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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora Jan./Apr. 2022

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.36237 

RESENHA

 

Se essa rua falasse: uma análise sobre estigma, pobreza e uso de drogas nas trajetórias de sujeitos em situação de rua

 

If this street could speak: an analysis on stigma, poverty, and drug use in trajectories of homeless subjects

 

Si esa calle hablara: un análisis sobre estigma, pobreza y uso de drogas en las trayectorias de sujetos en situación de calle

 

 

Ivanilson Dinis Geraldo Monteiro

Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: pucomonteiro@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3300-4043

 

 

Os argumentos ora expostos aqui, em formato de resenha crítica, se baseiam no livro intitulado: SE ESSA RUA FALASSE: uma análise sobre estigma, pobreza e uso de drogas nas trajetórias de sujeitos em situação de rua, dos autores Kíssila Teixeira Mendes, Telmo Mota Ronzani e Fernando Santana Paiva, publicado em 2019 pela editora UFJF, com 117 páginas. A autora é formada em ciências sociais e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Os dois últimos autores são psicólogos e Professores da UFJF.

Gostaria de começar as minhas reflexões sobre o livro parafraseando o imortal líder africano, Nelson Mandela: ninguém conhece de fato uma nação se não conhece suas prisões, se não conhece como vivem as pessoas vulnerabilizadas, consideradas não cidadãos, não pessoas.

Sendo sociólogo africano, atento aos problemas relacionados à pobreza, desigualdade social e uso de drogas, pude perceber que, no Brasil, falar do uso problemático de álcool e outras drogas é reverberar sobre um fenômeno que acompanha a história brasileira e que agora, século XXI, apresenta-se sob várias interfaces: interface de raça, desigualdade social, desigualdade de classe e de gênero. Essas categorias são elementos essenciais, quando se quer entender as relações existentes entre a sociedade brasileira e uso problemático de substâncias psicotrópicas.

No livro supracitado, fruto de uma brilhante dissertação, percebe-se que os autores foram felizes ao juntarem essas interfaces, formando assim um mosaico "colorido" de reflexões que expressam a real situação desses sujeitos: pessoas que vivenciam, na pele, esse fenômeno social. As agudezas de reflexões sobre as principais categorias do trabalho-estigma, pobreza e uso de drogas, vão ao encontro do meu entendimento sobre esta problemática. Contudo, falar de estigma, pobreza e uso de drogas em situação de rua é falar sobre saúde pública.

O trabalho foi dividido em cinco estimulantes capítulos. No primeiro, intitulado: Pobreza: Entre teorias e realidades, foram apresentados os artefatos teóricos que expressam a realidade da pobreza e desigualdade, tendo como foco o contexto brasileiro e o da América Latina. Aquele que vê a pobreza sob a lente crítica, percebe que ela é um elemento indispensável para consolidação e afirmação do sistema capitalista. Destarte, quanto mais empobrecidos os sujeitos são, mais o capitalismo se consolida. Uma contradição. Quanto mais as pessoas são expulsas de todos os preceitos/legado da dignidade da pessoa humana, mais o sistema se afirma. Uma injustiça. Baseando no exposto, posso dizer, sem medo de errar, que o sistema capitalista, para ser o que é, tem que ser injusto e contraditório.

Os ideais dessas injustiças e contradições foram propagados aos países do Sul global, nas décadas de 1970-80, como uma panaceia para todas as mazelas. O modelo econômico perverso, neoliberal, desenhado pelo ocidente, tido como elemento fundamental para livrar os países do Sul do globo da pobreza e, consequentemente, atingir o desenvolvimento almejado, não funciona. Os "chefões" de Washington - FMI (Fundo Monetário Internacional) e BM (Banco Mundial) - ditaram regras para esses países e, em 1990, esse conjunto de regras possibilitou a elaboração do conceito de Índice de Desenvolvimento Humano, IDH. Conceito esse que não respeita as especificidades geográficas dos países e nem as singularidades dos povos.

A literatura sobre desenvolvimento, que traz crítica a essa concepção imposta pelo ocidente ao Sul global, mostra que a receita que está sendo apresentada não foi a mesma que eles, a saber, o ocidente, usaram para atingir o nível da dita "prosperidade" que tanto pregam. O conceito de desenvolvimento é muito mais complexo que o simples fato de crescer economicamente. Tem países que são desenvolvidos sem crescer economicamente, e tem países não desenvolvidos com alto crescimento econômico.

