infeliz [seria] não desejar ser muito feliz" (p. 125). Nota-se, com isso, um tom agudo da ataraxia estoica no ascetismo schopenhaueriano, forma em que se expressa esse nada da vontade cuja escapatóriase apresenta apenas com o abandono do querer.

De modo geral, pode-se dizer que o horizonte de sua realização tenderia a uma recusa radical com a qual o sujeito poderá contemplar, já agora indiferente e irremediado, a incrível "farsa do mundo" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 399), a "futilidade de todos os bens" (p. 409) e o "nada de todas as dores" (p. 414).

O que nos encaminha ao problema da liberdade, objeto da maior importância nesta filosofia. Ora, a esse respeito, a negação do querer-viver seria por conseguinte o seu ato exclusivo? Não, de acordo com a leitura de Thomas Mann, uma vez que o único possível, aqui, seria a redenção do homem, jamais a liberdade, que é tão coisa-em-si quanto a Vontade. Em boa medida, é como se Schopenhauer adiantasse, com isso, o gérmen da sobredeterminação psíquica pensada por Freud. Exemplo: a felicidade, com efeito, seria algo "impossível [grifo nosso]" (Mann, 2015, p. 137): "o que se pode obter de mais elevado é", no máximo, "um curso de vida heroico".

Mas nem tudo está perdido: Schopenhauer considera, por outro lado, que uma contemplação pura facilitaria certas linhas de fuga para a liberdade, ou seja, por meio desse fenômeno se permitiria ao sujeito escapar do querer tangenciando suficientemente o nada, mesmo que por um átimo de segundo apenas...

Pelo sim e pelo não, é preciso sublinhar que todas estas experiências convergem numa mesmíssima escolha: realizar a grande renúncia, o sacrifício de se deixar afundar no nada, pois, ainda de acordo com Schopenhauer (1819/2005), só poderão ser felizes aqueles que conquistam o abandono derradeiro da Vontade. O livro IV de O mundo nos indica por exemplo que

(...) agora já só esperam uma única coisa: ver a última marca dessa vontade aniquilar-se com o próprio corpo que ela anima; então, em vez da impulsão e da evolução sem fim, em vez da passagem eterna do desejo ao receio, da alegria à dor, em vez da esperança nunca farta, nunca extinta, que transforma a vida do homem, enquanto a vontade o anima, num verdadeiro sonho, nós percebemos essa paz mais preciosa que todos os bens da razão, esse oceano de quietude, esse repouso profundo da alma, essa serenidade inquebrantável, de que Rafael e Correggio nos mostraram nas suas figuras apenas o reflexo (Schopenhauer, 1819/2005, p. 428-430).

Como, afinal, essa "negação da vontade podia provir da vida, que era, de um extremo a outro, vontade de viver?", indaga-se, com astúcia, Thomas Mann (2015); ao que Schopenhauer (1819/2005) responderia, a plenos pulmões: "Isso se tornava possível justamente porque o mundo era o produto de um ato da vontade, e tal ato podia ser anulado e suprimido por um ato negativo, um ato contrário à vontade" (p. 106). Em outras palavras, aquilo que quer pode simplesmente deixar de querer: a negação da vontade é, portanto, uma negação do ser, o que faz desta metafísica uma espécie de ontologia, ou, melhor ainda, uma ética do ascetismo. "Se a vida carece de finalidade", avalia neste sentido Georg Simmel (1907/2011, p. 76), "dor e prazer tem valor em si mesmos, em que possuam uma significação que ultrapasse o momento em que são percebidos e sem relacioná-los com um fim situado acima deles". Em última análise, a abnegação se definiria como aniquilamento refletido do querer (Schopenhauer, 1819/2005, p. 410), uma redução traduzida enquanto renúncia dos prazeres e aceitação do sofrimento e da dor, que, a propósito, a partir de Schopenhauer, deixaram "de ser um acidente do Ser para tornar-se o próprio Ser refletido em sentimentos [grifo nosso]" (Simmel, 1907/2011, p. 75). Afinal, a Vontade seria muito simples, ela quer ou não quer, deslocando-se até o marco zero de sua própria supressão.

