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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora jan./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.29928 

ARTIGOS

 

Uma proposta metodológica para Análise do Discurso baseada na hermenêutica de Paul Ricoeur

 

A methodological proposal for discourse analysis based on the hermeneutic of Paul Ricoeur

 

Una propuesta metodológica para el análisis del discurso basada en la hermenéutica de Paul Ricoeur

 

 

Caetano da Providência Santos DinizI; Adelma do Socorro Gonçalves PimentelII

IUniversidade Federal do Pará (UFPA). Email: caediniz@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0619-0664
IIUniversidade Federal do Pará (UFPA). Email: adelmapi@ufpa.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0048-4976

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo apresentar uma proposta metodológica de análise do discurso baseada na fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur. Discutiu-se seu conceito de interpretação e suas implicações para a análise do discurso. Não obstante Paul Ricoeur tenha enfatizado em sua obra a produção escrita, destacou-se as especificidades das narrativas orais produzidas nos contextos de pesquisa tendo por base as relações interpessoais entre colaboradores e pesquisadores e elaborou-se um instrumento intitulado "Fluxograma para Análise Fenomenológica do Discurso em Paul Ricoeur", composto de quatro etapas, o recorte do texto, as marcas linguísticas, os sentidos vivenciais e a compreensão hermenêutica, com o objetivo de auxiliar o pesquisador na construção de sentidos tendo como base os discursos produzidos na interação com os participantes em pesquisas qualitativas.

Palavras-chave: Fenomenologia; Hermenêutica; Fluxograma; Sentidos.


ABSTRACT

This study aimed to present a methodological proposal for discourse analysis based on Paul Ricoeur's hermeneutic phenomenology. This paper discusses the concepts of interpretation and its implications for discourse analysis. Although Paul Ricoeur emphasized the written production in his work, the specificities of the oral narratives produced in the research contexts were highlighted based on the interpersonal relationships between collaborators and researchers. An instrument was elaborated and denominated "Flowchart to Phenomenological Discourse Analysis In Paul Ricoeur", formed by four steps, the extract of the text, the language marks, the senses of experience and the hermeneutic comprehension, in order to assist the researchers in the construction of meanings on the speeches produced during the interaction with the participants in qualitative researches.

Keywords: Phenomenology; Hermeneutic; Flowchart; Meanings.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo presentar una propuesta metodológica para un Análisis del Discurso basada en la fenomenología hermenéutica de Paul Ricoeur. Fueron discutidos sus conceptos de interpretación y sus implicaciones para el análisis del discurso. Aunque Paul Ricoeur enfatizó la producción escrita en su trabajo, se resaltaron las especificidades de las narraciones orales producidas en los contextos de investigación, basadas en las relaciones interpersonales entre los colaboradores e investigadores y fue elaborado un instrumento llamado "Diagrama de Flujo para el Análisis Fenomenológico del Discurso en Paul Ricoeur" formado por cuatro etapas, el recorte de texto, las marcas lingüísticas, los sentidos experienciales y la comprensión hermenéutica, para ayudar al investigador en la construcción de sentidos de los discursos producidos en la interacción con los participantes en las investigaciones cualitativas.

Palabras clave: Fenomenología; Hermenéutica; Diagrama de flujo; Sentidos


 

 

Neste artigo, discute-se alguns pontos da fenomenologia hermenêutica em Paul Ricoeur (1913-2005) no que se refere à análise do discurso, buscando-se apresentar sua compreensão do processo de construção de sentidos a partir dos recursos da linguagem e da relação com o outro. Não se trata de uma aplicação literal do pensamento do autor em relação ao objeto de estudo em foco já que este dedicou especial atenção à interpretação das obras literárias (Ricoeur, 2017). Trata-se, antes, de um esforço de aproximação entre seu pensamento e as pesquisas qualitativas de campo cujos resultados se apresentam geralmente em forma de textos transcritos das interações entre pesquisador e colaboradores. Acredita-se que Ricoeur, ao imprimir premissas existenciais em sua hermenêutica, oferece ao pesquisador uma visão como Dasein, ou ser no mundo, que envolve diversas dimensões como o discurso, o comportamento não verbal, a relação com os pares, a relação com o pesquisador e assim por diante.

