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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.15 no.3 Juiz de Fora Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2021.v15.30710 

ARTIGOS

 

A transição para parentalidade de um casal heterossexual que recorreu à ovodoação

 

The transition to parenting of a heterosexual couple who resorted to egg donation

 

La transición a la parentalidad de una pareja heterosexual que recurrió a la donación de óvulos

 

 

Susan Lusca da SilvaI; Henrique Abe OgakiII; Cesar Augusto PiccininiIII; Rita de Cássia Sobreira LopesIV

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: susanluscapsi@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3548-0801
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: hikeabe@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1844-2416
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: piccicesar@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4313-3247
IVUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: ritasobreiralopes@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6433-1648

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou compreender a experiência da parentalidade de um casal heterossexual que recorreu à ovodoação e que tevetrigêmeos. O casal respondeu, individualmente, as entrevistas sobre maternidade e paternidade em três períodos: gestação, três meses e primeiro ano de vida dos bebês. Após repetidas leituras das entrevistas, construiu-se o relato clínico. Os resultados revelaram questionamentos da mãe sobre a própria maternidade e uma compensação exacerbada nos cuidados com os bebês para suprir a ligação não consanguínea com os filhos. Além disso, as dúvidas a respeito da revelação da origem dos trigêmeos demonstraram angústia e desamparo frente ao contexto da ovodoação.

Palavras-chave: Gestação; Parentalidade; Reprodução assistida; Estudo de caso.


ABSTRACT

This study aimed to understand the parenting experience of a heterosexual couple who resorted to egg donation and who had triplets. The couple responded individually to interviews about motherhood and paternity in three periods: pregnancy, three months and the babies' first year of life. After repeated readings of the interviews, the clinical report was constructed. The results revealed questions from the mother about her own motherhood and an exacerbated compensation in the care of the babies to supply the non-consanguineous connection with the children. In addition, doubts about the disclosure of the triplets' origin showed anguish and helplessness in the context of egg donation.

Keywords: Pregnancy; Parenting; Assisted reproduction; Case study.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo comprender la experiencia de parentalidad de una pareja heterosexual que recurrió a la ovodonación y que tenía trillizos. La pareja respondió, individualmente, a las entrevistas sobre maternidad y paternidad en tres períodos: embarazo, tres meses y el primer año de vida de los bebés. Después de repetidas lecturas de las entrevistas, se construyó el informe clínico. Los resultados revelaron preguntas de la madre sobre su propia maternidad y una compensación exacerbada en el cuidado de los bebés para suplir los lazos no consanguíneos con los niños. Además, las dudas sobre la revelación del origen de los trillizos mostraron angustia e impotencia en el contexto de la ovodonación.

Palabras clave: Gestación; Parentalidad; Reproducción asistida; Estudio de caso.


 

 

Na sociedade ocidental, ser mãe e ser pai ainda são muito valorizados socialmente, predominando a expectativa de que os casais tenham filhos. Na psicanálise, o desejo de ter um filho está associado ao desejo inconsciente da imortalidade do Eu. Segundo Freud (1914/1996), o filho simboliza a possibilidade da realização dos sonhos não conquistados pelos pais e o amor pelo bebê é o reflexo do narcisismo parental que encontrou uma oportunidade de renascer. Dessa forma, o desejo de filho é motivado pela fantasia de ter a si mesmo duplicado de maneira que sua autoimagem seja perpetuada de forma mais completa e onipotente (Brazelton & Cramer, 1992). Especialmente para a mãe, o bebê desejado e idealizado caracteriza uma extensão dela mesma, objeto integrado ao seu corpo que promove um empoderamento para a gestante da imagem corporal feminina (Brazelton & Cramer, 1992).

Porém, alguns casais não conseguem cumprir esse anseio devido à infertilidade, que é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a impossibilidade de alcançar a gravidez após um ano ou mais de relações sexuais regulares sem o uso de métodos contraceptivos (Zegers-Hochschild et al., 2009). A partir disso, há grandes investimentos científicos em novas tecnologias para que indivíduos e casais inférteis alcancem a gravidez tão desejada. Essas tecnologias denominam-se Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) e são os procedimentos que envolvem a manipulação de óvulos e de espermatozoides humanos com o objetivo de proporcionar a concepção e, posteriormente, uma gestação (Zegers-Hochschild et al., 2009).

Dentre os procedimentos de TRA, a doação de gametas é empregada quando um indivíduo é incapaz de produzir ou de utilizar os próprios gametas. Assim, a mulher ou o homem recorre aos óvulos ou aos espermatozoides de outras pessoas para realizar a fecundação. No caso da doação de óvulos, a doadora é induzida à ovulação através do uso de doses hormonais e os óvulos são recolhidos, posteriormente, pela equipe médica para serem fecundados. Os óvulos recolhidos passam, então, pelo procedimento de fertilização in vitro (FIV), no qual recebem os espermatozoides do companheiro da receptora. Destaca-se que a mulher receptora do embrião irá gestá-lo e, para isso, é necessário que ela faça a hormonização para que seu útero esteja preparado para recebê-lo (Fonseca, Hossne, & Barchifontaineos, 2009).