Entretanto, um novo problema se impõe: como pode a vontade negar a si mesma, se até então vimos que ela é pura afirmação? Schopenhauer estaria assumindo, com isso, a existência de um nada absoluto? A resposta é meramente não, embora exija alguma ponderação: com efeito, para ele o nihil negativum é impossível, o nada "relaciona-se sempre com um objeto determinado, de que ele pronuncia a negação" (Bossert, 2011, p. 260), de modo a ser incontornavelmente relativo. Logo, "um nada só é pensado como tal em relação a um objeto positivo" (Bossert, 2011, p. 260), isto é, "todo nada é qualificado de nada apenas em relação a uma outra coisa" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 428). Ora, mas se o nada absoluto é impensável em termos lógicos, seria ele um não-pensamento? E, se agora é um nada o que Schopenhauer está afirmando, estamos ainda no âmbito da Vontade? Já não teríamos passado ao plano representativo, dimensão própria do querer? A meu ver, é essa relativização da Vontade quem dá abertura para que o conceito de desejo possa, enfim, adentrar a cena já não mais em termos metafísicos mas, com efeito, metapsicológicos.

 

Desejo e Vontade

Contudo, antes de prosseguir, é preciso considerar que o vocabulário schopenhaueriano não permite equivaler desejo e Vontade de maneira tão direta, porque o primeiro (que o filósofo chamou por vezes de decisão) pertenceria estritamente ao domínio da subjetividade. E a esse respeito, declara Maria Lucia Cacciola (1994), reconhecida especialista no pensador alemão: "a raiz do engano que faz com que a mente não-filosófica pense ser possível dois atos de vontade opostos" residiria precisamente numa "confusão entre o desejar e o querer" (p. 166), pois, de acordo com o filósofo, mesmo sendo admissível desejar antagonicamente duas coisas, é possível querer apenas uma. A propósito, em O Mundo (1819/2005) a palavra Wunsche aparece comumente assim grafada, ou seja, no plural.

Apesar disso, não seria tão absurdo articular desejo e Vontade na medida em que um seria o vetor da outra; e, nesta perspectiva, o caráter subjetivo do desejo em Schopenhauer não impede que se possa considerar que uma tal derivação da Vontade já estaria presente, de forma latente, a propósito, sob o desígnio do Wunsch no Projeto para uma psicologia científica (1895/1996c). De acordo com este Freud pré-psicanalista, Wunsch (no singular) consiste na tendência à descarga total da Qn do sistema de neurônios impermeáveis, que age de acordo com as coordenadas de um impulso (Drang) maior a quem cabe motorizar a atividade psíquica. De forma bastante resumida, poderíamos dizer que o Wunsch indicaria uma certa conjunção de estados de desejo residuais, deixados por experiências significativas passadas que, por sua vez, "engendraram uma satisfação" (Quinet, 2003, p. 67).

Freud sugeriu, ainda no Projeto (1895/1996c, p. 378), que a ativação desses estados é algo idêntico a uma percepção ou, a bem da verdade, a uma alucinação. A ação reflexa, por ser uma tentativa de reedição da experiência antes inscrita, virá necessariamente a se desapontar quando encontra uma nova satisfação, o que faz com que sua dinâmica fique presa num retorno em circuito. Freud dera aí, portanto, os primeiros passos em direção a uma concepção própria de desejo, essa propensão que ele descreveu essencialmente a partir de um traço que se inocula de fora para dentro na aparelhagem.

Mas é somente com a Interpretação dos sonhos que Freud (1900/1996a) elevará o desejo ao estatuto de conceito propriamente dito; e ele o faz segundo a definição rapidamente consagrada na qual o sonho (paradigma central de seu método clínico) seria ele mesmo uma realização de desejo, ainda que a fórmula tenha de se haver com a especificidade de que este desejo aí se encontra recalcado sob a forma de uma demanda. Ora, um tipo de realização desta ordem, e agora muito mais do que antes sob os holofotes, nunca é a realização de um desejo inconsciente, mas certamente de uma aspiração pré-consciente ou mesmo consciente, da qual o primeiro se aproveitara para angariar sua forma ou imagem-apresentação:5pode-se então dizer, logo de partida, que em Freud o desejo estaria para a Vontade assim como a demanda para a representação.

