SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número2Processo de escolha profissional de adolescentes: uma perspectiva desenvolvimentistaEscala de autoeficácia ocupacional frente ao adoecimento laboral índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2022

http://dx.doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.32568 

ARTIGOS

 

Análise das habilidades sociais de crianças e adolescentes institucionalizados e não institucionalizados

 

Social skills analysis of institutionalized and non-institutionalized children and adolescents

 

Análisis de habilidades sociales de niños y adolescentes institucionalizados y no institucionalizados

 

 

Neylla Cristhina Pereira CordeiroI; Talita Pereira DiasII; Lucas Guimarães Cardoso de SáIII

IUniversidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: neylla_cris@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1394-1275
IIUniversidade Federal de São Carlos (UFSCAR). E-mail: talitapsi10@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8811-3613
IIIUniversidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: lucas.gcs@ufma.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1656-0136

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A literatura aponta que o vínculo familiar fragilizado pode ter relação com repertórios deficitários de habilidades sociais em crianças e adolescentes. Buscando evidências empíricas para isso, este estudo analisou o repertório de habilidades sociais de crianças e adolescentes institucionalizadas, comparando-o com aquelas não institucionalizadas. 61 crianças e adolescentes, além de seus pais ou cuidadores, responderam ao Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica para Crianças e Adolescentes, aplicado em instituições de acolhimento e em escola particular. Os resultados mostraram que crianças e adolescentes institucionalizadas apresentaram menor repertório de habilidades sociais e mais problemas de comportamento que as não-institucionalizadas.

Palavras-chave: Socialização; Comportamento social; Crianças abrigadas; Relações interpessoais; Desenvolvimento emocional.


ABSTRACT

The literature points out that weakened family ties can be related to deficient repertoires of social skills in children and adolescents. Searching for empirical evidence for that, we analyzed the social skills repertoire of institutionalized children and adolescents, comparing it to those not institutionalized. Sixty-one children and adolescents, as well as their parents or caregivers, responded to the Social Skills Rating System applied in host institutions and a private school. The results showed that institutionalized children and adolescents had a lesser repertoire of social skills and more behavior problems than non-institutionalized ones.

Keywords: Socialization; Social behavior; Sheltered children; Interpersonal relationships; Emotional development.


RESUMEN

La literatura indica que el vínculo familiar vulnerado puede tener relación con repertorios deficientes de habilidades sociales en niños y adolescentes. Buscando evidencias empíricas para esto, este estudio analizó el repertorio de HS de niños y adolescentes institucionalizados, comparándolo con aquellos no institucionalizados. 61 niños y adolescentes, además de sus padres o cuidadores, respondieron el Inventario de Habilidades Sociales, Problemas de Comportamiento y Competencia Académica para Niños y Adolescentes, aplicado en instituciones de acogimiento y en una escuela del sector privado. Los resultados mostraron que los niños y adolescentes institucionalizados presentaron menor repertorio de habilidades sociales y más problemas de comportamiento que los no institucionalizados.

Palabras clave: Socialización; Conducta Social; Niños Abrigados; Relaciones Interpersonales; Desarrollo Emocional.


 

 

A legislação brasileira reconhece e preconiza a família como estrutura essencial, lugar vital à humanização e à socialização da criança e do adolescente, espaço ideal e privilegiado para o desenvolvimento integral dos indivíduos (Conselho Nacional dos Diretos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2006). Convergente a isso, os artigos 226 e 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988) afirmam que a família é a base da sociedade e que compete a ela, em conjunto com o Estado, a sociedade em geral e as comunidades, assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais.

Nesse contexto, a família é considerada uma rede de apoio mútuo com vistas ao bem-estar físico, psicológico, social e econômico de seus integrantes. No entanto, algumas famílias encontram dificuldades em proteger e educar seus filhos. Quando ocorrem riscos e enfraquecimentos desses vínculos, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (CONANDA, 2006) indica que a proteção desses jovens em situação de vulnerabilidade fica sob responsabilidade do Estado, que passa a ter a função de desenvolver programas, projetos e estratégias que possam levar à retomada dos vínculos originais ou propiciar políticas públicas necessárias para a formação de novos vínculos que garantam o direito à convivência familiar e comunitária.

As políticas referentes a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade foram historicamente marcadas por contradições e polêmicas, especialmente em relação aos antigos orfanatos. Apesar do reconhecimento da importância dessas instituições, elas foram criticadas pela forma como tratavam aqueles a quem tutelavam, deixando marcas de massificação e de abandono. Isso porque, nos abrigos, há uma estruturação não familiar, com intensa convivência com outras crianças e ausência de espaço individualizado para elas, o que faz com que suas vivências difiram daquelas que experienciam um contexto em que as relações familiares são fortalecidas (Carvalho, 2002). A mesma autora indica ainda que a proporção cuidador-criança costuma ser elevada, o que pode dificultar a formação de vínculos estáveis entre adultos e crianças, além de modelos mais frágeis, como sugerem Bolsoni-Silva e Marturano (2002).

Ao encontro disso, Rizzini e Rizzini (2004) afirmam que esse contexto de desenvolvimento é marcado pela descontinuidade de vínculos e trajetórias, por mudanças e constantes rompimentos de elos afetivos, além de grande demanda por cuidado, que poucas vezes é correspondida. Nesse sentido, a institucionalização infantil tem sido apontada como um fator de risco para o desenvolvimento, podendo ter como efeito a depressão e outros problemas sociais e psicológicos (Abaid, Dell'Aglio, & Koller, 2010; Carvalho, 2002; Dell'Aglio & Siqueira, 2010; Pasian & Jacquemin, 1999), com impacto significativo, especialmente, para o desenvolvimento socioemocional e, mais especificamente, para as habilidades sociais dessa parcela da população.