Tendo como ponto de partida o pensamento de Paul Ricoeur apresenta-se neste artigo um instrumento para auxiliar o pesquisador, o Fluxograma para Análise Fenomenológica do Discurso. Trata-se de uma atualização do modelo de Pimentel (2013), com o objetivo de aprimorá-lo. Procurou-se elaborar uma proposta metodológica capaz de auxiliar os pesquisadores que trabalham com discursos e que precisam escolher uma forma de empreender suas análises entre tantas nos diversos escopos epistemológicos e métodos disponíveis, oferecendo-lhes uma alternativa possível às investigações que se enquadrem no escopo da análise de discursos produzidos na interação. Ao final do artigo, apresenta-se um exemplo de aplicação do fluxograma, o qual foi utilizado como no trabalho conduzido por Diniz (2019) em sua pesquisa de doutorado.

 

A fenomenologia hermenêutica

Ricoeur desenvolve uma fenomenologia intrinsecamente relacionada à hermenêutica (termo de origem grega que significa "interpretar"), definindo-a como "a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos" (Ricoeur, 2011, p. 24). Enquanto fenomenólogo ele afirma que "Ao invés de nos perguntarmos como sabemos, perguntaremos qual o modo de ser desse ser que só existe compreendendo" (Ricoeur, 1990, p. 30), uma vez que a primeira função do compreender seria a de nos orientar numa determinada situação. Em consonância com Heidegger (2003), segundo o qual "se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo" (p. 12), ele acredita que a hermenêutica desenvolve um papel fundamental ao pôr em destaque uma interpretação que não se resume na compreensão do que é dito, uma vez que não só o dito como também o não dito devem ser alvo da atenção do pesquisador (Ricoeur, 1990).

A linguagem é efetuada, portanto, enquanto discurso e este enquanto evento e significação. Discurso enquanto evento porque algo acontece quando se fala. Tal como um evento, o discurso é temporal. Nele, a língua se ultrapassa enquanto sistema atemporal de símbolos e códigos, pois ele ocorre no presente, além de possuir um locutor e de se remeter a algo ou a alguém. Para Ricoeur (1990), somente o discurso possui o mundo e o outro ao qual se dirige, de forma que "o evento é o fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo, que pode travar-se, prolongar-se ou interromper-se" (p. 46). Enquanto significação, o discurso ultrapassa a si mesmo a fim de ser compreendido, pois, ainda que se realize enquanto evento, a linguagem em sua intencionalidade produz significações que podem ir além do próprio evento, de forma que o discurso seria efetuado como evento, mas compreendido como sentido (Ricoeur, 1990).

Esta compreensão fornece às pesquisas qualitativas um auxílio considerável para organizar e analisar os relatos dos colaboradores com a finalidade de construir uma compreensão mais autêntica possível dos sentidos dados por eles às próprias experiências e se articula à concepção fenomenológica de que os sentidos atribuídos pelo sujeito às suas experiências não são o reflexo exato dos fatos. Para o Ricoeur (2011), "O compreender não se dirige, pois, à apreensão de um fato, mas à de uma possibilidade de ser" (p. 40). Ele considera a fenomenologia-hermenêutica um avanço na superação dos pressupostos positivistas sobre a pesquisa, uma vez que "A ideia de que existe sentido fora da descrição dos factos e da verificação empírica é uma conquista considerável em relação ao cânone da epistemologia positivista" (Ricoeur, 2014, p. 47-48).

A interpretação dos enunciados se daria sobre as estruturas da língua que sinalizam sentidos nem sempre claramente expressos (Ricoeur, 2017). Ela vai além dos registros linguísticos propriamente ditos e consiste "em reconhecer qual a mensagem relativamente unívoca que o locutor construiu apoiado na base polissêmica do léxico comum" (Ricoeur, 1990, p. 19). O fenomenólogo, embora trabalhe com enunciados, não tem como objetivo último clarificá-los. Em última análise, ele busca "clarificar a essência das vivências" (Ricoeur, 2014, p. 150). Com base nisso, pode-se entender que a interpretação seria sempre uma possibilidade de compreensão das vivências do interlocutor, jamais a última palavra (Gomes, 2018).

