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Psicologia em Pesquisa

versión On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.3 Juiz de Fora dic. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.31043 

ARTIGOS

 

Corpo, mente e self: uma articulação teórica com foco na regulação emocional

 

Body, mind, and self: a theoretical articulation focused on emotional regulation

 

Cuerpo, mente y Self: una articulación teórica centrada en la regulación emocional

 

 

Eduardo José Esteves BritoI; Edna Lúcia Tinoco PoncianoII

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E-mail: eduj.ebrito@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9965-6004
IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E-mail: ednaponciano@uol.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8606-1095

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tradicionalmente, a regulação emocional é compreendida pela definição de mente separada do corpo. Propomos realizar uma discussão, em uma perspectiva histórico-conceitual, que identifique os modelos Top-down e Bottom-up, a fim de explicitar uma visão crítica e indicar uma proposta teórica de articulação corpo/mente/self com foco na Regulação Emocional. Implementando uma revisão narrativa da literatura, com base em textos clássicos e em estudos atuais, ao destacar o modelo Bottom-up, mente e Self podem ser conectados ao corpo e as sensações corporais consideradas integrantes dos processos regulatórios. Encontramos: a persistência do problema mente-corpo; a necessidade de repensar as ideias sobre mente, Self e emoções, relacionando-os ao corpo e ao ambiente; além da necessidade de continuar a implementar análises críticas sobre os modelos Top-down e Bottom-up. Concluímos destacando a construção de um modelo integrativo entre corpo, mente e Self para a definição da Regulação Emocional.

Palavras-chave: Mente; Self; Regulação emocional; Corpo.


ABSTRACT

Traditionally, emotional regulation is understood by the definition of mind separated from the body. We propose a discussion in a historical-conceptual perspective, which identifies the Top-down and Bottom-up models, in order to highlight a critical view and point out a theoretical proposal for body/mind/Self articulation, with focus on Emotional Regulation. Implementing a narrative literature review based on classical texts and modern studies, by highlighting the Bottom-up model, mind and Self can be connected to the body and to the physical sensations considered part of the regulatory process. We found: the persistency of the mind-body problem; the necessity to rethink the ideas about mind, Self, and emotions, relating them to body and environment; and the necessity to keep implementing critical analysis on the Top-down and Bottom-up models. We finish by highlighting the construction of an integrative model between body, mind, and Self to define Emotional Regulation.

Keywords: Mind; Self; Emotional regulation; Body.


RESUMEN

Tradicionalmente, la regulación emocional es comprendida por la definición de mente separada del cuerpo. Proponemos realizar una discusión, con una perspectiva histórico-conceptual, que identifique los modelos Top-down y Bottom-up, con el fin de presentar una mirada crítica e indicar una propuesta teórica de articulación cuerpo/mente/Self centrada en la Regulación Emocional. Implementando una revisión narrativa de la literatura, basada en textos clásicos y en estudios actuales, se destaca que en el modelo Bottom-up, la mente y el Self pueden conectarse al cuerpo y las sensaciones corporales consideradas integrantes de los procesos regulatorios. Encontramos: la persistencia del problema mente-cuerpo; la necesidad de repensar ideas sobre la mente, el Self y las emociones, relacionándolas con el cuerpo y el ambiente; además de la necesidad de continuar implementando análisis críticos en los modelos Top-down y Bottom-up. Concluimos, destacando la construcción de un modelo integrador entre cuerpo, mente y Self, para la definición de Regulación Emocional.

Palabras clave: Mente; Self; Regulación Emocional; Cuerpo.


 

 

Uma proposta teórica de articulação corpo/mente/self com foco na Regulação Emocional é baseada em uma questão-problema que orienta a essa revisão narrativa: identificamos uma limitação de compreensão teórica quando, tradicionalmente, a ênfase recai sobre o aspecto cognitivo da regulação. Partindo do pressuposto de que é necessário distinguir dois modelos de compreensão dos processos regulatórios, Bottom-up e Top-down, que oferecem orientações teóricas distintas sobre o que é regular uma emoção, enfatizamos que o critério que nos orienta é o do resgate do corpo para uma redefinição englobadora, cujo foco nas sensações corporais apresente uma perspectiva de renovação teórica, com consequências práticas para a Psicologia (Glenberg, 2010; Siegel, 2018; Tsakiris, 2017).

De modo geral, pelo menos dois modelos de compreensão sobre as estratégias de regulação emocional foram claramente distinguidos: "de cima para baixo" e "de baixo para cima". No modelo Top-down, tem sido privilegiado o estudo sobre uma estratégia de regulação emocional, que é a da reavaliação cognitiva, compreendida como uma forma de avaliar e manipular o disparador da emoção, reinterpretando ativamente os estímulos emocionais e modificando sua expressão emocional. Este tipo de estratégia de regulação emocional pertence a um modelo de compreensão Top-down, no sentido de regiões cerebrais pré-frontais estarem em ação, tendo sobre controle as regiões cerebrais geradoras de emoção, como o sistema límbico e, principalmente, a amígdala (Gross, 1998). Outro modelo de compreensão quanto à regulação das emoções é o do Bottom-up, descrito como uma oscilação direta de regiões cerebrais geradoras da emoção, sem uma avaliação cognitiva prévia dos estímulos emocionalmente expressados. Caracterizada por uma reatividade direta das regiões cerebrais geradoras de emoções "inferiores", sem um recrutamento ativo de regiões "superiores" do cérebro, como o córtex pré-frontal, essa perspectiva é tradicionalmente desvalorizada (Chiesa, Serretti, & Jakobsen, 2013; Siegel, 2018).