De acordo com o último Registro Anual publicado pela Rede Latinoamericana de Reprodução Assistida (Zegers-Hochschild, Schwarze, Crosby, Musri, & Urbina, 2019), referente ao ano de 2016, é possível observar um aumento na utilização de TRA na América Latina. Apenas no Brasil, foram 2.526 doações de óvulos em 2016. Dado o número crescente de doações de óvulos, é importante estudar as repercussões desse procedimento na vida dos sujeitos inseridos nesse contexto.

Porém, apesar do aumento das doações de óvulos, os estudos psicológicos sobre esse fenômeno ainda são escassos e a maioria dos estudos produzidos se concentra nos países europeus. Por exemplo, em um estudo realizado no Reino Unido, Imrie, Jadva e Golombok (2020) entrevistaram 85 mulheres heterossexuais que conceberam através de ovodoação, visando compreender seus sentimentos e pensamentos sobre a relação mãe-bebê. Os resultados demonstraram que essas mães utilizaram diversas estratégias durante a transição para a parentalidade, a fim de conseguir estabelecer sua identidade como mãe e sentir que o bebê era seu. Segundo as autoras, tal processo é individual, sendo que a ausência de ligação genética com o bebê apresentou uma diferenciação importante entre as entrevistadas. Apesar disso, a maioria conseguiu se ajustar bem à maternidade e lidar com os sentimentos decorrentes da falta de vínculo genético, sentindo-se confiantes em seu lugar de mãe.

Outra pesquisa também realizada no Reino Unido por Imrie, Jadva, Fishel e Golombok (2019) avaliou a qualidade da relação pais/mães-filhos em famílias formadas a partir de ovodoação. Para tanto, realizaram entrevistas e observações com um grupo de 85 mães e 67 pais de famílias formadas a partir da ovodoação e compararam com um grupo controle, de 65 mães e 38 pais oriundos de famílias formadas a partir de FIV, usando os gametas das próprias mães e pais. Os bebês deste estudo já estavam com idade entre 6 e 18 meses. Os resultados demonstraram que as mães e os pais de ambos os grupos pouco se diferiram, sendo que ambos apresentaram boas representações sobre si mesmos como mães e pais, assim como boas representações de seus filhos. Além disso, as interações em ambos os grupos também foram consideradas boas, porém as interações do grupo de mães por ovodoação foram observadas como menos responsivas. Assim, apesar de ter sido uma diferença sutil, os autores apontam que a falta de ligação genética pode acarretar em alguns desafios para algumas mulheres frente à maternidade por meio da ovodoação, como preocupações a respeito da falta de vínculo genético, o estigma social sobre a parentalidade não-genética e as incertezas sobre a definição de seu próprio papel como mãe.

Um dos temas referentes à ovodoação que tem despertado interesse na literatura científica é a revelação para os filhos do uso dessa técnica em sua concepção. Por exemplo, o estudo de Applegarth, Kaufman, Josephs-Sohan, Christos e Rosenwaks (2016) buscou compreender se mães e pais de filhos concebidos a partir de ovodoação colocaram em prática sua intenção de revelar para esses filhos as suas origens. Participaram do estudo 72 mães e pais dos Estados Unidos. A idade média dos filhos no momento da revelação foi de 5,5 anos, conforme referido pelos pais, enquanto a idade média dos filhos no momento da participação na pesquisa era de 13 anos. Os resultados indicaram que 43% dos participantes fizeram a revelação conforme pretendiam, 39% ainda não haviam revelado, porém pretendiam fazê-lo, 9% estavam incertos e 9% não pretendiam revelar. Além disso, os autores também encontraram que o atraso na revelação acarretava aumento na ansiedade a respeito de como fazê-lo, ressaltando a importância do acompanhamento dessas famílias por um profissional de saúde mental.

A respeito do contexto brasileiro, há poucos estudos sobre a temática no país, principalmente, desenvolvidos na área da Psicologia. Ao se realizar uma pesquisa na base de dados Periódicos Capes sob os descritores "ovodoação" e "doação de óvulos", foram encontradas algumas pesquisas sobre o tema sendo a maioria da área do Direito e da Medicina. Dessa forma, destaca-se o estudo na área da Psicologia recentemente realizado no Brasil por Schneider e Donelli (2019), que entrevistaram três gestantes que recorreram à ovodoação para engravidarem, com o intuito de investigar as representações maternas sobre os bebês concebidos através desse método. Embora tenham encontrado que as representações sobre o bebê nesse contexto são semelhantes à gestação sem o uso de TRA, constataram peculiaridades como as fantasias dessas mães, principalmente sobre a aparência física do bebê, que remetiam à ausência de ligação genética da gestante com o bebê e à figura da doadora.

