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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

Sobre a escrita da existência singular: sinthoma e acontecimento de corpo

 

On the writing of singular existence: sinthome and event of the body

 

 

Frederico Zeymer Feu de Carvalho*

Universidade FUMEC

 

 


RESUMO

O presente artigo busca suscitar questões lógicas e psicanalíticas em torno da existência singular. Para tal, convoca a noção lacaniana de sinthoma, bem como os últimos desenvolvimentos do Curso de Orientação lacaniana, de J.-A. Miller. Explora, em seguida, alguns pontos de conexão e desconexão entre Lacan e Quine, referidos à relação entre entidade e identidade. Por fim, aproxima a singularidade do sinthoma do acontecimento de corpo, do qual derivamos a sua consistência.

Palavras-chave: Singularidade, Sinthoma, Acontecimento de corpo


ABSTRACT

The present article aims to evoke psychoanalytical and logical issues concerning singular existence. For that matter, the Lacanian notion of sinthome is mobilized along with the last developments of J.-A. Miller’s “Lacanian Orientation Course”. It exploits, afterwards, some points of connection and disconnection between Lacan and Quine, regarding the relation between entity and identity. At last, it approximates the singularity of the sinthome with the event of the body, from which its consistency is derived.

Keywords: Singularity, Sinthome, Event of the body


 

 

A escrita da existência singular pode ser considerada como um problema lógico para a psicanálise. Ela é enfatizada por Jacques-Alain Miller, na lição VI do Seminário de Orientação Lacaniana, intitulado “Coisas de fineza em psicanálise” (MILLER, 2008-09), e justifica, neste contexto, a referência feita ao filósofo Quine. É uma referência bastante breve e pontual, que não será desdobrada nas lições seguintes desse Seminário. Ela é antecipada por uma ordem de problemas que visam ao “não sei irredutível”, ao qual podemos ligar o recalque primordial e a afirmação de que “o real mente para todo mundo, a verdade é mentirosa para todo mundo” (MILLER, 2008-09, lição VI, dia 17 dez. 2008). Sua primeira menção à questão, feita na lição IV, vincula-se ao sinthoma, “ao por em primeiro plano o modo de gozar em sua singularidade, isto é, subtraindo-o das categorias” (MILLER, 2008-09, lição IV, dia 03 dez. 2008), o que faz desaparecer as categorias com as quais opera a clínica estrutural.

A singularidade do sinthoma está, dessa forma, ligada ao pensamento anticategorial, no qual nos deparamos com uma ausência de verdade, e mais concernida aos modos de gozo do que à lógica do significante – a partir da qual dispomos as categorias clínicas. Não sendo uma categoria, nisso se diferenciando do particular, a singularidade do sinthoma seria aquilo que se apresenta com uma feição própria; não sendo acessível pelo espírito de geometria, de acordo com a célebre distinção pascaliana, fundamental a todo desenvolvimento desse Seminário de J-A Miller, se mostra como uma sutileza. Estando fora do discurso, não havendo passagem ao avesso, a singularidade do sinthoma é impenetrável à verdade e irredutível à interpretação.

Tratar-se-ia, então, de um inefável, sem apoio de nenhuma escrita, um ponto de orientação colocado no horizonte que não se alcança? Ou de um conceito transcendental, na medida em que se enuncia como estando aí, desde sempre? As tentações são muitas, de forma que é preciso afirmar, de início, que o termo “singularidade” em conjunção com o “sinthoma” é evocado por Lacan como algo encarnado no plano da imanência a um corpo, do qual se deriva um modo de funcionamento e do qual se extrai uma satisfação. Se não há acesso ao sinthoma pela via do sentido, pois ele não se deixa decifrar, é possível, no entanto, identificar-se com o seu sinthoma, como fez Joyce – que Lacan toma como paradigma para pensar a questão. Pode-se dizer que a singularidade do sinthoma corresponde, portanto, a uma afirmação de existência, tomada aqui como o que se conecta a um corpo. Disso se deduz a distinção entre a noção de sujeito, que é uma suposição necessária à articulação da estrutura, e o falasser, neologismo forjado por Lacan para designar o sujeito mais o produto da articulação. A rigor, não podemos afirmar a existência do sujeito, apenas aquela do falasser. Há o falasser. Ele designa uma forma singular que não pode ser descrita enquanto tal. Trata-se de uma existência ligada a um acontecimento de corpo – que podemos remeter à noção freudiana de “ponto de fixação” (Fixierung).

