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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2022

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.31536 

ARTIGOS

 

Superando o cérebro: Andy Clark e a cognição corporeada

 

Outgrowing the brain: Andy Clark and the embodied cognition

 

Superando el cerebro: Andy Clark y la cognición corpórea

 

 

Igor Marques-SantosI; Briseida ResendeII

IUniversidade de São Paulo (USP). E-mail: igor.marques.santos@usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6163-1840
IIUniversidade de São Paulo (USP). E-mail: briseida@usp.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5932-0189

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ensaio discute o conceito de cognição corporeada, de Andy Clark, e sua relação com a questão mente-corpo. Objetiva-se definir o conceito, temáticas com que conversa e como propõe novas alternativas teóricas para a questão, trazendo suas influências teóricas e, então, discutir como o cérebro, a cognição, o corpo e suas relações são localizadas nessa perspectiva. Compara-se o conceito com outras teorias cognitivas; terminando a exposição, discorrendo-se acerca da possibilidade de se incorporar esse enquadre teórico às Ciências Cognitivas, psicologia e psicanálise, discutindo-se, também, os limites e as potencialidades desse conceito para uma concepção renovada de desenvolvimento cognitivo.

Palavras-chave: Cognição corporeada; Andy Clark; Filosofia da mente; Mente-corpo; Psicologia do desenvolvimento.


ABSTRACT

We discuss Andy Clark's concept of embodied cognition and its relation to the body-mind problem. The objective is to define the concept, its related topics, and how it lay down new theoretical alternatives to that question. We expose its main theoretical influences, following this perspective's understanding about the relationship between brain, cognition, and body. Comparing this concept with other cognitive theories, we finish the exposition by discussing the possibility of embedding this theoretical framework into cognitive sciences, psychology and psychoanalysis, while also analyzing its boundaries and potentialities for a new perspective on cognitive development.

Keywords: Embodied cognition; Andy Clark; Philosophy of mind; Body-mind; Developmental psychology.


RESUMEN

Discutimos el concepto de cognición corpórea de Andy Clark, y su relación con el problema cuerpo-mente. El objetivo es definir el concepto, los temas relacionados y cómo establece nuevas alternativas teóricas a ese problema. Exponemos sus principales influencias teóricas, siguiendo la comprensión de esta perspectiva sobre la relación entre cerebro, cognición y cuerpo. Se compara este concepto con otras teorías cognitivas, terminando la discusión exponiendo las posibilidades de la incorporación de este marco teórico en las ciencias cognitivas, psicología y psicoanálisis, mientras analizamos sus límites y potencialidades para una nueva perspectiva sobre el desarrollo cognitivo.

Palabras clave: Cognición Corpórea; Andy Clark; Filosofía de la mente; Mente-Cuerpo; Psicología del Desarrolo.


 

 

Discussões sobre o dualismo mente-corpo são recorrentes e antigas na Psicologia. A visão prevalente no mundo ocidental se encontra na proposta de René Descartes: haveria um dualismo ontológico entre mente e corpo, e um dualismo epistemológico que distinguiria o sujeito que conhece e o objeto que permite ser conhecido, sendo mente e corpo dois objetos de natureza distinta, porém relacionados (Ryle, 2005). Fodor (1981) aponta que a produção teórica que estuda a relação entre esses dois objetos pode ser dividida em duas categorias mais relevantes: as teorias dualistas e as monistas. As teorias dualistas, como as cartesianas, aceitam a existência dessas duas instâncias em separado, sendo que uma não pode ser reduzida à outra. Podem discordar sobre as formas pelas quais se dá a relação dos integrantes dessa díade: para os epifenomenalistas, como parte relevante da neurociência, a mente seria secretada pelo cérebro, ao passo que, para os animistas, essa relação seria invertida, com a mente controlando o cérebro, por exemplo (Bunge, 1980).

Já para as teorias monistas, o problema da díade corpo-mente seria falso, a partir do momento em que essas instâncias se confundiriam, sendo que, assim, um desses lados assumiria o papel principal na gênese da cognição. Teríamos, então, ou a primazia do mental, como para os idealistas, excluindo-se o organismo biológico na constituição desta, ou do corpo (mais especificamente o Sistema Nervoso Central, SNC) como real agente cognitivo, sendo a mente apenas um constructo teórico baseado na atividade neural, fisiológica, o que é apontado pelos materialistas (Fodor, 1981).

Pesquisadores contemporâneos têm questionado esse dualismo, rebatendo a independência entre os processos físicos ou corporais e promovendo um debate sobre a possível dissolução desta dicotomia (Ballesteros & Resende, 2015; Gallese, 2005; Resende, 2019b). É a partir de uma mudança nesse paradigma da mente desconexa do corpo que surge uma nova reflexão sobre o cognitivo sob o nome de cognição corporeada (embodied cognition), segundo a qual, a cognição é estruturada por outras partes do corpo do agente além de seu cérebro. O conceito reúne autores que têm diferentes abordagens a respeito da influência do corpo sobre a atividade cognitiva.