Com a inserção desse modelo econômico no Sul global, sociedades e cidades ganharam outras dinâmicas. As relações entre os homens se tornaram líquidas. Tudo passa a ganhar um valor monetário, provocando a expulsão de pessoas no que concerne aos seus direitos. Direito a habitação, saúde, educação e saneamento básico. Isso não se restringe somente à América Latina, os países africanos representam mais a regra do que a exceção. Essa falta de engajamento do Estado, tanto nos países latino americanos quanto nos africanos, no que diz respeito ao seu papel, provoca marginalização de certos segmentos sociais.

Falei sobre o continente africano porque acredito que, como um africano, ao comentar sobre a pobreza e o sistema capitalista neoliberal perverso no Brasil e na América Latina, não tem como fugir da história africana, porque a América Latina e a África são as margens do mesmo rio, no que concerne ao imperialismo ocidental. O subdesenvolvimento latino-americano, assim como o dos países africanos, depende muito das estruturas de relações mantidas com as metrópoles do capitalismo há séculos. Ambos os continentes, com distâncias geográficas e aproximações históricas incomensuráveis, sempre foram - e ainda são - laboratórios de modelos econômicos do Norte global. E tais modelos, ou imposições, se tornam condições importantes e algumas vezes decisivas na obtenção de empréstimos do FMI e BM. Entretanto, isso tem impacto na vida de pessoas, e a psicologia desempenha um papel fulcral no entendimento da construção do psiquismo desses dois povos enfeudados.

No capítulo seguinte, População em situação de rua: Os mais pobres entre os pobres, se faz necessário dizer o seguinte: falar da população em situação de rua é falar sobre a expulsão de um determinado segmento populacional de todos os legados da dignidade da pessoa humana, em toda as suas acepções. A problemática é antiga, porém apenas em 2009, o Estado brasileiro tentou estabelecer uma política pública face ao seu enfrentamento. O segmento populacional foi caracterizado ao longo do capítulo, através dos dados que mostram a incidência do sexo, cor, idade, escolaridade, da taxa de desemprego regional, os números da permanência na rua etc., como mostrarei mais a frente. Os empecilhos na implementação de políticas públicas voltadas à problemática não foram deixadas de lado. A questão de estigma, atrelado a esse segmento social, aparece como categoria importante para entender o fenômeno. A população em situação de rua, segundo o que os dados censitários mostram em termos numéricos, vem crescendo e, consequentemente, deixando muita gente em estado de permanente vulnerabilidade social. A maioria dos sujeitos que se encontram na rua são homens. A faixa etária é de 25 a 55 anos.

O desemprego é um dos fatores que levam à rua, para os mais velhos. As reflexões foram baseadas nos dados das seguintes cidades: Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São Paulo. O capítulo inteiro faz uma retrospectiva histórica, social e econômica desse segmento social no Brasil. Dito isso, o subcapítulo que fala sobre estigma chamou a minha atenção. Falar do estigma é falar sobre os corpos. São corpos que têm cor específica, corpos de lugares geográficos marginalizados - as favelas - não gosto do termo comunidade quando estou referenciando lugares marginalizados no Brasil; gosto de usar favela, que remete ao favo, semelhante aos corpos que lotam os presídios, corpos que são privados dos prazeres, corpos que são corpos também. Para Durkheim, o corpo é a marca do indivíduo, a fronteira, o limite último que de alguma forma o distingue dos outros sujeitos. E existe uma relação muito forte entre o estigma e os indivíduos marcados a serem estigmatizados. Esse estigma só é vivenciado até hoje, por esse segmento social, porque temos uma sociedade desigual, machista, patriarcal e construída à base do racismo estrutural que deixa marcas nos corpos. O poder punitivo do Estado e da sociedade não atinge todos os corpos.

O terceiro capítulo, Novas roupagens de um velho problema: Drogas, pobreza e situação de rua, mostra que as drogas sempre fizeram e continuam fazendo parte da história da humanidade, da sociedade. Os sentidos atribuídos ao uso que diferem, dependendo do momento histórico e do contexto sociocultural. A guerra às drogas, que começou nos Estados Unidos, na era Nixon, é uma guerra contra nós, e, acima de tudo, busca legitimar o discurso médico-jurídico. Um discurso usado, historicamente, como uma das estratégias de controle social, em que o usuário é qualificado como doente e o traficante como delinquente. O Brasil incorporou o modelo Nixon no enfrentamento da problemática das drogas. Em 1964, com o advento do golpe militar, houve um deslocamento das políticas criminais para o modelo bélico e a repressão ao uso de drogas, legitimada pela medicina com o alargamento dos modelos de internação, como bem ficou ilustrado pelos autores. No entanto, na primeira década dos anos 2000, foi reconhecido que guerras às drogas não funciona. As intervenções baseadas em amedrontamento foram/são descasos. As políticas de redução de danos confluídas com as intervenções baseadas em evidências científicas passaram a ganhar espaços nas instituições atrelados aos cuidados biopsicossociais. Haja vista que a nova lei sobre drogas no Brasil, lei 11.343/2006, mostra o quanto a seletividade de classe ainda importa, no que tange a aplicação da lei. Aos pobres, o discurso jurídico; aos usuários de classe média e alta, o discurso médico.