As habilidades sociais são conceituadas por Del Prette e Del Prette (2017) como aqueles comportamentos valorizados socialmente em uma cultura, com alta probabilidade de serem reforçados, produzindo resultados favoráveis para o indivíduo, seu grupo, sua comunidade e contribuindo para um desempenho socialmente competente em tarefas interpessoais. De acordo com os autores, a literatura tem agrupado comportamentos sociais, formando divisões de acordo com as características que compartilham ou que os diferenciam, pela topografia (aspectos formais do comportamento) e funcionalidade. Os autores denominam essa organização de Portfólio de Habilidades Sociais, que consiste em uma listagem de classes e subclasses relevantes às tarefas e papéis sociais. Algumas classes e construtos relacionados que parecem ter maior relevância nas fases iniciais do desenvolvimento são:

a) Empatia, definida por Del Prette e Del Prette (2013) como a capacidade de compreender o que alguém sente em uma situação de demanda afetiva, comunicando de forma adequada tal compreensão e sentimento. Dentro dessa classe, Del Prette e Del Prette (2017) destacam importantes subclasses, como manter contato visual, aproximar-se do outro, escutar, colocar-se no lugar do outro, expressar compreensão, demonstrar disposição para ajudar e compartilhar alegria e realização do outro;

b) Autocontrole, que se refere a comportamentos associados ao controle sobre as próprias reações emocionais (Bandeira, Del Prette, Del Prette, & Magalhães, 2009). Del Prette e Del Prette (2013) listam subclasses que o compõe: reconhecer e nomear as próprias emoções, saber se acalmar e lidar com os próprios sentimentos, lidar com sentimentos negativos, tolerar frustrações, mostrar espírito esportivo, pedir e esperar permissão para usar coisas de outros, permanecer ouvindo as pessoas que estão falando;

c) Civilidade, definida como a expressão comportamental das normas mínimas de relacionamento aceitas e/ou valorizadas em determinada cultura. Inclui comportamentos de cumprimentar, agradecer, despedir-se e desculpar-se, constituindo estratégias básicas de autoapresentação e aceitação em determinado grupo (Del Prette & Del Prette, 2013, 2017);

d) Assertividade, composta por comportamentos de questionar regras injustas, autocontrole emocional ao lidar com discussões de classe e ao discordar de adultos, cumprimentar pessoas e expressar opiniões, desculpar-se e admitir falhas (Del Prette & Del Prette, 2017);

e) Afetividade/cooperação, que abrange comportamentos de colaborar em tarefas sem necessitar ser solicitado. Para crianças, por exemplo, envolve auxiliar em atividades domésticas, manter o próprio quarto arrumado ou guardar os brinquedos. Também abrange cooperar com os pares, como juntar-se a um grupo ou atividade, ajudar colegas nas tarefas, auxiliar voluntariamente e ignorar distrações (Freitas & Del Prette, 2015);

e) Desenvoltura Social, comportamentos apropriados de iniciar e manter conversações, fazer amigos ou convites, pedir informações, juntar-se a grupos (Del Prette & Del Prette, 2013);

f) Responsabilidade, que se refere a comportamentos que demonstram compromisso com as tarefas e com as pessoas. Para as crianças, envolve comportamentos de manter a atenção quando o professor está ensinando, seguir suas instruções, deixar a carteira limpa e arrumada, guardar material, fazer as próprias tarefas no tempo estabelecido e usar adequadamente o tempo livre (Freitas & Del Prette, 2015).

A literatura especializada aponta para a importância de crianças e adolescentes desenvolverem um repertório satisfatório e diversificado de habilidades sociais para que seus desempenhos sejam avaliados como socialmente competentes em uma tarefa interpessoal (Del Prette & Del Prette, 2017). A competência social na infância pode ser vista como um fator de proteção para uma trajetória desenvolvimental satisfatória, pois aumenta a capacidade de a criança lidar com situações adversas e estressantes, o que se expressa em maior senso de humor, empatia, habilidades de comunicação, de resolução de problemas, autonomia e comportamentos direcionados a metas previamente estabelecidas (Del Prette & Del Prette, 2013).

Para Del Prette e Del Prette (2013), o investimento na qualidade dos relacionamentos interpessoais na infância é importante porque as dificuldades interpessoais nessa fase de desenvolvimento são mais facilmente superadas se atendidas precocemente. De forma semelhante, Gresham (2013) indica que um bom repertório de habilidades sociais contribui para facilitar o início e a manutenção de relacionamentos sociais reforçadores, destacando que crianças que têm um repertório baixo de habilidades sociais, geralmente, são pouco aceitas ou, até mesmo, rejeitadas pelos colegas, além de apresentarem dificuldades escolares que podem acarretar desfechos não adaptativos ao longo de toda vida. Se não houver intervenções efetivas, é provável que esses padrões comportamentais sejam mantidos e se transformem em formas mais perigosas e resistentes de comportamento não adaptativo.

Uma das formas de comportamento não adaptativo pode ser a ocorrência de problemas comportamentais internalizantes e externalizantes, que dificultam o acesso da criança às novas contingências de reforçamento e competem ou interferem na aprendizagem ou no desempenho das habilidades sociais (Bolsoni-Silva & Marturano, 2002). Conforme Del Prette e Del Prette (2013), os problemas comportamentais externalizantes se expressam predominantemente em relação a outras pessoas e são mais frequentes em transtornos associados à agressividade física e/ou verbal, comportamentos opositores ou desafiantes, condutas antissociais como mentir e roubar e comportamentos de risco como uso de substâncias psicoativas. Por outro lado, de acordo com os autores, os internalizantes se expressam predominantemente em relação ao próprio indivíduo e podem ser identificados em transtornos como depressão, isolamento social, ansiedade e fobia social.

Condições familiares e sociais identificáveis na infância, como pobreza, abuso, negligência, relacionamento familiar conflitivo, uso de drogas e alcoolismo dos pais estão entre os principais fatores de risco para o surgimento de problemas de comportamento (Albornoz, 2014; Fariz, Mias, & Moura, 2005). Tais fatores podem estar presentes nas famílias de origem das crianças em situação de institucionalização. Concordante com isso, Albornoz (2014) afirma que crianças que vivem em abrigos geralmente advêm de estilos parentais considerados reforçadores da agressividade, onde os abusos do tipo sexual, físico e psicológico são caracterizados como um padrão de relacionamento e não como atos isolados.

