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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora Jan./Apr. 2022

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.32857 

ARTIGOS

 

A meditação histórica de Husserl a propósito das ciências naturais e do subjetivismo moderno

 

Husserl's historical meditation on the natural sciences and modern subjectivism

 

La meditación histórica de Husserl sobre las ciencias naturales y el subjetivismo moderno

 

 

Danilo Saretta Verissimo

Universidade Estadual Paulista - UNESP. E-mail: danilo.verissimo@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7981-3877

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Acompanhamos, neste artigo, o exercício de filosofia histórica realizado por Husserl em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Nosso propósito é salientar o movimento arqueológico proposto pelo filósofo como forma de oposição ao esquecimento dos fundamentos da atitude das ciências naturais, que perpassa igualmente o subjetivismo moderno e, por conseguinte, o projeto de uma psicologia científica. Detemo-nos nas análises de Husserl em torno da matematização da natureza, do dualismo cartesiano e do empirismo.

Palavras-chave: Fenomenologia; Ciências naturais; Subjetivismo; Psicologia; Husserl.


ABSTRACT

We follow, in this article, the exercise of historical philosophy carried out by Husserl in The crisis of European sciences and transcendental phenomenology. Our purpose is to highlight the archaeological movement proposed by the philosopher as a form of opposition to the forgetfulness of the natural sciences' attitude foundations, which also permeates modern subjectivism and, consequently, the design of a scientific psychology. We focus on Husserl's analyses of the mathematization of nature, Cartesian dualism, and empiricism.

Keywords: Phenomenology; Natural sciences; Subjectivism; Psychology; Husserl.


RESUMEN

Seguimos, en este artículo, el ejercicio de la filosofía histórica llevado a cabo por Husserl en La crisis de las ciencias europeas y la fenomenología trascendental. Nuestro propósito es destacar el movimiento arqueológico propuesto por el filósofo como una forma de oposición al olvido de los fundamentos de la actitud de las ciencias naturales, que también impregna el subjetivismo moderno y, en consecuencia, el diseño de una psicología científica. Nos centramos en el análisis de Husserl respecto de la matematización de la naturaleza, el dualismo cartesiano y el empirismo.

Palabras clave: Fenomenología; Ciencias naturales; Subjetivismo; Psicología; Husserl.


 

 

Em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, Husserl (1954/2004)1 busca posicionar a fenomenologia no contexto de uma filosofia histórica a partir do pensamento moderno. O ponto de partida da sua "meditação histórica" (1954/2004, p. 23) é a fixação incondicional do homem moderno nas ciências positivas e na promessa de progresso e prosperidade que vem associada a elas. Desde uma perspectiva historial, a ideia positivista de ciência é residual, afirma Husserl (1954/2004), é o que subsiste quando se descartam questões que sempre marcaram a história da filosofia e que, implícita ou explicitamente, dizem respeito aos problemas da razão, como a verdade e a autenticidade do conhecimento racional, ou, mais especificamente, o valor da verdade como valor da razão, e o comportamento ético, que se pauta na razão prática. Estas são questões que ultrapassam a dimensão do mundo assumido enquanto universo de relações factuais. A proposta husserliana, que se evidencia em A crise, de modulação da atenção do mundo natural, estabelecido pelas ciências, para o mundo da experiência possui, neste sentido, não apenas um caráter gnosiológico, mas sobretudo prático e ético, fundado na explicitação tanto dos descuidos históricos no exercício do conhecimento metódico quanto dos compromissos possíveis para sujeitos empenhados no pensamento e na vida (Fabri, 2016; Lobo, 2008).

A psicologia encontra, no livro, posição central para a compreensão da conjuntura da cultura contemporânea e do papel ocupado pelas ciências na condição moderna. Como deixa claro o título do trabalho, é a um estado de crise que o filósofo tenta responder, crise das ciências, da psicologia e da cultura em geral. Vale indicar que Husserl ministrara, no ano de 1935, em Viena e em Praga, conferências que constituem a base da publicação de A crise, e que o trabalho apresentado na segunda cidade fora intitulado "A crise das ciências europeias e a psicologia". A crise de sentido das ciências ocidentais é, pois, estabelecida em conexão com a psicologia (Manjolino, 2008). Segundo Husserl (1954/2004), é a partir do objetivismo universal, representado pela ciência galileana, que surge a delimitação de um mundo intramental, ou psicológico. Na medida desta afirmação, o filósofo, a certa altura de A crise, aconselha que não nos deixemos enganar pela oposição habitual entre o empirismo e o racionalismo. Mais adiante, adverte que a obra de Locke, como a de Descartes, visa "a fundação, em uma teoria do conhecimento, da objetividade das ciências objetivas" (Husserl, 1954/2004, p. 98). A tradição filosófica moderna, racionalista e empirista, não busca, com efeito, operar um retorno ao sujeito a partir de uma mudança de atitude em relação ao olhar naturalista, mas erigir justificações subjetivas da objetividade e do mundo natural. Em outras palavras, as investigações racionalistas e empiristas visam, por meio do exame psicológico, ou do psíquico, justificar o mundo objetivo natural. Neste processo, é erigida uma psicologia naturalista, ciência exemplar no que concerne ao exame da crise da filosofia.

Nosso propósito, neste artigo, é, mediante o acompanhamento das considerações históricas realizadas por Husserl em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, salientar o movimento arqueológico proposto pelo filósofo como forma de oposição ao esquecimento dos fundamentos da atitude das ciências naturais, que perpassa, igualmente, o subjetivismo moderno e, por conseguinte, o projeto de uma psicologia científica. Veremos que por meio de uma reorientação da atenção, Husserl busca revelar o recalque do mundo sensível na atitude objetivista, elemento central da crise epistemológica e ética denunciada por ele. Depois de nos determos nas análises de Husserl em torno da matematização da natureza e do esquecimento da experiência envolvido neste processo histórico, passamos a considerar a crítica que o autor dedica ao dualismo cartesiano e ao empirismo. Husserl evidencia, na continuação do seu exercício arqueológico, os vínculos do subjetivismo racionalista e empirista com o pensamento científico-naturalista. Embora as indicações metodológicas acerca do olhar histórico, destinado a enfrentar a habituação da naturalização, sejam ofuscadas na medida em que, no livro, Husserl avança nas análises sobre o dualismo, é de suma importância atentar à continuidade entre as investigações modernas da subjetividade e o cientificismo naturalista, e que conflui para o surgimento da psicologia científica. Husserl deseja problematizar esta metamorfose e seus diversos estratos históricos. Nosso comentário se encerra com uma breve apreciação da análise que Husserl dedica à passagem do objetivismo ao subjetivismo transcendental.