No quinto capítulo, Resultados e discussões: Em busca de uma compreensão, os autores mostram o quanto nos atendimentos dos serviços de cuidados - que se encontram muitas vezes aquém das verdadeiras necessidades desse segmento social - a população em situação de rua, o estigma e as relações familiares fragilizadas, a violência da sociedade e institucional, ainda são elementos essenciais para entender esse segmento social. Toda essa reflexão foi feita a partir de dados qualitativos, obtidos nas entrevistas com essas pessoas. Na sessão 5.2., o conceito analisado foi o de trabalho. O trabalho enquanto valor principal e a reprodução de valores moralistas e estigmatizantes. Ainda assim, sonham. No decorrer da leitura, lembrei-me do Brasil colonial e do período da ditadura militar. Nesses dois momentos históricos do Brasil, pregava-se muito que o trabalho é sinônimo de dignidade. Quem não detinha um emprego com carteira assinada era considerado indigno, um vagabundo. A sessão fez-me ir mais longe, à Alemanha nazista. Lembrei-me dos dizeres nos "famosos" campos de concentração: Arbeit macht frei. O trabalho liberta, numa tradução livre. Uma falsa justificativa para legitimar a atrocidade cometida. Voltando ao contexto brasileiro, a população em situação de rua é tida, muitas vezes, como indigna por causa de falta de emprego. Isso mostra o quanto estamos inseridos num sistema contraditório, que expulsa as pessoas de todas as oportunidades de trabalho e, ao mesmo tempo, cobra delas um emprego formal. Isso ficou explicito nas falas de pessoas que foram entrevistadas: "Porque a polícia, por exemplo, dá mais moral pra uma pessoa trabalhadora, com certeza né, do que para um morador de rua". O desemprego, às vezes, vira motivo de autoculpabilização. Como bem mostra o trecho: "Uma parte eles não tão errado não, porque o governo dá muita regalia pra quem não precisa. Quase que se o governo falasse assim: - Não tem restaurante popular, não tem Centro Pop, não tem Albergue, eu acho que muitos iam caçar um serviço". Uma das características do capitalismo é fazer com que as pessoas acreditem que se não der certo, as culpadas são elas. O fracassado é você. Não SE esforçou muito ou o suficiente. Todas as oportunidades estão aí, basta você querer. A meritocracia na sua versão mais desumana.

Concluindo, o livro reúne cinco estimulantes capítulos, que narram as trajetórias e as vivências da população em situação de rua que faz o uso problemático de drogas. O trabalho esmiuçou antigos e recentes achados científicos sobre o assunto no Brasil. Uma incomensurável combinação entre o que a literatura coloca e as vivências de rua desse segmento populacional. Os autores souberam seduzir o leitor com uma rara capacidade intelectual e serena sensibilidade sobre as verdadeiras necessidades desse segmento social. Necessidades essas que merecem ser enfrentadas com políticas públicas na área da saúde pública e habitação, fundidas com intervenções baseadas em evidências. O que me chama mais atenção é como o livro deixa claro o quanto enriquecedor é o contato extra acadêmico, no que tange ao desenvolvimento de pensamento crítico sobre o fenômeno estudado. O livro transforma o que outra hora pode ser considerada como difíceis discussões políticas em vívidos debates. Os autores mereciam uns "brindes" por suas aberturas dialéticas/ didáticas, suas sensibilidades e compreensões das contradições e conflitos da vida social desses sujeitos.

 

Referências

Mendes, K. T, Ronzani, T. M., & Paiva, F. S. (2019). Se essa rua falasse: Uma análise sobre estigma, pobreza e uso de drogas nas trajetórias de sujeitos em situação de rua. Juiz de Fora: Editora UFJF.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 03/11/2021
Aceito em: 03/12/2021

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