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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

Alienação, separação e a travessia do fantasma1

 

Alienation, separation and traversing the fantasy

 

 

Marcos Bulcão Nascimento*

 

 


RESUMO

Neste trabalho, se irá examinar a relação, de um lado, entre o processo de alienação e a entrada do sujeito no Simbólico; e, de outro, a relação entre o processo de separação e a travessia do fantasma. É ainda contemplada uma discussão sobre as relações entre o fantasma, o eu e as exigências pulsionais.

Palavras-chave: Sujeito, Alienação, Separação, Outro, Fantasma


ABSTRACT

In this work, we want to examine the relation, on the one hand, between the process of alienation and the entrance of the subject in the Symbolic order; and, on the other hand, the relation between the process of separation and traversing the fantasy. It also includes a discussion on the relation between the fantasy, the ego and the instinctual demands.

Keywords: Subject, Alienation, Separation, Other, Fantasy


 

 

Em termos gerais, pode-se dizer que o processo de alienação é correlativo ao encontro do indivíduo com a linguagem, com uma linguagem que o precede, que aí estava antes de ele pensar em existir. Uma linguagem cujas regras e códigos estão já definidos, não tendo tido o sujeito nenhum papel em sua constituição. Estas leis lhe são exteriores, e é preciso conformar-se a elas se se quer obter o reconhecimento do Outro falante. Com efeito, será esse Outro que lhe ensinará a servir-se da linguagem, o Outro que fornecerá todos os significantes necessários à tal utilização.

De outro lado, podemos dizer que o encontro do indivíduo com o Outro se faz a partir da experiência de satisfação originária. É o Outro que realiza para ele a ação específica2 e coloca fim à tensão da necessidade. Sua intervenção, todavia, tem como consequência algo mais do que a eliminação do desconforto do recém-nascido. De fato, “a criança se alimenta tanto de palavras quanto de pão” (LACAN, 1956-1957/1994, p. 189). Ou seja, a criança vai registrar desta experiência fundamental tanto os traços mnêmicos do objeto quanto as palavras pronunciadas na ocasião. Esta intervenção do Outro implicará desde então a inserção da criança na ordem simbólica, ordem de troca de significantes. A primeira participação da criança nesta troca simbólica se fará, assim, por meio de seu grito, o qual se torna significante a partir do momento em que o Outro o acolhe como uma mensagem. É este ato, esta resposta do Outro, o responsável pela “mutação significante” (MILLER, 1987).

O grito, como significante primitivo, desempenha desde logo várias funções. Em primeiro lugar, por exemplo, o grito nos serve para ter uma primeira ideia do objeto hostil. Com efeito, temos a tendência a esquecer as sensações corporais de dor; deste modo, sem o grito que o objeto desagradável nos faz soltar, não teríamos um meio seguro de identificar o que nos causou a dor e, portanto, de evitar uma nova ocorrência do evento desagradável: “O grito desempenha uma função de descarga, e tem o papel de uma ponte no nível da qual alguma coisa do que se passa pode ser capturada e identificada na consciência do sujeito” (LACAN 1959-1960/1978, p. 42).

Em segundo lugar, o grito tem a função de apelo, de demanda de satisfação ao Outro. Ora, na medida em que ele só se faz escutar enquanto apelo quando o objeto não está lá, o grito pode assumir a função propriamente significante de se referir a alguma coisa que falta, que está ausente (LACAN, 1956-1957/1994, p. 182).

Finalmente, na medida em que ele serve para chamar o Outro, o grito torna-se a primeira ação específica do sujeito e, assim, serve para representar o sujeito para os outros significantes.