 

A perspectiva do sinthoma

A perspectiva do sinthoma leva-nos aos confins da clínica, deixando-a para trás, uma vez que não há clínica do singular. A clínica opera a partir de categorias; a perspectiva do sinthoma, por sua vez, compreende aquilo que não cai sob nenhum conceito, permanecendo à parte.

Na medida em que está fora do discurso, a perspectiva do sinthoma demarca, em Lacan, a clivagem entre a estrutura, entendida como a articulação dos elementos, e os elementos tomados em si mesmos, fora da articulação e do sentido. Encontramos aqui o limite da noção de estrutura e da interpretação pensada como giro do sentido, assim como entre língua e lalíngua, termo forjado por Lacan para apontar o que sobrevive em torno de elementos díspares, jamais integrados enquanto tal, e os equívocos inerentes à experiência e aprendizado da língua materna. O último ensino de Lacan começa, assim, segundo Miller, por essa “clivagem entre a estrutura e os elementos de acaso prévios”:

A prática da psicanálise ganha então uma outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação, quer dizer, fora do sentido e, porque absolutamente separados, podemos dizê-los absolutos. Trata-se de reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente (MILLER, 2008-09, lição V, 10 dez. 2008).

A singularidade do sinthoma seria, portanto, um ponto fora da articulação dos elementos. Ela ex-siste em relação ao caso clínico, com o qual não se confunde, e não se refere à máxima segundo a qual “cada caso é um caso”. A distinção lógica entre o particular e o singular pode, então, ser formulada nestes termos: o particular é uma figura do universal; quer seja por se inscrever no universal, quer seja por excetuar-se dele, o particular só existe por ser predicável. A singularidade, por sua vez, traz consigo uma dificuldade de escrita, na medida em que distinguimos o singular e a exceção. Ou seja, sua maneira de existir fora do universal é uma maneira radical, por não ser predicável, permanecendo “à distância de qualquer comunidade” (Ibid.). Como, então, afirmar a existência de algo do qual nada se pode predicar? Se, por outro lado, afirmamos sua existência, a despeito de ser impredicável, o que pode vir a suportar sua escrita? A resposta lacaniana a essa questão é a amarração dos nós.

 

Quine, Lacan e a alma do sinthoma

Para nos expressarmos de uma forma que, creio, poderia nos aproximar mais de Quine, como afirmar uma entidade sem identidade? Trata-se da questão de saber se um existente qualquer pode ser afirmado como tal, sem o auxílio das coordenadas de tempo e/ou espaço pelas quais conferimos identidade a um existente qualquer. No primeiro caso, trata-se de saber se seu enunciado pode subsistir, ou se ele se esgota em sua enunciação mesma; no segundo caso, se podemos localizá-lo, distinguindo-o de todas as outras coisas que existem (QUINE, 1960).

Quine é especialmente conhecido por ter feito objeção ao dogma central do empirismo, no célebre artigo “Os dois dogmas do empirismo” (QUINE, 1951). Ele mostra que a distinção entre verdades necessárias e contingentes, isto é, entre proposições analíticas a priori e proposições sintéticas a posteriori, não é, em absoluto, uma distinção clara (o que invalida, em seu conjunto, a distinção entre enunciados lógicos e enunciados empíricos). No entanto, a despeito dessa objeção, cujos efeitos continuam atuantes no campo da filosofia, Quine permanece um empirista extremado, que interdita ao filósofo outra ocupação que não aquela de sentar-se ao lado do cientista para perscrutar, apontar e, de certa forma, orientar as conexões que permitem postular verdades científicas. Esse gesto quineano separa radicalmente a filosofia das humanidades, instalando-a no espaço contíguo à ciência. Daí toda filosofia de Quine ser, acima de tudo, uma epistemologia, interessada nas conexões de pensamento em direção a afirmações sustentáveis.