 

Matematização da Natureza e Esquecimento

O dualismo é a chave para se compreender a ligação entre o objetivismo naturalista e o estabelecimento de um espaço psicológico. O dualismo, que tem como grande expressão a obra de Descartes, prepara-se na matematização da natureza, cuja consequência primeira é o estabelecimento de uma "causalidade universal fechada sobre ela mesma" (Husserl, 1954/2004, p. 70). Como se opera esta concepção de mundo? Para responder esta pergunta, Husserl nos direciona, inicialmente, à passagem de atividades com funções objetivantes empírico-práticas ao interesse puramente teórico do método geométrico. Pensemos, conforme o exemplo adotado pelo autor, na arte da mensuração agrícola e no mapeamento geográfico, cujo modus operandi difundiu-se rapidamente para outras esferas de atividade social. Com base "no mundo ambiente intuitivo pré-científico" (Husserl, 1954/2004, p. 32), formas dadas na experiência sensível são trançadas a "formas imagináveis para a intuição sensível" (Husserl, 1954/2004, p. 32). A intuição sensível, marcada pelo seu relativismo e falta de precisão (Gurwitsch, 1956/2009), passa a ser preenchida por estes tipos imagináveis que constituem a sua forma. Como, contudo, conceder "objetividade", ou seja, uma determinação intersubjetiva, comunicável em suas características fundamentais, a estas formas? A arte - ou técnica - de mensuração possui esta função objetivante. A partir de lugares e direções conhecidos e de padrões baseados em formas empíricas disponíveis estabelecem-se grandezas, relações de grandeza, posições geográficas etc. Tem-se, portanto, a fixação de formas intersubjetivas unívocas, tomadas como imutáveis. Neste gênero de ação repousa o desejo de um conhecimento capaz de definir o "ser objetivo do mundo" (Husserl, 1954/2004, p. 33), seu "ser 'verdadeiro'" (Husserl, 1954/2004, p. 33). Husserl fala de uma inversão (Umstellung), consolidada pouco a pouco, que vai do interesse prático, envolvido na agrimensura, por exemplo, ao "interesse puramente teórico" (Husserl, 1954/2004, p. 33). Dá-se, portanto, uma idealização do método empírico de mensuração, que adquire o caráter de "processo de pensamento puramente geométrico" (Husserl, 1954/2004, p. 33).

Esta inversão retratada por Husserl (1954/2004) e que abarca a transição de um interesse prático a um interesse teórico merece destaque, posto que, no devir histórico, ela cai no esquecimento e se torna invisível. Galileu, figura emblemática para Husserl na constituição de uma ciência objetiva da natureza, encontra esta nova geometria à sua disposição, na condição de "herança tradicional, capaz de guiar seu pensamento no ligamento da empiria às ideias-limite matemáticas" (Husserl, 1954/2004, p. 33). Embora a atividade do geômetra tenha como plano de fundo histórico o "mundo sensível pré-geométrico" (Husserl, 1954/2004, p. 34) e as artes práticas que ele comporta, o geômetra não tem necessidade de compreender o modo de nascimento da atividade idealizante. Ele se põe ao trabalho, tendo à mão este novo instrumental, que abrange conceitos e princípios geométricos, métodos operatórios e modelos abstratos, que, num plano concreto, consistem de figuras e fórmulas no papel. A geometria é, portanto, assimilada por Galileu na "ingenuidade da evidência apriorística que mantém em movimento todo trabalho geométrico normal", afirma Husserl (1954/2004, p. 34, grifo nosso). Pode-se dizer, com base nisso, que a geometria é, em algum grau, absorvida no mundo, ao passo que deixa de ser apreendida tematicamente na sua instrumentalidade. Daí a urgência, considera o filósofo, de uma "conversão do olhar [Umkehrung der Blickrichtung]" (p. 34, grifo nosso), de uma mudança na direção do olhar, capaz de, no que concerne ao processo progressivo de matematização, fazer da origem do conhecimento um problema central. Este é o sentido das "meditações históricas" apresentadas pelo autor. Trata-se, em outros termos, de conceber a prática histórica como mudança da direção da atenção. Neste caso preciso de que se ocupa Husserl, relativo ao surgimento de uma racionalidade geométrica e matemática, a conversão do olhar de natureza histórica visa realçar a inversão histórica implicada no caminho que levou da primazia do plano sensível à do plano teórico objetivo.

Convém dar relevo, na análise realizada por Husserl, à mobilização de um aparato amplamente utilizado por ele para amparar a redução fenomenológica. Diante da evidência do mundo, a tomada de consciência de si por parte do fenomenólogo equivale a "aprender a ver" (Husserl, 1959/1972, p. 171). Em seu exercício histórico, algo semelhante é colocado em marcha, com a diferença de que aquilo que se tornou evidente já configura uma forma de olhar da ordem do conhecimento: a idealização geométrica. A tarefa é erigir uma atitude de espanto diante daquilo que, tendo se tornado evidente, caiu no esquecimento sem, contudo, perder sua capacidade de gerar efeitos. A conversão do olhar resulta em uma prática de memória dos efeitos contínuos da idealização geométrica e dos seus desdobramentos históricos.