Já a excitação - que é um excesso e não uma falta - será permeada de percepção, da qual se retém um traço mnêmico que se encrava na realidade psíquica. O sujeito, assim, visa, doravante, a identidade da percepção (e não de pensamento) junto à satisfação originária, ao mesmo tempo em que se reinveste na imagem daquela percepção que, lembremos, é apenas suposta. Desta forma, quando a necessidade ressurge o psiquismo acessa a primeira marca, buscando com isso todo um movimento de satisfação e de prazer outrora fixado. "Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo", afirmava Freud no comecinho do século, "e o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo até um investimento pleno da percepção" (Freud, 1900/1996a, p. 557). Embora o psicanalista esteja aqui descrevendo um movimento, uma prospecção que procurará reinvestir o traço mnêmico de percepção para assim evocá-la, isto é, "restabelecer a situação da satisfação original" (p. 558, tradução livre), o mais interessante a notar, nesse contexto, é o fato de que Freud aponta sempre e inequivocamente para uma imagem - o que a meu ver não é sem consequências.

Temos, então, que a consumação do desejo (Wunscherfüllung), força motriz do psiquismo, funciona de acordo com o retorno alucinatório a um estado de satisfação que, a bem da verdade, nunca existiu (por isso alucinado) e depende de um princípio de identidade de percepção; com efeito, o objeto se perde nas primeiras inscrições de satisfação - a própria inscrição se desbasta por aí -, e o que ficou em seu lugar poderia ser definido como um furo causador de desejo. A tese é clássica: houve um primeiro objeto que trouxe satisfação - no caso, uma experiência originária que se pode chamar inclusive de necessidade, conforme teorizou o próprio Freud - e, a ela, vem se acoplar uma experiência percebida como prazer. A satisfação se dará via diminuição da excitação uma vez que a tendência geral do aparelho consiste em conduzir as intensidades ao grau zero, quer dizer, a um nada em conformidade com as exigências do princípio de prazer.

Ora, somente um desejo coloca o aparelho em funcionamento, de modo que ele então operará, em uma vertente,porque seu objeto correlato está de alguma forma restrito ou inalcançável. As moções desejantes nascem da ausência real do objeto e da consequente impossibilidade de atingi-lo na realidade, seja ela psíquica (local de morada do desejo) seja material. Não se perde de vista, nesse contexto, que o desejo é de origem inconsciente, o que implica não podermos contar com uma satisfação plena,ou melhor, a de que um determinado objeto pudesse conjurá-lo de uma vez por todas, até porque toda satisfação, se é esse o caso, dá-se parcialmente e, em razão de sua estrutura, apenas no perímetro da realidade externa, jamais na realidade psíquica.

Desta maneira, qualquer realização de desejo se efetiva unicamente sob a forma de fantasias, sonhos, sintomas ou alucinações (delírios também), em suma, toda uma ordem propriamente fantasmática nos cantões da experiência humana. E, assim, desejo procura responder ao enigma das origens, no mesmo passo em que indica um caminho possível para o prazer. Nessa perspectiva, o strictu sensu psicanalítico nos obriga a concluir que o par dialético desejo e falta dá origem a uma criatura siamesa: "Todo desejo nasce de uma falta, de um estado que não nos satisfaz, portanto é sofrimento, enquanto não é satisfeito" - afirmara a esse respeito Schopenhauer (1819/2005), bem antes de Freud: "nenhuma satisfação dura; ela é apenas o ponto de partida de um novo desejo" (p. 323). Desejo e falta seriam inaugurados em um mesmo corte lógico porque a realidade psíquica, enquanto necessária e estruturalmente faltante, exige como resposta, tão logo se constitua, a moção de um desejo que visa obturá-la, de modo que essa moção, por sua vez, funciona segundo a mecânica do retorno.