Dentro dessa perspectiva, encontra-se parte do trabalho do filósofo britânico Andy Clark, que apresentaremos e discutiremos neste texto, evidenciando o caráter heurístico da abordagem, suas possibilidades de aplicação e seu diálogo com diversas áreas, tais como a psicologia do desenvolvimento (Flynn, Kendal, Kendal & Laland, 2013; Lockman, 2000; Thelen, 2002), a aprendizagem (Barrett, 2011), a interface com as neurociências em virtude do potencial unificador da abordagem (Clark, 2016) e a etologia (Resende, 2019b).

Em seus textos sobre cognição corporeada, os quais serão o foco do presente artigo, Clark delineia uma nova ciência cognitiva trazendo para a análise uma outra perspectiva dos limites da cognição, incluindo, também, o corpo e o ambiente nesse conjunto, e como ela se estabelece a partir desse corpo que é regrado pelas leis da evolução, tomando em conta, principalmente, as atividades de um cérebro que é, acima de tudo, biológico (Clark, 1999).

Clark está apoiado nessa mudança de perspectiva e nos conceitos trabalhados em suas pesquisas, e o presente artigo traz novas possibilidades para se operar com o problema mente-corpo, fundamentando-se, principalmente, no local em que o autor destina à mente em sua relação com o cérebro. Torna-se interessante trazer sua obra para a análise no momento em que ela se propõe a oferecer novas saídas para esse problema, apresentando, para tanto, modelos inéditos para se estudar e observar a cognição.

 

Precedentes Teóricos

O pensamento de Clark pode parecer, em um primeiro contato, substancialmente diferente do senso comum e das plataformas científicas e filosóficas mais conhecidas, podendo levar a crer em uma suposta originalidade nessa criação. Algo que fica atrás de toda essa produção do autor, entretanto, são as fontes das quais ele empresta conceitos fundamentais para a elaboração de seu corpo teórico. São empréstimos da Fenomenologia, de novas sínteses da Filosofia da Mente e da Biologia, bem como diálogos com campos que não estão diretamente (ou ainda, tradicionalmente) relacionados a essa área, como a Robótica e o conceito de sistemas dinâmicos, provenientes da Matemática. Pretende-se, então, explorar, de forma não exaustiva, algumas fontes que esclareçam aspectos importantes da teoria de Clark.

O primeiro autor tratado aqui será Merleau-Ponty. O ponto principal de discussão diz respeito à localização da cognição: como o ser humano lida com o ambiente que o cerca, criando um espaço de "intersubjetividade", em que age e atua no contexto por meio da percepção que tem dele. O próprio do percebido é se deixar modelar por seu contexto, ou seja, a forma do estímulo excitante é criada a partir do modo pelo qual o organismo se dispôs perante o estímulo (Merleau-Ponty, 2013). Somente através do corpo, o mundo é sentido e percebido. A percepção, sendo praticada pelo corpo, não é mais um mero ato de pensamento, e sim um encontro. Encontro no sentido de que aquilo que é percebido não é definido inteiramente pela corporeidade, mas pelo ambiente: a coisa percebida é uma estrutura encontrada no mundo que é acessível à inspeção do corpo (Merleau-Ponty, 2013).

Partindo da importância do corpo para a construção da experiência a partir de sua relação com o mundo, torna-se interessante retomar Rodney Brooks, especialista em Inteligência Artificial, que trata sobre a natureza dessa relação. O autor, ao discorrer sobre as formas como os organismos se comportam, propõe um modelo voltado às relações que o mundo possui com o organismo: uma representação dêitica, voltada para a ação, não para a construção de um modelo interno (Brooks, 1991). Para tanto, utiliza-se de experimentos robóticos para demonstrar que, mesmo sem capacidade simbólica alguma, estruturas físicas são capazes de agir de forma que pareçam expor comportamentos inteligentes, utilizando-se, para isso, de uma comunhão entre as propriedades do ambiente e de um organismo que nele existe enquanto entidade física (Brooks, 1991). Isso se dá pelo fato de que o mundo seria o melhor modelo de si mesmo, não necessitando ser representado de forma neutra; a base da inteligência se dá, então, a partir da dialética daquilo que se refere à mobilidade de um organismo, bem como sua habilidade de completar tarefas relevantes em um ambiente que é dinâmico (Brooks, 1991).

Estando certas informações do ambiente (necessárias para qualquer demanda vinda do organismo) sempre disponíveis e ao alcance desse organismo, a representação de entidades de forma centralizada passa a não ser uma ferramenta adequada para esse agir no mundo; não ter uma representação central é um ponto importante para um sistema inteligente que lida constantemente com um ambiente dinâmico fazendo com que, mesmo sem representações manipuláveis, simbólicas e centrais, esse sistema possa agir de forma preditiva, fazendo planos e construindo metas (Brooks, 1991). O "fantasma da máquina", que controlaria todas essas representações permitindo que organismo se comporte de forma intencional e/ou inteligente, é substituído por uma multiplicidade de sistemas interligados entre si dos quais emerge um comportamento coeso quando em contato com o ambiente e que não necessita de um controle central para esse fim.