O estudo de Loos, Ferreira e Vasconcelos (1999) indicou que crianças institucionalizadas podem apresentar maior agressividade, sentimento de hostilidade e de inadequação, ansiedade, timidez, tristeza, impulsividade e instabilidade emocional, fatores que podem estar relacionados a problemas de comportamento e défices em habilidades sociais. Dell'Aglio e Hutz (2004) verificaram que as crianças institucionalizadas apresentaram um nível maior de depressão e desempenho acadêmico mais baixo do que crianças que moravam com suas famílias e que frequentavam a mesma escola. Abaid et al. (2010) assinalaram que a institucionalização é um evento de vida estressante e que pode ser um fator de risco para o desenvolvimento, podendo ter como efeito a depressão e outros problemas sociais e psicológicos. Albornoz (2014) sugeriu que a falta de cuidado e violência decorrente de vivência hostil nos primeiros anos de vida tendem a potencializar manifestações de condutas agressivas, dificuldades de estabelecer relações afetivas e interpessoais, pessimismo, evitação, passividade e timidez.

Por outro lado, outros estudos apontam para o desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. Por exemplo, Alexandre e Vieira (2004) trouxeram considerações importantes, a partir de registros de observações de crianças em situação de abrigo. Os autores observaram que: a) havia interação entre as meninas mais velhas com os meninos mais novos; b) irmãos mais velhos se mostraram responsivos às solicitações de afeto e cuidado em relação aos irmãos mais novos e; c) na falta de um adulto significativo, as crianças formavam relações de apego umas com as outras. Mota e Matos (2010) discutiram o papel de figuras significativas para adolescentes institucionalizados, sugerindo que os funcionários dos abrigos se destacam pelo seu efeito sobre a competência social dos abrigados, sobretudo no autocontrole. Carvalho (2002) assinala que crianças mais velhas, que vivem em abrigos, tomam com frequência a iniciativa em contatos sociais, o que facilita com que elas socializem com outras crianças do abrigo.

Mais especificamente, no campo das habilidades sociais, Del Prette e Del Prette (2013) apontaram que crianças em acolhimento institucional apresentariam prejuízos relacionados à construção das habilidades sociais, com destaque para habilidades empáticas deficitárias, não reconhecendo os sentimentos alheios ou não sendo sensíveis a eles. Guerra e Del Prette (2020) caracterizaram o repertório de habilidades sociais e problemas de comportamento de 36 crianças em situação de acolhimento institucional, por meio de autoavaliação e avaliação pelos cuidadores, comparando-as com a média normativa brasileira do Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica para Crianças. Como resultado, com base nas normas do instrumento, observaram-se escores baixos para habilidades sociais e altos para problemas de comportamento em crianças em situação de acolhimento institucional, tanto na autoavaliação, como na avaliação dos cuidadores. Na análise por fatores, a maior parte das crianças se autoavaliou com repertórios deficitário e médio inferior nos fatores empatia-afetividade, responsabilidade e autocontrole-civilidade. Apenas no fator assertividade, observou-se maior equilíbrio na distribuição, com mais crianças se autoavaliando com escores indicativos de repertório médio superior e elaborado. Na avaliação por cuidadores, em todos os fatores a maior parte das crianças foi classificada com repertório médio inferior e deficitário, exceto no fator responsabilidade.

Em outro estudo, Guerra e Del Prette (2018) também identificaram baixos repertórios de habilidades sociais educativas dos cuidadores dessas crianças. A partir desses estudos, as autoras defendem a necessidade de intervenções direcionadas para a promoção de habilidades sociais das crianças institucionalizadas, bem como de orientações e promoção de repertório desses cuidadores, especialmente em habilidades relacionadas à expressão de atenção e afeto, o que pode torná-los uma figura de referência para o desenvolvimento socioemocional das crianças, capazes de promover seu repertório social, revertendo-se em um fator de proteção contra problemas de comportamento.

Considerando as habilidades sociais como fator de prevenção e intervenção e a relevância que elas podem ter para o desenvolvimento socioemocional de crianças e adolescentes, é importante investigá-las em contextos específicos como os de acolhimento institucional. Apesar da relevância social do tema, não há grande número de pesquisas envolvendo o estudo do repertório de habilidades sociais de crianças institucionalizadas. Sabe-se que esse contexto de desenvolvimento é marcado pela descontinuidade de vínculos e trajetórias, por mudanças e constantes rompimentos de elos afetivos, além de uma grande demanda e cuidado que poucas vezes é correspondida (Rizzini & Rizzini, 2004). Portanto, por se tratar de um contexto diferenciado de desenvolvimento, conforme já discutido, necessita ser mais estudado.

Desde a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, 1990), diversas mudanças estão ocorrendo nos abrigos brasileiros, mas é necessário avançar e investigar mais detalhadamente as características e o desenvolvimento psicológico dos usuários que vivem nesse espaço. Também parece necessário avançar e investigar, para além dos déficits, os recursos comportamentais presentes no repertório de jovens institucionalizados. Por exemplo, quais possíveis diferenças no repertório desse grupo quando comparado a outros grupos com características distintas da institucionalização? Isso daria pistas de como a institucionalização pode mesmo interferir nas habilidades sociais dos usuários destas instituições, além de auxiliar os profissionais que atuam nesse ambiente a fomentar práticas que incentivem a aquisição e ampliação dessas habilidades.

Diante disso, o objetivo deste estudo foi verificar semelhanças e diferenças sobre o repertório de habilidades sociais de crianças e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento, com vínculos familiares fragilizados ou inexistentes, quando comparados àqueles que vivem com suas famílias.