Em uma perspectiva crítica dessa visão tradicional, nossa proposta de articulação tem foco no corpo, para resgatar e construir uma proposta integradora, sem desconsiderar a cognição. A fim de elaborar essa articulação, inicialmente, definimos o conceito de Regulação Emocional, que consiste nos processos extrínsecos e intrínsecos responsáveis por monitorar, avaliar e modificar as reações emocionais, especialmente em suas características temporal e de intensidade, para atingir objetivos específicos, tendo sempre um fim a alcançar, consciente ou inconscientemente (Gross, 1998; Thompson, 1994). A fim de ampliar essa definição inicial, propomos, em nossa discussão, ancorar a Regulação Emocional no corpo, a partir de uma visão de self que reconhece as suas dimensões fisiológicas, para além do cérebro, como por exemplo o Sistema Nervoso Autônomo [SNA] (Damásio, 2011).

Nesse sentido, a tradicional desvalorização das sensações corporais como constituintes da Regulação Emocional e dos componentes do self é o desdobramento da questão-problema levantada inicialmente, o que nos orienta a realizar uma discussão teórico-conceitual, a fim de indicar alternativas ao modelo cognitivo baseado no cérebro. Ao destacar o corpo, as emoções são alicerçadas em uma compreensão da mente estruturada na fisicalidade como um todo, além da sua constituição pelo ambiente. Desse modo, elabora-se um conceito de mente sendo ao mesmo tempo corporal, emocional, cognitivo e ambiental, indicando um campo relacional para a compreensão da mente e dos processos regulatórios, que constituem o Self como corpo na relação (Siegel, 2018). Compreendemos, portanto, que o Self é uma parte essencial da interface entre o corpo animal e o sistema social, cuja complexidade cultural distingue o ser humano de outros animais, levando à necessidade de discutir os variados elementos que o formam (Baumeister, 2019).

Nosso objetivo, portanto, é realizar uma discussão, em uma perspectiva histórico-conceitual, que identifica os modelos Top-down e Bottom-up, a fim de explicitar uma visão crítica, ao indicar uma proposta teórica de articulação corpo/mente/self com foco na Regulação Emocional. Para tanto, inicialmente, discutimos a mente e o Self, em seus aspectos históricos e conceituais, construindo uma base crítica, a fim de elaborar uma ampliação conceitual. Em seguida, o que entendemos por Regulação Emocional é ampliado e ancorado no corpo, a partir de uma discussão histórica-conceitual que amplia a visão de Self, ao reconhecer dimensões fisiológicas para sua definição, além do cérebro. Ao lado do corpo fisiológico, compreendido como um todo, discutimos a participação do contexto relacional para a compreensão da experiência emocional e de sua regulação.

Mente E Self: Discussão Histórico-Conceitual a partir do Modelo Top-Down

Uma ampla discussão sobre os modelos de mente não faz parte dos nossos objetivos, entretanto, a escolha de um modelo mentalista precisa ser anunciada minimamente, devido ao fato de que o problema sobre a definição de mente persiste na Psicologia. Nas neurociências, por exemplo, não se compreende como o disparo neuronal pode criar a experiência subjetiva sentida a partir de um pensamento, de uma memória ou de uma emoção, assim como não se sabe definir categoricamente o que é uma emoção. A especificidade do funcionamento neuronal não define o que é a mente, mas há tentativas nesse sentido (Russo & Ponciano, 2002). Essa ausência de explicação ou o mistério de como surge a mente podem ser denominados como "o fantasma da máquina" (Solomon, 1998), indicando o aspecto fantasioso de algumas tentativas de definição.

Consideramos importante uma discussão histórica e conceitual, porque problemas teóricos, como o da definição da mente e do self, em geral, não são elucidados e, comumente, são confundidos com palavras similares. Esse é o caso da palavra mente sendo utilizada como sinônimo de consciência, atenção, razão etc., o que pode ser observado, igualmente, na definição do termo self que, predominantemente, é relacionado à razão/consciência, mas, por vezes, é visto como pertencente ao corpo de modo secundário e incontrolável. Em pouco mais de um século de existência, a Psicologia continua encontrando os mesmos problemas na tarefa de definições conceituais que indiquem um objeto de estudo e, consequentemente, na sua busca por cientificidade. Entretanto, a partir da Psicologia Cognitiva (processamento de informação - modelo da "caixa-preta"), a Psicologia tem sido caracterizada como o estudo da mente (Teixeira, 2000).

Relacionado ao surgimento da Psicologia científica, persiste, no século XX, o debate sobre a oposição mente-corpo a partir das discussões filosóficas sobre a mente, nas quais uma visão dicotômica implica a valorização da racionalidade em detrimento da liberdade, da expressão sensorial e emocional (Gazziniga & Heatherton, 2007; Solomon, 1998; Teixeira, 2000). Diante desse panorama, a discussão sobre Regulação Emocional herda os mesmos problemas teóricos e epistêmicos, seja no modelo Top-down, seja no modelo no Bottom-up, caracterizando o primeiro como superior em relação ao segundo.

A Psicologia Cognitiva apresenta um crescente número de modelos explicativos da cognição e dos processos cognitivos, tais como: a mente é formada por processos cognitivos interconectados; a esquematização do conhecimento é a responsável pela vida mental; os procedimentos cognitivos, que sustentam eventos mentais, devem ocorrer em uma ordem específica, pelo menos em algumas situações; os eventos mentais são mais facilmente compreendidos utilizando uma análise abstrata e, apesar de depender de substrato neurológico, não se restringem a ele; o ser humano é autônomo e interage com o mundo externo intencionalmente e; a interação ocorre por meio da mente, que é um processador de símbolos e de significados que têm relação com as coisas do mundo externo (Gazziniga & Heatherton, 2007). Essa lista de descrições indica a ênfase na cognição com foco no cérebro, tendendo a uma leitura do senso comum de que a mente se localiza na cabeça.