Também no âmbito da dialética do corpo, com o ambiente na estruturação da cognição, as autoras Esther Thelen e Linda Smith baseiam sua pesquisa. A premissa teórica é a de que a unidade básica de análise da psicologia do comportamento não pode ser o ser humano em si, separado de seu ambiente, mas o ser humano agindo dentro de interações dinâmicas com este, flexivelmente restrito pelos impedimentos do ambiente e do corpo (Resende, 2019a, 2019b; Thelen, 2002). O organismo, trocando energia com o ambiente como um sistema aberto, atenua a importância da origem da perturbação ou da mudança de energia - seja interna ou externa, o foco é nas transformações que surgem, a partir daí, nesse sistema. Aí, localizam o desenvolvimento motor, foco das autoras, que surge, então, não como uma instância ordenada e hierarquizada, mas como um fenômeno emergente e exploratório, como um sistema dinâmico (Smith & Thelen, 2003; Thelen, 2002).

Também marcante, no trabalho de Thelen e Smith, é a análise de como um sistema multinível e auto-organizado consegue produzir essa variedade comportamental. Descobrem-se padrões simples em composições supostamente complexas - essa suposta "ordem" é tecida de uma variedade de interações de muitas unidades específicas de diferentes modos através de parâmetros variados. A ordem emerge, então, a partir de uma interação flexível do organismo com o ambiente, sendo, afinal, o produto de um processo, não uma instrução que guia o desenvolvimento ou o comportamento através de um caminho já pronto e universal (Smith & Thelen, 2003; Thelen, 2002).

Thelen e Smith compartilham da ideia de uma psicologia ecológica, proposta por James Gibson (1979); Anne Pick e Eleanor Gibson (2000). Para esses autores, ao estudar o desenvolvimento, o foco deve ser no ajuste entre o animal e o ambiente. Novas habilidades emergem, porque múltiplas forças dinâmicas de crescimento guiam a mudança: quando o indivíduo explora o ambiente, gera várias relações de espaço e força entre os objetos e superfícies e seu corpo. A partir dessas relações, aprende-se tais propriedades e potencialidades do mundo, por meio das restrições ambientais que entende e coordena tais relações.

Partindo desses direcionamentos teóricos, principalmente, da consciência enquanto ser em seu mundo, da independência em se inferir a existência de um "fantasma na máquina", e de uma cognição emergente das interações entre o corpo e o ambiente, Andy Clark fundamenta sua teoria sobre cognição corporeada. Podemos, então, prosseguir nosso estudo entrando nas definições e debates que este conceito tensiona.

 

A Teoria de Clark

Apesar de separarmos seu trabalho sob três movimentos - um primeiro, sobre o papel do SNC na cognição; um segundo, sobre um novo paradigma da cognição, que abarca também aspectos do ambiente e do corpo além do SNC e; um terceiro, de investigação sobre as possibilidades que daí surgem , todos os seus conceitos se encontram interligados (e, às vezes, até mesmo confundidos) em meio aos seus estudos; trata-se, portanto, de um recorte didático. Ao longo desta exposição também serão inclusos diálogos entre os achados de Clark (em especial, suas consequências ditas teóricas) e algumas propostas para a análise do problema mente-corpo como enunciadas por Bunge (1980), para podermos, então, apreciar como sua teoria dialoga com outras perspectivas acerca do fenômeno cognitivo e como se posiciona em relação a estas.

Primeiro Tópico: Cérebro como Órgão

Andy Clark se insere na discussão sobre mente-corpo compondo um quadro novo sobre a situação das ciências cognitivas contemporâneas. Em um de seus artigos, propõe que a metáfora de um cérebro que se encontra funcionando fora de seu contexto, e que é tomada como ponto de partida para o estudo da cognição, começa a trazer empecilhos para a ciência cognitiva (Clark, 1998). Claro, essa metáfora, em um primeiro momento, do cérebro como hardware neutro da inteligência, foi útil no que diz respeito a entender o funcionamento do cérebro como algo que transpassa o entendimento de sua organização espacial - uma organização fisiológica é incapaz de prever o funcionamento cognitivo -, mas se esqueceu de seu funcionamento como componente biológico. Qualquer melhora ou mudança que houvesse nesse hardware era de mínima importância para a análise da cognição, já que pouca mudança promovia (Clark, 1998).

Aqui, explorando o conexionismo, Clark faz uma ressalva para seu uso, apesar de se apoiar em muitas ocasiões sobre seus conceitos. Essa linha teórica, proveniente principalmente das neurociências, propõe uma substituição do processamento de símbolos e ideias por uma rede neural que, em funcionamento, faz emergir todas essas representações (Ballesteros & Resende, 2015). O conexionismo entende que a complexidade das redes neurais (e a mente) emerge, por fim, de sua arquitetura, em uma estrutura de baixo para cima (bottom-up).

Um dos primeiros obstáculos apontados por Clark, nessa perspectiva, trata-se do modo pelo qual a resolução de problemas é pensada. Operando com o modo pelo qual componentes físicos fazem emergir, em semelhança aos neurônios, através de "caminhos" da informação que são diferentes entre si e que, portanto, são usados de maneira e frequência diferentes, o conexionismo não se prende ao corpo enquanto parte da relação existente entre o input e o output da informação; ele se baseia em inputs-outputs abstratos, que tomam em conta uma capacidade de operar com os problemas oferecidos pelo ambiente de forma descorporeada (Clark, 1997). Essa preferência por um constructo que coloque a cognição como um tipo de computação passiva, que opera com abstrações, no lugar da realidade, poderia impedir que certas oportunidades inerentes à natureza dessa computação (oportunidades, por exemplo, vinculadas às propriedades da relação do corpo enquanto tal em seu ambiente) emergissem durante seu estudo (Clark, 1997). A proposta do Epifenomenalismo, entendida no trabalho de Bunge (1980) como um cérebro que secreta a mente, é então refeita em novos termos, que chegam até mesmo a invalidá-la, no sentido de se contrapor diretamente à sua premissa de que a cognição é uma produção solitária do SNC.