A geometria teórica serve de fundamento ao pensamento de Galileu e o conduz à ideia de física matemática. Esta será baseada na transposição do mundo corporal, o mundo da intuição empírica sensível, em "formas abstratas da espaço-temporalidade" (Husserl, 1954/2004, p. 35), com o que se reprime "a relatividade das apreensões subjetivas" (Husserl, 1954/2004, p. 34), em que se assentam as experiências sensíveis do mundo. Na "experiência intuitiva cotidiana" (Husserl, 1954/2004, p. 35), não percebemos apenas fenômenos estáticos; percebemos, igualmente, mudanças e variações, ligações entre as coisas, entre eventos ambientais, dado que as ocorrências corporais se encontram vinculadas reciprocamente conforme uma tipicidade sensível. "As coisas do mundo ambiente da intuição [...] possuem, por assim dizer, seus 'hábitos' [...]", comenta Husserl (1954/2004, p. 36), e configuram algo como um "estilo de conjunto empírico" (Husserl, 1954/2004, p. 36). De modo que, quando se sucede algo singular, ou imprevisto, questionamos suas razões e examinamos as circunstâncias espaço-temporais que a cercam. De uma maneira ou de outra, constatamos, ainda que em escala limitada, e com acurácia relativa, uma regulação causal capaz de abarcar todo co-ente no mundo. Trata-se, conforme Husserl (1954/2004), de uma "vida pré-científica do conhecer" (p. 37), e que sustenta a possibilidade de que se façam hipóteses e previsões relativas ao passado, ao presente e ao futuro. Como, a partir desta consciência ainda errante do mundo, é possível chegar ao seu conhecimento científico? Está em questão o desenvolvimento, com base nas limitações da experiência direta e relativa, de um método de construção sistemática e, de alguma forma, a priori, do mundo. A matemática é essencial neste ponto, pois ela cria "objetividades ideais" (Husserl, 1954/2004, p. 37). A partir do olhar matemático, os objetos subjetivo-relativos, com os quais nos deparamos na experiência cotidiana, podem ser fixados numa determinação objetiva omni-englobante, que, embora não disponha de condições para prescindir da experiência empírica, promove a "idealização do mundo de corpos" (Husserl, 1954/2004, p. 37). Abre-se um jogo que conjuga uma concepção universalizante e apriorística de natureza, concebida como o todo das formas corpóreas ligadas por regras de causalidade, quer dizer, um mundo de corpos fechado sobre si, e o trabalho de determinação, por indução, daquelas regras causais.

O método sistemático mencionado acima, a "práxis racional" (Husserl, 1954/2004, p. 44), que motivava Galileu e o pensador moderno, possui seu centro nesta concepção de um mundo concreto passível de "se revelar como um mundo objetivo matematizável" (Husserl, 1954/2004, p. 44), o que exige o contínuo aperfeiçoamento de estratégias de mensuração. Estas, por sua vez, alimentam sempre novas fórmulas, ajustes na representação, sempre retocada, de uma natureza verdadeira. Husserl (1954/2004) afirma, inclusive: "É a essência própria da ciência da natureza, é seu modo de ser a priori, ser, ao infinito, hipótese, e ser, ao infinito, confirmação" (p. 49). Tem-se, portanto, um processo histórico progressivo de aproximação permanente a uma meta ideal (Gurwitsch, 1956/2009). E vale reforçar: é nas fórmulas matemáticas que se opera a "coordenação real das idealidades matemáticas" (Husserl, 1954/2004, p. 50). A este respeito, Husserl (1954/2004) observa:

As medidas produzem números de medida e, de uma forma geral, enunciados concernentes à dependência funcional de grandezas de medida produzem, no lugar de números determinados, números em geral, e, entenda-se bem, isso é enunciado em proposições gerais, as quais exprimem leis de dependência funcional (p. 51, grifos do autor).

Tem-se, mediante o trabalho progressivo com fórmulas, o que Husserl (1954/2004) chama de "aritmetização da geometria" (p. 51), ou seja, o avanço da expressão matemática de formas, de movimentos, de relações entre distâncias, entre acontecimentos etc. As fórmulas expressam, de modo amplo, generalizável e preciso, regularidades empíricas que podem ser esperadas no mundo prático da vida. Revela-se, aqui, além de tudo, uma nova relação entre o mundo da vida e a ciência. Se, em um primeiro momento histórico, a arte de mensurar as coisas animou um pensamento geométrico teórico, no quadro da ciência natural já estabelecida a atitude matemática passa a orientar a mensuração e a originar antecipações indutivas inteiramente novas, não apenas em razão da influência gerada nos horizontes da vida concreta, mas por possibilitar o cálculo de formas desconhecidas e que talvez jamais se tornem acessíveis à experiência sensível direta. Quanto mais se expandem os princípios físico-matemáticos, com suas cadeias de juízos dedutíveis, maior é o campo de verificações submetido às atividades do físico experimentador, que, por sua vez, deverá fomentar o campo matemático com base em suas experimentações e medidas. Instala-se um processo circular que abrange leis demonstradas e leis que servem como hipóteses de trabalho.

Husserl (1954/2004), no entanto, adverte-nos, novamente, para o esquecimento do processo que vai do mundo da vida à matematização da natureza. A relação entre a física experimental e a física matemática tende a reproduzir a mutação, ocorrida no âmbito originário da geometria, do interesse prático ao interesse teórico. O filósofo chama de tecnicização essa sequência de sedimentações envolvendo a física matemática, que se ocupa da formalização de um sistema lógico de leis. Pouco a pouco, na tecnicização, o trabalho empírico-experimental revela-se tão somente um caminho para o termo formalizador. Husserl (1954/2004), a partir disso, conclui: "Assim a ciência da natureza encontra-se submetida a uma mutação de sentido [Sinnverwandlung] e a um acobertamento de sentido [Sinnüberdeckung] que possuem mais de um estrato" (p. 56). Reforça-se, diante dessas constatações, nas quais se aponta o surgimento de uma tradição que se oculta, o papel da "conversão temática do olhar" (Husserl, 1954/2004, p. 50), que caracteriza, para o autor, o interesse histórico.

O encobrimento da tradição idealizante revela um funcionamento eficiente dos processos de tecnicização das ciências da natureza. A lógica teórico-experimental não depende, para funcionar, da retomada expressa dos estratos históricos sobre os quais se constituiu. Seus efeitos mundanos, como a crise da sociedade europeia do entre guerras, testemunhada por Husserl, e epistêmicos, como o desenvolvimento de uma psicologia naturalista, exigem, contudo, o olhar historicizante. N'A crise, este não apenas prepara a apresentação dos fundamentos da fenomenologia transcendental, como adquire o valor de "tomada pública da fala" (Lobo, 2008, p. 126) em face dos riscos à liberdade identificados pelo filósofo na atividade científica. A crise de que fala Husserl é, em suma, ética, uma crise que - não pode ser diferente - deságua no mundo da vida.

