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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

O menino que morreu na internet: alcances e limites da linguagem para o sujeito contemporâneo

 

The boy who died on the internet: language’s reach and limit for the contemporary subject

 

 

Patrícia Palombini de Alencar*; Heloisa Caldas**

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Este texto tem como objetivo discutir alguns dos paradoxos encontrados no uso excessivo da linguagem contemporânea, cuja pretensão é a de poder dizer tudo. Partimos da teoria psicanalítica lacaniana, que aponta para a impossibilidade da linguagem abarcar o mundo com sentido. Desta forma, o saber da psicanálise sobre a linguagem em seus alcances e limites, como o do real no enigma do sexo e da morte, pode ajudar a pensar os paradoxos da linguagem em seu uso atual, ilustrado por uma notícia de jornal sobre um menino que se suicida on line com ajuda de um site de suicídio da internet.

Palavras-chave: Psicanálise, Linguagem, Objeto a, Pulsão, Real


ABSTRACT

This paper tries to discuss some of the contemporary language paradoxes found in the excessive use of language in its attempt to say everything. We consider it according to the psychoanalytical Lacanian theory which points out the impossibility of language and meaning to comprehend everything in the world. Thus, psychoanalytical knowledge about language in its reach and limits, such as those of the real in sex and death enigmas, can help us think these language paradoxes as illustrated in the news about a boy who committed suicide on line assisted by a suicidal site on the internet.

Keywords: Psychoanalysis, Language, Object a, Drive, Real


 

 

É incontestável o quanto somos assediados, na atualidade, por imagens e informações veiculadas pelos mais diversos meios, como revistas, televisão, jornais, outdoors, internet, pichações, sem esquecer a linguagem da arte. Respiramos linguagem. Trata-se de uma inundação de informações que se dá com extrema rapidez, atinge quase todos os pontos do planeta, ocorrendo muitas vezes ao vivo, em tempo real. A mais variada gama de assuntos pode ser encontrada, desde acontecimentos políticos em países distantes até informações que seriam, a princípio, de ordem privada, como a cor do sutiã de tal ou qual artista. Esse volume de dados, assim como seu alcance, nos leva a crer que tudo pode ser dito, que tudo pode vir a ser tratado pela linguagem.

Este texto tem como objetivo discutir algumas das características dessa excessiva presença da linguagem, nos dias de hoje, em seus alcances e limites. Partimos da teoria da psicanálise com relação à linguagem que, por meio da contribuição de Jacques Lacan, aponta justamente o inverso. Há uma impossibilidade da linguagem de abarcar o mundo com sentido. Dessa forma, a construção de saber da psicanálise sobre a linguagem e o seu limite – o que Lacan conceitua como o real e articula ao enigma do sexo e da morte – pode ajudar a pensar os paradoxos da linguagem em seu uso atual.

Como ponto de partida, pretendemos analisar, à luz da psicanálise, uma notícia jornalística sobre um menino que “morreu na internet” (BRUM & AZEVEDO, 2008). Trata-se de uma dessas notícias, cuja manchete, “Suicídio.com”, de saída, apresenta um paradoxo, pois, ao contrário do que se espera de uma notícia, ela não transmite, de imediato, muita informação. No entanto, a despeito de ser pouco esclarecedora ou informativa, ela convoca os leitores por seu caráter espetacular, mostrando o uso da linguagem a serviço da sociedade do espetáculo que Debord (1967/1997) tão bem antecipou. Salta aos olhos, também, sua função de vender jornal, no caso a revista, aguçando a curiosidade do transeunte.

A provocação da curiosidade na linguagem dos instrumentos midiáticos tem um papel relevante no que se denominou de sociedade de consumo. A sociedade do espetáculo articula-se dessa forma à sociedade de consumo. Assim, a influência desses veículos de informação, a serviço do mercado de objetos, não se reduz a vender os objetos que apregoam. Ela promove também um discurso no qual a linguagem é, em si, o próprio objeto de consumo. Consumimos informação e damos a ela o mesmo tratamento dado a qualquer outro objeto de gozo. Usufruímos dela e a descartamos. Tratamos a linguagem como qualquer outro objeto cujo valor de uso não tem grande relevância. Desfrutamos não da utilidade desses objetos, mas do gozo excedente ao uso. Ainda que, de efeito efêmero, é este gozo o que lhes garante um lugar no consumo. O valor de gozo assemelha-se ao valor de troca que regula o mercado capitalista. Lacan compara o gozo a mais obtido por meio de um objeto com a mais-valia assinalada por Marx na base do capitalismo (INDART, 2003, pp. 86-87).