Talvez seja levando em conta esse novo estatuto da filosofia que Lacan teria dito, diante do próprio Quine, “acreditamos pensar com o nosso cérebro. Eu, eu penso com os meus pés, é somente aí que encontro alguma coisa de duro” (LACAN, 1976, p. 60) 1 . A expressão enigmática de Lacan não deixa de evocar a diferença entre aquilo que se localiza – o pensamento em relação ao cérebro, por meio do qual o cognitivismo pensa poder prosperar – e aquilo que se desloca, Wunschgedanken – que na escrita freudiana se traduziu por “pensamento de desejo”. Mas permite também evocar, em contrapartida ao pensamento lógico, aquilo que o pensamento encontra como seu núcleo duro, o osso do sinthoma, como sua própria condição de exercício.

Se acompanharmos a exigência quineana que liga entidade e identidade, uma existência teria que ser construtível a partir de um caminho cognitivo. A isso responderia a formulação que liga de forma inexorável entidade e identidade. O que dizer, então, da singularidade do sinthoma que, sendo ao mesmo tempo uma entidade, para retomar aqui os termos de Quine, existe sem uma identidade, ex-sistindo a toda semelhança? De fato, quando o sujeito se apresenta a partir de uma identidade, apaga-se a sua singularidade. Por outro lado, como seria possível sustentar, a partir do suporte de uma escrita, a identificação ao sinthoma? Em outras palavras, como sustentar logicamente a existência de algo que subsiste a partir do des-ser – se pressupomos como condição dessa identificação o atravessamento da fantasia –, e não do ser?

 

A singularidade do sinthoma: duas acepções

Talvez seja excessivo convocar aqui a dimensão ontológica. Nada mais longe de Quine do que Heidegger. Não existe compromisso ontológico algum na utilização feita por Quine do termo “entidade”. Porém, a referência ao ser nos permite passar dos enunciados da ciência, construtíveis segundo critérios cognitivos, para a perspectiva em que um enunciado ganha corpo, a perspectiva do sinthoma. Localizamos aqui a desconexão entre Quine e Lacan. Dizer que uma coisa é, seguindo Quine, equivale a uma consistência que acrescenta à afirmação de existência, que diz que uma coisa é aquilo que ela é. A afirmação de um existente qualquer obedece, assim, a algumas determinações, não podendo ser dita se não puder ser localizada e se seu enunciado não for, de alguma forma, repetível. A consistência do sinthoma, por sua vez, também é localizável e repetível, à sua maneira. Chegamos mesmo a dizer que a repetição é um índice do sinthoma, que não conhece o deslocamento, permanecendo ligado à inércia libidinal. É o que, do ser, permanece irredutível a toda desconstrução significante. O sinthoma é também situável, não em uma estrutura, onde ele não cabe, mas em relação a uma substância, a substância libidinal, que, por seu turno, necessita de um corpo.

A “questão do singular” mantém, dessa maneira, o seu estatuto de questão por uma dificuldade de escrita lógica. Para retomá-la por outro ângulo, podemos perguntar se o singular do sinthoma se reduz à sua forma de apresentação ou se, ao contrário, ele pode aspirar a uma escrita.

A noção de sinthoma é extraída por Lacan da obra de Joyce. Essa noção lhe aparece, a princípio, a partir da singularidade de sua obra, da singularidade de uma escrita que em nada lembra as limitações e os efeitos que podemos compartilhar a partir do nome-do-pai ou por referência à significação fálica. Joyce teria se identificado a esse sinthoma (LACAN, 2005). Ele o faz “no espaço de desabonamento do inconsciente”, ele “encarnou o sinthoma” (MILLER 2008-09, lição V, dia 10 dez. 2008). Eis o que especifica a escrita lacaniana do sinthoma. A noção de “singularidade”, no entanto, merece ser desdobrada a fim de que seja conectada à noção de sinthoma.

Em uma primeira acepção, a singularidade é o que se apresenta tal como é. Ela não poderia ser enquadrada em categoria alguma, pois o singular seria o que se subtrai de todo enquadramento categorial, subsistindo como um ponto sem extensão. Nada que lembre, como vimos, a forma de apreensão do particular, frente ao qual operamos por semelhanças e diferenças. Trata-se, nesta primeira acepção, de orientação anticategorial e antidiagnóstica. É o singular enquanto o que se dá a ver como único e incomparável, de acordo com a feição que lhe é própria. Poderíamos evocar aqui a noção wittgensteiniana de forma-de-vida (Lebensform) para caracterizar uma forma de apresentação que excede a cadeia de razões, que se dá a ver sem se desdobrar, afirmando-se por sua condição pragmática: “é assim que eu ajo” (WITTGENSTEIN, 1951, § 217) 2 . Sua afirmação se reduz aqui à expressão “é isso” ou “sou isso”.