(Re) Tomar o cérebro como órgão biológico, supõe, então, que ele tem um funcionamento específico dentro de um ambiente e que é modelado por este (Clark, 1998, 1999). O organismo age, assim, em um ambiente que apresenta, em tempo real, problemas reais de sobrevivência (Clark, 1997). Sendo retomado nessa posição, o cérebro, como componente fisiológico, assume um papel importante dentro da cadeia de processos indispensáveis para a sobrevivência de um organismo que vive e age dentro deste. Dessa mudança de paradigma, do cérebro como um hardware para um cérebro como órgão de um organismo vivo, emerge um novo item que deve ser considerado quando no estudo da produção cerebral: estando em um ambiente, e incorporado por um organismo que luta por sua sobrevivência nesse ambiente, esse órgão também sofre pressões evolutivas. O fato de o cérebro ser uma instância biológica, influenciando enquanto tal a cognição, anula de forma simples a ideia proposta pelo Idealismo de que tudo é mental (Bunge, 1980).

Para Clark, o cérebro humano é, sobretudo, voltado para a ação (Clark, 1998, 2003). Ao que antes era considerada uma ferramenta para abstração, essa mudança de paradigma traz implicações importantes: o cérebro age voltado para o ambiente, inclusive por meio de atividades que não são diretamente associadas a ele, como a racionalização e a abstração. Sendo voltado para a ação, seu papel principal se desenvolve não no contato direto com o mundo, como se espera de um órgão motor, por exemplo, ou perceptivo, mas de controle e exploração desses processos anteriores (Clark, 1998, 2003). A inteligência, por conseguinte, age focada na integração da retroalimentação ambiental para os comportamentos perceptivos e motores executados no ambiente com o seu planejamento, servindo, então, para adaptar, da forma mais satisfatória possível, as respostas do corpo ao mundo, tornando o indivíduo mais sintonizado com este (Clark, 1997). Nesse momento, Clark aborda a questão de um organismo soft-assembled - conceito importante para analisar sua relação com o mundo, pois trata de como o ambiente é capaz, também, de promover comportamento; e o organismo, nesse embate de se comportar para suas demandas e levar em conta também aquilo que lhe pede o ambiente, age de forma idiossincrática em relação a seu contexto. O objetivo principal do SNC é, portanto, fazer um encaixe o mais sensível e apurado (soft-assembly) possível do organismo com seu meio.

Esse controle, entretanto, não deve ser entendido como uma centralização dessas atividades. O entendimento da cognição é localizado a partir da noção de um sistema multinível, sendo que essa suposta coerência do comportamento humano (e bem como o de todos outros seres vivos) poderia se dar através de propriedades específicas de auto-organização e de sistemas dinâmicos, como será explicado mais à frente. O que é importante, por enquanto, é distinguir controle de centralização.

O fato de a funcionalidade do cérebro estar dedicada, principalmente, à ação sintonizada com seu ambiente pode ser depreendido, por exemplo, das inúmeras ligações entre o sistema perceptivo e o motor, tanto em níveis equivalentes quanto em níveis de hierarquias diferentes, e das ligações dentro de cada um desses sistemas entre seus diferentes níveis (Clark, 1998, 2003). Na mesma direção, dá-se, então, o conceito de Unwelt, utilizado nos estudos da percepção, que trata do ambiente não visto como uma unidade na qual suas partes são igualmente percebidas pelo organismo, mas como uma série de itens aos quais o organismo está sensibilizado de forma diferente, produzindo itens e estímulos mais relevantes. Por isso, fazem da percepção não uma ação neutra e secundária, mas uma ferramenta que opera ativamente no ambiente e por ele é moldada (Clark, 1997, 2003).

Um segundo e último item que diz respeito a essa mudança de paradigma ressalta o papel da Evolução darwiniana na definição da função desse órgão. Pois, sendo resultado da Evolução, ele se estrutura a partir de "gambiarras", que mostram possibilidades de criação de estruturas que nem sempre são convencionais para o raciocínio baseado na Inteligência Artificial mais clássica, como era de se esperar caso seu design tivesse sido elaborado por um engenheiro, por exemplo, que pressupõem uma funcionalidade dessa estrutura já totalmente pronta, sem necessidade (ou possibilidade) de alteração por conta do ambiente. O cérebro, assim, resolve seus problemas como um sistema biológico e não como uma entidade abstrata (Clark, 1998) - o que é de se esperar de um sistema que lida com demandas ambientais de cunho muitas vezes evolutivo (como a sobrevivência do organismo), posto que tais demandas pedem, em tempo real, suas soluções - variável essa do tempo que inexiste quando em uma concepção abstrata e tradicional de sistemas e que, nos sistemas biológicos, é essencial: a sobrevivência de um animal pode estar comprometida caso ele demore muito para lidar com os indícios de um predador em seu ambiente (Clark, 1997).