Um estudo anterior, de Montagnini, Malerbi e Cedenho (2012), teve o intuito de verificar se havia entre os pais a intenção de revelar para o filho, familiares e amigos o uso de ovodoação. Os pesquisadores entrevistaram 10 casais em tratamento para infertilidade que recorreram à ovodoação e os resultados apontaram que a maioria dos participantes revelou para outras pessoas sobre o tratamento para infertilidade, porém não sobre a ovodoação. Ainda, a maioria dos participantes relatou não ter pensado sobre a revelação para o filho, não ter conversado sobre isso com o cônjuge e nem ter a intenção de fazer a revelação ao filho. Os motivos apresentados para não revelar foram a possível semelhança física entre o filho e o casal, devido à escolha de doadora semelhante à mãe, de forma que não haveria questionamentos sobre a maternidade decorrentes de atributos físicos, além de não atribuírem importância à origem do óvulo e acharem desnecessário falar sobre isso. Também, foram observadas preocupações quanto ao impacto emocional dessa informação na criança, pois temiam que ela poderia se sentir diferente, não amada e não ser aceita pelos familiares. Além disso, os pais se preocupavam quanto à possível rebeldia frente à informação e à busca pela criança pela doadora do material genético.

Além da falta de estudos, não há uma legislação específica que regulamente as TRA. Atualmente, as únicas diretrizes existentes para o uso dessas técnicas constam na resolução 2.168 de 2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Nesse documento, salienta-se que o sigilo sobre a identidade dos doadores e dos receptores deve ser assegurado e que a idade limite para a doação de gametas é de 50 anos para os homens e de 35 anos para as mulheres. Além disso, a resolução afirma que a escolha da doadora dos óvulos é responsabilidade do médico que realiza a fertilização e que ele deverá buscar a doadora que tenha características fenotípicas semelhantes às da mulher receptora. Ainda, a doação de gametas não deve ter caráter lucrativo ou comercial (CFM resolução 2.168 de 2017).

A partir do exposto, o presente estudo se justifica pela escassez de estudos na área da Psicologia sobre o tema, principalmente no Brasil. Além disso, gestar e criar um filho que não é geneticamente seu pode implicar em demandas psíquicas, para o casal, que são diferentes daquelas de uma gestação sem o uso de óvulos doados. Dessa forma, essa pesquisa buscou compreender a experiência da parentalidade de um casal que recorreu a ovodoação para ter seus filhos, especialmente, as expectativas, as motivações, as fantasias e os sentimentos que permearam essa experiência. Para isso, a perspectiva psicanalítica foi a base teórica escolhida para o entendimento desse fenômeno, considerando-se a singularidade do caso, os ditos e, principalmente, os não-ditos durante a entrevista que fornecem importantes subsídios da experiência investigada.

 

Método

Participantes

Participou do presente estudo, um casal heterossexual que recorreu à doação de óvulo para alcançar a parentalidade, após insucesso em conceber naturalmente ou através de fertilização in vitro utilizando o próprio óvulo da esposa. O casal Lucio e Elvira tinha 35 e 40 anos, respectivamente, na época da gestação. Ambos eram brancos, possuíam ensino superior completo e estavam estabilizados financeiramente em suas profissões. Após a reprodução assistida, tornaram-se pais de trigêmeos, chamados, por nós, de Enzo, Valentina e Oyá.

O casal participante deste estudo foi selecionado de um projeto maior intitulado "Transição para a parentalidade e a relação conjugal no contexto da reprodução assistida: da gestação ao primeiro ano de vida do bebê - REPASSI". Esse projeto acompanhou diversos casais que conceberam através de diferentes TRA ao longo de três momentos distintos: no terceiro trimestre da gestação, no terceiro mês de vida dos bebês e ao completarem um ano. Os casais foram contatados por meio do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia de um hospital público de Porto Alegre. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do referido hospital. Para o presente estudo, foi selecionado o único casal que utilizou ovodoação e participou de todas as etapas da pesquisa.

Delineamento, instrumentos e procedimentos

Trata-se de um estudo de caso único (Stake, 2006), de caráter longitudinal. A partir de repetidas leituras do material, foi construído um relato clínico (Mordcovich, 2011; Safra, 1993; Sonego & Lopes, 2016), que se tornou uma ferramenta importante para elaborar conteúdos não expressos em palavras, ou seja, aspectos inconscientes e transferenciais que ocorreram ao longo das entrevistas tanto por parte dos entrevistados quanto do próprio pesquisador e que são fundamentais para a compreensão do fenômeno. O relato clínico possibilita contar uma experiência que permite ordenar os acontecimentos a partir de novas relações e significações, pois ele é a narração de algo já vivenciado pelo sujeito (Ferrari, 2011).

A coleta de dados foi realizada nas três fases da pesquisa por meio de entrevistas estruturadas, realizadas de forma semidirigida, sobre a experiência da maternidade e sobre a experiência da paternidade, desenvolvidas para a mãe e o pai, respectivamente, e realizadas em cada fase específica do estudo longitudinal. Cabe salientar que a mãe e o pai dos bebês foram entrevistados individualmente na residência do casal. Na gestação, a entrevista continha questões que buscavam investigar como estava sendo a experiência da gravidez, quais eram as expectativas em relação aos bebês e à maternidade/paternidade, a percepção sobre o cônjuge nessa etapa, as relações sociais do casal, e a experiência da reprodução assistida. No terceiro mês e no primeiro ano de vida, as entrevistas buscaram investigar a experiência da maternidade/paternidade, o cotidiano com os bebês, a percepção sobre o cônjuge nessa etapa, a rede de cuidados aos bebês, e se havia algum impacto da reprodução assistida nas vivências do casal. As entrevistas com o casal do presente estudo foram realizadas entre 2008 e 2010. Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes e, posteriormente, transcritas na íntegra para análise.