A partir de uma perspectiva cognitiva tradicional, o corpo é visto como máquina separada da mente, que é capaz de ser treinada de forma que ambos possam ser potencializados em suas performances, em um funcionamento dinâmico. Com isso, é instituída a pessoa do exercício, isto é, para se consertar a pessoa, é retirada do ambiente, treinando-a para reconfigurá-la e, posteriormente, devolvê-la ao ambiente (Damásio, 2000; Siegel, 2018; Solomon, 1998). A representação mental tem por objetivo mediar a experiência e a conduta manifesta. Sua função é substituir, no mundo interno, o objeto do mundo externo. Isto significa que a representação possibilita trabalhar com o objeto sem que ele seja apresentado em termos físicos. São as representações mentais que permitem que o indivíduo desenvolva atividades mentais como resolver problemas, reconhecer ou não um objeto e lembrar-se de alguém conhecido. O ser humano cria representações para cada informação adquirida, o que o torna um processador ativo na busca de informações de forma inteligente e consciente (Neufeld, Brust, & Stein, 2011). Sintetizando, a Psicologia Cognitiva, tradicionalmente, identifica a proposição da representação mental como unidade básica funcional do processamento cognitivo da informação (Lopes, Lopes, & Teixeira, 2004). Desse ponto de vista, a Regulação Emocional, embasada no modelo Top-down, está focada na racionalidade e no controle, e é definida como a capacidade de controlar as próprias emoções, assim como as suas respostas (Chiesa, et al., 2013).

As pessoas formam crenças sobre o que podem fazer, antecipam as prováveis consequências das ações, estabelecem metas para si e planejam cursos de ação que, provavelmente, produzirão os resultados desejados. Por meio do exercício calculado, as pessoas se motivam e orientam suas ações de forma proativa e antecipada, possuindo capacidades autorreflexivas e autorreativas, que lhes permitem exercitar algum controle sobre seus pensamentos, sentimentos, motivação e ações (Bandura, 1991). No campo do controle das emoções, isto é, ação direta da consciência sobre as emoções, frequentemente, as pessoas se opõem aos impulsos, resistindo aos desejos mais variados, como evitar alimentos que fazem mal, dizer coisas prejudiciais aos companheiros, violar regras e diretrizes do comportamento socialmente adequado, ter experiências inadequadas ou violentas etc. Dar vazão a esses impulsos pode trazer uma satisfação imediata, porém, provavelmente, trará custos indesejáveis a médio ou a longo prazo (Baumeister, Vohs, Dianne, & Tice, 2007).

No entanto, evidências atuais sugerem que existem várias maneiras sobrepostas pelas quais os indivíduos podem regular suas emoções, tais como as estratégias de enfrentamento no contexto (Barros, Goes, & Pereira, 2015; Silva & Gondin, 2019). Inserida na perspectiva cognitiva, essa é uma visão alternativa que muda o foco ao considerar o funcionamento humano como regulado por uma interação de fontes de influência que são, ao mesmo tempo, autogeradas e externas. A auto-observação fornece as informações necessárias para estabelecer metas reais e para avaliar o progresso da pessoa em direção a elas, conforme um padrão socialmente estabelecido (Bandura, 1991).

Indicando uma interpretação alternativa no interior do modelo Top-down, Baumister et al. (2007) fazem uma ressalva ao distinguir os processos homeostáticos da autorregulação e os do autocontrole. Os primeiros estão diretamente relacionados à manutenção da temperatura corporal e à regulação do metabolismo etc., ou seja, autorregulação. O segundo processo, o do autocontrole (Self-control), permite que a pessoa contenha ou substitua uma resposta, tornando possível uma alternativa para o entendimento da natureza e das funções do self. O autocontrole inapropriado está relacionado a dificuldades no comportamento, no controle de impulsos e à concentração de problemas emocionais, como por exemplo, excesso de consumo e abuso de álcool e de drogas, crime e violência, gastos excessivos, comportamentos sexuais impulsivos, gravidez indesejada e tabagismo. A partir de uma revisão de pesquisas (Baumeister & Leary, 1995), Baumeister et al. (2007) propõem a ideia de que o autocontrole depende de um recurso energético limitado, baseado no corpo, a exemplo da glicose. Por conseguinte, criam o termo depleção do ego, referindo-se à condição dos recursos diminuídos após a atividade de autocontrole ser exacerbada.

A importância da energia indica que o autocontrole é uma forma de comportamento intrincado e biologicamente vantajoso, sugerindo que os seres humanos criam e sustentam fisicamente grupos interpessoais complexos, do qual fazem parte, além de sistemas culturais. Desse modo, boa parte do processo de socialização que estimula o desenvolvimento cognitivo do controle depende de aspectos evolutivos, fisiológicos e cognitivos e de treinamento do autocontrole com base nas regras do grupo e nas expectativas sociais. No modelo Top-down, o esforço para manter um agenciamento das emoções e dos pensamentos pelo desenvolvimento do autoconhecimento e pelo monitoramento constante das respostas e dos objetivos, ainda que seja interior ao Self, pode ser visto também como socialmente mediado. As perguntas sobre como gerenciar as emoções - se devem ser atendidas ou ignoradas, valorizadas ou suprimidas - dependem das respostas de cada cultura. Há, no entanto, um tema comum entre as culturas: é preciso exercer alguma medida de controle, no caso cognitivo, sobre as emoções (Gross, 1998).