 

Método

Participantes

A amostra do estudo foi composta por 61 crianças e adolescentes, divididos em dois grupos distintos. O primeiro foi composto por 14 meninas e 14 meninos, com idades entre seis e 17 anos (M = 11.39, SD = 2.81, Mdn = 12.00), matriculados entre o 1º e o 9º anos do ensino fundamental, vivendo de quatro meses a sete anos em acolhimento institucional, todos com vínculos familiares fragilizados ou inexistentes, e encaminhados para as instituições por negligência familiar, como maus tratos físicos, abuso sexual ou uso de drogas por parte dos pais. O segundo grupo foi formado por 17 meninas e 16 meninos, idades entre oito e 14 anos (M = 10.55; SD = 1.52; Mdn = 10.00), matriculados entre o terceiro e oitavo anos de escola particular, sendo que 22 moravam com ambos os pais, sete apenas com a mãe, três com os avós e uma não informou. Também participaram oito cuidadores dos abrigos e 31 pais ou responsáveis, que forneceram informações sobre as habilidades sociais e problemas de comportamento dos participantes.

Instrumentos

O primeiro instrumento utilizado foi um questionário de caracterização geral, criado para obter informações sobre idade, sexo, série escolar, tempo de institucionalização e tipos de vínculo familiar. O segundo foi o Social Skills Rating System (SSRS), na versão brasileira Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica para Crianças e Adolescentes (Freitas & Del Prette, 2015; Gresham & Elliot, 2016), que avalia habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica de crianças e adolescentes do ensino fundamental, por meio de três formulários que podem ser respondidos por eles, seus pais ou responsáveis, e seus professores. Neste estudo, foram utilizadas as versões de autorrelato e de heterorrelato pelos pais ou responsáveis.

O formulário do SSRS destinado às crianças e adolescentes é composto por 20 itens, divididos em quatro fatores (empatia, responsabilidade, autocontrole/civilidade e assertividade) e escala de frequência de resposta de 0 (nunca) a 2 (muito frequente). O formulário destinado aos pais ou responsáveis é composto por 38 itens, divididos em seis fatores (responsabilidade, autocontrole, afetividade/cooperação, desenvoltura social, problemas de comportamento internalizantes e problemas de comportamento externalizantes), com escala de resposta também entre 0 (nunca) e 2 (muito frequente) para a avaliação da frequência e entre 0 (não importante) e 2 (indispensável) para o indicativo de importância de cada comportamento descrito. O SSRS apresenta evidências de validade e fidedignidade para crianças com desenvolvimento típico, com índices de ajuste satisfatórios obtidos em análises fatoriais confirmatórias realizadas no Brasil. Detalhes sobre as propriedades psicométricas do instrumento podem ser consultadas em Freitas e Del Prette (2015), Freitas, Bandeira, Del Prette e Del Prette (2016) e no manual do instrumento (Gresham & Elliot, 2016).

Procedimentos

A pesquisa foi submetida à Plataforma Brasil (CAAE: 52636315.8.0000.5087) e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Maranhão (parecer número 1.625.947). Em seguida, foi estabelecido contato com três instituições de acolhimento e uma escola particular da cidade de São Luís, Maranhão. A coleta de dados com as crianças e adolescentes sem vínculo familiar foi feita nas salas de estudo das instituições de acolhimento, em conjuntos de até quatro pessoas. Já os cuidadores respondiam aos questionários de caracterização e formulário para pais ou responsáveis do SSRS em suas salas de trabalho, também nas próprias instituições.

Para a coleta de dados com as crianças com vínculo familiar foi entregue aos pais ou avós dos alunos, via comunicação de rotina com a escola, uma carta convite, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e uma folha de respostas do SSRS. A aplicação dos instrumentos com as crianças e adolescentes aconteceu nas salas de aulas, após os pais autorizarem a participação, devolvendo para a escola o TCLE assinado e o SSRS respondido com as informações sobre seus filhos ou netos. As crianças foram convidadas a participar e preencheram um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido antes de responderem as perguntas dos instrumentos.

As análises de caracterização do repertório de habilidades sociais foram feitas por meio de estatística descritiva, utilizando-se médias e desvios-padrão. Para a comparação das médias dos fatores do SSRS entre os dois grupos foi utilizada estatística inferencial, por meio de teste t de Student para amostras independentes, com tamanho de efeito aferido pelo valor de d de Cohen. Todos os dados foram analisados no programa JASP 0.13.1 (JASP Team, 2020). Foi adotado critério de significância de p < .05.

 

Resultados

Os resultados do autorrelato de crianças e adolescentes com e sem vínculos familiares sobre seus repertórios de habilidades sociais são apresentados na Tabela 1. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas para os fatores empatia, responsabilidade e assertividade, mas sim para o repertório total e para o fator autocontrole/civilidade, com tamanhos grandes de efeito, em que aqueles com vínculo familiar relataram possuir um repertório mais elaborado que aquelas sem vínculo.

Os resultados da avaliação feita pelos informantes, tanto da frequência quanto da importância, mostraram que os pais avaliaram significativamente melhor o repertório de habilidades sociais dos filhos que os cuidadores o fizeram para crianças e adolescentes sem vínculo familiar, exceto para responsabilidade e para desenvoltura social, em que não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas (Tabela 2). Os tamanhos de efeito das diferenças variaram entre médios e grandes.

Na mesma Tabela 2, é possível observar que os pais também avaliaram as habilidades sociais como significativamente mais importantes que os cuidadores, com tamanhos de efeito de médios a grandes, exceto para afetividade/cooperação, em que a diferença não foi significativa. Por fim, em relação à frequência de problemas de comportamento, os cuidadores relataram significativamente mais problemas de comportamento das crianças e adolescentes em situação de acolhimento, em comparação com a avaliação feita pelos pais em relação aos filhos, tanto no escore total quanto nos específicos de comportamentos internalizantes e externalizantes, com tamanhos de efeito médios.

 

Discussão

A literatura aponta historicamente que crianças com vínculo familiar fragilizado têm um repertório mais precário de habilidades sociais que crianças que vivem com a família. O objetivo deste estudo foi buscar evidências empíricas para esta hipótese e os resultados pareceram corroborar o que a literatura indica.