Um relato clínico foi construído acompanhando o processo de transição para a maternidade e paternidade ao longo do tempo, em quatro eixos cronológicos: a história do casal e o processo de ovodoação; a gestação dos bebês; os três primeiros meses de vida dos bebês e; o primeiro ano de vida dos bebês. A discussão dos dados foi realizada a partir de uma perspectiva psicanalítica baseada nesse relato com o objetivo de compreender o fenômeno investigado.

 

Resultados

A história do casal e o processo de ovodoação

O casal se casou quando Lucios estava com 20 anos e Elvira, com 24. Durante os primeiros 12 anos de casados, não pensaram em ter filhos. Nesse período, se preocuparam em se estabelecer profissionalmente, construir uma casa e aproveitar a vida. Quando Elvira estava com 37 anos, o casal decidiu tentar engravidar, pois: "A Elvira quer ter filhos e eu também acho que a vida não está completa sem ter esta experiência" (Lucios, julho de 2008). Após algum tempo tentando engravidar sem êxito, Elvira fez alguns exames médicos e descobriu que tinha as trompas obstruídas, o que dificultaria a descida dos óvulos e a correta implantação do embrião no útero: "Eu tinha uma fantasia que era muito fácil, que ia dar tudo certo, muito rápido, né? Ah, e que não era problemático, mas é" (Elvira, julho de 2008).

Inicialmente, o casal buscou a assistência de uma clínica de fertilização onde foi feito o procedimento de indução de ovulação através de hormônios e a fertilização in vitro, que resultou em problemas mamários para Elvira, os quais pensaram tratar-se de um tumor, mas era um tecido denso benigno. Porém, com isso, ela não poderia mais tomar grandes cargas de hormônios, tendo sido relatada como uma experiência muito difícil para ambos os membros do casal.

Após dois anos, o casal tentou novamente engravidar, buscando em diferentes clínicas de fertilização uma alternativa para o problema de infertilidade que enfrentavam, pois, a princípio, a ideia da ovodoação não foi bem recebida por eles: "Mas que horror... não vamos fazer uma coisa dessa... isso é uma coisa muito estranha" (Elvira, julho de 2008). Porém, a ideia foi sendo elaborada pelo casal, ao considerarem que a mãe ainda poderia gestar os filhos: "É uma adoção, com a vantagem de que eu vou poder vivenciar uma gestação e eu vou ter mais controle sobre uma série de fatores, elas já vão estar sendo esperadas e bem cuidadas desde o útero" (Elvira, julho de 2008), enquanto o pai poderia manter o vínculo genético: "E propiciou ao meu marido, que não tem nenhum problema de fertilidade, que ele possa então ter um filho pelas vias biológicas" (Elvira, julho de 2008). Assim, fizeram o tratamento com óvulos doados, que resultou em uma gestação múltipla.

A gestação dos bebês

Após os procedimentos de fertilização, o casal buscou tratar o assunto da ovodoação de forma aberta e natural com os familiares e amigos. Não tentaram esconder o fato, embora tivessem sido aconselhados a fazê-lo, por um dos médicos. "Eu não vou botar no jornal, não vou contar para todo mundo, mas se uma pessoa me perguntar, eu vou dizer: 'Olha, é uma ovodoação, eu vou te dizer como é que é...'" (Lucios, julho de 2008). No entanto, o casal relatou que a notícia da ovodoação foi recebida com certo estranhamento pelas famílias de origem de ambos: "Eles estranham um pouco a coisa da ovulação, né? Porque isso ainda é um tabu pras pessoas, né?" (Elvira, julho de 2008). Posteriormente, a ideia foi sendo aceita, principalmente pela família de Lucios, pois manteve-se o vínculo genético com eles: "Como não teve uma espermodoação, vamos dizer assim, não faz muita diferença" (Lucios, julho de 2008).

Porém, em alguns momentos, o casal passava por situações de constrangimento com os comentários dos familiares e dos amigos. Por exemplo, Lucios temia que as pessoas pudessem constranger sua esposa ao comentarem sobre as características físicas dos bebês porque seria impossível que eles possuíssem as características da mulher: "As pessoas esquecem, às vezes, daí é complicado. Tu mostra uma ecografia e as pessoas dizem: 'Ah, mas esse daqui é o nariz da Elvira!', como? Não pode. Isso é uma impossibilidade. Então, isso me preocupa em relação a ela" (Lucios, julho de 2008).

Outra situação constrangedora também relatada por Lucios ocorreu em seu ambiente de trabalho, relacionada à sua ligação genética com os filhos e a própria parentalidade: "Eu tenho um sócio. E quando soube que deu trigêmeos: 'Ah, tu não teve nem o trabalho, nem são teus filhos, foi o médico que fez.' então é uma coisa que me magoa" (Lucios, julho de 2008).