No processo de interpretação, um primeiro momento se caracteriza pela objetividade, por se concentrar sobre os caracteres linguísticos, e pela negatividade, por indicar os limites da compreensão, uma vez que seu foco são os sentidos das palavras que fazem parte da língua. Conforme Ricoeur (1990), "Trata-se de atingir a subjetividade daquele que fala, ficando a língua esquecida" (p. 2), atingindo-se os próprios atos de pensamento que produziram o discurso. O autor (Ricoeur, 2017) propõe três níveis do discurso da ação possíveis de serem identificados no trabalho de análise. O primeiro, conceitual, refere-se à elaboração das noções ou categorias como a intenção, a escolha, o motivo e assim por diante, as quais dão sentido à ação. O segundo, proposicional, refere-se à forma lógica dos enunciados em que dizer é fazer tal como acontece nas declarações e promessas. E o terceiro, discursivo, refere-se ao nível mais elevado e consiste na lógica da ação, nas estratégicas, na articulação dos acontecimentos.

Além do discurso da ação e considerando a teoria do Speech-Act de Austin (1975) e Searle (1981), o autor (Ricoeur, 2017) identifica os atos do discurso, dividindo-os também em três níveis. O primeiro, o ato locucionário (ou proposicional), refere-se ao ato de dizer; trata-se da mensagem, o que está sendo dito; existe um sujeito, um predicado e frequentemente um destinatário. O segundo, o ato ilocucionário, refere-se àquilo que fazemos ao dizer; trata-se da força com que digo algo e que o caracteriza como um desejo, um pedido, uma promessa, uma ordem e assim por diante. Ele se reveste de um determinado valor que pode ser identificado por registros gráficos como "!", "..." ou pela mímica e gestos no discurso oral. E o terceiro, o ato perlocucionário, refere-se àquilo que fazemos pelo fato de falar; trata-se dos efeitos provocados como sentimentos, impressões e reações tais como importunar, dissuadir e desanimar. É o discurso enquanto estímulo.

Através do discurso, é possível dar sentido às próprias experiências e, na interação com o outro, proporcionar-lhes uma compreensão possível. Conforme Ricoeur (2017) a experiência vivida "permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação, torna-se pública. A comunicação é, deste modo, a superação da radical não comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida" (p. 30).

 

Fluxograma para análise fenomenológica do discurso em Paul Ricoeur

Ricoeur (2017) privilegia o texto escrito e a linguagem como obra ao afirmar que a "hermenêutica é interpretação orientada para textos e que estes são, entre outras coisas, exemplos da linguagem escrita" (p. 41). Para o autor, na intenção de fixar o discurso, estabelecemos o alfabeto, o léxico e a gramática, uma ação necessária porque o discurso, enquanto evento, esvanece-se. Nesse sentido, o que a escrita fixa não é o evento da fala, mas o seu "dito" e aqui fica evidente o caráter noético desta inscrição. Para Ricoeur (2017), noético se refere àquilo que é intencional e que seria responsável por possibilitar a comunicabilidade do psíquico, compartilhando o vivido de forma inteligível e acessível ao outro. O que está em jogo, portanto, é a intenção no falar ou a significação do evento linguístico e não o evento enquanto evento (Gomes, 2018). Disso resulta que, no ato de falar, as interpretações subjetivas envolvidas, as memórias e os esquecimentos, entre outros, formam a narrativa do colaborador, podendo significar muito mais do que um simples relato de fatos. Para Ricoeur (2017), a "linguagem é a exteriorização graças à qual uma impressão é transcendida e se torna uma expressão ou, por outras palavras, a transformação do psíquico em noético" (p. 34).