O primeiro ponto a ser destacado é que o repertório geral de habilidades sociais de crianças e adolescentes sem vínculo familiar foi significativamente menor que o daquelas com vínculo familiar estabelecido, com tamanho de efeito grande para as diferenças. Esse achado foi convergente para os dados obtidos tanto por meio do autorrelato das crianças e adolescentes da amostra quanto pelo heterorrelato dos seus responsáveis. Resultados nessa direção foram obtidos por Guerra e Del Prette (2020), em que a maior parte das crianças institucionalizadas foram classificadas com repertório geral de habilidades sociais deficitário ou médio inferior, ao serem comparadas com a norma brasileira do instrumento.

A partir disso, pode-se supor que, apesar de a legislação estabelecer que as instituições de acolhimento devem se aproximar de um contexto familiar típico, as diferenças entre esses contextos quanto às condições para desenvolvimento socioemocional devem ser consideradas. Guerra e Del Prette (2018) destacaram que a exposição aos fatores relacionados ao contexto familiar anterior ao acolhimento já acarreta atrasos no desenvolvimento físico, cognitivo e socioemocional das crianças. Além disso, o ambiente institucional geralmente não oferece condições propícias ao pleno desenvolvimento dos usuários, principalmente devido ao número elevado de crianças por cuidador, a alta rotatividade deles, a baixa estimulação para o desenvolvimento socioemocional nesses ambientes e a superpopulação nos abrigos.

O segundo resultado de destaque foi a diferença encontrada em relação ao Autocontrole/Civilidade, da mesma forma, tanto no autorrelato das crianças e dos adolescentes como no heterorrelato de informantes. O grupo sem vínculo familiar obteve médias significativamente menores que aqueles com vínculo familiar estabelecido. Segundo Del Prette e Del Prette (2013), a aprendizagem do autocontrole requer condições ambientais que favoreçam que a criança possa identificar suas emoções, conversar sobre isso e ter sua expressão validada, bem como ter acesso a modelos de como lidar com os sentimentos, aprendendo a diferenciar quando expressar e quando se autocontrolar. Ambientes pouco expressivos em termos emocionais, com modelos que invalidam, punem ou ignoram as expressões da criança, podem resultar em déficits nessa habilidade e dificuldade nos relacionamentos afetivos (Del Prette & Del Prette, 2013). Essas considerações apontam para a necessidade de atuação de adultos significativos em interações sociais educativas para tal aprendizagem.

Em relação à civilidade, por muito tempo, seu ensino foi atribuído como sendo de responsabilidade apenas da família, por meio de instrução e modelação, mas cada vez mais tem sido transferido para as instituições de cuidado e educação das crianças (Del Prette & Del Prette, 2013). Para os autores, a dificuldade da criança no desempenho dessas habilidades pode decorrer tanto do desconhecimento das normas e padrões adotados pelo grupo, quanto por falhas na aprendizagem prévia dessas habilidades em seu próprio grupo, devido a modelos inadequados, isolamento social e convivência restrita a um tipo de cultura.

Nesse sentido, os resultados podem ser explicados ao considerar que o ambiente das crianças sem vínculo familiar é, em geral, pobre nas condições favoráveis de aprendizagem, o que leva a prejuízos na aquisição e aprimoramento das classes de habilidades sociais, como mostraram os resultados. Em instituições de acolhimento, os funcionários (diretores, técnicos e auxiliares) se tornam os responsáveis por estabelecer regras, assim como por proporcionar orientação e ambiente acolhedor, que favoreça a expressão e o autocontrole de sentimentos. Mota e Matos (2010) apontam, porém, que muitas instituições apresentam um quadro de recursos humanos com número insuficiente, o que pode dificultar o cumprimento das tarefas e gerar sobrecarga de trabalho. Com isso, o relacionamento dos funcionários com as crianças e adolescentes pode ser comprometido e, consequentemente, oportunizar estabelecimento de práticas educativas consideradas negativas, como a disciplina inconsistente, pouca interação positiva, pouco monitoramento e supervisão insuficiente das atividades que comprometem a aquisição ou aprimoramento de determinadas classes de habilidades sociais.

Por outro lado, crianças e adolescentes com vínculo familiar que convivem intensamente com os pais e outros familiares tendem a responder positivamente a condições mais favoráveis para aprendizagem de autocontrole e civilidade, especialmente porque ambos estão associados a um padrão de pessoas "bem-educadas" que é bastante valorizado pela cultura. A aquisição e aperfeiçoamento das habilidades sociais requerem o estabelecimento de regras, no sentido de dizer o que é esperado e como se pode agir para alcançar o resultado. Nesse sentido, para além das condições ambientais gerais, também deveriam ser consideradas as habilidades sociais educativas dos agentes educativos que, no caso do estudo, seriam os pais, avós e cuidadores das crianças e adolescentes. Esses processos de aprendizagem, quando dispostos de forma educativa, estão associados às habilidades sociais educativas dos agentes educacionais, que se referem a comportamentos sociais intencionalmente voltados para aprendizagem dos educandos, conforme Del Prette e Del Prette (2008).

O terceiro resultado que se destacou, especialmente devido ao tamanho do efeito da diferença entre as médias dos grupos, refere-se ao fator afetividade/cooperação, na avaliação do indicador de frequência feita pelos informantes. Os resultados sugeriram que crianças e adolescentes sem vínculo familiar possuem um repertório de afetividade e cooperação menos elaborado que as crianças que vivem com a família.

A literatura tem dados contraditórios em relação à afetividade de crianças sem vínculo familiar. Albornoz (2014), por exemplo, afirma que as vivências danosas de vitimização geram uma série de condutas agressivas, expectativa ansiosa e desconfiança excessiva, impactando negativamente o estabelecimento e manutenção de relações afetivas. Bowlby (1990) alega que crianças que se desenvolvem afastadas da vida familiar não teriam uma base de segurança, o que poderia prejudicar suas relações com os demais aspectos de seu desenvolvimento.