Ainda durante a gestação dos trigêmeos, Lucios (julho de 2008) pensava em como contaria para os filhos sobre a origem deles, futuramente, e como responderia aos questionamentos das crianças sobre a ausência de características físicas materna em seus corpos: "Não vou dizer para os meus filhos quando eles tiverem cinco, seis anos vou dizer quando eles tiverem condições de entender, quando eles vierem me perguntar. Vai ser difícil, provavelmente" e

Mas e com dez anos, e com onze, como é que vai ser a história que tu vai explicar? O que que tu vai dizer? 'Porque que eu não sou parecido com a mãe?' Ou se acho que sou, ou se um primo maldoso 'Ah, mas tu nem é filho da tua mãe!' Como é que vai ser isso? (Lucios, julho de 2008).

Além dessas questões, durante o período gestacional dos bebês, inúmeras fantasias perpassaram o psiquismo do casal. Algumas delas se referiam à aparência e ao estado de saúde da doadora: "Seria uma pessoa saudável, uma pessoa com alguns aspectos físicos parecidos, algumas coisas comigo" (Elvira, julho de 2008). Lucios contou que o médico questionou se a doadora poderia ser uma pessoa de pele extremamente branca e essa brancura da doadora permeava o imaginário do casal: "A moça tem problema, entre aspas, né 'A doadora é muito branca, né, tem algum problema para vocês?' Não, não tem nenhum até porque... Mas isso foi criando uma fantasia na gente, o que que seria este 'muito branca', né?" (Lucios, julho de 2008). Fantasiaram ainda sobre o encontro com a doadora na sala de espera: "Houve este cruzamento e a Elvira me falou: 'Mas era uma pele muito branca!', e aí se criou uma expectativa" (Lucios, julho de 2008).

Outras fantasias que se fizeram presentes eram sobre o motivo dessa mulher ter feito a doação dos seus óvulos:

O que eles me contaram é uma história bonita, espero que seja verdade, né? Que essa pessoa, ela não tem dificuldade pra engravidar, mas o marido tem, né? Ah, então... Se faz várias tentativas e lá pelas tantas se usa o recurso de ela fazer doações porque a gente divide o tratamento, né? O custo do tratamento. Então, ah, que essa pessoa faz esse gesto, então num ato de amor, né? De tentar também encontrar ali a possibilidade da sua maternidade (Elvira, julho de 2008).

Imaginavam, também, como seria a aparência e o comportamento dos filhos já que, geneticamente, eles teriam somente o material do pai: "Vai ter um pouco da personalidade minha, um pouco da mãe genética deles, vai ter um pouco da nossa personalidade como casal, da mãe deles né" (Lucios, julho de 2008) e:

Eles podem ser loiros, podem ser morenos, porque o Lucios tem cabelo preto, mas na família dele tem pessoas loiras com olhos claros, né? A minha doadora tem o perfil parecido com o meu. Então pode se apresentar de várias formas daí, né? É um mistério, vamos ter que ver quando vier, né? (Elvira, julho de 2008).

Os três primeiros meses de vida dos bebês

Após o nascimento dos filhos, o casal sentia que a ovodoação ainda marcava a experiência da parentalidade, com questionamentos da mãe sobre o seu lugar e preocupações de Lucios que desejava proteger a esposa:

A ovodoação é mais complicada. Ela tem uma repercussão, acho que permanente na nossa vida [..] sem dúvida vai repercutir na paternidade. Porque nesse sentido que dá... Mais cuidados, né? O que que tu vai dizer, o que que tu não vai dizer, né? E como tu protege a mãe, como... Tinha um trabalho muito... Ela disse assim 'Ah, eu sou, eu sou mãe dessas crianças', né? Eu disse 'Isso é uma coisa óbvia pra mim', né? E... Então... É uma coisa... Que era o problema da ovodoação (Lucios, janeiro de 2009).

Outra preocupação do pai, a respeito da aparência das crianças, permaneceu após o nascimento: "A gente tem um pouco mais de cuidado, cuidados de não, né? Por exemplo, eu tinha uma coisa no começo 'Digo que é parecida ou digo que não é?'" (Lucios, janeiro de 2009).

O pai evidenciou os temores da mãe de não ser reconhecida por não possuir um vínculo genético, de forma que ela se esforçava muito para se colocar nesse lugar de mãe, a partir dos cuidados com os bebês:

Ela queria ser mais mãe do que ela já é, entendeu? Porque tinha uma coisa no íntimo dela que dizia assim: 'Bom, já que esses genes não são meus, eu tenho que fazer mais do que as mães', vamos dizer assim, de quem também tem os genes dos filhos, 'Pra jamais passar na mente dessas crianças qualquer dúvida em relação a mãe delas', né? E aí, ela assim, não só se esforçava em fazer mais do que o necessário, como excluía qualquer outro (Lucios, janeiro de 2009).