E, uma vez forjado o aparato, o sujeito do inconsciente (segundo a expressão consagrada por Lacan) perseguirá daqui por diante as vicissitudes causantes de seu desejo, ou melhor, sua causa evanescente. Por fim, e correlato do desejo, eis que o fantasma encontra finalmente um palco privilegiado para sua atuação: é que tanto na "fantasia, como no sonho", acrescenta neste sentido Renato Mezan (2002), "os desejos não precisam se realizar porque já estão sempre realizados" (p. 91).

 

Metafísica e Metapsicologia

Ao fim e ao cabo, o desejo (inconsciente) não pode ser designado, mas apenas inferido: é "puramente desejo", arremata neste sentido Quinet (2003), "sem qualificativos, sem atribuições, sem dono, sem nome" (p. 78). Tendo em vista todos os paralelos que pudemos desdobrar até o momento, seria afinal o desejo um conceito a ser pensado como coisa-em-si, tal como se comporta a noção schopenhaueriana de Vontade? Se tomarmos Freud ao pé da letra, já poderíamos dizer que não, porque o desejo é, senão, algo inscrito, ou seja, inaugura-se rente a uma experiência anterior e materialmente válida de satisfação ou de prazer, um excesso que induz à falta. Nessa perspectiva, não há como não haver uma inscrição desejante (mesmo considerando a mais precária das estruturas psíquicas hipotetizáveis).

Por outro lado, como pensar na concretude do humano na ausência do desejo, ou, em outras palavras, sob o signo de uma pura negação da Vontade? Com isso, é preciso considerar, no interior do pensamento de Schopenhauer, um paradoxo que se torna observável com Freud, aliás, e em virtude do seguinte paralelo: o ascetismo, negação possível da Vontade proposta pelo filósofo, seria uma resposta material para uma questão não-material que, mal comparando, pode ser pensada na mesma chave da relação entre o desejo (enquanto realidade psíquica) com o seu objeto (ou melhor, sua atmosfera objetal),que, como vimos, presentifica-se apenas fora desta mesma realidade conquanto carregue suas marcas internas. Mutatis mutandis, uma vez que o desejo é perene e nunca se cansa - e é óbvio que Freud não teria sido o único a chegar numa constatação do mesmo tipo -, ele se expressa inelutavelmente em sua insistência, persistindo no tempo e no espaço assim como se dá com a Vontade.

Além disso, é impossível excluir desta problemática a importância do conceito de pulsão, uma vez que a articulação entre o desejo e a pulsionalidade é não-contingente e não pode deixar de abranger, ainda que de maneira indireta, o caráter sexual do aparelho proposto pelo pai da psicanálise. Luiz Hans (1999) sublinha, a esse respeito, que o Wunsch pode ser considerado concomitantemente representante e representação da pulsão, operando em seu lugar na exata medida em que lhe garante uma forma. Contudo, se se avança no cerne deste funcionamento, verifica-se o quanto a estrutura independe, em certo sentido, desse mesmo sexual: ao passar do processamento primário ao secundário (como é o caso do bebê que alucina a experiência de satisfação originária para mais tarde encontrar a mamadeira), a moção de desejo (Wunschregung, desejo combinado a uma força, Drang) subtrai a libido para se transformar num "pensar-que-almeja" (Hans, 1999, p. 104) uma vez consciente de que o objeto não está presente. Em outros termos, trata-se de uma característica que aproximaria o desejo de uma condição mais pura e talvez mais próxima da Vontade aventada de modo precursor por Schopenhauer.