Apesar dessas relativizações de ênfase da visão da mente restrita ao cérebro, no modelo Top-down, a experiência das emoções e das suas sensações não tem sido discutida a partir delas mesmas, ou seja, da observação e da permissão para serem expressas, possibilitando que conduzam à experiência emocional consciente e servindo como uma espécie de bússola que flui pelas sensações corporais. A crítica está em se enfatizar a cognição como principal fonte ou habilidade da Regulação Emocional. Novamente, o problema continua na própria definição de mente ao se confundi-la com a definição de consciência e/ou de pensamento, mesmo que alguns autores considerem alguns processos fisiológicos, no caso da glicose, como constituintes da Regulação Emocional. Além disso, o problema está na exclusão da historicidade e do ambiente. O self é formado em contextos, não há uma separação clara entre a pessoa e o ambiente de um ponto de vista corporal ao se considerar a Biologia. Toda interpretação já parte de valores fornecidos pelo contexto, escolher uma emoção por ser mais adequada em detrimento de outra reafirma o quanto o contexto é determinante nas escolhas que assentam respostas adaptativas e que se expressam no corpo (Gendlin, 1992; Siegel, 2018; Solomon, 1998).

Em uma perspectiva na qual a evolução significa mudança para prevalência ou para morte da espécie em vez de significar melhoria, não é possível caracterizar a mente/razão/cognição como superior no sentido de mais evoluída, assim como as sensações e as emoções não poderiam ser caracterizadas como inferiores ou menos evoluídas. Pelo contrário, elas são tão fundamentais quanto a cognição na hierarquia filogenética, o que possibilita o estabelecimento de uma relação de complementaridade e não de exclusividade entre as estruturas fisiológicas mais primitivas e as mais recentes (Gould, 2001). Se consideramos o sentido evolutivo, isto é, veio depois em relação às outras estruturas filogenéticas, o tempo não deve assumir o critério de que o mais recente implica uma afirmação de melhoria, até mesmo porque, para a natureza, há apenas mudanças e é o aspecto humano que cria sentido e intenção para o tempo (Damásio, 2000; 2011; Gould, 1999; 2001).

Se pensarmos o corpo vivo não como uma peça de máquina meramente percebida, mas como interação com seu ambiente, então, o corpo é informação ambiental. De um osso antigo, pode-se reconstruir não apenas todo o animal, mas também o tipo de ambiente em que vivia. A partir do tipo de pé, pode-se inferir o tipo de solo em que habitava. Da sua cavidade estomacal, pode-se saber o que o alimentou e o perseguiu, assim como, a cor da pele, a estatura etc. (Gendlin, 1992; Siegel, 2018).

A partir do olhar do modelo Top-down da Psicologia Cognitiva, podemos caracterizar a definição do modelo Bottom-up pelo viés da "desvalorização" das emoções e das sensações corporais que são vistas como um tipo de reflexo ou de condicionamento, algo abrupto e fora do controle, devido à ausência do circuito cognitivo ou circuito "superior". O modelo Bottom-up, nessa perspectiva, é tratado como algo "desorganizado" e "irracional" (Chiesa et al., 2013).

O Corpo da Regulação Emocional: Uma Revisão Histórico-Conceitual do Modelo Bottom-Up

É de nosso interesse destacar a importância do modelo Bottom-up confrontando a predominância do modelo Top-down e, com isso, ressaltar todo o potencial do corpo no processo da Regulação Emocional, a partir de uma perspectiva integrativa de três sistemas: sistema nervoso autônomo, sistema límbico e sistema cortical. Enfatizamos uma concepção biológica específica do corpo que o concebe integrado à cabeça e às estruturas autonômicas tão importantes quanto a cognição, indicando que o cognitivo é resultante dessa interação fisiológica, logo, um produto interativo de um modo corporal de funcionar (Novembre, Zanon, Morrison, & Ambron, 2019). Dessa forma, o modelo Bottom-up integra a mente e o self. O corpo deixa de ser máquina e se torna história biográfica e fonte de representações de experiências afetivas, de fluxos emocionais e de suas sensações. A mente assume um caráter biológico, ao mesmo tempo cognitivo, emocional e relacional, transbordando para além do cérebro e assumindo uma natureza de ação como um fluxo de energia e de informação no tempo e no espaço (Siegel, 2018).

Outro ponto a ser considerado se refere às estruturas fisiológicas responsáveis pelo modo como nos percebemos na relação com o outro. Desse modo, podemos resgatar a experiência sensorial e a emocional como constituintes da pessoa em contexto. Ressaltamos o contexto porque somos seres sociais, biológicos e simbólicos (Siegel, 2018; Solomon, 1998). Compreendemos mente e self como fluxos de energia e de informação que ocorrem entre os elementos do corpo físico e os elementos não corporais do mundo, não se restringindo a uma parte ou outra do corpo e sendo constituídos pelas interações nos diversos contextos. Isto não exclui o "si mesmo", ao contrário, o corpo é uma forma de organização específica e limitante desse fluxo de energia e de informação, o que caracteriza o Self. Com isso, o corpo e seus componentes se tornam elementos constituintes, também, da mente (Gendlin, 1992, 2006; Siegel, 2018).

Esse fluxo está tanto no interior quanto no meio ambiente e no entre as coisas, caracterizando-o como constantemente aberto e incompleto, tornando a Mente e o self formas distintas da organização desse fluxo de energia e de informação. Desse modo, definimos o self como estruturado no corpo físico em camadas filogeneticamente relacionadas enquanto definimos a mente como apoiada nessa filogenia, mas constituída para além do corpo físico, ou seja, relacional e situacional (Gendlin, 1992; 2006; Siegel, 2018).