Ricoeur (2017) discute as implicações do distanciamento entre o autor da obra literária e seu intérprete, como, por exemplo, a autonomia que o texto adquire com relação ao seu autor uma vez escrito e a sua dependência à interpretação feita pelo leitor, coisas que não acontecem quando colaborador e pesquisador estão em contato direto, interagindo e interatuando na produção do discurso. Para o autor, o diálogo oferece aos interlocutores um enquadramento próprio à situação em curso, o que não aconteceria no caso da escrita, de forma que "a coisa escrita está relativamente liberada à condição dialogal do discurso".

O contato face a face promovido pelas entrevistas individuais e pelos encontros de grupo atribui ao material coletado características diferentes daquelas típicas do texto escrito, tais como o compartilhamento do tempo e do espaço, o gestual, o efeito emocional provocado, o tom de voz e o ritmo da fala, dentre outros (Barreiros & Morato, 2016). A fim de considerar a situação empírica das pesquisas qualitativas, procurou-se aproximar a experiência vivida (na inter-relação entre pesquisador e colaboradores) à interpretação fenomenológico-hermenêutica proposta por Ricoeur. Este trabalho se dá desde o momento da interação até o momento em que o pesquisador se debruça sobre o texto escrito, preferencialmente transcrito do discurso oral produzido na interação, quando passa a fazer os recortes que considerar pertinentes.

Com este objetivo, revisou-se o fluxograma proposto por Pimentel (2013), que elaborou um instrumento composto das seguintes etapas: 1) seleção de um parágrafo do texto e; nele, 2) uma frase ou período; 3) identificação dos sujeitos falantes; 4) das possíveis relações entre os sujeitos; 5) dos atos de linguagem; 6) das funções da linguagem; 7) seus significados e sentidos; assim como 8) os significados e sentidos dos atos de linguagem e; por fim, 9) a elaboração de uma compreensão hermenêutica (Figura 1).

Pimentel (2013) propôs que cada unidade selecionada fosse analisada a partir da identificação dos colaboradores e as relações entre os mesmos, os atos e significados de linguagem, suas funções e sentidos. Para a autora, os pontos de partida e chegada hermenêuticos são a experiência do colaborador da pesquisa, com destaque para a apreensão das relações com outros personagens, animais e objetos e dos atos do discurso (locucionário, ilocucionário e perlocucionário), bem como as funções de linguagem que o colaborador prioriza (emotiva, referencial). Deve-se, por fim, captar a perspectiva de significações que o colaborador tem sobre os temas pesquisados e elaborar a compreensão hermenêutica que seria a etapa de síntese em que os pesquisadores desvelariam os sentidos possíveis das vivências e seus processos de subjetivação.

O modelo atual é composto de quatro etapas: 1) recorte do texto; 2) marcas linguísticas; 3) interpretações subjetivas e; 4) compreensão hermenêutica. O fluxograma desenvolve um percurso baseado na linguagem em suas diversas expressões, organizadas de forma a apresentar um panorama dos modos de ser do colaborador e de suas formas de interpretar suas vivências no mundo, reunindo concepções advindas da fenomenologia existencial, da hermenêutica da linguagem e da semântica do discurso (Figura 2).

O recorte do texto se refere a trechos transcritos do discurso oral do colaborador, podendo ser períodos, frases e expressões. Nele, dá-se um distanciamento da linguagem cotidiana devido aos recursos que a linguagem proporciona e que, não obstante tenha como referência o cotidiano, ultrapassa-o, não podendo, assim, ser considerado um simples "reflexo da realidade". Dessa forma, "interpretar é explicitar o ser-no-mundo manifestado diante do texto" (Ricoeur, 1990, p. 56) e o que "deve ser interpretado em um texto é uma proposição de mundo [grifo do original], de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios" (Ricoeur, 1990, p. 56).

O recorte do texto se refere a trechos transcritos do discurso oral do colaborador, podendo ser períodos, frases e expressões. Nele, dá-se um distanciamento da linguagem cotidiana devido aos recursos que a linguagem proporciona e que, não obstante tenha como referência o cotidiano, ultrapassa-o, não podendo, assim, ser considerado um simples "reflexo da realidade". Dessa forma, "interpretar é explicitar o ser-no-mundo manifestado diante do texto" (Ricoeur, 1990, p. 56) e o que "deve ser interpretado em um texto é uma proposição de mundo [grifo do original], de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios" (Ricoeur, 1990, p. 56).

