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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

Psicanálise na universidade: saber, verdade e discursos

 

Psicanálise e universidade: saber, verdade, discursos

 

 

Ana Beatriz Freire*; Angélica Bastos**

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo problematizar a questão do ensino da psicanálise nas universidades, confrontando-o, dentre outras coisas, à exigência de formação de uma analista. Em acréscimo, diferentes concepções de saber serão contrastadas. Destaca-se que a teoria lacaniana dos quatro discursos perpassará todo esse percurso argumentativo.

Palavras-chave: Psicanálise e universidade, Saber; Verdade, Discursos


ABSTRACT

The article aims to put in perspective the issue of the teaching of Psychoanalysis at universities, confronting it, among other things, with demands that involve an analyst’s formation. In addition, different conceptions of knowledge will be contrasted. It is important to emphasize that the Lacanian theory of the four speeches will thoroughly support this argumentation.

Keywords: Psychoanalysis and university, Knowledge, Truth, Speeches


 

 

A presença da psicanálise nas universidades sob a forma de conteúdo de disciplinas, cursos de graduação e pós-graduação nem sempre se encontra vinculada ao ensino da psicanálise ministrado por um analista; ainda que esteja, o lugar de onde este fala e a posição a partir da qual se endereça aos ouvintes merecem ser considerados por aqueles que se envolvem nesse ensino, como ensinantes ou como interessados nele.

O aspecto discursivo dessa atividade chamada ensino da psicanálise nas universidades não poderia negligenciar as condições sob as quais um ensino de psicanálise corresponde a um ensino psicanalítico, ou seja, àquele que participa da formação do analista, ensino do qual não se recolhe como resultado um aprendizado ou um saber, pois “pode ser que o ensino seja feito para estabelecer uma barreira ao saber” (LACAN, 1970, p. 302).

O discurso universitário, suscetível de instalar-se em instâncias da vida social que ultrapassam os quadros institucionais da universidade, foi considerado por Lacan o menos propício à análise. Não se pode concluir que ele seja propício à formação do psicanalista e que o efeito de laço social que ele suscita seja da mesma ordem de uma psicanálise.

O discurso do analista é condicionado pela prática de uma análise, cujo produto é um analista. A formação do analista depende do ato; não é, portanto, resultante do acúmulo ou mesmo da construção de saber. “O ato analítico é a operação que produz a passagem do psicanalisante ao psicanalista ao término de uma análise” (LACAN, 1967-68). Com este dito, o ato é situado como aquilo que forma um analista, compreendendo esta passagem que não se confunde com uma progressão linear, mas envolve um salto que marca um começo, um corte que interroga a própria ideia de formação.

Nesse sentido, coloca Jacques Lacan: “Eu nunca falei de formação analítica, eu falei de formações do inconsciente. Não há formação analítica. Da análise se extrai uma experiência, a qual é completamente errado qualificar de didática. A experiência não é didática”, continua, justificando a introdução da expressão psicanálise pura, que distinguira da psicanálise aplicada à terapêutica (LACAN, 1967-68).

Psicanálise pura é intensão [intension], experiência produtora do analista. Do ponto de vista clínico, a psicanálise pura distingue-se da psicanálise aplicada. Do ponto de vista da transmissão, a psicanálise em intensão, ou pura distingue-se também da extensão, que presentifica a psicanálise na escola, nas instituições e na vida social. Ao mesmo tempo, intensão e extensão da psicanálise mantêm entre si relações de prolongamento e torção. A topologia desta relação é referida ao plano projetivo (LACAN, 1967/2003), que remete à banda de Moebius, cuja característica principal é sua estrutura unilátera: não há avesso e direito, pois a torção faz com que um esteja em continuidade com o outro. Essa topologia implica uma comunidade de princípios entre intensão e extensão, princípios que Freud e Lacan enunciaram sob a forma da neutralidade do analista em relação, não ao real que afeta a cada um e ao qual cabe a cada um responder, mas ao conflito do analisante, vale dizer, ao ponto em que pode desdobrar-se sua escolha e introduzir-se como sujeito no circuito do desejo.