Inegável paradoxo, mas do qual o filósofo sempre esteve ciente: "O que o homem quer realmente, o que ele quer no fundo, o objeto dos desejos do seu ser íntimo, a finalidade que eles perseguem", Schopenhauer argumenta em O mundo...: "não há ação exterior, nem instrução que possa mudar [grifo nosso]" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 309). É claro que ao dizer exterior Schopenhauer ambiciona a resolução de uma questão metafísica; é preciso considerar, apesar disso, que a resposta tampouco se encontraria no interior, ao menos psicanaliticamente falando, já que a separação entre realidade psíquica e realidade material se compara à relação que se estabelece entre duas setas assíntotas. Retornaremos a isso, mas, pelo momento, não se pode contornar o fato de que o filósofo concluiu acerca de alguns motivos muitíssimo especiais, que poderiam mudar o querer, sem contudo mexer com a Vontade: "os motivos poderiam modificar a direção de seu esforço, conduzi-lo, sem mudar o objeto da sua procura, procurá-lo por novas vias" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 309). Deste modo, a interferência de elementos externos tais como a inteligência e o conhecimento poderia somente indicar o quanto a Vontade "usa mal os seus meios" (p. 310). O sistema está fechado por cima e por baixo.

O destino trágico do desejo se desenrola ao longo de uma vida e, se está sob o efeito de uma psicanálise, por exemplo, ao seu final os objetos perdidos, "suportes do fantasma" (Chemamma, 1995, p. 46), surgirão "sob a luz que lhes é própria, a saber, aquilo que não se deixa apreender: o nada [grifo nosso]", como afirmou Chemamma (1995, p. 46). Assim, um próximo passo a dar exigiria articular diretamente os dois problemas trazidos nesse breve ensaio - desejo e nada -, pois, "se o objeto é evanescente, é ao nada que, em última análise, o desejo se refere, como causa única" (p. 46). Se concordarmos, enfim, com esse posicionamento, então desejo e nada, incomodados um pelo outro, passam a se friccionar em uma via de mão dupla, gerando um novo dissenso: 1) de um lado, formariam uma espécie de circularidade, porque é ao nada que, no limite, o desejo se lança assim como dele partiu; 2) de outro, os termos se oporiam de forma radical, no sentido em que este é fundante daquele, embora do qual surja como sua antítese. Nesta perspectiva, é como se desejo e nada residissem no substrato inconsciente onde reina a ausência de contradição, local privilegiado para que as representações se agrupem como não-pensamento. O que nos leva a reiterar que em sua dimensão originária o desejo está inevitavelmente recalcado: enquanto o processo primário o admite - onde é pura Vontade, por assim dizer -, o secundário o inibe - aqui ele é reprimido, deslocado e condensado, enfim, deformado sem deixar de estar presente.

Seria possível dizer o mesmo do nada? Talvez, já que sem um recalcamento do nada é bem provável que a realidade psíquica sequer pudesse ser pensada. De acordo com Cariou (1978), o

desejo é condicionado desde a infância por uma mediação: a intervenção do outro; daí a necessidade de lembrar ainda esse "lugar", tornado lugar-comum, da psicanálise: que a experiência infantil é decisiva na constituição do desejo, precisando-o, sob dois aspectos: 1) porque a imagem do objeto que permitiu a satisfação é valorizada definitivamente e será determinante na procura ulterior das ocasiões de satisfação ("ocasiões", e não absolutamente objetos pois o que é evocado aqui é toda uma atmosfera afetiva e não um objeto particular); 2) porque o meio de descarga (por exemplo, o grito da criança) que provocou uma intervenção exterior será compreendido definitivamente como meio de comunicação na origem dos fluxos que estruturam toda relação (p. 72).

Entretanto, "esse processo não poderia em si mesmo levar senão à insatisfação porque a experiência alucinatória, incompatível com a realidade, engendra o sentimento de um fracasso" (Cariou, 1978, p. 75); o eu procurará, daí em diante, "ajustar o desejo à realidade" (p. 75), levando à sublimação. Haverá, consequentemente, desvios para que se componha o fantasma. E assim o próprio pensamento, lê-se com o Freud da Interpretação, será justamente a mudança de rota que funciona como substituto do desejo. Não obstante, tais desvios tampouco levam à satisfação que se esperava, pois, nesse caso, "o prazer perde, em intensidade, o que ganha em realidade. A alegria de satisfazer um instinto que permaneceu selvagem, não domesticado pelo ego, é incomparavelmente mais intensa do que a de satisfazer um instinto domado" (p. 76). Conclusão: "não se pode dizer do desejo que ele é sempre insatisfeito, mas que é sempre satisfeito diferentemente de como deseja" (p. 76).