As marcas linguísticas se referem aos elementos da gramática como a sintaxe, os pronomes, entonações, interjeições, tempos verbais, assim como funções da linguagem, expressões metafóricas, expressões conotativas, onomatopeias, imagens e assim por diante. Elementos que consistem no uso dos recursos da língua que vêm do uso cotidiano e que permitem comunicar atitudes, pensamentos, sentimentos, estados emocionais, simbolismos, expressões populares e assim por diante, revelando o esforço dos interlocutores para se fazerem entender. Incluem-se aí também os silêncios, pois eles podem ter significados no decorrer das narrativas; não é só o falar que importa, os silêncios podem também ser escutados. Como afirma Ricoeur (1990), "o silêncio é constitutivo do discurso" (p. 36).

Dentre as marcas linguísticas, estão também os atos do discurso locucionário, ilocucionário e perlocucionário os quais, sendo linguagem, são capazes de apresentar amplamente as experiências vividas, podendo ir desde a frase (locucionário), passando pela sua carga (ilocucionário), até os impactos gerados no interlocutor (perlocucionário). Cabe aqui uma observação quanto a este último, pois ele se refere ao aspecto menos comunicativo: a função perlocutória funciona como uma espécie de estímulo que gera uma resposta no sentido comportamental. Para Ricoeur (2017), "A função perlocutória ajuda-nos antes a identificar a fronteira entre o carácter de acto e o carácter de reflexo da linguagem" (p. 33). Este paradoxo o tornaria mais um efeito da linguagem do que uma linguagem propriamente dita. Por outro lado, o motivo de mantê-lo enquanto marca linguística se deve ao caráter existencial da pesquisa fenomenológica na qual o aqui-agora do encontro, o corporal, o gestual e o imediatismo das reações são parte integrante da produção do discurso que se dá na inter-relação.

O face à face da situação dialógica ajuda, assim, a apreender o que está sendo dito. Cabe aqui uma observação sobre o papel do pesquisador na situação dialogal: ao mesmo tempo em que tem o compromisso de facilitar a interação, ele deve cuidar para não direcionar o diálogo rumo às suas próprias concepções. Em vez disso, sua atitude de acolhimento e interesse deve auxiliar o colaborador na construção de suas narrativas, confirmando o entendimento, fazendo perguntas, clarificando pontos, respeitando os silêncios, reagindo com naturalidade às mais variadas expressões de ser no mundo e evitando pré-julgamentos. Durante o trabalho de grupo, por exemplo, o pesquisador assume o papel de facilitador e participa diretamente da construção de sentidos, buscando manter uma relação de horizontalidade ao mesmo tempo que respeita a liberdade de expressão de cada um. Trata-se de uma busca de horizontalidade entre facilitador e participantes sem o objetivo de eleger um "detentor da verdade", o que se daria "na valoração do diálogo e da reflexão, possibilitando-se, dessa maneira, a construção de novos conhecimentos" (Barreiros & Morato, 2016, p. 176). Nessa produção de sentidos, as narrativas constituem uma forma de construir, manter e atualizar o mundo vivido, consistindo num dos principais instrumentos para construir e negociar significados. Através delas, pode-se perceber as formas como pela linguagem construímos realidades e as nomeamos, mas também tendemos a cristalizá-las, chegando ao ponto de atribuir-lhes um status de naturalidade. As intervenções com base nas narrativas objetivam explorar no processo grupal crenças e valores, pois as histórias trazidas podem ajudar a compreender as formas como cada um se posiciona e dá sentido às suas vivências.

Enquanto terceira etapa, os sentidos vivenciais consistem nos sentidos habituais das vivências atribuídos pelo participante às suas experiências. É possível se aproximar das formas de compreensão elaboradas pela pessoa, suas narrativas, suas versões do que se passou, sua memória seletiva, suas lacunas e suas crenças. Os sentidos vivenciais são também um espaço privilegiado para a reprodução de padrões de condutas estilizadas, estereótipos sociais e concepções cristalizadas advindas do cotidiano. Tais elementos constituem um panorama que permite compreender os valores, as justificativas, os argumentos que a pessoa desenvolve e que procuram dar conta dos porquês, das finalidades, das escolhas, enfim, dos seus modelos explanatórios e que acabam por revelar aspectos significativos de seus modos de ser-no-mundo.