Quando a psicanálise se estende à universidade, uma descontinuidade se interpõe, pois aí vigora outra ordem discursiva, com uma legalidade que lhe é própria e diferente dos princípios e da ética da psicanálise. A universidade não foi a extensão de Freud, que apenas em momentos excepcionais (Conferências na Clark University, 1909) fez dela o prolongamento de seu ofício. Ele vislumbrou a penetração da psicanálise nos cursos de medicina: “[...] para os objetivos que temos em vista, será suficiente que aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise” (FREUD, 1919, p. 102). Algo, alguma coisa, uma parte, foi o que Freud destinou à psicanálise na universidade, enquanto determinava que o analista dependia de três eixos para vir a exercer seu ofício (a análise pessoal, a supervisão de sua prática e o estudo dos textos psicanalíticos).

Seguindo a sugestão de Barros (2009) 1 , podemos, e mesmo devemos, pensar uma maneira de não nivelar os três eixos propostos por Freud no exercício da psicanálise. Dos três, a primeira, a análise pessoal, deve ser pensada como um “a mais” necessário e imanente à formação, um quarto elemento homólogo ao sinthoma (LACAN, seminário XXIII, 1975-76) que amarraria os registros, não diferenciados entre si, do real, simbólico e imaginário. Segundo Barros (2009), a análise pessoal deve ser reduplicada e diferenciada dos três eixos propostos por Freud, uma vez que, diferentemente da supervisão, do estudo teórico e da expectativa contida na demanda de análise, ela exige que o sujeito se responsabilize pelo seu ato. Como um quarto elemento, somente a análise pessoal poderia amarrar os outros três registros, a demanda de análise, a supervisão e o estudo, criando um sentido novo, como diria Freud (1917, pp. 517-8) em sua 27ª conferência: “Todos os sintomas do paciente [na transferência] abandonam seu significado originário e assumem um novo sentido que se refere à transferência [...]”. Não seria esse significado novo, uma Bedeutung, uma “significação’, ou em termos lacanianos, um novo significante produto do processo de analisar-se que tem como resultado um analista, ou melhor, um autorizar-se como analista?” (cf. comentários, MILLER, 2000, p. 18).

Sobre o saber, Lacan (1967) distingue o saber referencial do saber textual. O saber referencial corresponde àquele sobre o qual se aprende, aquele que é estudado nos textos dos mestres. O saber textual concerne ao saber inconsciente, que vem a ser lido em uma análise e cuja leitura opera transformações na maneira de apreender o saber referencial, de modo a subjetivá-lo. Aprender a partir da psicanálise implica uma relação com o saber, uma relação que assume a falha no saber, falha que Freud cedo detectou ao verificar que seus mestres transmitiram-lhe aquilo que não sabiam:

Esta ideia [da etiologia sexual] pela qual eu estava me tornando responsável de algum modo tinha se engendrado em mim. Foi-me transmitida por três pessoas, cuja opinião reclamava com justiça meu mais profundo respeito, o próprio Breuer, Charcot e Chroback (...) Esses três homens me haviam transmitido uma intelecção que eles próprios não possuíam (...) Mas essas três comunicações idênticas, que recebi sem compreender, ficaram adormecidas durante anos, até que um dia despertaram como um conhecimento aparentemente original (FREUD, 1914/1969, pp.12-13).

Nesta passagem, encontramos um belo exemplo de transmissão. Transmitir não é, como constata Freud, veicular o dito do que foi enunciado, mas responder a “um conhecimento que, rigorosamente falando”, os próprios mestres não possuíam. Sob admiração e transferência por esses três grandes homens, sem mesmo compreender o que diziam, Freud fez do impossível de significantizar, do que foi dito, uma enunciação, ou melhor, fez do falar, algo da verdade do que se fez ouvir sob a forma do que ele construiu, como mito, do que se disse (JIMENEZ, 1990, p. 35). Adormecida em sua mente durante anos, o não-assimilável, o não-compreensível, as opiniões do campo do Outro, o opaco do campo do Outro, despertaram sob a forma de uma descoberta original da qual Freud se apropriou, responsabilizando-se por esta, tomando-a como sua enunciação, da posição de sujeito desejante (cf. DIOGO, 2008; JIMENEZ 1990). Constatamos, com esse depoimento de Freud sobre a transmissão, que esta só pode se realizar enquanto tal se, como sujeitos, apropriarmo-nos do que vem do Outro, do saber (S2) e, nesse apropriar-se, tocarmos o que interroga o saber, isto é, o impossível. Esse lugar é o lugar de analisante, daquele que, ao desejar saber sobre o que lhe causa, interroga sobre a verdade, lugar onde o sujeito, ao falar, diz o que não sabe e o que não se sabe.