Jamais abandonamos o mundo da vida, o que vale evidentemente para o cientista da natureza. Cumpre assinalar que o mundo da vida emerge, n'A crise, como um conceito prenhe de significados e de intenções filosóficas da parte de Husserl. De forma geral, contudo, a ideia de mundo da vida faz referência ao mundo comum, em que se sucede todo tipo de práticas sociais e culturais, inclusive as das ciências, e no qual são validados objetos de uso, objetos culturais, objetos marcados por valores os mais diversos (Lobo, 2008). As questões práticas e teóricas do cientista se ligam à "infinidade aberta" (Husserl, 1954/2004, p. 58) de horizontes desconhecidos, situados sempre em relação ao mundo da vida. Para Husserl (1954/2004), o "mundo realmente dado na intuição" (p. 59) permanece inalterado em sua "estrutura essencial própria" (p. 59), em seu "estilo causal próprio" (p. 59), "qualquer que possa ser nossa ação, metódica ou não" (p. 59). Esta afirmação deve ser compreendida no sentido de que o fato de se lidar com as coisas valendo-se de uma "atividade metodicamente idealizante" (p. 59) não anula o aparecimento imediato dos objetos mundanos, dados, por exemplo, na percepção. A despeito das explicações científicas universalizantes, o laboratório em que trabalha o cientista permanece revelando-se a ele sob a referência dos padrões temporo-espaciais humanos e aos fins práxicos e culturais a que serve (Gurwitsch, 1956/2009). Convém pensar, ademais, que a própria certeza do ser percebido é saturada de indução, no rumo do que falávamos anteriormente sobre a vida pré-científica do conhecimento. Husserl (1954/2004) comenta: "As coisas 'vistas' já são sempre 'mais' do que vemos delas 'real e propriamente'" (p. 59). Há, portanto, uma dimensão de antecipação no nosso contato com o mundo, com as coisas mundanas. "Toda práxis com suas antecipações implica induções", assevera ainda Husserl (1954/2004, p. 59). O método científico não é, pois, totalmente estranho à nossa forma habitual de vivenciar as coisas. Não se pode desconsiderar, contudo, nessa análise da relação entre a ciência e o mundo da vida, o fato de que o próprio mundo da vida sofre mudanças relevantes em função da atividade idealizante da ciência. Não poderíamos entender que parte dessas alterações carrega em si o germe da idealização matemática? Pensemos, por exemplo, no quanto a vida contemporânea é perpassada por imagens eletrônicas, por funções robóticas, pelo trabalho de máquinas baseado em algoritmos, dispositivos e aparatos que ainda não povoavam a vista no tempo de Husserl.

O que se passa, historicamente, destaca Husserl (1954/2004), é que o mundo da vida vai, pouco a pouco, na tradição científica, travestindo-se. Na matematização geométrica e na física, agrega-se ao mundo da vida, que sempre se apresenta a nós como real, uma camada de ideias adaptada à abertura infinita dos horizontes de experiências possíveis. Por meio do método científico, fundamentado na matematização da natureza, é certo que se aperfeiçoam, de modo espantoso, as antecipações primárias de que somos capazes na experimentação efetiva do mundo da vida. O que se dá, contudo, é que o mundo da vida é envolvido pelo que Husserl (1954/2004) chama de "vestido de ideias [Ideenkleid]" (p. 52), cujo efeito é fazer com que tomemos aquilo que é método, ou fruto do método, por "Ser verdadeiro". O mundo da vida, relegado a fenômeno subjetivo, a aparência, passa, deste modo, por um processo de disfarce. O "vestido de ideias" encobre, ademais, o sentido autêntico do método, das fórmulas, das teorias, mantendo-o incompreendido. O método científico, no sentido de arte (Kunst), ou técnica, é transmitido por herança, que, no curso da tradicionalização, tem, portanto, seu sentido originário encoberto.

Pode ser oportuno, no âmbito do processo de acobertamento e de esquecimento relativo à matematização da natureza, fazer referência ao depoimento de Kuhn (1962/2005) sobre a formação de pesquisadores no campo das ciências naturais. Baseando-se na confiança que os físicos possuem na estabilidade da evolução de seus paradigmas científicos, em contraste com a situação das ciências sociais e das humanidades, Kuhn (1962/2005) pergunta:

Por que deveria o estudante de física ler, por exemplo, as obras de Newton, Faraday, Einstein ou Schrödinger, se tudo que ele necessita saber acerca desses trabalhos está recapitulado de uma forma mais breve, mais precisa e mais sistemática em diversos manuais atualizados? (p. 209).

Segundo o autor, este tipo de educação vem demonstrando sua eficácia, principalmente se se levar em conta que o "trabalho científico normal" (Kuhn, 1962/2005, p. 201) envolve a resolução de quebra-cabeças, tarefa à qual os manuais são perfeitamente capazes de equipar os cientistas.

Gurwitsch (1956/2009, p. 469) lembra, nesta direção, que, além da especialização e da tecnicização das ciências positivas basearem-se em fundações não clarificadas e em pressupostos não questionados, estão implicadas no distanciamento das ciências em relação à filosofia. O questionamento dirigido ao sentido histórico da fundação do método que, por sua vez, não é exigido pelo pensamento e pela atividade técnica do cientista, sempre voltado à pesquisa e à descoberta, é, desta feita, repelido como metafísica. A filosofia objetivista fecha-se, portanto, em sua cientificidade, que, aos olhos da meditação histórica sustentada por Husserl (1954/2004), adquire ares de ingenuidade filosófica, dada a repressão do movimento capaz de revelar a atitude científica como forma de doação de sentido.

 

O Dualismo

Buscamos, até aqui, caracterizar o esforço historicizante empreendido por Husserl (1954/2004), n'A crise, em torno do objetivismo fisicista, com ênfase na ideia de uma mudança na direção da atenção. O intuito do filósofo, como vimos, é desvelar a inversão constatada, no seio da atitude científica, da experiência sensível ao plano primeiro geométrico e depois matemático, processo reproduzido na relação que pouco a pouco se estabeleceu entre a física experimental e a física matemática. É preciso, de acordo com Husserl, engendrar uma conversão do olhar a fim de denunciar as contínuas sedimentações do processo de tecnicização. Ainda que a atitude científica possa ser considerada uma forma de redução, por conformar um interesse teórico2, o seu esquecimento na normalização técnica, com suas consequências epistêmicas e práticas, reclama uma atenção crítica. Nos rastros da análise de Husserl, apreciamos, a seguir, os subjetivismos cartesiano e empirista, cujos tecidos comuns em relação ao naturalismo cientificista carecem sempre de memória.