Convergente a tais considerações, Rizzini e Rizzini (2004) apontam que crianças abandonadas ou abrigadas, ao serem privadas de relações de intimidade e cumplicidade, características do contexto familiar, têm dificuldade para estabelecer ligações significativas. Nos abrigos, a sobrecarga de trabalho dos cuidadores e a alta proporção de crianças cuidadas por um adulto resultam não só em menor quantidade de interação, mas também em menor qualidade, ao comparar com as interações dos pais com os filhos. Além dos prejuízos no estabelecimento de laços afetivos com o cuidador, agravados pela ausência de histórico de relacionamento afetivo durante o início da vida da criança, há ainda a falta de perspectiva de futuro depois do período de institucionalização. Tudo isso em conjunto poderia justificar o porquê de o repertório dessa classe de habilidades sociais ter sido significativamente diferente entre os dois grupos.

Por outro lado, Carvalho (2002) afirma que é comum que nos abrigos haja a participação de crianças cuidando umas das outras. Alexandre e Vieira (2004) em um estudo sobre a relação de apego entre crianças institucionalizadas que vivem em abrigos observaram que estas mantêm relações afetivas umas com as outras, apresentando responsividade. Verificou-se, nos resultados desta pesquisa, que os irmãos mais velhos demonstram preocupação com os irmãos mais novos e que respondem às solicitações de afeto e cuidado destes. Os autores concluíram que, pela falta de um adulto significativo, as crianças abrigadas formam relações de apego umas com as outras e que a rede de apoio é um importante aliado na resiliência das crianças.

Outro resultado relevante foi o de não terem sido encontradas diferenças estatisticamente significativas para os fatores empatia, responsabilidade e assertividade no autorrelato e para os fatores responsabilidade e desenvoltura social no heterorrelato, o que contraria os resultados de Guerra e Del Prette (2020), que indicaram repertório deficitário das crianças institucionalizadas nesses fatores, exceto em assertividade na autoavaliação e responsabilidade, na avaliação de cuidadores. Uma hipótese para este resultado é a de que essas habilidades podem se desenvolver frente às demandas que as crianças institucionalizadas passam em suas vidas e que requerem apresentação de tais habilidades. Sendo assim, elas podem aprender naturalmente, sem necessariamente de ter um adulto servindo como modelo, como pode acontecer com as crianças que vivem com suas famílias, que aprenderiam por outras vias, como modelos e instrução.

Del Prette e Del Prette (2013) afirmam que o déficit em empatia é visto como um dos fatores de comportamento antissocial e violento. As condições que permitem ampliar a expressão da empatia incluem a prática educativa dos pais, como valorizar respostas empáticas, levar a criança a prestar atenção ao sentimento do outro ou às consequências de seus comportamentos, assim como a ausência de fatores como abandono ou abuso físico, violência doméstica e práticas excessivamente punitivas ou coercitivas. Albornoz (2014) afirma que, em geral, crianças que vivem em abrigos apresentam habilidades empáticas deficitárias, não reconhecendo os sentimentos alheios ou não sendo sensível a eles.

Quanto à responsabilidade, é importante destacar que nas instituições de acolhimento as crianças têm uma rotina em que devem cooperar com algumas atividades domésticas, como arrumar seu próprio quarto, auxiliar nas refeições, servindo a mesa, por exemplo, o que pode ser uma variável que influenciou para este resultado. Além disso, como em geral elas tiveram cuidados negligenciados ou impossibilitados, pode acontecer de elas precisarem assumir responsabilidades mais cedo, visto que precisam tomar conta de si mesmas e dos irmãos, por vezes. Esta mesma variável pode ser um fator para a assertividade e desenvoltura social, pois desde cedo as crianças são expostas a situações em que elas mesmas precisam defender seus sentimentos e ideias, assim como se comunicar eficazmente para conseguirem o que querem. A desenvoltura social é caracterizada como a capacidade da criança apresentar comportamentos apropriados de iniciar e manter conversação. Crianças em abrigos estão habituados e são orientados pelos gestores a receberem grupos filantrópicos que visitam os abrigos com muita frequência, o que proporciona para estes convívios diversificados e que exigem bom desempenho e fluência de desenvoltura social.

Interessante notar que o fator afetividade/cooperação foi o único igualmente avaliado como importante, tanto pelos pais como pelos cuidadores. Para os demais fatores, os pais valorizaram mais as classes de habilidades sociais que os cuidadores, considerando o indicador importância. Brasil (2014) pesquisou sobre habilidades sociais parentais e como estas se associam aos problemas comportamentais na infância. Foi aplicado o SSRS, versão para pais e versão para professores, e o Inventário de Habilidades Sociais Educativas- IHSE-Del Prette. De forma geral, os resultados indicaram que quanto melhor o repertório de habilidades sociais parentais, melhor o repertório de habilidades sociais e menor a ocorrência de problemas de comportamento das crianças.

Um outro resultado obtido na pesquisa de Brasil (2014) foi o de que, dentre as habilidades avaliadas pelos pais das crianças, as habilidades de cooperação, autocontrole e civilidade são as mais valorizadas pelos pais. Esse dado pode sugerir que os cuidadores, ao reconhecerem suas limitações em termos de sobrecarga de trabalho, alta proporção de crianças por adulto cuidador, valorizem comportamentos das próprias crianças e adolescentes quanto a cooperarem umas com as outras e se vincularem afetivamente, tal como o estudo de Alexandre e Vieira (2004) mostrou.

Mota e Matos (2010) afirmam que poucos membros das equipes dos abrigos assumem a importância da prestação de cuidados emocionais e da educação para o crescimento psicológico enquanto objetivos primários do trabalho institucional. Isso pode indicar que os cuidadores não consigam dar conta da demanda ou não se vejam como responsáveis pelo ensino e desenvolvimento do repertório de habilidades sociais das crianças, não atribuindo assim o mesmo nível de importância que os pais.