Desde o século XIX, há um debate importante acerca de se somos biologicamente preparados com características fisiológicas únicas para emoções básicas como raiva, tristeza e medo ou se as emoções surgem a partir de condições específicas de contextos cognitivos. Essa discussão tem seu auge com Willian James, em 1884, quando já se perguntava o que eram e para que serviam as emoções e todas as implicações que essa discussão envolvia (James, 1884; Gross, 1998).

Darwin inicia essa discussão de forma mais estruturada em 1859, quando publica "A Origem das Espécies" (Darwin, 1987), que alcança o status científico de comprovação da evolução, ao propor uma teoria explicando como ela ocorre por meio da seleção natural e sexual. Esta teoria é uma das referências centrais que permeia os modelos Top-down e Bottom-up, principalmente, no que tange às funções adaptativas das emoções (Damásio, 2000; Darwin, 2016; Gould, 2001).

A raiva, por exemplo, é definida como uma resposta motora ativa, pois cria prontidão e acelera os batimentos cardíacos e a respiração preparando a pessoa para ações diretas; já a tristeza é caracterizada como uma diminuição dessa prontidão, pois renuncia à ação direta e tem uma hipotonia característica. As emoções provocam diferentes reações que têm consequências nas estratégias de regulação emocional, além de serem expressões de afeto acompanhadas de reações intensas e breves do organismo, em resposta a um acontecimento inesperado ou, por vezes, em resposta a uma memória ou a uma fantasia. As sensações podem ser definidas como tipos de impressão causadas em um órgão receptor por meio de um estímulo (interno ou externo), ou seja, a sensação é um fenômeno puramente fisiológico e perceptual, sendo componente de uma emoção, é basicamente uma atividade reativa dos sentidos (Cole, 2014; Damásio, 2000; LeDoux, 2003).

O sentimento ocorre diante da existência de três componentes processuais: a representação do estímulo emocional, a recuperação de significados associados a esse estímulo e a percepção consciente de estados do corpo. Os sentimentos são experiências subjetivas, acessíveis apenas a própria pessoa. Outra diferença entre sentimentos e emoções é a duração. Os sentimentos são mais duradouros, menos explosivos e não vêm acompanhados de reações orgânicas intensas. Já as emoções são fortes, passageiras e mutáveis; nelas, é nítida a presença de sensações corporais, ainda que nem sempre acessíveis à consciência (Damásio, 2000). Ao trazer essas definições sobre emoções, sensações e sentimentos, é questionado o discurso dualista sobre mente-corpo e, com isso, a correlata definição de self apenas como pessoa pensante e não como uma pessoa dependente e integrada ao corpo e ao ambiente (Siegel, 2018).

Apesar de parecer uma ideia recente, essa perspectiva pode ser encontrada em outros momentos históricos em várias áreas de estudo e, até mesmo, na Psicologia. William James, em 1884, com seu trabalho "What is an Emotion?", apresenta as tentativas teóricas da época para explicar as performances cognitivas e volitivas, e a importância atribuída à mente, compreendida como o centro governador exclusivo das ações humanas. Entretanto, James (1884) não aceitava a divisão do cérebro em centros sensório e motor, argumentando que os processos do cérebro emocional são mais que processos combinados de forma variada e localizados em partes do córtex. Em sua teoria, James (1884) propõe que provocações (estímulos) produzem mudanças no corpo que, consequentemente, provocam emoções. Dessa forma, essa teoria preconiza que os estímulos são simultâneos às respostas físicas e que, somente depois, são avaliadas cognitivamente como emoção.

Atualmente, um dos modelos sobre o que é emoção tem estreita relação com modelos somatoviscerais coadunado à proposta de William James. Modelos somatoviscerais ascendentes, Bottom-up, fornecem uma estrutura geral para conceituar caminhos pelos quais informações ascendentes podem provocar uma experiência emocional com influência nos processos emocionais e cognitivos (Pace-Schott et al., 2019). Por exemplo, a repulsa está associada às respostas taquigástricas e a atividades da ínsula direita, enquanto o nojo é associado à regulação parassimpática do coração e da atividade na ínsula esquerda. Além disso, também tem sido demonstrado que os julgamentos emocionais são influenciados por variações nas sinalizações aferentes cardiovasculares, por meio da modulação de estruturas do mesencéfalo. Especificamente, ciclos cardíacos juntamente à ativação de barorreceptores na sístole estão associados às avaliações no aumento da intensidade de expressões de repulsa, de nojo e de felicidade (Norman, Berntson, & Cacioppo, 2014).

O Sistema Nervoso Autônomo (SNA), com seu processamento eferente e aferente das informações neurais e respostas comportamentais, é distribuído por níveis ou por escalas de tempo e de espaço. Por exemplo, o cérebro está organizado em vários níveis do neuroeixo (córtex, sistema límbico e tronco cerebral) e cada nível processa a informação com diferentes capacidades analíticas e de restrições temporais. Respostas primitivas de proteção a estímulos nocivos funcionam como reflexos de retirada da dor no nível da medula espinhal, não necessitando de comunicação com o cérebro. Estas respostas mais simples ou primitivas de proteção liberam o cérebro para realizar outras funções em níveis mais complexos, fornecendo ao organismo outro repertório de comportamento, distribuído em redes de processamento de informações e de estratégias cognitivas que possibilitam a antecipação e a preparação para evitar encontros aversivos. Isso sugere que a avaliação de estímulos, por exemplo, não é apenas o resultado de um ou dois processos simples, ao contrário, processos avaliativos ocorrem em camadas que são o resultado de representações de informações em vários níveis do neuroeixo e de esquemas corporais (Norman et al., 2014).