Há algumas características do cérebro e seu funcionamento que emergem quando tomada essa nova perspectiva. O ser humano, por exemplo, traz consigo uma capacidade importante de reconhecer padrões, modelar dinâmicas mais simples do mundo e manipular objetos do ambiente (Clark, 1999). A capacidade de reconhecer padrões é um item que, apesar de secundário como capacidade cerebral, permite que se retire mais informações de um ambiente que talvez não as ofereça em quantia suficiente para que o cérebro possa controlar com eficiência as ações e percepções desse organismo no ambiente (Clark, 1997). Os dois outros itens se tornam importante no que diz respeito ao manipular do ambiente para que, assim, o problema que por ele foi imposto seja simplificado para, então, ser "digerido" pela cognição; o ser humano, apesar de possuir uma boa capacidade de reconhecer padrões, deixa a desejar quando diz respeito ao raciocínio lógico (Clark, 1997); é, nesse momento, que o ambiente se torna mais um espaço onde seus problemas possam ser elaborados.

Chegamos a um ponto no qual a simples descrição do cérebro em si se esgota, não oferecendo mais informações relevantes para o trabalho. Tomaremos em conta, então, o segundo lado dessa operação, que é o ambiente (ou ainda, aquilo que surge no encontro do cérebro e do organismo com as demandas e especificidades do ambiente).

Segundo Tópico: Mente como Corporeada e Situada

As especificidades (e potencialidades) do cérebro enquanto órgão, nosso tema, até então, ainda não se constitui um estudo da mente em si, a partir do momento em que ela é construída, segundo Clark (1999), a partir desta tríade: cérebro, corpo e ambiente. Para se estudar a mente, é necessário que seja tomada essa tríplice como ponto de partida da investigação do fenômeno cognitivo.

A relação existente entre cérebro e mente é analisada de forma relativamente informal no artigo I am John's Brain (Clark, 1995), um artigo de divulgação científica. A primeira informação na qual se enraíza o artigo é a de que nem toda atividade cerebral é convertida para representações ou meios que permitam que um organismo a perceba de forma consciente.

Isso se dá pelo fato de que nem toda atividade cortical é traduzida para nosso entendimento (Clark, 1995). Isso seria um gasto desnecessário de energia e de tempo para um organismo situado em um contexto no qual esses dois recursos são fundamentais para sua sobrevivência (Clark, 1995, 1997, 1998). A cognição, portanto, não é uma tradução da atividade cerebral; ela envolve mais entidades que fogem aos limites do SNC. Tanto o Autonomismo, que propõe mente e cérebro desconexos entre si, quanto o Paralelismo, propondo uma equivalência entre atividade mental e cognição (Bunge, 1980), são questionados, uma vez que a cognição demanda um cérebro para se criar, mas que não é inteiramente definida por ele - bem como o entendimento de que o cérebro, sendo um órgão, possui funcionamentos e especificidades que não podem ser entendidos totalmente através do enquadre cognitivo.

Se por um lado, Clark afirma que o mental é definido pelo físico (Clark, 1997, 1998), logo, ressalta que essa fisicalidade não se restringe ao SNC: trata-se da retomada do ser humano enquanto ser-no-mundo e enquanto organismo. Nenhum sistema possui por si só capacidade cognitiva: é na interação com o mundo, pautada através de um corpo, que emergem capacidades de processamento e de comportamento inteligente (Clark, 1997).

Esse materialismo neurofisiológico, na gênese da cognição, é reconfigurado, inclusive, ao propor que a divisão do sistema cognitivo em unidades neurais é enganosa, uma vez que impede a análise da cognição em sua extensão completa, a partir da tríade (Clark, 1999). Sendo um fenômeno que vai além do SNC, construindo-se a partir de relações de várias instâncias (fisiológicas, físicas, ambientais, sociais), a explicação da cognição é impossibilitada como simples fenômeno físico.

Apoiando a visão do autor, Ballard, Hayhoe, Pook e Rao (1997) discorrem a respeito de experimentos relacionados aos movimentos oculares sacádicos, e como esses permitem dissolver ainda mais as barreiras existentes entre cérebro e corpo, na definição da mente, pela disposição corporal ser relevante nesses processos e por sua curta duração. Ambos os itens mostram a relação de interdependência entre a cognição e o corpo. A fixação ocular fornece dados de alta resolução, uma vez que o olho humano enxerga com maior detalhe quando o objeto está localizado perto da região do eixo óptico (ou seja, da fóvea), e tal informação será utilizada tanto para processar alguma demanda do ambiente quanto para servir como um ponto de partida no momento em que o cérebro necessite procurar novamente, nesse ambiente, por mais informações. A percepção influencia a cognição que, por sua vez, influencia a percepção de forma circular, a partir do momento em que a percepção se trata, por fim, pela busca de possibilidades pelas quais o organismo pode agir (Clark, 1997). Estas ideias de Clark refletem o alinhamento de seu pensamento com a proposta dos Gibson sobre o ciclo percepção-ação (Gibson, 1979), e o olhar de Thelen (2002) sobre o desenvolvimento motor e sistemas dinâmicos.