Apesar dessas preocupações, o pai relatou um sentimento muito positivo em relação ao processo de ovodoação:

Naqueles primeiros dias de comemoração, né? Tu fica pensando 'Valeu a pena tudo', né? É essa a sensação que eu... Eu imagino que quem tenha filho naturalmente, não tenha esse, esse 'Valeu a pena tudo'. Eu fico, passa o filme, né? A gente lembra da Elvira se submetendo ainda a exames e eu angustiado (Lucios, janeiro de 2009).

Pode-se pensar que ele também carregava alguma ambiguidade, pois se questionava repetidas vezes se realmente teria valido a pena tudo.

Apesar desses questionamentos, segundo ele:

Aconteceu um pequeno milagre, que a gente acha que é... Um O Enzo é parecido comigo, fisicamente. A Valentina é [parecida com] as meninas da minha família [...] E a Oyá tava meio, né? Sem parecência... Mas daí... [...] Não sei se a gente quer enxergar essa parecência, ou se realmente é, mas todo mundo falava como é que parecia 'Ah, essa aqui é, é a da Elvira. É parecida com a Elvira'. E daí realmente ficou. Ela ficou... É, realmente, ela é parecida com a Elvira, porque ficou, porque ficou bom, né? Que todo mundo tem, né? E esse negócio da parecência, vamos dizer assim, é um negócio, que, que, que é importante, né? (Lucios, janeiro de 2009).

Assim, a semelhança física da filha parece contribuir para reafirmar o lugar da mãe ao proporcionar o reconhecimento de uma relação entre elas. E, segundo Elvira, as semelhanças que comumente são atribuídas à genética, também podem ser construídas através dos relacionamentos afetivos: "Porque as parecências se dão também no convívio, né? A Oyá mesmo é muito parecida comigo. Todo mundo fala disso quando, quando enxerga" (Elvira, janeiro de 2009).

O casal relatou ainda algumas situações, que ocorreram durante as visitações a eles e aos bebês, em que as pessoas faziam comentários que os constrangiam relembrando a todo momento que eles haviam realizado o procedimento de ovodoação e que não havia uma ligação genética entre a mãe e os filhos. Por exemplo, quando alguns amigos visitaram e: "A família disse pro Lucios: 'Lindos os teus filhos'. Tudo bem, né? Mas daí ela entrou em constrangimento e olhou pra mim e 'Os teus também', né? Então... Eu nem tinha dado esse tom, né? Pra coisa" (Elvira, janeiro de 2009). Ou quando uma prima de Lucios foi visitar e

Ela olha pra Oyá e assim: 'Meu Deus! Ela é a tua cara. Como é que pode?'. Mas, assim, então essas coisas de surpresa e de... Que não precisaria ter, né? Mas aparece aqui e ali. Das pessoas não se situar muito, ter uma dificuldade de, de como lidar com isso, como administrar, né? (Elvira, janeiro de 2009).

E ainda quando um amigo comentou durante uma festa:

Ah, Elvira, os teus sobrinhos', filhos dos irmãos dela, 'são muito mais parecidos contigo do que os teus filhos', né? Alguém que não sabe da história, né? 'Ah, com exceção da Oyá, que a Oyá parece que é muito parecida contigo'. Então... Estamos indo nisso, né? (Lucios, janeiro de 2009).

Os comentários das pessoas pareciam acarretar sofrimento para Elvira e intensificar seus questionamentos sobre seu lugar como mãe, aos quais ela buscava responder tentando reafirmar para si que era mãe dessas crianças:

Então, que falem, se alguém se atrapalhar, a atrapalhação é sua, se alguém falar alguma coisa, a fala é sua. Ah... Eu, o que eu preciso ter pra mim, ter pra esses filhos, é isso, né? Então eles têm uma mãe e eu sou a mãe deles, né? Então isso ficou bem, né? Ah... Porque é fundamental que seja dessa forma, né? Se não, nós teríamos sim um problema sério aí, né? Tanto pra mim como pra eles, né? Então tá bem (Elvira, janeiro de 2009).

O primeiro ano de vida dos bebês

Ao longo do primeiro ano dos bebês, foi possível observar a conquista da maternidade por Elvira. Inclusive, fica evidente a forma como ela passou a lidar melhor com a questão da ovodoação, como parte da origem dos bebês:

Eu acho que eu sou uma mãe muito afetiva, ahn, eu adoro essas criaturinhas, a gente conversa muito né, eu conto muitas coisas pra eles, né, contei até da origem deles, né, ahn, eu tô muito tranquila em relação a essa forma que se deu da maternidade (Elvira, janeiro de 2010).

Lucios relatou que apesar de os bebês terem traços físicos herdados geneticamente dele, uma das meninas se apropriou de comportamentos e gestos da mãe, identificando-se com ela e se tornando parecida por outras vias:

Fazendo essa observação em relação aos parecidos, né, naturalmente que os filhos são parecidos comigo, né, porque então, com a minha mulher eles não tem, eles tem alguns trejeitos já, né, e são muito pequeninhos, né, mas a Oyá, pontualmente ela é muito parecida com a mãe dela em algumas coisas, em alguns jeitos de falar, ela já, pegou o jeito da mãe dela em algumas coisas (Lucios, janeiro de 2010).

O que a mãe também reconhece, parecendo ficar satisfeita com o fato, ao dizer: "A Oyá por algum caminho tá muito parecida comigo" (Elvira, janeiro de 2010).