Aprender, a partir da psicanálise, portanto, modifica a concepção de aprendizagem de um saber estabelecido, determinando uma nova relação aos textos, que serão lidos com base na experiência do inconsciente; mais precisamente, interpela a própria ideia de ensino-aprendizagem. Guiado pelo saber textual do inconsciente, o saber referencial não constrói sistemas, nem cria Weltanschauungen, ou seja, não recua diante de deixar perguntas sem resposta. A advertência de Freud acerca dos analisantes que se interessavam pela literatura psicanalítica evidencia bem a relação não complementar entre as duas formas de saber: ele alerta o analista para a manobra do analisante de poupar-se o sacrifício pessoal de uma análise, substituindo-a pela aquisição de saber referencial, saber estabelecido e que aproximamos do saber exposto, como veremos adiante. Por sua vez, o ensino universitário presta-se, portanto, a velar a falha no saber, aquela que a análise revela, não sem a experiência do horror. Só no a posteriori cada um poderá testemunhar o que para si teve um efeito formador: tudo aquilo que o autorizou ao ato analítico.

Retomando Lacan na proposição de 9 de Outubro, Miller (2000) propõe a distinção entre o saber suposto e saber exposto. Diferente do saber exposto, o saber sob transferência é o saber que está intimamente associado à verdade. Somente no discurso do analista, o saber vem no lugar da verdade: “O analista, com efeito, de todas as ordens de discurso que se sustentam atualmente [...] é aquele que, ao pôr o objeto a no lugar do semblante, está na posição mais conveniente para [...] interrogar como saber o que é da verdade” (LACAN, 1972-73, p. 127).

Enquanto o saber exposto supõe o que se tem (as referências do saber estabelecido, a priori, articulado), a suposição de saber está associada a uma falta, àquilo que não se tem, isto é, ao supor ter; na suposição, aponta-se para o não ter, daí o amor: dar o que não se tem. (MILLER, 2000, p. 10). É o que pressupõe o amor de transferência, dar o que não se tem, ou seja, um saber que, ao ser dado, não se tem. O saber suposto é suposto ao analista, mas, sobretudo, ao analisando, que pressupõe dar um saber que lhe escapa, daquele que não é nem mesmo senhor de sua própria casa. Aceitar o convite de dar algo que não tem é aceitar amar, quer dizer, ficar na posição de sujeito faltante ou, nos termos do seminário da transferência, do amante, ou, mais precisamente, servindo-nos do termo do Banquete de Platão, comentado por Lacan, de Erastés.

A questão que ainda é atual nos giros de um discurso a outro e na disjunção entre o discurso analítico e o universitário é como, à maneira da proposta de Jacques-Alain Miller ao fundar o Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, “não recuar diante da incontornável divisão que essa prática implica entre saber morto e saber vivo?” (LAURENT, 2001). Cabe ao psicanalista, em seu ato de ensinar, admitir o irredutível de letra morta nos saberes referenciais, expostos, e, ainda assim, ou mesmo por isso, convocar ao saber vivificado. Interroguemos, para responder essa questão por meio da teoria dos quatro discursos de Jacques Lacan (1969-1970), o lugar do não saber e do impossível imanente a toda transmissão.

Segundo Lacan (1972-73, p. 27), “há emergência do discurso do analista a cada travessia de um discurso a outro” e somente o amor (de transferência), propicia esta passagem (ver referência no seminário XX) que como analisantes ou como Erastés, nos conduz a trocar de discurso. Talvez, o ensino de psicanálise na universalidade poderia servir àqueles que se sentirem concernidos pela descontinuidade entre saber exposto e saber suposto, e pelo questionamento do saber que se quer universal, a se colocarem como analisantes e, consequentemente, virem, em algum momento do seu percurso, procurar a sua própria análise e formação.

Lacan, como em uma placa giratória, certamente fez girar os discursos que ele propôs: o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista.