Nesse sentido, Damásio (2011) complementa essas reflexões com uma definição complexa sobre a mente consciente, que é fruto de um processo biológico evolutivo, surgindo a partir da relação entre cérebro, corpo físico e meio ambiente, ou seja, descreve três etapas evolutivas do Self em uma perspectiva desenvolvimental, a saber: o Protosself, o Self central e o Self autobiográfico. A origem da mente está associada ao momento em que um processo do Self é adicionado a um processo mental básico, isto é, uma coleção dinâmica de processos neurais integrados centrada na representação do corpo vivo que encontra expressão em uma coleção dinâmica de processos mentais conectados.

Em seres de cérebro mais complexos estruturalmente, as redes de neurônios passaram a imitar a estrutura de partes do corpo a qual pertencem. Representam o estado do corpo, literalmente mapeando o corpo para o qual trabalham e constituindo uma espécie de substrato virtual. Permanecem, por toda existência, conectadas ao corpo que imitam. Espelhar o corpo e permanecer em conexão são atividades muito úteis à função de gestão da vida. O tema dos neurônios é o corpo, isto é, a vontade de viver oculta nas células do nosso organismo pôde um dia ser traduzida em vontade consciente surgida na mente. Por exemplo, o circuito do estresse, o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal (HPA), tem como função trazer um aspecto básico do funcionamento fisiológico presente em cada unidade celular, assim como em todos os nossos sistemas que é a tendência à homeostase. Esta não requer apenas um equilíbrio dinâmico, trata-se também de uma "vontade natural", desde um organismo unicelular inferior até um organismo multicelular superior que funcionam trocando informações com o exterior para sobreviverem, indicando, desse modo, uma função consciente (Damásio, 2011; Porges, 2012).

Um dos aspectos definidores dos sentimentos emocionais é a representação na consciência de estados corporais modificados por emoções, e é por isso que os sentimentos e as emoções podem servir como barômetro para a gestão da vida. É possível realizar, sem a interferência cognitiva, descrições sensoriais que não têm um sentido claro ou uma definição precisa sobre o que se sente, especialmente, em relação às sensações. Quando se observa a experiência sentida, a mente deixa de ser julgadora e se torna descritiva dos fenômenos sensoriais e emocionais. Desse modo, possibilita-se uma nova tomada de consciência a partir de estruturas filogeneticamente primitivas como, por exemplo, o sistema nervoso autônomo, responsável por linguagens somáticas como sensações de frio, quente, apertado, tremor, calafrios etc., cuja principal função é a de experimentar sem ter que, necessariamente, enquadrar a experiência em padrões cognitivos anteriores (Damásio, 2011; Payne, Levine, & Crane-Godreau, 2015; Porges & Furman, 2011; Porges, 2012).

A consciência formada a partir da intercomunicação de esquemas corporais (postura), sensações e aspectos fisiológicos produz imagens mentais do corpo nas estruturas cerebrais localizadas abaixo do nível do córtex cerebral, em uma região conhecida como tronco cerebral superior que é uma estrutura antiga do cérebro encontrada também em muitas outras espécies. Tais imagens constituem o Protoself e estão ligadas às partes do corpo que informam o cérebro por meio de sinais em todo momento e, por sua vez, são informados pelo cérebro criando uma alça ressonante num duplo sentido Top-down e Bottom-up. Desse modo, o cérebro começa a construir a mente consciente não no nível do córtex, mas no do tronco cerebral. Os sentimentos primordiais não são apenas as primeiras imagens geradas pelo cérebro, mas são também manifestações de sensações como dor, prazer, felicidade etc. Porém, a mente consciente - Self autobiográfico - é muito distinta da mente consciente que surge no tronco cerebral - Protoself. O primeiro passo é a geração de sentimentos primordiais, elementares de existência, o Protoself. O segundo é o Self central, que se refere à ação, especificamente, às relações entre organismos e objetos. Finalmente, há o Self autobiográfico, conhecimento biográfico. O "eu material" surge a partir do Protoself e do Self central. Dito isto, de modo prático, a consciência humana corresponde a um processo mental em que atuam todos esses níveis de Self. Como um conjunto composto de estruturas hierárquicas fundamentais como o tronco cerebral, estruturas subcorticais e córtex cerebral, o Self tem o corpo fisiológico como o alicerce para a constituição da mente (Damásio, 2011; Payne, Levine, & Crane-Godreau, 2015; Porges, 2012; Tsakiris, 2017).

O Self se inicia a partir do senso de propriedade e de autorreconhecimento corporal, o sentimento de que meu corpo pertence a mim. Nessa perspectiva, a Regulação Emocional se expande para os processos sensoriais e emocionais, ou seja, para além da cognição (Tsakiris, 2017). Várias linhas de pesquisa tornaram conhecidas abordagens sobre a cognição que concebem os processos cognitivos como profundamente enraizados nas interações do corpo com o mundo (Glenberg, 2010). Exemplificando, temos as influentes teorias motoras da percepção que nos permitem considerar a autoconsciência e as interações sociais pelo processamento sensório-motor. Uma dimensão fundamental do Self corporal, mas de modo algum a única, está no sentido de propriedade corpórea referenciado na percepção especial do próprio corpo, destacando as sensações somáticas como mediadoras da experiência única de si mesmo, consequentemente, o sentimento de que meu corpo pertence a mim e eu pertenço a esta corpulência (Tsakiris, 2017; Vignemont, 2014).