Inclui-se, aqui, o ato de refletir acerca de si mesmo (Barreiros & Morato, 2016). O colaborador pode identificar alguns pontos e rever outros, de forma que o discursar deixa de ser uma simples comunicação das próprias experiências e convicções e passa a ser uma forma de reler os acontecimentos e de construir novas formas de interpretá-los. A reflexão na interação com o outro pode facilitar tal processo ora solidificando ora reconstruindo alguns aspectos. Conforme Beiras e Cantera (2015), o compartilhamento de experiências e narrativas possibilita "a mudança e o desenvolvimento de novas formas de ver e significar certas experiências, produzindo novas socializações, valorações e identificações nos participantes" (p. 1534, tradução nossa).

A quarta e última etapa se refere à compreensão hermenêutica. O termo "compreensão" destaca a função hermenêutica de ampliação dos sentidos na medida que o pesquisador busca considerar o texto, as marcas linguísticas e as interpretações dos colaboradores no seu trabalho de interpretação, não objetivando simplesmente explicitar as afirmações dos colaboradores, pois compreender significa ir além das explicações. Conforme Ricoeur (2017) na explicação "desdobramos o âmbito das proposições e significados, ao passo que na compreensão compreendemos ou apreendemos como um todo a cadeia dos sentidos parciais num único acto de síntese" (p. 102). Ao compreendermos, damos sentido às nossas vivências e procuramos explicá-las ao outro usando os recursos da linguagem na tentativa de sermos compreendidos. E a interpretação "é um caso particular de compreensão" (Ricoeur, 2017, p. 103). O colaborador já possui uma compreensão expressa em seus modos de se posicionar no mundo, em suas crenças, hábitos e atitudes, mas o pesquisador se propõe a interpretar tais sentidos, ora confirmando-os, ora ampliando-os, ora atribuindo-lhes outros ao aproximar-se das narrativas, recortar os aspectos que chamam a atenção, desvelar os conteúdos implícitos e analisar as marcas linguísticas. Neste exercício, ele empreende uma compreensão hermenêutica, procurando reunir os diversos aspectos da situação e apresentar uma síntese que proporcione uma visão o mais global possível das vivências expressas nos discursos produzidos em campo. Ela consiste no ápice do trabalho de pesquisador. É aqui que se dá a interpretação propriamente dita. Ele buscará captar os sentidos possíveis das vivências dos colaboradores após ter analisado os recortes do texto, suas marcas linguísticas e as interpretações por eles elaboradas, sendo possível também perceber sentidos latentes no discurso e mensagens presentes nas entrelinhas que podem ser captadas por um interlocutor atento. Partindo de seu olhar acadêmico-científico, o pesquisador procurará dar coesão ao conjunto de evidências reunidas, desvelando um panorama das mesmas e procurando articular os resultados encontrados às concepções teóricas que ele considere relevantes. É importante atentar, porém, que suas conclusões não devem possuir status de verdade absoluta, uma vez que constituem apenas "sentidos possíveis" (Gomes, 2018). Como afirma Heidegger (2014), "Interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas no compreender" (p. 209).

Um exemplo de utilização do fluxograma foi sua aplicação na tese de doutorado de Diniz (2019), acerca dos homens que vivenciam relacionamentos conjugais abusivos. Para investigar suas experiências, o autor facilitou um grupo composto por sete colaboradores. As sessões foram gravadas e transcritas, após o que ele empreendeu a análise do discurso a partir do fluxograma (Figura 3). A situação gira em torno da audiência à qual Francisco (codinome) comparecera após ser acusado de violência pela parceira. Nas reuniões do grupo, ele havia relatado diversas situações em que teria sido vítima de violência por parte de sua esposa, a qual também o teria denunciado pelo mesmo motivo. No momento da audiência, porém, relata não ter tido a atenção necessária por parte do juiz, o qual teria demonstrado total desinteresse por sua versão.