Quanto ao discurso do mestre, Lacan se definiu muitas vezes como mestre na formação psicanalítica daqueles que o seguiam e que, de forma identificatória como discípulos, a partir do significante mestre (S1), o designavam: “tu és meu mestre”. Podemos dizer que, seguindo esse ideal de formação institucional, foi graças a esse discurso que a psicanálise se transmitiu e se divulgou como obra e em sua praxis, já que entre o lugar de S1 como agente e o saber há a impossibilidade. Trata-se da impossibilidade própria desse lugar que Lacan ocupou em muitos momentos, impossibilidade como condição de possibilidade de saber no campo do outro: S1 apontando para a impossibilidade em direção ao S2. Apesar de ter possibilitado um saber como transmissão e um objeto como produção, posto que, “o significante mestre, não somente induz, mas determina, a castração” (LACAN, 1969-70, p. 101), esse discurso, entretanto, produz um tipo de laço social que conduz o sujeito a ocupar, de forma recalcada, o lugar da verdade. Ou melhor, não querendo saber sobre a verdade que lhe cabe, o sujeito se instaura na parte inferior desse discurso (daí $----------a), isto é, na verdade sob o recalque do que o causa.

Vale lembrar que Lacan associou esse discurso, em 69, ao discurso da ciência: “o saber do mestre se produziu como um saber inteiramente autônomo do saber mítico, e é o que nomeamos a ciência” (Ibid., p. 103). Saber da ciência que, como ele nos transmitiu, apesar de nada querer saber sobre o que causa o sujeito, ou usando sua expressão, apesar de foracluir o sujeito, introduziu o sujeito como sujeito suposto e deposto de saber. Como sabemos, foi Descartes que se despojando de todo saber escolástico, impôs um método que propiciou toda a formalização e operação sobre o real.

Lacan, em O Seminário, livro XVII, afirma: “o saber do mestre se produz como um saber inteiramente autônomo do saber mítico, e é isso que chamamos a ciência” (LACAN, 1969-70, p. 103). A ciência, como discurso do mestre, mostra que é pelas fórmulas que o real se constitui como impossível. Se reconhecermos o projeto cartesiano de identificação à ideia de Deus pelo traço unário, constatamos que a ciência como discurso do mestre se instaura neste momento em que o sujeito vai buscar em um Outro a garantia mínima que lhe possa propiciar o saber sobre o real, quer dizer, o significante mestre no lugar do agente produz um saber no lugar do outro: S1--?S2. Esse saber desconstruiu o saber que se queria necessário, uma vez que, por meio de suas fórmulas, não atingia todo real – visto que por definição este é impossível a todo saber –, mas produziu uma realidade contingente, tal como uma hidrelétrica que, represando o rio, deslocou este de seu curso necessariamente “natural” e o instaurou como produtora de energia.

Apesar de Lacan, assim como Freud, ter como guia a Weltanschauung da ciência, ele sempre se manteve distinto desse discurso, pois “o discurso da ciência não se sustenta”, como diz Lacan, “na lógica, senão de fazer da verdade um jogo de valores, eludindo radicalmente toda sua potência dinâmica” (LACAN, 1969-70, p. 103). Essa primeira associação, entre o discurso da ciência e discurso do mestre, nesse ideal das ciências piloto, conduziu-nos a reduzir interpretação e ato analítico ao campo dos trocadilhos e metonímias infinitas, sem levar em conta, do real que aí está implicado, e, portanto, conduzindo-nos ao que Lacan denominou falso semblante (LACAN, 16 de novembro de 1966).

Em outros momentos, portanto, evitando reduzir o ato à mera discursividade, Lacan pôde referir-se ao discurso da histérica. Trata-se aqui do lugar próprio de todo analisante, daquele que procura no lugar do outro um significante que possa produzir um saber que o causa no lugar da verdade, ou melhor, um saber que possa responder sobre o seu ser como sujeito. Esse discurso, apesar de produzir saber, é, no entanto, impotente para responder pela verdade que causa o sujeito, pelo seu gozo:

 

 

Não é por acaso que Lacan, mais tarde, em Televisão, propôs pensar a ciência como discurso da histérica. Essa assimilação parece se justificar no fato de ambos, a ciência e a histeria, procurarem um traço unário de identificação, produzirem um saber que, por sua vez, é impotente para responder pelo ser que causa o sujeito cientista – ser que muitas vezes está fundado e dividido entre o seu saber cartesiano e lógico de operação de fórmulas mínimas e um misticismo que o protege, o “foraclui” do real no qual opera e que lhe é impossível – dado que suas fórmulas não o abarcam senão parcialmente, transformando-o em realidade.