De forma geral, o sistema sensório-motor está ativado não só quando um agente executa uma ação orientada por objetivos, mas também quando o observador passivo percebe a mesma ação realizada por outro agente. Não só se compartilha conhecimento semântico sobre a ação como também a perspectiva pragmática do agente. Como tal, o espelhamento da ação permite ao observador internalizar as ações do outro como se fosse o agente, por uma espécie de simulação motora. Enquanto seres biológicos, esse tipo de conexão espelhada não só nos reafirma enquanto espécies como também nos situa em uma posição de forte semelhança na relação externa com o ambiente (Bernhardt & Singer, 2012; Vignemont, 2014).

O modo como experienciamos nossas métricas corporais, altamente específicas, possibilita-nos checar o nosso eu na relação com o outro. A representação da configuração espacial e da dimensão do corpo forma um mapa corporal. O mapa do corpo não se limita ao que é compartilhado, o senso de propriedade do corpo é mantido como uma autoespecificidade própria constantemente. Não só podemos ver e tocar, como também recebemos um fluxo gigante e contínuo de insumos proprioceptivos e interoceptivos, sendo o corpo experimentado para além do seu aspecto cognitivo (Bernhardt & Singer, 2012; Damásio, 2011; 2012; Tsakiris, 2017; Vignemont, 2004, 2014). A autoconsciência é altamente maleável e sujeita à influência da exterocepção. No entanto, a entrada exteroceptiva representa apenas um conjunto de canais de informação disponível para autoconsciência, enquanto a interocepção é o eixo para o cérebro e para as sensações provenientes do corpo interno e de seus órgãos viscerais que sinalizam estados fisiológicos como sede, dispneia, falta de ar, toque sensual, coceira, estimulação peniana ou do clitóris, excitação sexual, frieza, calor, exercício, batimentos cardíacos e distensão da bexiga, do estômago ou de outros órgãos internos (Berntson, Gianaros, & Tsakiris, 2018; Ehrsson, 2007; Pace-Schott et al., 2019; Tsakiris, 2017).

Diante desses variados sinais, pesquisas sobre a atenção interoceptiva têm sido direcionadas, principalmente, para o foco dos batimentos cardíacos, que podem ser mensurados, ao contrário de outras mudanças interoceptivas. Esses métodos produzem medidas de interoceptive accuracy (Iacc), que se relacionam entre si e com medidas em outras modalidades interoceptivas, como, por exemplo, o ritmo respiratório e a pressão sanguínea. Indivíduos com IAcc mais presente no corpo relatam maior excitação do que os que apresentam IAcc inferior, sendo os primeiros mais capazes de autorregular seu comportamento e de seguir suas intuições para alcançarem metas. Baseado nisto, sugere-se que a consciência interoceptiva é importante para a consciência emocional, enquanto a exterocepção ressalta a flexibilidade da consciência corporal e do reconhecimento de semelhantes. Interocepção e exterocepção representam o equilíbrio biológico e são integradas para que o corpo seja representado (Bernhardt & Singer, 2012; Herbert & Pollatos, 2012; Porges, 2012; Suzuki, Garfinkel, Critchley, & Seth, 2013; Tsakiris, Tajadura-Jiménez, & Costantini, 2011; Tsakiris, 2017).

Perante essa perspectiva biológica, há uma relação direta entre a Regulação Emocional e o ambiente: quanto maior for o estímulo que aumente a experiência de segurança do organismo, mais os circuitos de engajamento social apoiam os comportamentos pró-sociais (Damásio, 2000; 2011; Darwin, 2016; Levine, 1999; Porges & Furman, 2011; Porges, 2012). Esse contexto ambiental, assim como o risco à segurança, é processado pelo sistema nervoso visceral por meio das sensações e das emoções. Diante disso, destacamos o termo neurocepção como sendo um correlato para a interocepção e a exterocepção (Porges, 2012). Este termo enfatiza um processo neural, isto é, compreende que os seres humanos e outros mamíferos tenham comportamentos sociais, ao distinguir entre contextos seguros e perigosos sem a exigência da cognição, podendo envolver as estruturas límbicas subcorticais, como, por exemplo, a ínsula. A neurocepção seria uma espécie de mediadora tanto para a expressão quanto para sua interrupção no comportamento social positivo, vinculando a homeostase visceral à Regulação da Emoção. Assim, o tom da voz, as expressões faciais e os movimentos das mãos estariam sendo avaliados como informações seguras ou não. Para além do fator estimulante, a resposta emocional é determinada por um complexo sistema de respostas fisiológicas envolvendo a percepção do estímulo, os mecanismos de feedback aferentes e a regulação de comportamentos de aproximação-retração pelo sistema vagal (Porges & Furman, 2011; Porges, 2012).

A partir dessa perspectiva de compreensão sobre a resposta emocional, da fisiologia à percepção do outro, do interno ao externo, de modo circular, redefinimos a Regulação Emocional: um processo que tem início nas sensações corporais e que se integra paulatinamente à medida que se associam sentidos da experiência em variados níveis, pessoais e sociais, o das sensações e o das elaborações cognitivas, podendo seguir o fluxo da experiência de modo imprevisível, pela sensação sentida com o outro, e/ou se dirigir para o alcance de uma determinada meta (autorregulação/autocontrole), sendo, portanto, vivida nos contextos relacionais (Ponciano, 2016; 2017; 2019). Essa redefinição respalda a necessidade da articulação, para a compreensão da experiência emocional e de sua regulação, a partir de uma perspectiva de complexidade que considera como relevantes todos os elementos envolvidos.