Em uma segunda acepção, o singular é aquilo que se depura de um processo analítico, ao mesmo tempo seu núcleo duro e seu ponto de miragem sob a forma da identificação ao sinthoma. O sinthoma é uma maneira de aparelhar elementos heterogêneos – sem que estes se articulem entre si, ao modo de uma estrutura –preservando a propriedade de enlaçamento. Trata-se de um modo de funcionamento do qual se deriva um modo próprio de gozar, para além do que o nome-do-pai foi capaz de regular. É, como tal, uma ex-sistência, sem nenhuma extensão. “O que Lacan chama sinthoma é, por excelência, o conceito singular, cuja extensão é tão somente o indivíduo” (MILLER 2008-09, lição VI, dia 17 dez. 2008). Daí Lacan poder dizer “Joyce o sinthoma”, sem nenhuma pontuação entre os termos, o quê , por assim dizer, emenda o que o nome próprio não sustenta.

O estatuto da proposição universal “todo ser falante é singular” seria verdadeiro para a primeira acepção, mas não para a segunda. Ou seja: passamos da mostração a uma necessidade de escrita na medida em que transitamos da primeira para a segunda acepção.

O sinthoma, tomado como o que há de incomparável e próprio a cada um, seria, assim, a conjunção entre o nome próprio e o nome de gozo, aventada por Lacan a partir de Joyce. Em sua segunda acepção, mais orientada para o final de análise, a escrita da existência singular dependeria da condição transferencial a partir da qual o que existe, existe para. Nesse sentido, o sinthoma emergiria como um significado, um significado do Outro. É a condição dispensada por Joyce, ele mesmo um desabonado do inconsciente. A escrita da existência singular, inerente ao sinthoma, se distingue, assim, do axioma da fantasia, que designa o ser de objeto ao qual se vincula o sujeito. A identificação ao sinthoma se acrescenta a essa travessia – mediante a qual o sujeito experimenta seu des-ser – e aparelha o falasser à satisfação do sinthoma como uma intrusão do real.

A identificação ao sinthoma, que esperamos do final de uma análise, seria, ademais, inseparável da dimensão performativa do sinthoma, o “saber fazer com isso”. Sua dimensão significante se reduz a enganchar alguma coisa; ponto em que “a letra testemunha a intrusão de uma escrita como autre” (LACAN, 2005, pp. 141-142). Essa alteridade da escrita somente poderia estar referida ao acontecimento de corpo pelo qual damos alguma consistência a essa intrusão do real.

 

 

Referências bibliográficas

CARVALHO, F. Z. F. (2002) O fim da cadeia de razões. Wittgenstein, crítico de Freud. São Paulo: Annablume. Belo Horizonte: FUMEC.         [ Links ]

LACAN, J. (1976) “Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines”, in Scilicet 6/7. Paris: Seuil, pp. 5-62.         [ Links ]

_________. (1975-76/2005) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

MILLER, J-A. (2008-09) Seminário de orientação lacaniana III, 11: Coisas de fineza em Psicanálise. Inédito.         [ Links ]

QUINE, W. V. O. (1951). “Two dogmas of empiricism”, in From a logical point of view: nine logico-philosophical essays. Cambridge: Havard University Press, 1961.         [ Links ]

_________. (1960) Word and object. Cambridge: The M. I. T. Press.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: janeiro de 2010
Aprovado para publicação em: fevereiro de 2010

 

 

1 Nous croyons penser avec notre cerveau. Moi, je pense avec mes pieds, c’est là seulement que je rencontre quelque chose de dur […].
2 Para um desenvolvimento desse aspecto cf. CARVALHO, F. Z. F. (2002) O fim da cadeia de razões. Wittgenstein, crítico de Freud, pp. 127 -131.
* Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise da AMP. Mestre em Filosofia (UFMG) e Doutor em Estudos Linguísticos (UFMG). Psicólogo da Prefeitura de Belo Horizonte e Professor no Curso de Especialização em “Psicanálise e Contemporaneidade” da Universidade FUMEC. E-mail: fredericofeu@uol.com.br

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