Como apontam Bolsoni-Silva e Marturano (2008), as práticas educativas parentais são essenciais, pois se o contexto familiar é carente de modelos adequados de habilidades como autocontrole, civilidade, afetividade e cooperação, reduzem-se as possibilidades de aprendizagem. Em todos os resultados discutidos até aqui, destacou-se o papel dos adultos no desenvolvimento do repertório social das crianças e adolescentes. E, nesse ponto, a diferença entre aquelas com vínculo familiar e aquelas sem vínculo familiar é crucial. Del Prette e Del Prette (2013) já haviam constatado grande empenho dos pais no ensino das habilidades de empatia, civilidade, autocontrole, fazer amizades e habilidades sociais acadêmicas, o que também pode justificar as diferenças encontradas.

Na avaliação dos responsáveis, crianças e adolescentes sem vínculo familiar também apresentaram maior frequência de problemas de comportamento que seus pares que possuem vínculo, tanto no total, como em problemas internalizantes e externalizantes. Loos et al. (1999) indicam que uma criança, ao ser inserida em uma instituição de acolhimento, passa por um rompimento geralmente brusco dos vínculos anteriores que, mesmo perturbados, serviam como referencial para a criança. Os autores verificaram que crianças institucionalizadas podem apresentar maior agressividade, sentimento de hostilidade e de inadequação, ansiedade, timidez, tristeza, impulsividade e instabilidade emocional.

Del Prette e Del Prette (2013) afirmam que as dificuldades interpessoais que caracterizam problemas de comportamento decorrem basicamente de um repertório pobre de habilidades sociais, principalmente em termos de empatia, expressão de sentimentos e resolução de problemas, com correlatos cognitivos e emocionais como baixa autoestima e impulsividade, entre outros. Algumas condições familiares e sociais identificáveis na infância, como pobreza, abuso, negligência, relacionamento familiar conflitivo, uso de drogas e alcoolismo dos pais estão entre os principais fatores de risco para o surgimento destes tipos de problemas. Guerra e Del Prette (2018) apontam que, em crianças institucionalizadas, habilidades de cooperação, autocontrole e civilidade foram as que apresentaram os maiores défices, conforme a avaliação do cuidador, assim como maiores coeficientes de correlação com os problemas de comportamento.

Espera-se que este artigo possa auxiliar a equipe técnica das instituições de acolhimento a tomarem medidas que favoreçam cada vez mais a promoção de habilidades sociais dos seus usuários e que também favoreçam a reflexão do papel dos cuidadores na vida dessas crianças e adolescentes. Os resultados apresentados podem ser utilizados para elaborar intervenções práticas nos contextos de acolhimento institucional, tanto para as crianças quanto para os cuidadores. Um exemplo seria um treinamento de habilidades sociais, que segundo Del Prette e Del Prette (2013), podem focalizar tanto a superação dos défices e problemas a eles associados como a promoção mais generalizada de um repertório amplo de habilidades sociais. Também é importante que os cuidadores entendam que muito mais do que apenas funcionários da instituição, eles são modelos e referências para as crianças e adolescentes que ali vivem e que se empenhem em proporcionar práticas educativas positivas.

Algumas limitações do estudo envolvem questões metodológicas e de coleta de dados. O instrumento utilizado abrange uma faixa etária limitada, que não abarca a diversidade das instituições de acolhimento, além de ter sido idealizado para crianças escolares e não para crianças institucionalizadas. A versão destinada aos pais, por exemplo, possui itens característicos de ambientes familiares, como "Pede permissão antes de sair de casa", "Atende ao telefone de forma adequada", comportamentos difíceis de serem avaliados em crianças abrigadas. Outra limitação está relacionada ao fato de que um cuidador respondia por várias crianças, o que pode ter gerado informações menos precisas, dado o cansaço pela reexposição ao instrumento ou por ter que comparar diferentes crianças para fazer a avaliação.

Outro aspecto a se considerar se refere ao tipo de vínculo dos informantes com os avaliados, uma vez que a relação de um cuidador com a criança e adolescente abrigado é diferente da relação estabelecida entre pais e filhos, em termos de demandas, expectativas e afeto. Além disso, o acesso aos comportamentos avaliados também é distinto, uma vez que os pais tendem a ter mais oportunidade de observação de comportamento por passarem mais tempo com os filhos, pela diversidade de demandas interativas e também pela menor proporção de crianças e adolescentes que precisam cuidar.

Por fim, é importante que sejam realizadas novas pesquisas sobre este tema, considerando outros fatores, como por exemplo, a autoeficácia social ou a competência acadêmica. Além disto, podem ser feitas comparações com amostras de grupos diferenciadas, como de crianças de escola pública. Também fica a sugestão de uma análise a partir da avaliação dos professores, de maneira a observar as habilidades sociais dessas crianças no contexto escolar. Seria interessante que fosse criado ou adaptado um instrumento que considerasse o contexto específico de crianças institucionalizadas, que conforme já foi exposto, possui uma estrutura peculiar.

Acredita-se que os dados obtidos neste estudo podem ser úteis para a Psicologia e para a sociedade, no sentido de compreender algumas das especificidades relacionadas ao desenvolvimento de habilidades sociais de crianças e adolescentes em situação de acolhimento, não se restringindo somente a seus défices comportamentais, mas também focando em seus recursos e potencialidades. Destaca-se a necessidade de mais pesquisas nessa direção, no sentido de subsidiar futuras intervenções com crianças e adolescentes sem vínculo familiar, em contexto de abrigo, de modo a se buscar melhorar cada vez mais a qualidade do atendimento a essas pessoas e possibilitar condições mais favoráveis de desenvolvimento, atentos às suas especificidades.