Apesar de buscar uma forma de vinculação com as crianças, Elvira parece usar da sua falta de vínculo genético para se ausentar em alguns momentos, ao responsabilizar os maus comportamentos dos bebês como herança genética do marido e de sua família:

Esses dias ele: 'Mas de quem é que saiu o gênio dessa menina?', as tuas parentes, eu disse pra ele. Essa mulherada braba da tua família, eu disse pra ele, eu não tenho nada a ver com isso (risos). Isso é a genética, tá no sangue! Né, então, mas claro que deve ter a questão genética (Elvira, janeiro de 2010).

Além de já ter destacado a semelhança com a personalidade da esposa, Lucios parece projetar em Oyá características físicas da esposa em uma tentativa de estreitar a ligação dela com os filhos: "Eu vejo eles cada vez mais parecidos com a minha mulher, né, com algumas coisas, a Oyá muito, né, tem as pernas grossas que nem a minha mulher e o jeito assim, ela é bem parecida" (Lucios, janeiro de 2010).

Apesar de os bebês já estarem com um ano de vida, ainda se fez presente a anunciação de que Elvira não era "totalmente" a mãe deles. As pessoas se espantavam como Oyá era parecida com a mãe, ao mesmo tempo que revelavam sua incredibilidade com o fato, exaltando a não maternidade genética:

Eu me irritava no início com as pessoas, né, porque a gente não fez segredo dessa forma que a gente, então, fez esses filhos, né, e algumas pessoas diziam: 'Mas meu Deus, como é que pode, como ela é parecida contigo!'. A Oyá, né. Eu disse: 'Ai, é minha filha', eu dizia brincando, né, mas me incomodava, porque era um assinalamento constante disso (Elvira, janeiro de 2010).

Sobre os comentários dos outros, Lucios revelou que o casal se arrependeu de ter espalhado a notícia de que fariam uso de óvulos doados, pois poderiam ter evitado tantas situações nas quais os comentários insensíveis sobre o fato trouxeram sofrimento a eles: "Foi óvulo doação, então a gente comentou, talvez pra umas vinte pessoas ou trinta, né, depois a gente viu que isso foi um equívoco, né, porque não dá, a gente poderia reduzir esse grupo a alguns familiares" (Lucios, janeiro de 2010).

 

Discussão

O casal atravessou diversos desafios para realizar o desejo da parentalidade. Depararam-se, inicialmente, com a infertilidade cujo diagnóstico pode provocar uma interrupção no projeto de vida do casal, problemas nos relacionamentos sociais e familiares, além de sentimentos como tristeza, impotência e culpa (Domínguez, 2002; Palacios & Jadresic, 2000). A transformação na vida do casal e os sentimentos provenientes desse diagnóstico podem aumentar a chance de insucesso da concepção (Faria, Grieco, & Barros, 2012).

Apesar de ter passado pelas TRA, tendo seu corpo invadido por instrumentos e hormônios em superdosagens, as quais originaram consequências profundas, Elvira não desistiu de ter seus bebês. O sonho pela maternidade era grandioso para ela, pois se mostrou disposta a sofrer as consequências do tratamento e possíveis perdas para se tornar mãe. Embora houvesse uma resistência inicial, porque seus filhos não teriam seu material genético, Elvira viu na doação de óvulos um ato de amor da doadora e esse sentimento parece ter contribuído positivamente na transição para maternidade de Elvira. Segundo pesquisa da European Society for Human Reproduction and Embryology (2017), em países que permitem a remuneração pela doação de gametas, o principal motivo que leva as mulheres a doar permanece relacionado ao altruísmo enquanto o dinheiro pela doação aparece com menor incidência.

Além disso, apesar da literatura (Montagnini, et al., 2012, Sonego, Dornelles, Lopes, Piccinini, & Passos, 2016) ter apontado um apagamento da experiência de reprodução assistida, em que os casais preferem não falar sobre o tratamento após o nascimento do filho, o casal do presente estudo não fez segredo sobre terem recorrido às TRA e a ovodoação apesar de, posteriormente, terem se arrependido de contar o fato às demais pessoas em virtude dos comentários inapropriados que causaram sofrimento ao casal em determinados momentos. Com relação à revelação aos filhos, Lucios, principalmente, apresentava diversas dúvidas sobre como contar a origem dos trigêmeos quando esses fossem maiores, revelando a angústia e o desamparo frente a esse contexto tão diferenciado de parentalidade. Segundo Perelson (2013), o desamparo dos pacientes das TRA, quando há doação de óvulos, revela-se principalmente sobre a própria condição ou a da (o) parceira (o) para ocupar um lugar de mãe ou pai na ausência de ligação genética, ou sobre a dúvida quanto a contar ou não para os filhos a forma como foram concebidos, ou, ainda, sobre o lugar que a doadora de óvulo terá na história dessa família. Além disso, a preocupação de que alguém poderia contar aos filhos sobre o uso de ovodoação no futuro está de acordo com achados de Applegarth et al. (2016) sobre os motivos da revelação aos filhos sobre suas origens. As principais razões para a revelação encontradas pelas autoras foram o fato de outras pessoas já saberem e o medo de que a criança saiba por outras fontes, além da concepção de que segredos familiares são prejudiciais, o reconhecimento de que a criança tem direito a conhecer suas origens, e a vontade de ser honesto com o filho.