O planejamento, assim, é feito a partir da ação. A memória passa a ser entendida como um processo seletivo, apoiada, não no resgatar estímulos por si só, mas no lembrar daquilo que tem alguma relevância (Clark, 1998). A memória, ainda, deve ser entendida, não como um depósito de descrições do mundo, mas sim como um arquivo de estruturas operantes a partir das quais o organismo pode agir (Clark, 1997).

É na relação com o ambiente, também, que se dão processos importantes para a cognição. Isto pelo fato de que, focando na economia de esforço (que resulta em uma economia de energia e tempo), o ambiente é utilizado pela cognição humana como um suporte para suas atividades, em um conceito importante que é o de external scaffolding: sendo manipulado no ambiente, um problema, muitas vezes, é facilitado de forma que representações, caso utilizadas, seriam apenas um caminho mais custoso, por demandarem trabalho cognitivo adicional (Clark, 2003). O mundo, afinal, seria seu melhor modelo - o que fica evidente mesmo nos movimentos sacádicos, que a todo instante buscam, no ambiente, informações necessárias para o processamento adequado das demandas desse ambiente e desse corpo (Clark, 1997).

Esse apoio no ambiente externo traz novas perspectivas para se entender a cognição. Uma delas diz respeito ao entendimento de que uma produção dita "cerebral" recebe, na verdade, muito apoio e estruturação contextual para se construir. Os movimentos sacádicos, por exemplo, permitem que o corpo aja de acordo com uma estratégia dêitica (de referenciar seu contexto), especialmente a visão, neste caso; o olhar dêitico concentra a atividade cognitiva nos lugares para onde se encontra a fóvea. Isso se mostra como um agir mais econômico, uma vez que, não somente permite que o processamento de informações se restrinja à área em que está no momento, em tempo real, tomando o centro da visão como ponto de referência, como também só retoma informações relevantes para os processos cognitivos quando necessário, dispensando sua memorização ou, até mesmo, sua representação, já que grande parte dessas informações estão facilmente acessíveis no ambiente (Ballard et al., 1997; Clark, 1997, 1998, 1999).

Clark ressalta que esse movimento de negação do representar o ambiente, entretanto, precisa ser visto com certa cautela, uma vez que o entendimento representacional pode ser utilizado para interpretar a cognição sob certas circunstâncias (Clark & Grush, 1999). A mudança que deve ser feita no uso do conceito de representação para analisar o fenômeno cognitivo se dá na funcionalidade dessas representações, bem como na ocasião em que são utilizadas. Num mundo que oferece certas informações relevantes para resolver os problemas de forma rápida e sempre disponível, as representações acabam por ser contraprodutivas, uma vez que uma simples investigação no ambiente pode já ser suficiente para a demanda cognitiva pendente (Clark, 1998, 2003). É importante reconhecer essa facilidade oferecida pelo ambiente, uma vez que, nem sempre ela está presente. A representação, assim, muda seu escopo de atuação para abarcar, dentro dessa nova visão, um papel de simulação. Simulação que, mesmo assim, é construída tendo em vista sua função no ambiente, não como sua simples abstração - os estados representativos estão relacionados profundamente à cognição biológica como simuladores, agindo em situações nas quais o se apoiar no ambiente não é possível, dadas as restrições temporais dessa tarefa. A melhor representação, portanto, seria aquela que permitisse simular de forma mais útil possível os aspectos do ambiente que não estão disponíveis no momento ou que não poderiam ser acessados, em vista da escassez de tempo para tanto; seria aquela que cria um "dublê", que age de forma mais parecida possível com o ambiente, fornecendo o feedback necessário para o organismo se sintonizar com a situação real (Clark, 1997, 1999, 2003).

Um último ponto que ainda fica aberto quanto à dinâmica desses comportamentos diz respeito aos mecanismos que se tornam relevantes quando tomado em conta esse organismo (enquanto entidade física) agindo e sobrevivendo em um ambiente que está em constante mudança.

Em um primeiro momento, a coesão dos nossos pensamentos e da nossa experiência do mundo parece ser um indício de que há alguma centralização dos processos cognitivos. O que temos, na verdade, é um sistema multinível de sistemas menores que, agindo simultaneamente e em comunicação entre si, fazem emergir esse produto comportamental coeso e "limpo", de forma que nem sempre é possível perceber de primeira mão a fragmentação sob a qual existem esses processos. A centralização seria contraprodutiva, uma vez que, nesse funcionamento, um input deve ser convertido em uma linguagem específica do sistema central que, trabalhando e elaborando o necessário deste símbolo, converte-o para a linguagem de cada sistema subsequente - um caminho que poderia ser encurtado caso cada sistema mais local trabalhasse com seus próprios inputs de acordo com suas especificidades (Clark, 1997).

A sensação de coerência nos movimentos do organismo se dá como um produto de sua ação dentro do seu ambiente; há um pareamento entre esses sistemas mais locais e elementos relevantes do ambiente (seu unwelt) (Clark, 1997, 1998). Tanto se explica também pelo fato de que os sistemas locais têm interligações entre si - como no caso das ligações entre o sistema motor e o perceptivo, que garantem um movimento fluído e sintonizado ao ambiente sem que haja necessidade de uma organização centralizada que controle essa comunicação.