 

Referências

Abaid, J. L. W., Dell'Aglio, D. D., & Koller, S. H. (2010). Preditores de sintomas depressivos em crianças e adolescentes institucionalizados. Universitas Psychologica, 9(1), 199-212. doi:10.11144/Javeriana.upsy9-1.psdc        [ Links ]

Albornoz, A. C. G. (2014). Manifestações da agressividade em crianças acolhidas em instituições. Em J. C. Borsa, & D. R. Bandeira (Orgs). Comportamento agressivo na infância: Da teoria à prática (pp. 240-264). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Alexandre, D. T., & Vieira, M. L. (2004). Relação de apego entre crianças institucionalizadas que vivem em situação de abrigo. Psicologia em Estudo, 9(2), 207-217. doi:10.1590/S1413-73722004000200007        [ Links ]

Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal.         [ Links ]

Brasil, S. E. R. (2014). Habilidades sociais parentais e infantis, problemas de comportamento em pré-escolares: Avaliação de pais e cuidadores (Dissertação de Mestrado Não Publicada). Universidade de São Carlos, São Carlos.         [ Links ]

Bandeira, M., Del Prette, Z., Del Prette, A., & Magalhães, T. (2009). Validação das Escalas de Habilidades Sociais, Comportamentos Problemáticos e Competência Acadêmica (SSRS-BR) para o Ensino Fundamental. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(2), 271-282. doi:10.1590/S0102-37722009000200016.         [ Links ]

Bolsoni-Silva, A. T., & Marturano, E. M. (2002). Práticas educativas e problemas de comportamento: Uma análise à luz das habilidades sociais. Estudos de Psicologia, 7(2), 227-235. doi:10.1590/S1413-294X2002000200004        [ Links ]

Bolsoni-Silva, A. T., & Marturano, E. M. (2008). Habilidades sociais educativas parentais e problemas de comportamento: Comparando pais e mães de pré-escolares. Aletheia, 27(1), 126-138. doi:10.1590/S1413-294X2010000200005        [ Links ]

Bowlby, J. (1990). Apego e perda. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Carvalho, A. (2002). Crianças institucionalizadas e desenvolvimento: possibilidades e desafios. Em E. Lordelo, A. Carvalho, & S. H. Koller (Eds.), Infância brasileira e contextos de desenvolvimento (pp. 19-44). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2006). Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Recuperado de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf

Dell'Aglio, D., & Hutz, C. (2004). Depressão e desempenho escolar em crianças e adolescentes institucionalizados. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(3), 341-350. doi:10.1590/S0102-79722004000300008        [ Links ]

Dell'Aglio, D. D., & Siqueira; A. C. (2010). Crianças e adolescentes institucionalizados: Desempenho escolar, satisfação de vida e rede de apoio social. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(3), 407 415. doi:10.1590/S0102-37722010000300003        [ Links ]

Del Prette, Z., & Del Prette, A. (2008). Pais e professores contribuindo para o processo de inclusão: que habilidades sociais educativas devem apresentar? Em E. Mendes, M. Almeida, & M. Hayashi (Orgs.). Temas em educação especial: Conhecimentos para fundamentar a prática (pp. 239-254). Araraquara: Junqueira & Marin.         [ Links ]

Del Prette, A., & Del Prette, Z. A. P. (2013). Psicologia das habilidades sociais na infância: Teoria e prática (6 ed.). Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Del Prette, A., & Del Prette, Z. A. P. (2017). Competência social e habilidades sociais: Manual teórico-prático. Rio de Janeiro: Editora Vozes.         [ Links ]

Fariz, M., Mias, C., & Moura, C. B. (2005). Manual de psicologia clínica infantil e do adolescente: Transtornos específicos. São Paulo: Santos Editora.         [ Links ]

Freitas, L. C, & Del Prette, Z. A. P. (2015). Social Skills Rating System-Brazilian version: New Exploraty and Confirmatory Factorial Analyses. Avances em Psicologia Lationamericana, 33(1), 135-156. doi:10.12804/apl33.01.2015.10        [ Links ]

Freitas, L. C., Bandeira, M., Del Prette, A., & Del Prette, Z. A. P. (2016). Comparando indicadores psicométricos de duas versões brasileiras do Social Skills Rating System: Uma revisão da literatura. Psico-USF, 21(1), 25-36. doi:10.1590/1413-82712016210103        [ Links ]

Gresham, F. M. (2013). Análise do comportamento aplicada às habilidades sociais. Em Z. A. P Del Prette, & A. Del Prette (Orgs.). Psicologia das habilidades sociais: Diversidade teórica e suas implicações (3ª ed.) (pp. 17-66). Editora Vozes: Petropólis.

Gresham, F.M., & Elliot, S. N. (2016). Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica para Crianças: SSRS Manual de aplicação, Apuração e Interpretação. São Paulo: Pearson.         [ Links ]

Guerra, L. L., & Del Prette, Z. P. (2018). Habilidades sociais educativas de cuidadores de crianças institucionalizadas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(3), 98-112. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672018000300008        [ Links ]

Guerra, L. L., & Del Prette, Z. A. P. (2020). Habilidades sociais e problemas de comportamento de crianças sob acolhimento institucional. Psico-USF, 25(2), 273-284. doi:10.1590/1413-82712020250206        [ Links ]

JASP Team (2020). JASP (Version 0.13.1) [Computer software]. Recuperado de https://jasp-stats.org/download/

Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Senado Federal, Brasília. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

Loos, H., Ferreira, S. P. A., & Vasconcelos, F. C. (1999). Julgamento moral: Estudo comparativo entre crianças institucionalizadas e crianças de comunidade de baixa renda com relação à emergência do sentimento de culpa. Psicologia, Reflexão e Crítica, 12(1), 47-70. doi:10.1590/S0102-79721999000100004        [ Links ]

Mota, C. P., & Matos, P. M. (2010). Adolescentes institucionalizados: O papel das figuras significativas na predição da assertividade, empatia e autocontrole. Análise Psicológica, 2(28), 245-254. Recuperado de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312010000200001        [ Links ]

Pasian, S. R., & Jacquemin, A. (1999). O autorretrato em crianças institucionalizadas. Paidéia, 9(17), 50-70. doi:10.1590/S0103-863X1999000200006        [ Links ]

Rizzini, I., & Rizzini, I. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Neylla Cristhina Pereira Cordeiro
neylla_cris@hotmail.com

Recebido em: 15/10/2020
Aceito em: 18/02/2021

Creative Commons License