No entanto, a linguagem mesma, em sua veiculação discursiva, torna-se objeto de gozo. Jacques-Alain Miller ressalta que, na contemporaneidade, há uma proximidade entre o discurso do capitalismo e o discurso da psicanálise. Essa proximidade se deve ao fato de que a psicanálise revelou que o gozo era a causa subjacente aos discursos. Essa descoberta freudiana, assinala Miller (2005, p.13), “abriu caminho para uma ‘liberação do gozo’ e antecipou a ascensão do objeto ao zênite social”. Dessa maneira, o discurso capitalista atual toma como ponto de partida a apresentação do objeto, visando a provocar sua demanda e consumo.

No entanto, há uma diferença entre o discurso da psicanálise e o do capitalismo. No primeiro, o objeto é singular e causa do saber que o sujeito produz. Lacan o denomina de objeto a. No discurso capitalista, o objeto é proposto a partir de um saber alheio ao do sujeito. Além disso, para a psicanálise, o gozo não se reduz ao que os objetos agenciam, algo dele resta impossível de ser dito ou experimentado em termos de linguagem. No capitalismo, apoiado pelo discurso da ciência, vende-se a ilusão de um saber totalizador que cria objetos e desfia a linguagem com a pretensão de poder controlar tudo para todos. A ciência com suas descobertas e novas próteses muito colabora para isto, inscrevendo o sujeito “em uma nova economia de gozo que rompe com a articulação entre verdade e real” (AFLALO, 2008, p. 84). Toma-se verdade aqui como uma produção subjetiva, justamente o que faz dela singular e única, caso a caso. A ciência ao tentar padronizar a verdade para todos promove a morte do sujeito.

Para a teoria lacaniana, o objeto que interessa não é aquele que ocupa o lugar ditado pela ciência, como objeto do saber comum. Ao contrário, interessa o objeto que ocupa o lugar de causa do saber para cada um. Este objeto, no lugar de causa, Lacan (1962-63/2005, p. 116) denominou de objeto a. A teorização do objeto a tomou corpo, na medida em que sua função de causa localiza a verdade para o sujeito. Como diz Lacan em “Ciência e verdade”: “Essa teoria do objeto a é necessária, como veremos, para uma integração correta da função, no tocante ao saber e ao sujeito, da verdade como causa” (LACAN, 1965-66/1998, p.890). Assim, ele nos indica que a elaboração do conceito de objeto a como causa do desejo traz novidades no que se refere ao objeto da psicanálise. A psicanálise, ao contrário da ciência, não tem o objeto como o seu fim, mas sim como a sua origem.

 

O causo

No meio de um sem número de notícias aquela sobre o menino que morreu na internet causa espanto. Como pode alguém – um menino – morrer na internet? Curiosos se aproximavam, como se comentassem: vê-se gente morrendo de câncer, de velhice, até mesmo de amor. Mas...pela internet?...Seria um vírus? Um velhinho, com todo o saber da idade, exclamava: tudo o que vicia, mata. Alguém morreu de linguagem, era o comentário que pairava pelo efeito do fato que a mensagem em si constituía. Tratava-se de um fato de linguagem.

Gostaríamos de ressaltar na frase anterior a palavra ‘fato’. Lacan, em O Seminário 17: o Avesso da psicanálise (1969-70/1992, pp. 55-58), ao fazer considerações sobre a questão da verdade em psicanálise e sua conexão com a linguagem, critica a primeira formulação de Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus (1921/2001). Lacan destaca na formulação do autor a formação de sentido como emergindo da possibilidade inerente à linguagem de descrição dos fatos positivos do mundo, os quais, em sua totalidade, constituem o conceito de mundo para o autor (LACAN, 1969-70/1992, p. 56). Sua crítica sublinha que Wittgenstein não levou em conta o ato de enunciar como uma asserção e também um fato do mundo. Assim, ele enfatiza, “o verdadeiro depende apenas de minha enunciação” (Ibid., p. 57). Esse adendo é de extrema relevância, pois, ao seguirmos esses passos de Lacan, tomaremos a notícia sobre o menino que morreu na internet como um fato do mundo.