Como sugerem, de modo complementar, Safouan e Hoffman (2016), o "seio que se furta às satisfações que o aleitamento dá" (p. 18) se encontra em um intervalo "definido por este duplo 'nem': nem objeto de necessidade, nem signo de amor" (p. 18) - tendo em vista que a inscrição desejante se apoia no seio conquanto o ultrapasse. Aplicando a lógica schopenhaueriana, poderíamos dizer que, ao se inscrever, o seio já se afirmaria em seu divórcio do mundo como representação, de modo a provocar o sujeito como sendo algo mais próximo de uma coisa-em-si, mas não sem agir como a causa de uma falta à qual nada poderia responder. Ora, é precisamente este nada "que funciona como causa ou, se quisermos, como um objeto, mas como um objeto que funciona como fundo, o que lhe vale a denominação de objeto a" (Safouan e Hoffman, 2016, p. 18), conforme propõem os autores em terminologia lacaniana.

A meu ver, valeria aprofundar um pouco mais esta ambiguidade: como pode o seio se inscrever - positivamente, portanto - como objeto uma vez que ele se furta, ou seja, é apresentado como um "nem"? Por outro lado, como um objeto pode ser a causa de uma falta que não existe, isto é, inscrever-se como coisa-em-si? Por que, enfim, perdura esta tendência na psicanálise a sempre visar uma objetificação do nada e que, em muitos autores (a dupla Safouan e Hoffmann não são os únicos) - lacanianos, sobretudo -, disfarça-se sob a hipótese da incidência do objet petit a?

Neste sentido, o desejo teria menos a ver com a falta/excesso do que com o nada, o que é um tanto incomum de se pensar: a meu ver, o objeto estaria visando obturar um vazio somente na condição de recolocar um nada no jogo psíquico. Se em si o desejo é faltante, para si exige uma oposição, não contra a lei, mas contra ele mesmo, já que contém a falta de antemão. E mais: se o desejo se falta, e se esta falta pode ser remetida a um outro como "carência, ausência de, lacuna, [ou, de forma mais paradoxal,] como excesso, transbordamento [ou] inchaço" (Cariou, 1978, p. 53) - cuja tradição provavelmente se inicia com a escatologia de Georges Bataille -, antes se supõe que um nada já estava ou esteve por ali.

 

Para Concluir: Objeto, Falta, Nada

Poderíamos, a fim de tentar ultrapassar essa dificuldade, talvez separar um desejo de de um desejo apenas; quanto ao primeiro, desejo de objeto ou de imagem, nele sempre haverá falta. Já, com relação ao segundo, trata-se, por outro lado, de um ir aquém, isto é, movimento "reduzido à sua dimensão essencial" (Leclaire, 2007, p. 41) de uma atmosfera objetal em que o sujeito estaria quase liberto da fascinação do objeto.

Nesse sentido, um dos principais preconceitos a se evitar se direciona particularmente àquela maneira "de considerar a tensão do desejo conforme o modelo do apelo de uma necessidade, dirigido para a expectativa de um objeto capaz de preenchê-la. Ora", concluiu a esse respeito Leclaire (2007), "não é nada disso que nos propõe a psicanálise pois o desejo inconsciente aparece ali como uma fórmula que surpreende por sua singularidade, por vezes absurda, construída como uma figura de deus egípcio" (p. 45). Nessa perspectiva, estamos diante de uma condição em que se visa muito mais persistir "repetindo-se, com todos os seus enigmas, do que se saturar, se saciar, ou se suturar de alguma maneira" (p. 45).