A cognição se mostra, então, como fenômeno que, apesar de único, estende-se por sobre outras instâncias além do tradicionalmente entendido como cognitivo (tal como o funcionamento do SNC) e é formada, também, por elas. Essa nova perspectiva abre espaço para o uso de novas técnicas de pesquisa e de análise, e, junto com essas potencialidades, também traz consigo uma nova problemática.

 

Um Arremate Possível?

Dizendo ser a tríade cérebro-corpo-ambiente essencial para se entender a cognição, alguns pontos dessa nova síntese ainda ficam abertos. O foco no mundo e na ação em tempo real, soluções descentralizadas para a resolução de problemas e uma visão estendida da cognição (o que seria um resumo dos tópicos importantes explorados por Clark) exigem uma nova metodologia no tratamento das informações disponíveis sobre o assunto. Essa mudança de paradigma, porém, pode ser frutífera por si só, enquanto uma nova perspectiva a ser tomada para se analisar os fenômenos da cognição, como se pode perceber na dinâmica entre o acesso a memórias mais abstratas e mais corporeadas na depressão (Gjelsvik, Lovric, & Williams, 2014), e na precariedade da organização de um conhecimento motor, como observado no autismo (Eigsti, 2013). Nos trabalhos mais recentes do próprio Clark, toda essa estruturação acerca dos limites e das potencialidades da cognição é base para se elaborar uma proposta unificadora levando em conta percepção, ação, atenção, neurociência, psicologia e filosofia que facilite a compreensão da aprendizagem e cognição (Clark, 2016).

Um primeiro empecilho dessa metodologia diria respeito à dificuldade em se fazer os recortes dessa imensa tríade para que fosse possível seu estudo (Clark, 1997). Se a cognição é essencialmente córtico-corpóreo-ambiental, então a análise de apenas um desses itens se mostrará insuficiente para seu entendimento como um todo. O estudo do desenvolvimento sob a ótica dos sistemas dinâmicos (proposta principal de Thelen e Smith) abre possibilidades para essa análise à medida que apresenta novas ferramentas que permitam lidar de forma mais adequada com esse tipo de fenômeno - múltiplo, descentralizado, dinâmico - como já é, inclusive, apontado por Clark (1997, 1999, 2003).

Acreditamos que, entretanto, a própria mudança no paradigma do lugar ocupado pela mente permita que surjam novas metodologias de estudo. Se as perguntas antes eram feitas tomando em conta um recorte da cognição, logicamente elas produziam um conhecimento que era moldado e específico a esse recorte. Se a pergunta, então, começa a englobar mais entidades, de forma que a topografia da mente utilizada nesse questionamento é alterada, abarcando todas as mudanças propostas por essas novas teorias, a resposta obtida será, portanto, diferente. A preocupação em se criar metodologias que permitam um recorte para o estudo desses fenômenos pode ser entendida a partir de uma suposição de que esse recorte é possível, ou seja, ela é baseada, ainda, na ideia de uma cognição que pode ser definida somente por uma instância da tríade proposta pelo autor. Quando levada em conta a cognição em sua completude, porém, tal tipo de recorte se mostra desnecessário - ele, ao menos, emerge como resposta a uma pergunta que toma como princípio essa natureza multinível do fenômeno: é impossível se perguntar de uma folha e obter respostas que tratem de uma árvore enquanto tal, não enquanto folha.

Um segundo empecilho diz respeito à forma pela qual a cognição avançada pode ser estudada a partir dessa perspectiva da corporeidade e da sua existência dentro de um ambiente. Isso se dá pelo fato de os estudos de Clark se fundarem principalmente acerca de aspectos sensório-motores da cognição.

Seria importante, para tanto, que fossem ressaltadas as diferenças de funcionamento (e de função) entre essa cognição mais "simples" daquela dita avançada, procurando esclarecer a essência de cada uma delas, o que permitiria, então, que fossem feitas as perguntas certas sobre elas (ou seja, permitir que seja possível analisar tais instâncias do modo pelo qual se apresentam verdadeiramente). Uma abordagem que pode ser proposta, nesse sentido, é a aproximação "de baixo para cima" (bottom-up), proposta por Waal e Ferrari (2010), às questões da cognição humana e animal; nessa aproximação, é sugerida uma análise não das diferenças existentes entre as variadas espécies, mas de suas semelhanças, e como uma estrutura cognitiva dita complexa emerge a partir de componentes mais básicos que, por vezes, são compartilhados com outras espécies.