Dizíamos, de início, que as raízes do dualismo remontam à matematização da natureza. Cumpre compreender os liames estabelecidos, na interpretação husserliana, entre as tradições dualista e científico-naturalista de pensamento, e a sua relação com o papel singular que foi reservado ao desenvolvimento da psicologia. Vale reforçar: esperamos, com isso, transpor o problema do esquecimento das inversões de sentido operadas sobre a experiência para o âmbito das investigações modernas da subjetividade e, portanto, aos fundamentos da psicologia. Descartes é, aqui, um personagem central e que figura, segundo a posição de Husserl (1954/2004), como o "fundador original do conjunto da filosofia moderna" (p. 85). Enquanto a "fundação original da nova ciência da natureza" (Husserl, 1954/2004, p. 85) pode ser imputada a Galileu; a Descartes, pode-se atribuir a ideia de uma filosofia universal cujo sentido repousa em um racionalismo matemático e fisicista, que recebeu, evidentemente, elaborações sistemáticas por parte de seus sucessores. Com o intuito de conferir a este novo racionalismo um fundamento radical, Descartes, no entanto, estabelece ideias que, se tivessem sido levadas a termo de forma consequente, teriam podido, ao mesmo tempo, solapar o cientificismo recém-inaugurado.

Conforme Husserl (1954/2004), em Meditações, principalmente em suas duas primeiras seções, Descartes pratica uma "epoché cética radical" (p. 88), pela qual a experiência sensível e as efetuações de sentido e de valor fundadas sobre ela são submetidas a um exame que adquire a condição de crítica geral do conhecimento. O afamado exercício da dúvida hiperbólica abarca, com efeito, não apenas a validade das ciências, mas igualmente a do mundo da vida, abrange tanto o mundo prévio da experiência sensível quanto a vida do pensamento fomentada por ele, seja em referência ao pensamento científico ou não científico. O solo do conhecimento científico é, pois, problematizado. Embora desde os filósofos pré-socráticos a atitude cética tenha recebido diversas reedições, faltava, contudo, às tentativas anteriores à de Descartes o "motivo cartesiano original" (Husserl, 1954/2004, p. 89). Desde a perspectiva husserliana, constata-se no movimento filosófico de Descartes a disposição fundamental para a conversão de atitude diante do mundo mediante a transformação de si, o que se liga à conversão da atenção de que falávamos, embora aqui já estejamos no polo de um ethos da redução (Depraz, Varela & Vermersch, 2011). De acordo com Husserl (1954/2004), o motivo cartesiano, base do subjetivismo transcendental, pode ser atrelado à "auto-meditação do sujeito cognoscente sobre si mesmo e sobre sua vida de conhecimento" (p. 113), tomada como fonte última de toda formação de conhecimento. De fato, a interrupção de toda tomada de posição acerca do ser ou do não ser do mundo não barra toda afirmação de ser. Husserl (1954/2004) escreve:

Eu que executo a epoché não sou incluído no horizonte objetivo desta epoché, mais do que isso - à condição que eu a realize de forma verdadeiramente radical e universal - eu me encontro excluído dela por princípio. Eu necessariamente sou, enquanto aquele que a executa. [...] Por mais que eu possa impulsionar ao extremo minha dúvida, por mais que eu tente fazê-lo imaginando que tudo é duvidoso, ou mesmo que na verdade nada existe, é absolutamente evidente que, contudo, eu seria, enquanto aquele que duvida e tudo nega (p. 89-90).

Para Descartes, portanto, o eu que realiza a epoché é a única instância fora de dúvida. Todo o resto que se possa apresentar como apodítico permanece aberto à possibilidade de falseamento. Há, no entanto, da parte de Descartes, um posicionamento originário apressado, a revelar uma fissura na sua prática da epoché, uma opinião que resiste à crítica, ou que, simplesmente, não fora colocada em dúvida, e que é indicada pela definição do ego como res cogitans, como intelecto. Para Husserl (1954/2004), esta determinação deixa transparecer um Descartes dominado de antemão pela certeza galileana de um "mundo de corpos universal e absolutamente puro [universalen und absolut puren Körperwelt]" (p. 92), ou seja, pela diferenciação entre aquilo que é experimentável de forma sensível e aquilo que é objeto do puro pensamento. Neste caso, seria evidente para o filósofo seiscentista, antecipadamente, que a sensibilidade é enganosa e que deve haver um caminho racional para o conhecimento da coisa em si. Esta posição não deveria, contudo, ser incluída na epoché, ainda que como mera possibilidade? Husserl conclui que Descartes possui uma meta, e a travessia pelo ego serve-lhe de meio, o que acarreta uma concepção abstrata da consciência. O ego, afirma Husserl (1954/2004), não é um resíduo do mundo, mas "coisa única" (p. 92), "posição absolutamente apodítica" (p. 92), tornada possível pela epoché. O que se verifica em Descartes, de acordo com Husserl, é o enleamento do ego à alma pura. Conforme as palavras do filósofo, produz-se, nas passagens de Meditações que levam à epoché e ao seu ego, "uma solução de continuidade [...] pela identificação deste ego com a alma pura [reinen Seele]" (Husserl, 1954/2004, p. 93). Sobre esta última, Husserl (1954/2004) escreve: "[...] é o resíduo de uma abstração anterior, aquela que faz aparecer o corpo puro [puren Körpers], e ela é, por conseguinte, de acordo com esta abstração, ao menos aparentemente, uma porção complementar desse corpo" (p. 92). Note-se, pois, que esta concepção da alma não pode emanar da epoché, mas de um registro teórico no qual o mundo enquanto terreno natural, no sentido galileano, é pressuposto de saída. Esta "equivocidade oculta" (Husserl, 1954/2004, p. 92) identificada em Descartes figurará como o modo habitual de tratamento teórico que congregará a ambos, o pesquisador da natureza e o psicólogo.