O fluxograma apresenta o recorte do texto, destacado dentre as diversas falas de Francisco por exemplificar uma situação relatada com frequência seja no grupo seja na literatura sobre o assunto: a dificuldade dos homens para denunciar a violência sofrida às agências de segurança e saúde (Diniz, 2019; Dotoli & Leão, 2015; Moura, Gomes, & Pereira, 2017; Safariolyaei & Amiri, 2017). Nas marcas linguísticas, destaca-se a expressão "o adiantar da hora", que teria o sentido de falta de tempo ou pressa. Destacam-se, ainda, o ato ilocucionário, a entonação (comportamento não verbal) usada pelo juiz a fim de transmitir o menosprezo do mesmo por sua fala, e o ato perlocucionário, o olhar "de cobrança" dirigido por ele ao seu advogado, o que teria provocado sua reação de solicitar ao juiz que o ouvisse. Quanto aos sentidos vivenciais, Francisco constata que a versão do homem não seria considerada, naquele contexto, tão importante quanto a da mulher. A compreensão hermenêutica demonstra que Francisco seria mais considerado enquanto membro de uma categoria social historicamente associada à violência contra a mulher do que enquanto indivíduo. O desinteresse do juiz mostraria, talvez, uma concepção social de que os homens não seriam vítimas de violência conjugal, concepção esta questionada por diversos estudos que têm discutido esta possibilidade (Ceja, Velázquez, Velázquez, & Perea, 2019; Diniz, 2019; Dotoli & Leão, 2015; Lindner, Coelho, Bolsoni, Rojas, & Boing, 2015; Safariolyaei & Amiri, 2017; Waiselfisz, 2015).

 

Considerações finais

Por sua riqueza, o pensamento de Ricoeur oferece um vasto campo de reflexão acerca de posicionamentos teóricos-metodológicos, sendo a linguagem o corpus material sobre o qual trabalha o pesquisador. Neste sentido, verificou-se que sua hermenêutica pode se constituir um meio pelo qual se torna possível o desvelamento de sentidos seja na produção escrita seja na situação dialogal. O trabalho com fluxogramas permite a organização do material coletado e sua visualização gráfica tornando mais didático o processo de interpretação. No mundo do texto, destacam-se aspectos que, se compreendidos, contribuem para a construção de um panorama das diversas formas de ser no mundo. O caminho percorrido pelo fluxograma objetivou oferecer uma visão ampla do encontro típico das pesquisas qualitativas nas quais a interação constitui parte essencial do conhecimento produzido. O processo se concentra inicialmente no destaque dos enunciados que exemplificam os temas propostos no campo da pesquisa e sobre os quais o pesquisador se debruçará a fim de desenvolver sua análise (recorte do texto), passando para a identificação dos recursos linguísticos utilizados pelos colaboradores para expressar intenções como comportamentos não verbais, estados emocionais, entonação e figuras de linguagem, os quais demarcam as mensagens no texto (marcas linguísticas), seguindo para a análise das interpretações pessoais construídas pelos sujeitos a fim de dar conta de suas experiências (sentidos vivenciais) e culminando com o desvelamento, por parte do pesquisador, dos sentidos possíveis construídos ao longo das etapas anteriores, cotejando-os de acordo com seu arcabouço teórico, a fim de apresentar um panorama capaz de refletir algo do mundo vivido de seus colaboradores (compreensão hermenêutica). Espera-se, com esta proposta, contribuir para produções científicas que se identifiquem com a metodologia da pesquisa fenomenológico-hermenêutica, particularmente aquelas que buscam inspiração no pensamento de Ricoeur. Esperam-se, igualmente, novas contribuições para o seu aperfeiçoamento e adequação aos seus objetivos.

 

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Endereço para correspondência:
Caetano da Providência Santos Diniz
caediniz@hotmail.com

Recebido em: 10/03/2020
Aceito em: 15/06/2020

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