Cabe ainda nos interrogar se Lacan também ocupou o discurso universitário. Na produção deste discurso, o saber se confunde com o ensino (MILLER, 1999) e opera por filiações e alianças, tendo como produção teses no lugar do Outro – teses muitas vezes restos, dejetos, ou, usando o neologismo bem humorado de Lacan, poubelication (poubelle – lixo – e publicação), que não sabemos o que fazer com elas: filiações filosóficas e referências que, por vezes, visando uma relação (no sentido oposto do aforisma da “não há relação sexual”) tampona, camufla o que faz resistência ao próprio ensino. Se distinguirmos, com Miller (1999), ensino e saber, Lacan, na contramão do ensino, certamente não ensinou, porém transmitiu, ao apropriar-se do não sabido e dos impasses da clínica, produzindo um ensino singularmente seu, um saber (S2) não vazio e formal, que ele próprio, paradoxalmente, nomeou como “Meu ensino”. Este ensino, por ter coabitado com o saber inconsciente, distingui-se do discurso universitário, que tem como agente o saber, sem lapsos e falhas.

O discurso do analista, entretanto, aponta para uma outra possibilidade de relação entre verdade e semblante. Ao colocar o analista na produção como semblante, este discurso não confunde o ser com o semblante como causa de um sujeito que se divide. É desse lugar, de analista que se põe como semblante de objeto, que, repitamos se “está na posição mais conveniente para [...] interrogar, como saber, o que é da verdade.” (LACAN, 1972-73, p. 127).

O discurso do analista só produz no lugar da verdade um saber próprio (saber inconsciente) porque tem como limite o gozo, ou melhor, o que é impossível de ser representado. Neste sentido, o verdadeiro do saber é quando ele toca um limite e falha: “que o verdadeiro visa o real, este enunciado é fruto de uma longa redução das pretensões à verdade” (Ibid., p. 123). Esse real só pode se inscrever por um impasse da formalização (Ibid, p. 125) e é na falha desta formalização, que a verdade pode surgir, pois tem o gozo como seu limite: “Outra coisa ainda nos ata quanto ao que é da verdade; é que o gozo é um limite” (Ibid., p. 124).

Parece-nos que a relação entre verdade e semblante nem sempre foi evidente na transmissão que nos legou Lacan. Cabe-nos ainda interrogar qual o lugar que a ciência ocuparia frente à verdade e ao semblante? A ciência estaria, como propõe Miller (1999), conciliando o saber-semblante, saber vazio próprio do discurso universitário, com o saber-verdade, verdade do sujeito que se produz no discurso da análise. Segundo Miller, Lacan, no fim de seu ensino, aproxima semblante e verdade, como se no campo mesmo do semblante, a verdade pudesse ser denunciada pelo semblante, daí, para designar a verdade, o neologismo “semi-dizer”, sugerindo que a verdade ao mesmo tempo em que é velada, vela o dizer por trás do que se diz, o produz. Essa convergência entre o saber-semblante e o saber-verdade, nos remete ao Seminário XI, quando Lacan propõe uma homologia entre o corpo da ciência e o objeto a: “O corpo da ciência, só conceberemos seu porte ao reconhecermos que ele é, na relação subjetiva, equivalente ao que chamei aqui de objeto a” (LACAN, 1964, p. 251). Por meio dessa homologia, Lacan parece propor pensar a ciência como resto que causa o sujeito e que, através de seus artifícios, pode colocar a verdade como causa: “essa teoria do objeto a é necessária [...] para uma integração correta da função, no tocante ao saber e ao sujeito, da verdade como causa” (LACAN, 1965-66, p. 890). A partir do saber que ela própria exige, a ciência se constitui da mescla entre verdade e semblante. Não é por acaso que, como constata Miller, o interesse pela verdade do saber aparece neste momento “como uma arte do semblante, em relação à exigência própria da ciência” (MILLER, 1999, p. 17), ou como afirma o próprio Lacan: “A verdade não é o contrário do semblante. A verdade é essa dimensão, ou demension... que é estritamente correlativa daquela do semblante. A dimensão de verdade suporta aquela do semblante (LACAN, 1971, p. 26). Ou melhor, a verdade, como já postulava no seminário do Avesso da Psicanálise, “é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais” (LACAN, 1969-70, p. 70).