Husserl (1954/2004), em suma, denuncia os limites da epoché cartesiana assentados no preconceito do mundo natural. Se, por um lado, Descartes inaugura um Telos filosófico cujos fundamentos se encontram na subjetividade, por outro, sua persistência no objetivismo - que, malgrado o alicerce em base subjetiva, concebe um "mundo dado de antemão" (Husserl, 1954/2004, p. 79) - permite a fixação da mens, do espírito, como correlato do mundo objetivo e, portanto, como tema de uma psicologia, no sentido que seria consagrado a partir da tradição empirista. Vê-se que a mudança de atitude [Einstellungsänderung], apregoada na epoché, é difícil de realizar. Para Husserl (1954/2004), Descartes deixara de impor para si "a tarefa de interrogar sistematicamente o ego puro" (p. 95), suas capacidades enquanto atividade intencional, "as atividades imanentes realmente demonstráveis do ego" (Husserl, 1954/2004, p. 95). A cogitatio cartesiana, que, para Husserl, é outra denominação da intencionalidade, constitui a essência da vida egológica, o fato de se "ter consciência de alguma coisa" (Husserl, 1954/2004, p. 96), alguma coisa que experimento, que penso, que sinto, que vejo, que quero. "[T]oda cogitatio possui seu cogitatum", e cada cogitatio é, num sentido mais vasto, um modo de "crer" [Vermeinen] e comporta uma forma de certeza [Gewiβheit] (Husserl, 1954/2004, p. 96). A brecha objetivista permite, contudo, sub-repticiamente, que a imanência egológica, impossível como tema mundano, transforme-se em imanência psicológica. É na forma desta desobstrução ao objetivismo que as Meditações de Descartes "desenvolveram sua ação histórica até nossos dias", considera Husserl (1954/2004, p. 94). Em razão disso, por inaugurar um subjetivismo que, no entanto, é permeável ao objetivismo, Descartes pode ser situado no "ponto de partida" das filosofias racionalista e empirista, conforme o indicado no título da seção 21 de A crise: Descartes como ponto de partida de duas linhas de desenvolvimento: a do racionalismo e a do empirismo.

 

O Empirismo

De acordo com Husserl (1954/2004), a "primeira elaboração concreta" (p. 97) da psicologia científica3 advém da linha empirista. Já dissemos que Locke, a exemplo de Descartes, visava instituir a objetividade das ciências da natureza. Locke interessa-se por questões acerca da amplitude, da capacidade e do grau de certeza do conhecimento humano, e busca abordá-las com base no princípio introspeccionista, bem delimitado por Descartes. Uma diferença substancial entre ambos reside, todavia, na ausência de preocupação, da parte do filósofo inglês, com o exercício da epoché. Conforme Husserl (1954/2004), Locke "[...] toma simplesmente o ego enquanto alma que aprende a conhecer seus estados interiores, seus atos e seus poderes - precisamente na evidência da experiência de si mesmo" (p. 98). Apenas a experiência interior, com nossas próprias ideias, é reconhecida como dado imediatamente evidente. Conforma-se, portanto, na epistemologia lockeana, um gênero de "análise intra-psicológica" sob o fundo da "experiência íntima" (Husserl, 1954/2004, p. 98).

Em Locke, travam-se investigações acerca da gênese psicológica de vivências reais de validação psíquica. Os dados sensíveis, afecções advindas do exterior que anunciam o mundo externo, são tomados como base do funcionamento das faculdades mentais, cujo produto é, justamente, a constituição de representações do mundo. Dois elementos devem ser destacados a propósito deste processo psicológico, tal como concebido por Locke. O primeiro deles é lembrado por Husserl em uma nota de rodapé incluída nas passagens em que se dedica a analisar o pensamento de formas abstratas da espaço-temporalidade em Galileu4. Husserl (1954/2004) reporta-se à "herança [Erbschaft]" (p. 35), na tradição psicológica desde Locke, que leva à substituição das "qualidades sensíveis" (p. 35) por "data sensíveis" (p. 35). Trata-se de considerar como dados imediatos da vida psíquica não as "qualidades sensíveis de corpos efetivamente experimentados no mundo ambiente intuitivo de todos os dias" (Husserl, 1954/2004, p. 35), tais como cores, características táteis, odores, pesos etc., ou seja, qualidades percebidas "nos corpos mesmos [an den Körpern selbst]" (Husserl, 1954/2004, p. 35) como propriedades suas, mas as sensações. Husserl distingue estas últimas como entidades "físico-matemáticas [Mathematisch-Physikalische]", na ordem das abstrações que marcam o olhar fisicista galileano, e que configuram uma espécie de inversão sujeita, igualmente, a cair no esquecimento. Em contraposição aos fundamentos desta herança, que se trata de compreender e de invalidar como princípio da investigação psicológica, Husserl (1954/2004) fala em erigir uma "linguagem fiel à experiência real, de qualidades, de propriedades dos corpos realmente percebidos com tais propriedades" (p. 35). O segundo elemento que convém salientar concerne à abordagem representacionalista, que se consolida com Locke, e à qual se pode referir com as ideias de internalismo ou de mentalismo. Sob a égide de um "naturalismo ingênuo" (Husserl, 1954/2004, p. 99), Locke concebe a mente à imagem de um "real fechado sobre si como um corpo" (Husserl, 1954/2004, p. 99). As célebres metáforas lockeanas da mente como "um gabinete ainda vazio" (Locke, 1690/2012, p. 35), ou como uma "tela em branco" (Locke, 1690/2012, p. 97), na qual se registram os elementos psicológicos, ou sensações, expressam o teor espacial e interno da concepção então nascente de vida mental. Este sensacionismo5, que, em Locke, é acompanhado da doutrina do sentido externo, que se refere ao surgimento das sensações mediante a atividade dos nossos órgãos dos sentidos e do sentido interno, denominado por ele reflexão, e concernente à percepção das nossas próprias operações mentais, domina, de acordo com Husserl, a psicologia e a teoria do conhecimento dos séculos XVII e XVIII, e, em sua opinião, chega ao início do século XX sem mudanças fundamentais, malgrado o combate que se verifica no tocante ao atomismo. Esta irradiação, ou dispersão, do ideário empirista é, cabe anotar, um importante capítulo da história da psicologia científica. Na sua dimensão epistemológica, o internalismo da doutrina lockeana é reforçado pela concepção de que apenas somos capazes de obter uma representação adequada da nossa própria realidade psicológica, de modo que o conhecimento humano fica restrito às nossas representações e às imagens, ou ideias complexas, que possamos formular, com base no que inferimos o estado das coisas externas.