No entanto, há algo além do fato que a enunciação produz. A notícia conta o caso de um garoto que frequentava um site de incentivo ao suicídio. O site oferecia, a quem quisesse se suicidar, a possibilidade de falar de seus propósitos, contar o que o levava a querer cometer tal ato e a discutir os meios de sua efetuação. O menino que frequentava o site decidiu então morrer, de morte morrida, digamos assim, mas online, na internet. Auxiliado por seus ‘amigos’ virtuais, decide a melhor e mais rápida solução para o suicídio, transmitindo sua morte pela internet, ao vivo.

A psicanálise situa a morte em um lugar central no campo da linguagem. No entanto, ainda que se possa conceber um desejo de morte, a linguagem não é capaz de significar a morte. O conceito de pulsão de morte está no cerne da psicanálise e do que se denominou de aparelho psíquico, relacionando-se à impossibilidade da pulsão de atingir seu alvo: a satisfação (FREUD, 1915, p. 143). Como Freud aponta, há algo que não favorece a satisfação da pulsão e contraria sua realização. Se a pulsão insiste, sua força é constante; isso se deve ao fato de que o objetivo, ou satisfação nos termos de Freud, é impossível, porque se articula à experiência de um objeto perdido, jamais recuperado. Isso é correlato ao que Freud também ressalta sobre a falta de especificidade do objeto da pulsão (Ibid.). Logo, há uma inconsistência do objeto da pulsão. Assim, a direção constante da pulsão sempre visa um retorno a um estado anterior de coisas (FREUD, 1920, p.78), ou, como Lacan (1964/1988, p. 195) afirma, “a pulsão é fundamentalmente pulsão de morte”.

O objeto específico da pulsão não existe. No entanto, o trabalho da linguagem, ao tecer a rede simbólica da fantasia, promove pequenos objetos, artefatos, que se oferecem com o propósito de ocupar o lugar do objeto inexistente da pulsão e de recobrir o que não possui significação, como o real da morte. Tais objetos encontram-se, em sua origem, ligados ao significante. Trata-se de objetos que, embora sejam de linguagem, produzem efeito no corpo pelo fato da pulsão passar pela linguagem, mas também se enraizar no corpo, em especial, no oco das bordas de onde parte e para onde retorna (LACAN, 1964/1988, p. 170). O objeto a como causa é este espaço vazio que a pulsão precisa contornar e em cujo trajeto pode enlaçar objetos do mundo para deles gozar vicariamente.

Ao nomeá-lo por uma letra, Lacan indica que o objeto a tem uma função, menos que um significado. Esta função não deixa de ser, por isso, menos conectada à linguagem. A fantasia opera essa articulação. Ela funciona como um axioma que liga o sujeito ao objeto a e orienta as possibilidades de conexão entre o gozo no corpo com objetos do mundo que possam facilitá-lo. Com isso, ela recobre a falta radical de objeto – o real. Através dela, objetos passam a ser nomeados, defendendo o sujeito do acesso ao real. Contudo, a satisfação em seu caráter parcial faz com que a fantasia seja em parte ‘furada’, como se diz na gíria, pois algo nela fracassa e aponta ao furo da linguagem. Logo, é pela falta de palavras, ou mesmo, pela impossibilidade da linguagem de abarcar o real com sentido, que temos acesso a ele. A fantasia, ao mesmo tempo em que se oferece como forma de mascarar o real, é uma janela ao real.

Assim, o que da linguagem escapa não deixa de ser tocado por ela. O objeto a como verdade não existe, donde todos os objetos que ocupam seu lugar serem, por uma necessidade lógica, falsos. Ao pretenderem dizer o que é o objeto a, eles fracassam. Digamos que eles desempenham um papel ficcional, o que confere à fantasia sua estrutura de ficção. A verdade do objeto, então, se inscreve justamente por meio desta estrutura de ficção, causada pela falha no dizer. Só podemos mentir o objeto. Consequentemente, a ficção, instaurada pelo simbólico, tem como causa algo que é da ordem do real e que nunca pode ser incluído na linguagem, como o sexo e a morte. Isso escapa, não cessa de não se escrever, constitui uma impossibilidade decorrente do próprio jogo significante.

A estrutura de ficção evidencia o paradoxo de que o real sempre escapa à linguagem e “a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais” (LACAN, 1969-70/1992, p. 58). A repetição que se estrutura ao redor do significante evidencia o limite da linguagem, o real em sua dimensão de impossível, o que faz com que o sujeito não seja “sem uma relação com a verdade” (Ibid., p.55), ainda que essa verdade esteja entre ele e o real, marcada pela impotência da linguagem de simbolizá-lo (Ibid., p. 166).