Uma outra possibilidade se dá no uso do extenso material elaborado pela Psicologia e pela Psicanálise acerca dessa cognição mais avançada. Um bom exemplo seria o conceito da identificação projetiva, elaborado por Melanie Klein. O conceito diz sobre um conteúdo afetivo que não consegue ser elaborado pelo sujeito e que, então, é depositado no ambiente, a fim de se mostrar mais claro, mais "elaborável" e, até mesmo, protegê-lo da angústia proporcionada por esse elemento conflituoso (Klein, 1946/1991) - fica evidente, nesse primeiro exemplo, uma formatação semelhante ao conceito de external scaffolding, no qual parte do processamento cognitivo é transferido para o ambiente que o "digere", porém aplicada no âmbito do afeto, da cognição avançada. Em outro exemplo também da psicanálise, Mandelbaum (2010), em sua tese de livre-docência, analisando o espaço domiciliar como parte da memória do indivíduo, traz a ideia de que existe uma topoanálise, ou seja, "o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima. [...] O inconsciente estagia" (Mandelbaum, 2010, p. 109). A casa é mais um espaço onde se condensa a intimidade do sujeito; são memórias, entretanto, que são vividas por uma unidade que se tece em seu ambiente, não construídas nele de forma aleatória.

Um último problema proposto por Clark se define quanto aos limites dessas instâncias. Por serem também ambientais, o organismo e o cérebro de um indivíduo seriam objetos de estudo inadequados? (Clark, 1997). Torna-se importante, então, questionar-se novamente sobre qual seria o papel e a utilidade de um conhecimento feito a partir de um recorte teórico. Clark pergunta-se se o indivíduo "vaza" para seu ambiente, perdendo, assim, suas barreiras. Hutchins e Kirsh (2000) consideram que o processo cognitivo está distribuído também entre os membros de um grupo - o fluxo de informação dentro de um grupo é modelado de forma que reflita um processo cognitivo, o que levaria a propor que o estudo de processos sociais permitiria uma abertura também para o estudo de processos mentais. É a partir dessa relação mais fluída entre organismo e ambiente que temos um pensamento mais sistêmico e uma diluição de dicotomias, como proposto por Susan Oyama, Russell Gray e Paul Griffiths (2003).

Em um exemplo mais concreto, Flynn et al. (2013) vão trazer a discussão da cognição corporeada para a perspectiva dos sistemas em desenvolvimento, que enuncia o desenvolvimento afetivo e cognitivo enquanto sistemas que se desenvolvem modificando e sendo modificados pelo ambiente, em uma cocriação. No entanto, essa perspectiva ressalta a bidirecionalidade da seleção natural, considerando que a cognição distribuída no ambiente é crítica para a construção de um nicho de desenvolvimento (modelado pelo organismo enquanto corpo em ação e relação com o ambiente e nele), temos que a aprendizagem é sempre situada e social, dependente em profundidade de seus pares e das oportunidades cognitivas oferecidas pelo contexto. Ou seja, aprende a partir dos outros e com os outros, recebendo normas culturais e reconstruindo-as, utilizando-se de coordenação entre os participantes de um dado grupo. Essa mesma lógica distribuída se encontra em Ades (1993), que postula ser a memória um processo apoiado na interação com estímulos (sejam eles estáveis, no ambiente, ou, até mesmo, o comportamento de outros animais), verdadeiros "testemunhos" das ações do organismo, e também nos trabalhos de Resende (2019a, 2019b), que, a partir da discussão dos sistemas em desenvolvimento e da etologia, localiza o organismo em um papel mais ativo em seu desenvolvimento motor e na aprendizagem social, diluindo as dicotomias de inato e aprendido.

É possível, portanto, o arremate dessas novas teorias que, ao proporem um conhecimento mais descentralizado, acabam, por conseguinte, definindo novos métodos de costuras teóricas, não somente desfiando os anteriores - ao que se tecia sobre uma linearidade, agora que propõe utilizar a dialética, o dinâmico como material principal dessa costura.

 

Considerações finais

É nesse novo arremate que se propõem novas respostas (ou ao menos novas metodologias) para se estudar o problema mente-corpo. A adoção de uma instância tríplice na definição e formulação da cognição invalida a maioria das teorias apresentadas, à medida que coloca em simbiose essas três instâncias, também define cada um de seus limites dentro dessa relação. Cada membro da tríade vaza para fora da definição da cognição: há aspectos do cérebro que não definem a cognição, bem como aspectos do corpo e do ambiente que também não são relevantes em sua análise. Há essa ligação soft-assembled dessas entidades que, entretanto, não se limitam a elas - não se substitui uma dicotomia por uma tricotomia. Nessa descentralização, estruturam-se essas entidades de forma que uma não anule ou impeça o papel da outra, mas que se complementem.

O trabalho de Andy Clark, por fim, diz respeito a uma quebra da ordem de centralização e de dicotomia não só imposta no meio científico, como também na sociedade com a defesa de quebras de dicotomia em favorecimento de uma ideia mais holística de funcionamento do mundo. Trazer a obra de Clark para discussão envolve questionar os modos pelos quais se faz ciência e se vê o mundo - é estranho para uma sociedade que se pauta em instituições, opressões e estigmas que o ser humano possa ser visto como um organismo que vive em simbiose harmoniosa e em pé de igualdade com seu ambiente; é um conteúdo que faz rever as hierarquias às quais as análises (e realidades) desse ser humano são submetidas, propondo um ponto de vista mais complexo, multifacetado, auto-organizado e dinâmico.

 

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Endereço para correspondência:
Igor Marques-Santos
igormarsan@hotmail.com

Recebido em: 10/08/2020
Aceito em: 06/10/2020

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