 

A Naturalização da Alma no Empirismo e a Psicologia Naturalista

Antes de concluirmos a apreciação da análise que Husserl dedica ao movimento empirista inglês, cabem algumas observações acerca de como, na leitura husserliana, o dualismo cartesiano e o sensacionismo empirista confluem para o estabelecimento das bases de uma psicologia naturalista. Devido às ambiguidades da epoché cartesiana, que, como vimos, permanece pressupondo uma natureza racional, um mundo de corpos (Körperwelt) em si, tem-se a cisão desta natureza em um polo corpóreo propriamente dito e em "um modo de ser diferente deste: o ente cujo modo de ser é a ψυχή" (Husserl, 1954/2004, p. 71), ou alma. Com base nesta dicotomia, Hobbes, contemporâneo de Descartes e predecessor de Locke, dá os primeiros passos na direção de uma nova psicologia, cujo projeto se ampara em "uma antropologia psicofísica no espírito do racionalismo" (Husserl, 1954/2004, p. 72). Se Hobbes é, por um lado, permeável à concepção do psíquico como dimensão excluída do âmbito corpóreo, referente à "natureza regionalmente fechada" (Husserl, 1954/2004, p. 73), que inclui o corpo animal e humano, por outro, adere à concepção física de natureza como modelo ontológico e metodológico capaz de abarcar, inclusive, o estudo da mente. Para isso, era necessário desconsiderar a doutrina cartesiana das duas substâncias, a corporal e a anímica, às quais se imputam atributos distintos, e tomá-las como regiões do ser discriminadas, sobretudo, pelo modo a que se tem acesso a elas. Sobre Hobbes, Husserl (1954/2004) afirma que, nele, se vê atribuir à alma "um modo de ser semelhante, em seu princípio, àquele atribuído à natureza" (p. 73). De fato, é notável, por exemplo, o modo como Hobbes (1640/1971) define o raciocínio a partir da associação de ideias conforme a sucessão das experiências sensíveis. Em Filosofia primeira, trabalho em que Husserl (1956/1970) já realiza importantes exercícios históricos, lê-se o seguinte resumo concernente a Hobbes:

Se Descartes havia disposto o ego como absoluto alcançado em sua pureza com suas cogitationes e concebido como substância espiritual, Hobbes, por sua vez, considera a vida interior subjetiva como uma simples ilusão subjetiva cujo ser verdadeiro reside nos correlatos materiais psicofísicos. Ele se torna, assim, o pai do materialismo moderno e, ao mesmo tempo, da nova psicologia materialista (p. 133).

A naturalização do domínio da alma será difundida pelo mundo moderno. Já passamos por Locke. Em Berkeley, por sua vez, o subjetivismo naturalista hobbesiano e lockeano revela todo seu contrassenso. Para o filósofo, as coisas que se mostram corporalmente na experiência natural reduzem-se "aos próprios complexos de dados sensíveis nos quais elas aparecem" (Husserl, 1954/2004, p. 100). Segundo Husserl, Hume leva esta orientação ao paroxismo, fazendo das categorias da objetividade, ficções, as quais podem ter suas origens esclarecidas psicologicamente. Imaginem que vemos uma árvore. Do ponto de vista da imanência, não há nada além dos modos de aparição da árvore em constante mudança. Este complexo de dados deve ser regrado por associações, processos de ligação que explicam a ilusão de identidade do objeto. Como em seus antecessores, as ciências da natureza permanecem tendo valor de modelo para Hume. O processo de construção interior do mundo dar-se-ia com base em impressões sensíveis e ideias conduzidas e associadas por forças concebidas em analogia com as forças físicas, como no caso das leis da gravitação, estabelecidas por Newton. Identifica-se, nessa história, um ocultamento de sentido elevado à segunda potência, por se tratar de um subjetivismo herdeiro das ciências naturais.

Seja como for, o ceticismo empirista, embora se nutra da ciência natural, reúne-se ao princípio cartesiano na instituição do caráter enigmático do "conjunto do conhecimento do mundo" (Husserl, 1954/2004, p. 103), pré-científico ou científico, e nisso repousa a problemática autêntica (Husserl, 1956/1970) dessas formas modernas de filosofia. No julgamento da objetividade do mundo e do seu sentido de ser, assenta-se a conscientização de um fato desapercebido nas ciências: "que a vida da consciência é uma vida que realiza [accomplit] alguma coisa" (Husserl, 1954/2004, p. 104, grifo do autor), "realiza um sentido de ser [Seinssin leistendes] (Husserl, 1954/2004, p. 104)". A ideia de filosofia sofre, portanto, uma transformação radical, na medida em que não se trata de descobrir uma realidade objetiva, tal como ela é, mas de atrelar o mundo e as práticas que dele dependem à consciência (Gurwitsch, 1956/2009).

 

Do Objetivismo ao Subjetivismo Transcendental

Estava posto o motivo transcendental desenvolvido, na continuação histórica, por Kant e discutido, na sequência de A crise, por Husserl (1954/2004). Para este último, a ideia mestra de Kant repousa no reconhecimento de que o aparecimento das coisas envolve a enformação apriorística dos dados sensíveis e de que tal acontecimento não remonta à função normativa de atos lógicos e matemáticos expressos. Kant teria mostrado, sobretudo, que, se na experiência comum faz-se a experiência ordenada de objetos passíveis de ser conhecidos objetivamente, ou seja, como objetos científicos, o mundo que se dá à intuição já é obra das faculdades que se exprimem explicitamente na forma da matemática e da lógica. Isso quer dizer que a razão se manifesta de modo duplo, comenta Husserl (1954/2004): na "auto-interpretação sistemática" (p. 109) condizente ao "ato livre e puro de matematização" (p. 109), e que pressupõe a enformação da pura intuição, ou da sensibilidade, e numa razão cujas operações não se expõem intuitivamente, mas que organizam os dados sensíveis. O resultado objetivo do funcionamento destas faculdades subjetivas é, justamente, o mundo de objetos da intuição sensível, pressuposto empírico do pensamento científico da natureza, que opera a normatização consciente da empiria ambiente.