 

Do causo à causa

A partir do percurso teórico apresentado, gostaríamos de fazer algumas considerações acerca da notícia sobre o menino que morreu na internet.

Uma primeira abordagem é considerar que, para Lacan, a morte é a morte da linguagem, seu limite e aquilo que lhe escapa. A linguagem rodeia a morte em círculos através dos significantes. O menino morrer na internet aponta, portanto, para a ausência do simbólico em seu caráter de semblante. A linguagem não esteve, nesse caso, na sua função de fazer laço social, o que necessariamente convoca Eros, e não Tanatos. O aparente laço social que esse site da internet promoveu foi, pelo menos neste caso, veiculador de um gozo tão excessivo que serviu à morte, e não à vida. Embora tenha sido uma morte produzida de forma tão ancorada na linguagem, ela denuncia uma falha na função da fantasia de defender o sujeito do real. Ao contrário, o sujeito se deixou levar pela pretensão da linguagem de dizer o real. A notícia em questão toca nesse paradoxo. Ela pretende dizer o que é impossível: o real da morte. O que se pode pensar dessa pretensão?

Para tratar disso, trazemos as contribuições de Slavoj Zizek em seu livro Bem-vindo ao deserto do real (2003), que, além de fornecer ao leitor diversas análises sobre a situação política do mundo atual, esclarece sobre o uso da linguagem contemporânea. Suas considerações giram em torno do acontecimento marcante da história política mundial: o 11 de setembro, data do atentado terrorista às torres do World Trade Center (WTC), em Nova York. Em sua análise psicanalítica-lacaniana, o filósofo enfatiza que a consideração do 11 de setembro não deve se restringir à derrubada das torres gêmeas e nem à importância delas como símbolos de poder no mundo. Em seu estudo, Zizek enfatiza a forma com que este fato foi comunicado ao mundo.

Nos televisores, a imagem filmada das torres gêmeas sendo atingidas foi repetida inúmeras vezes, até a exaustão. Pouco se dizia, pouco se acrescentava, a cena parecia se reafirmar, em sua face de violência, a cada repetição. Sua observação destaca que, por meio da repetição, não só se reproduz o real da violência como ele é reiterado e emoldurado em uma cena. Essa forma de comunicação, de acordo com o autor, não é particular a este episódio. Ela é característica da forma com que a indústria da comunicação tem vendido suas notícias na atualidade.

Zizek aponta algo que vai além da paixão pelo real, expressão pela qual Alain Badiou (2005) denomina a busca da coisa em si, característica do século XX, em contraste com o século XIX, marcado por uma série de ideologias. Para Zizek, embora o episódio terrorista pudesse ser considerado como uma manifestação da face mais radical do real pela sua violência desmedida, por trás dessa exacerbada paixão pelo real, é preciso verificar que essas cenas são expostas como espetáculo. Elas guardam uma enorme semelhança com diversos filmes produzidos pela indústria hollywoodiana do cinema catástrofe. Segundo ele, “os próprios terroristas não o fizeram primariamente visando provocar dano material real, mas pelo seu efeito espetacular” (ZIZEK, 2003, p.26).

Para o pensador esloveno, é essa semelhança de enquadramento entre as cenas do atentado e as dos filmes norte-americanos o que faz com que tenhamos a impressão de já tê-las visto inúmeras vezes. Isso evidencia o quanto as cenas de destruição há tempos povoam a fantasia dos americanos e explica sua presença constante em tantos filmes. Inclusive, o título do referido livro de Zizek foi extraído de um filme que bem exprime essa lógica da atualidade. Trata-se do filme Matrix (WACHOWSKI, 1999), que conta a história de um mundo virtual, vivido como real por todos que pertencem a ele. O ator principal, ao se deparar com o verdadeiro mundo real, um mundo de restos e ruínas, ouve a frase que o autor escolheu como título de seu livro: “Bem-vindo ao deserto do real”.

Assim, a semelhança entre as cenas do atentado e as do cinema catástrofe demonstram que a verdadeira paixão pelo real, nos dias de hoje, se inscreve na tentativa de transpor o real como efeito último de uma rede de semblantes. Segundo o autor, houve uma inversão de fatores: “Não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade” (ZIZEK, 2003, p. 31). Desse modo, ao contrário de uma paixão pelo real, o que encontramos na atualidade são efeitos ficcionais de linguagem que pretendem encenar o real.