 

Considerações Finais

Destacando uma perspectiva crítica, mente e Self foram discutidos, em seus aspectos históricos e conceituais, para desenvolver uma proposta de articulação, a partir da valorização do corpo como base para a regulação emocional, considerando também o contexto relacional para elaborar modelos teóricos complexos, que ajudem a compreender a experiência emocional. Desse modo, o que entendemos por Regulação Emocional foi construído com base em uma argumentação histórica e de achados recentes, que viabilizam a sua ancoragem no corpo, localizado em um ambiente biológico e de interações socioculturais.

Destacamos que, no modelo Top-down, a Regulação Emocional, discutida a partir da Psicologia Cognitiva, assume características coerentes com esse postulado teórico, ou seja, é elaborada como um agenciamento ou como um controle das emoções, das escolhas de metas ou de pensamentos apropriados às situações e às estratégias de regulação geridas, privilegiadamente, pela mente em sua estrutura física/cerebral. Com isso, o foco de estudo é o cérebro, sendo a estrutura ou órgão responsável pela função de controle, caracterizando um agenciamento sobre o corpo e, consequentemente, sobre as emoções, em um sentido "de cima para baixo" ou modelo Top-down (Bandura, 1991; Gross, 1998).

Na perspectiva Cognitivista, as emoções e as sensações são compreendidas como resultado de uma ação mental que se origina a partir do pensamento. Emoções e sensações são vistas como subordinadas ao pensamento e são caracterizadas secundariamente em um sentido "de baixo para cima" ou modelo Bottom-up, que é excluído ou desvalorizado em uma compreensão do que é a Regulação Emocional. Enquanto a mente é algo que está no interior da cabeça, sendo responsável por interpretar e regular de forma consciente os estímulos externos e internos, consequentemente, o self é compreendido como um agente ativo e causador do processo da Regulação Emocional a partir de estruturas superiores do cérebro (Chiesa, Serretti, & Jakobsen, 2013; Damásio, 2000, 2011; Gazziniga & Heatherton, 2007; Siegel, 2018; Solomon, 1998).

Um corpo fisiológico como produto da evolução e um corpo ávido por sentidos existenciais e pulsante em sua relação direta com seu ambiente embasam uma visão oposta ou quiçá complementar. Destacamos o sentido de baixo para cima ou modelo Bottom-up, invertendo a importância desse modelo como também componente da mente e do self, para além da cognição, diferenciando-o do modelo Bottom-up da Psicologia Cognitiva, devido a sua desvalorização (Damásio, 2011; Levine, 1999; 2012; Gendlin, 2006; Siegel, 2018).

A partir das críticas levantadas, vale destacar o potencial de se propor uma teoria integrativa para a Regulação Emocional que considere a interação entre os processos interoceptivos e exteroceptivos. Esta perspectiva reconfigura o modelo Bottom-up, tornando-o essencial na definição de um Self integrado e, por consequência, da saúde física e mental. Nesse sentido, com essa revisão narrativa, cumprimos o objetivo de realizar uma discussão, desde uma perspectiva histórico-conceitual, que identifica os modelos Top-down e Bottom-up, a fim de explicitar uma visão crítica, ao indicar uma proposta teórica de articulação corpo/mente/self com foco na Regulação Emocional.

Ao finalizar com destaque para a neurocepção, relembramos que a exterocepção nos aproxima, permite nos identificarmos como semelhantes e cria um senso de pertencimento. A interocepção nos discrimina, sustenta o "si mesmo" e nos fornece a separação do outro. O ajuste dessa relação entre os estímulos externos e os internos é feito constantemente em um fluxo nos sentidos de cima para baixo e de baixo para cima. O Self é a conjunção constante dessa dinâmica juntamente à consciência em suas diversas camadas. Essa comunicação ocorre o tempo todo entre as estruturas mais primitivas e as mais recentes. O cérebro corporal deve monitorar se sensações, eventos e estados mentais devem ser atribuídos a si mesmo ou não. Experimenta-se o eu observador constantemente em vários níveis (Bernhardt & Singer, 2012; Damásio, 2011; Porges, 2012; Seth, 2013; Suzuki et al., 2013; Taskiris, 2017). É importante observar que, nessa perspectiva, a Regulação Emocional não é somente cortical, pelo contrário, ela é muito mais dependente do contexto e, principalmente, das estruturas subcorticais autonômicas e dos esquemas corporais. Com isso, há um deslocamento da pessoa como um ser que somente pensa para a pessoa que também pensa e precisa da emoção e da sensação como bússolas para se orientar em contextos sociais (Gendlin, 1992; Martinelli, 2018; Siegel, 2018; Solomon, 1998). Essa orientação é construída dentro e fora de si, no espaço entre as coisas, no diluir das coisas, no modo como se sente, como se experimenta, na maneira de se ver e no encontro ou desencontro com o outro (Damásio, 2011; Siegel, 2018; Solomon, 1998; Tsakiris, 2017; Vignemont, 2014). Diante da complexidade da experiência emocional, muito ainda há que ser estudado e discutido para que a nossa compreensão teórica embase o conhecimento psicológico e as possíveis técnicas de intervenção. Acreditamos que a interseção entre a Biologia e a Psicologia, base dessa proposta, é promissora para continuarmos essa discussão sobre corpo, mente, Self e Regulação Emocional. Por conseguinte, a questão-problema, inicialmente levantada, quanto à limitação de uma compreensão teórica que enfatiza a cognição, pode continuar em elaboração para a inclusão do corpo, reconhecendo o animal social que somos.

 

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Endereço para correspondência:
Eduardo José Esteves Brito
eduj.ebrito@gmail.com

Recebido em: 30/06/2020
Aceito em: 19/10/2020

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