Conforme a interpretação de Husserl (1954/2004), a filosofia de Kant logra a circunscrição da subjetividade cognoscente como "lugar original de toda formação objetiva de sentido e de toda validade de ser" (p. 115), fazendo jus ao sentido de filosofia transcendental endossado pelo fenomenólogo. A crítica da razão kantiana possui, além disso, um "solo não interrogado de pressupostos" (p. 118) e que remete, segundo Husserl, ao "mundo ambiente da vida cotidiana" (p. 119). As formulações kantianas adquirem, contudo, aos olhos de Husserl, um caráter mítico, na medida em que tratam de faculdades, funções e formações do subjetivo que não saberíamos tornar claras intuitivamente, nem com exemplos de fato nem com analogias. Eis, portanto, o sentido da empreitada husserliana, quando pensada a partir de Kant: a realização de uma análise intencional do ser espiritual próprio e último, de modo a "abrir sistematicamente a intencionalidade viva" (p. 132) que domina o "fundamento silencioso" (p. 132) das realizações do conhecimento e que se encontra "sedimentada nele" (p. 132). Caso contrário, fundando-se em obscuridades, o subjetivismo transcendental lança dúvidas sobre o objetivismo, mas não pode se consolidar (Gurwitsch, 1956/2009).

No contexto das críticas endereçadas ao transcendentalismo kantiano, Husserl (1954/2004) lança mão, no espaço de alguns parágrafos, na seção 28 de A crise, de um exercício de exposição do tipo de questões passíveis de serem reveladas quando se indaga, no plano do que chama de "evidências" (p. 127), a relação que se estabelece entre os objetos e o "elemento subjetivo" (p. 127). No dispositivo teórico traçado por Husserl, a abordagem de evidências exige, cumpre dizer, uma atitude, antes de mais nada, descritiva, na qual se evita tanto a suposição de funções mentais de organização de um material sensível quanto a existência prévia de um mundo natural de onde emanariam os estímulos para a atividade mental. Os temas básicos que se abrem a partir daí a uma fenomenologia compreendem, por exemplo, segundo Husserl, o estudo da percepção e de outros modos de intuição, como a rememoração; da mobilidade egológica, que articula percepção e movimento; da intersubjetividade e; do domínio da afecção e da ação. Trata-se, de acordo com o filósofo, e desde que permaneçamos no campo do "mundo dado de antemão na intuição" (Husserl, 1954/2004, p. 127), de um reino de valores de ser disponíveis, embora jamais interrogados de modo sistemático e rigoroso.

 

Considerações Finais

A filosofia histórica empreendida por Husserl (1954/2004) em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental assenta-se, como vimos, em evidenciar a inversão de sentido envolvida na passagem de atividades práticas ao interesse puramente teórico de matematização que caracteriza o estabelecimento das ciências modernas. Conforme Husserl, o processo de inversão, em suas várias camadas históricas, cai no esquecimento. É preciso, então, desenvolver uma atitude de conversão do olhar, de conversão da atenção. Esta atitude alcança os fundamentos do subjetivismo moderno e, por conseguinte, da psicologia, que possuem, igualmente, uma história de encobrimentos de sentido. Nas abstrações psicológicas, esquece-se a sua gênese no mundo da experiência, na medida em que a circunscrição do mundo intramental, racionalista ou empirista, é vinculada ao mundo natural, na acepção galileana. A conversão do olhar na forma de uma filosofia histórica encontra este ramo comum do naturalismo e do subjetivismo, cujos fundamentos precisam ser trazidos à lembrança.

Enfatizamos, justamente, os temas do esquecimento em A crise, com suas variações nas ideias de inversão e de disfarce, e do exercício histórico como conversão do olhar destinado ao desfazimento do recalque da história. Resulta disso não simplesmente um elogio do olhar histórico, capaz de romper cadeias de heranças não questionadas e que recaem na habitualidade, mas a conformação de um dispositivo ético fundamental presente em Husserl e que se refere aos caminhos da redução fenomenológica como formas de memória. É possível recordar as categorias que obnubilam a práxis científica, é possível notar o mundo da vida, e, em movimento posterior, que completa a conversão da atenção, dirigir o interesse não para como as coisas são, mas para como aparecem (Gurwitsch, 1956/2009). Esta é a forma que o retorno ao sujeito toma na fenomenologia e que, n'A crise, passa a ser explorada após o término do exame da oposição entre o objetivismo fisicista e o subjetivismo.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Danilo Saretta Verissimo
danilo.verissimo@gmail.com

Recebido em: 24/11/2020
Aceito em: 27/01/2021

 

 

1 Utilizamos, neste estudo, a versão francesa do livro La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale (Husserl, 1954/2004). A versão original da obra (Husserl, 1954), em alemão, e que constitui o volume VI da Husserliana, projeto de publicação das obras completas de Husserl, foi consultada com o fim de cotejar passagens e expressões sensíveis. Sempre que julgamos apropriado, apresentamo-las no alemão.
2 Acerca da atitude da ciência como uma forma de redução, ver os comentários de Husserl (1952/1996) no §11 de Ideias II.
3 Vale fazer constar, desde já, a definição que Husserl (1954/2004) dá, neste ponto do texto, à "nova psicologia". Ela ocupa-se, segundo suas palavras, de "pesquisas intrapsicológicas no campo da alma, doravante separado da corporeidade, do mesmo modo que se ocupa de explicações fisiológicas e psicofísicas" (p. 97).
4 Trata-se da nota inserida no §9, item b, "A ideia fundamental da física galileana: a natureza como Universum matemático", de A crise.
5 Conforme Abbagnano (1971/2000), além de raro, pode não ser correto aplicar o termo sensacionismo ao empirismo lockeano, tendo em vista que Locke admitia não apenas a sensação, mas também a reflexão como fonte de conhecimento. Apesar da advertência, utilizamos esta denominação por considerarmos haver uma primordialidade do elemento sensível na psicologia lockeana. Husserl (1954/2004), ademais, faz uso do termo "Sensualismus" (p.87), um sinônimo de sensacionismo, para aludir à teoria empirista de Locke.

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