Trata-se do mesmo no caso dos reality shows e dos snuff movies. Esses últimos são filmes de terror, em que a dor e o sexo são vendidos como não simulados, mas reais. Verdadeiros ou lenda urbana, sua proposta é apresentar ficção como se fosse verdade. As consequências vão para além do universo consumista, como destaca Zizek ao dizer: “Não se trata apenas de Hollywood representar um semblante da vida real esvaziado do peso e da inércia da materialidade – na sociedade consumista do capitalismo recente, a ‘vida social real’ adquire de certa forma as características de uma farsa representada, em que nossos vizinhos se comportam ‘na vida real’ como atores no palco” (Ibid., p. 28). O resultado se resume na desmaterialização do real (Ibid.).

Para Zizek, esse fenômeno de desmaterialização do real não apenas é particular às cenas de nossos televisores, mas aos produtos do consumo como um todo. Segundo ele:

A realidade virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser. Mas o que ocorre no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria ‘realidade real’ como uma entidade virtual (Ibid., p. 25).

Em resumo, Zizek, ao tratar da relação da linguagem com o real nos nossos dias, delineia uma lógica nova, na qual se encontra a pretensão de produzir o semblante como sendo o real em si. Para ele, ao procurar o real, a atualidade inaugura um fenômeno que ele nomeia de semblante do real. Pois, o real, de fato, como entende a psicanálise, não pode ser confrontado sem que haja o investimento da linguagem. Nas palavras do autor:

Isso quer dizer que a dialética do semblante e do Real não pode ser reduzida ao fato elementar de que a virtualização de nossas vidas diárias, a experiência de vivermos cada vez mais num universo artificialmente produzido, gera a necessidade urgente de ‘retornar ao Real’ para reencontrarmos terreno firme em alguma ‘realidade real’. O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto, somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico. A impressionante imagem da destruição do WTC foi exatamente isso: uma imagem, um semblante, um efeito que ao mesmo tempo ofereceu ‘a coisa em si’ (Ibid., pp. 33-34).

Parece que as contribuições do filósofo muito bem refletem a questão em causa na notícia sobre o menino que morreu na internet. Ela é uma tentativa da linguagem de dizer sobre o que lhe escapa, trazendo à tona um sentido que é ficcional, como mostra a teoria psicanalítica. Além disso, é a tentativa de construir uma ficção e oferecê-la como o que existe de mais real. Assim, o menino morre na internet de forma semelhante à morte do vilão no último capítulo da novela das oito. Tudo é da ordem do espetáculo, até mesmo o real. A linguagem atinge assim um alto grau de alcance e impacto. Somos quase levados a crer que tudo pode ser dito.

Podemos verificar, nessa notícia, que o não sentido presente nela não desponta como uma falha da linguagem evocando o real. O não sentido desponta como um dos instrumentos da linguagem de evitação do real. O não sentido é incluído na estrutura de ficção, não apontando para a impotência da linguagem, mas para um de seus recursos. A questão da morte é, em vez de anunciada, evitada pela exibição mesma com que é trazida pela notícia. Seria a paixão pelo semblante de real uma tentativa vã de evitá-lo?

O caso ilustra que, a despeito das paixões pelos semblantes, a chuva de significantes que inunda os sujeitos na contemporaneidade nem sempre favorece a construção de uma fantasia que permita levar a vida e tapear a morte inexorável. Ao contrário, o excesso e a banalização dos significantes levada a extremos pode atrapalhar a subjetivação que se assenta sobre a eleição de um significante privilegiado para o questionamento do sujeito de sua identificação e de como se defender do real do sexo e da morte.

Em meio a tantos e tão efêmeros significantes, não é de se espantar que o sujeito contemporâneo tenha dificuldades em selecionar suas coordenadas fundamentais. A notícia, nesse caso, toca esse paradoxo, como já assinalamos. Ela pretende dizer, sobre o real da morte, o que é impossível. Evidencia-se que, em vez de usar a linguagem como uma defesa, uma tela de proteção, o sujeito a usa para se confrontar com o real, numa tentativa vã de fazer dele um semblante.

 

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: abril de 2009
Aprovado para publicação em: junho de 2009

 

 

* Psicóloga (PUC-RJ); Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: patpalombini@ig.com.br
** Psicanalista; Doutora em Psicologia (UFRJ); Professora Visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise e do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Membro da AMP e da EBP. E-mail: helocaldas@terra.com.br

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