Evidenciou-se, no decorrer do estudo, que os questionamentos sobre a maternidade de Elvira e sua atuação como mãe dos trigêmeos não cessaram com o crescimento dos bebês. Ela era constantemente lembrada de que sua participação enquanto mãe era voltada à função de cuidado e qualquer semelhança física com as crianças era exaltada com indignação e incredulidade pelas pessoas que sabiam da ovodoação. Salienta-se que a definição de parentalidade vai além da participação genética, pois não basta ser genitor nem ser designado como pai ou mãe, é necessário "se tornar" um pai ou uma mãe, o que se faz por meio de um processo profundo e difícil envolvendo níveis conscientes e inconscientes do psiquismo (Houzel, 2004).

A manutenção do laço consanguíneo com os filhos, exaltado através da aparência física entre os genitores e seus descendentes, parece ser uma preocupação cultural que ainda valoriza esse tipo de ligação. As preocupações do casal com relação à genética corroboram os achados de Schneider e Donelli (2019), que encontraram, em gestantes que conceberam com o auxílio de ovodoação, fantasias relativas à semelhança física que o bebê teria com a doadora e a falta de semelhança física consigo mesma. Para os pais, ver algumas características de si mesmos nos filhos é, simbolicamente, ver a imortalidade do próprio eu (Ribeiro, 2004). Além disso, Imrie et al. (2020) demonstraram que a semelhança física da criança com os pais ou com familiares contribuía para o sentimento de que essa criança realmente pertencia a essa família.

Apesar de Elvira não ter a participação genética, Lucios propiciava à mulher aproximar-se dessa representação mesmo que fantasiosa. Além disso, o comportamento de Oyá também contribuía para tornar semelhantes mãe e filha. Desta forma, Imrie et al. (2020) destacam a influência da mãe para além da genética, contribuindo na personalidade, no desenvolvimento, nos valores e interesses através da interação com o bebê.

A experiência da parentalidade, no contexto da ovodoação, mostrou-se permeada de fantasias, expectativas, sentimentos e frustrações, como as demais parentalidades situadas em outros contextos. No entanto, alguns aspectos singulares como os cuidados exacerbados de Elvira com os filhos na busca do seu reconhecimento como mãe por ela própria e o sofrimento ocasionado pelas pessoas ao ser lembrada que ela não tinha vínculo genético com seus filhos podem ser mencionados como particulares desse contexto. Esse dado está de acordo com a literatura sobre as inseguranças das mães sobre o seu próprio lugar quando não há o vínculo genético com o filho (Imrie et al., 2019 Imrie et al., 2020). Além disso, a trajetória do casal ao longo da parentalidade foi marcada por intensas dificuldades e questionamentos que revelaram, de maneira inconsciente, a ambiguidade do "valeu a pena tudo" relacionado ao processo de ovodoação e de fertilização na trajetória da realização do desejo de se tornarem pais.

Destaca-se que este estudo buscou aprofundar e compreender o fenômeno a partir dos aspectos singulares de um único caso, de forma que não é possível generalizar os achados. Além disso, o caso não foi investigado além de um ano de vida dos bebês, o que poderia enriquecer mais o estudo e fornecer dados importantes relacionados a algumas questões sobre a revelação do uso de ovodoação para os filhos, e como eles e a família lidaram com essa situação. Ainda, os autores não participaram da coleta de dados e da transcrição das entrevistas, acessando os dados dessa fase do projeto posteriormente. Apesar disso, acredita-se que esse pode ajudar a compreender a experiência da parentalidade no contexto da ovodoação, ao demonstrar várias nuances das vivências de um casal contextualizando-as e aprofundando sua discussão.

Os dados obtidos revelam uma realidade dos casais que recorrem à ovodoação ainda pouco conhecida, e demonstram a necessidade de que sejam realizados estudos prospectivos sobre a temática, principalmente, na área da Psicologia. Com isso, pode-se expandir o conhecimento sobre o tema para que sejam desenvolvidas intervenções e legislações específicas que assegurem uma melhor experiência aos pais e aos bebês concebidos pela ovodoação. A presença do sofrimento destacada no estudo deve ser considerada e acolhida pelas equipes de saúde que atuam junto às clínicas de reprodução assistida para que possa ser feito o manejo e os encaminhamentos adequados dos pacientes. O estudo de Applegarth et al. (2016) demonstrou que metade das mães e pais que revelaram ao filho sobre suas origens recorreram a um profissional de saúde mental devido às suas ansiedades e ambivalências frente ao tema, demonstrando a necessidade de que profissionais, como os psicólogos, conheçam a realidade dessas famílias para que estejam preparados a atendê-las, pois se tornam cada vez comuns.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Henrique Abe Ogaki
hikeabe@gmail.com

Recebido em: 23/05/2020
Aceito em: 21/07/2020

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