Originariamente falando, o desejo poderia ser concebido em sua anterioridade ao Complexo de Castração, leia-se, sem predicado, próximo do em-si e num parentesco insuspeitado com a concepção de Vontade proposta pelo filósofo alemão. No limite, não se deveria pensar que o que falta é um objeto, portanto: o simbolismo da castração

coloca precisamente ênfase sobre essa falta que não é absolutamente falta de um objeto, mas ausência de adequação entre nossos mitos e nossas condutas. O desejo se completa sem nunca se realizar na recriação de tipo alucinatório de percepções que são como os signos de uma satisfação primeira (Cariou, 1978, p. 71-2).

É chegado, enfim, o momento (um tanto surpreendente) em que desejo e nada parecem estar mais íntimos do que nunca, já que indicam o início e o fim de um não-ser.

Recapitulando: temos que o desejo opera como uma necessidade interna que retira o aparelho do estado de repouso, estado que a propósito foi conquistado após uma satisfação (sempre parcial) das moções desejantes, o que equivale dizer que consiste num circuito fechado de retorno perene. Em Schopenhauer (1819/2005), como se pôde verificar, a Vontade não se satisfaz por inteiro, de modo que qualquer representação nunca será suficiente em virtude de a Vontade ser em-si. Tal qual a gravidade, a Vontade está alijada de seu ponto-de-basta, pois, em termos físicos, a queda do objeto não cessa com o encontro do ponto zero - ou o objeto cairia infinitamente, ou o zero é encontrado e, então, a força se anula e acaba. Ora, se a Vontade é "sem extensão" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 324), e se o desejo é uma ficção cuja mecânica exige alívio (Befriedgung), não seria, então, o caso de assentir que a própria satisfação (que responde à exigência do princípio de prazer) seria uma espécie de negação interna da Vontade?

A vida pulsional foi trazida ao debate porque, além de ser marca erógena e, consequentemente, corporal, representa a tendência psíquica à descarga total das intensidades. Nada é mais perigoso, nesse sentido, do que tentar equivaler a metapsicologia freudiana com a metafísica schopenhaueriana, haja vista que Freud enfrentara a questão da constituição do aparato sob a condição de parcialidade das pulsões que, por sua vez, designa de forma indireta o desejo. Assim, o vazio que encobre o objeto seria a rigor uma marca anti-metafísica da psicanálise (Garcia-Roza, 1990, p. 64), tendo-se em vista que a pulsão, embora mítica, como apontam Secotte & Dionisio (2018) na esteira de Freud (1933/1996b), parte inevitavelmente do corpo. Mas é aqui que o princípio de prazer retorna com sua força a mais determinante - ou seja, na perspectiva de evitar o desprazer decorrente do acúmulo das cargas respectivas ao estado de desejo: se o princípio de prazer tende à descarga das catexias, então, essa ação de abolir a tensão não produziria, justamente ao ser concluída, um nada?

 

Financiamento

O texto é fruto de financiamento FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, modalidade Auxílio Regular à Pesquisa, Processo n. 2020/06500-9.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gustavo Henrique Dionisio
gustavo.h.dionisio@unesp.br

Recebido em: 24/05/2020
Aceito em: 31/08/2020

 

 

1 Um esquema para ilustrá-lo seria: desejo - inquietude - desprazer, de um lado; nada - quietude - prazer, de outro.
2 Dumoulié (2005, p. 93) considera que a "primeira dialética antiplatônica do desejo" teria sido introduzida por Kierkegaard, para quem o desejo só existiria em função do objeto .
3 "Reduz" se refere aqui a um irredutível, evidentemente. Empregarei, ademais, o termo Vontade (Wille) com maiúscula para diferenciá-lo da vontade no sentido do querer, ou seja, representação.
4 Sobre esta relação Freud-Schopenhauer, há um número considerável de publicações, mais antigas ou recentes e que caberia citar - das quais destaco, por sua amplitude, Raikovic (1996); Mueller (1970); Fonseca (2009) ou Pastore (2015), embora suas direções sejam diferentes das que tomarei neste ensaio.
5 Aspiração, ânsia, vontade e querer são os verbetes que tentam designar esse impulso em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1996a).

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