Quando não avisados dessa relação intrínseca entre verdade e semblante, o corpo do saber científico e suas aquisições podem ser tomados pelos cientistas, nos seus enunciados, como objetos que não causam o cientista, pois estes não se sentem concernidos por eles. Salientamos a advertência de Lacan quanto ao fato de que, se isto acontecesse - e isso é bem atual-, a relação do sujeito com a ciência tenderia a um tipo de seita, doutrina ou religião (LACAN, 1964, pp. 238-239). É o que acontece quando a ciência faz coincidir o seu ideal com a ciência-ideal, acreditando explicar a contingência por fórmulas necessárias, e reduzindo as invenções e modalidades de circunscrever o gozo a uma natureza hipostasiada por algum postulado dito científico. Vale lembrar, como exemplo, a tentativa da neurociência de explicar, e mesmo querer controlar2 , por meio da teoria dos neurônios espelhos, os autistas, reduzindo, consequentemente, às falhas da rede neurológica, suas invenções e suplências – suplências que, muitas vezes, se prestam às verdadeiras próteses em relação à ausência do falo como órgão extraído (como quarto termo que propiciaria a amarração dos registros, real, simbólico e imaginário). No caso dos autistas, não seria pela “boa” intenção da ciência em detectar a rede de neurônios espelhos que poderemos acreditar suprir o seu dito processo deficitário, reparando-o pelo “bom” uso de próteses neurológicas, como se essas pudessem substituir as construções próprias dos autistas – construções, estas sim, que podem servir de suplência às funções de órgãos e corpos como, por exemplo, os duplos (reais), que podem servir para os autistas de suplência à função imaginária (cf. LAURENT, 2008).

Ao analista caberia, eticamente, “curto-circuitar” esse ideal encarnado e atualizado pela ciência hoje e, no ensino, apontar para o saber. Mesmo na universidade, confrontado com essa direção ética, é possível questionar o ensino pelo saber em direção a uma transmissão. Transmissão porque confronta o saber com o ensino, fazendo do saber resistência ao ensino, nos convidando, por meio do impossível, e não da impotência, a apostar na impossibilidade de “não recuar diante da incontornável divisão que essa prática de ensino (da psicanálise na universidade) implica” (LAURENT, 2001). Devemos, como sugere Laurent, não recuar do impasse e extrair do saber morto um limite em que a contingência possa resistir ao ensino, às avaliações acadêmicas e, sobretudo, aos objetos limpos e expostos de museu. Resistência que nos possibilita conduzir em direção a novas possibilidades de um saber vivo, causado por impasses e reflexões clínicos.

 

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: abril 2009
Aprovado para publicação em: junho 2009

 

 

1 Barros na aula inaugural do curso do ICP em 2009.
2 Segundo Laurent, a hipótese dos neurônios-espelho consiste em supor a existência de neurônios especializados no movimento do outro, isto é, os neurologistas acreditam que podemos reconhecer, imaginariamente, o outro graças ao encadeamento neuronal fundamental destes neurônios. Neste sentido, a rede destes neurônios estaria deficiente no caso dos autistas, já que estes não se reconhecem no Outro e não podem se identificar ao sentimento do campo do outro. Como prevenção, as pesquisas da neurociência têm como objetivo buscar reconhecer e controlar esses neurônios-espelhos com a finalidade de intervir em seu déficit, que, segundo essas investigações, caracterizariam, por exemplo, os autistas. (LAURENT, 2008). Vejamos uma pequena matéria de divulgação que se intitula “Autismo – ligação prejudicada”, que saiu em uma revista alemã sobre os alcances das novas pesquisas neuronais nos Estados Unidos sobre o autismo: “Que o autismo tenha uma causa genética, provaram os pesquisadores Hakon Hakonarson da Universidade da Pensilvânia na Filadélfia, USA. Eles analisaram 10.000 crianças que mostravam mais de 4.500 sintomas autísticos. Nestas crianças os pesquisadores acharam no cromossomo 5 variações frequentes na região entre o gene CDH9 e CDH10. Estes genes codificam a construção da Caderina, que é responsável pela adesão das células e moléculas para o contato e comunicação entre as células nervosas. Devido a esta diferença no cromossomo 5, os autistas têm a rede neural prejudicada. Os nossos resultados indicam”, diz Hakonarson, “que o autismo é um problema da ligação neural errada” (Revista Bild der Wissenschaft, 08/2009).
* Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; realizou Pós-Doutorado no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII. Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise. E-mail: freireanab@hotmail.com
** Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. E-mail: abastosg@terra.com.br

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