Temos aqui o par mínimo da cadeia significante: S1-S2. S1 como o substituto do grito, primeiro significante do sujeito; S2 como o significante da resposta, o significante que faz do grito mesmo um significante3 . Ora, dizer que é S2 que transforma, num a posteriori, o grito em um significante, equivale a dizer que é S2 que inaugura a função propriamente de significação da linguagem. Em outros termos, não é senão após ter tido lugar a resposta do Outro que podemos realmente afirmar que houve algo como uma mensagem, um apelo. S2 é, portanto, o vetor semântico, já que é ele que dá, retroativamente, sentido a S1. A dimensão do sentido está assim na articulação de S1-S24 . Desta forma, não é somente o fato de tomar S1 como representante, mas sobretudo o fato de articulá-lo a S2 o que produz sentido e, em consequência, alienação. O processo de alienação consiste precisamente em que o sujeito se faça representar por um significante para outros significantes. A chave está na preposição “para”, preposição que indica o assujeitamento às leis do Outro.

Examinemos agora como isto se passa em termos da articulação entre sujeito e o Outro. Representemos a interação dos dois através dos seguintes diagramas (LACAN, 1963-1964/1973, p. 236):

 

 

O que vemos é que este diagrama, na verdade, pode ser obtido a partir de dois círculos ou dois conjuntos: o conjunto do sujeito, forçosamente vazio, e o conjunto do Outro, em que se alojam todos os significantes e símbolos da linguagem:

 

 

Ora, dizer que o conjunto do sujeito era vazio antes do encontro com o Outro significa precisamente que o sujeito é criado por esse encontro, pelo fato de que ele toma um significante (S1) ao Outro e o utiliza para se representar junto aos outros significantes (S2). Mas o que isto quer dizer, que S1 cria o sujeito? Significa, em outros termos, que o sujeito é fundado sobre esta nomeação do vazio, sobre esta ‘materialização’ da ausência. É, portanto, o significante a primeira instância diferenciada, o elemento que retira o ser do real ao delimitá-lo5 . Isto quer dizer que o campo do ser se inaugura, se instaura quando barreiras, limites são impostos à indiferenciação do real. Ora, são exatamente os significantes que vão primeiramente distinguir um “dentro” de um “fora”, algo que está presente de algo que está ausente6 , “de onde vemos que a ontologia nasce com o discurso” (MILLER, 1987). Podemos mesmo chegar ao ponto de identificar o campo do ser ao campo do discurso7 .

Isto nos conduz a uma conclusão muito importante. Se afirmamos que o campo do discurso, o campo do ser, é aquele do significante, do Outro, isto quer dizer que o campo oposto, aquele do sujeito, é, enquanto tal, estritamente condenado ao silêncio, e mesmo à desaparição. Dito de outra forma, S1, ao mesmo tempo em que ele cria o sujeito, ele o apaga: quando “o sujeito surge de um lado como sentido, produzido pelo significante, no outro ele aparece como afânise” (LACAN, 1963-1964/1973, p. 235). Sua única chance de não se apagar completamente é, então, não escolher a via do sentido, a via da alienação. Contudo, se ele não a escolhesse, ele terminaria por cair seja no sem-sentido (non-sense), seja no silêncio. Daí a inversão do cogito: eu sou onde eu não penso. Eu penso onde eu não sou8 . Está aí a condição de sujeito essencialmente dividido, barrado: o fato de que o sujeito enquanto tal não se manifesta senão no intervalo de S1-S2, isto é, antes de o sentido se constituir, mas depois de um significante ter sido capturado.

É a ideia que pode ser apreendida do cogito em seu “tempo primeiro”, isto é, o tempo em que há puramente a constatação de existência (juízo de significação absoluta: “eu sou isto”), sem haver ainda atribuição (juízo em que a articulação significante é já requerida).

Realmente, não é difícil perceber que há dois momentos opostos na concepção cartesiana do cogito: um primeiro de desmontagem, de desarticulação do saber; e um segundo de montagem, de construção. Com efeito, a quê a fase (chamemo-la) pré-cogito nos conduz senão à demolição de todo o edifício do conhecimento, de toda articulação do saber? Ora, podemos bem pensar este movimento de desarticulação em termos do corte de S1-S2, o qual, por sua vez, tem como resultado o surgimento da verdade primeira do sujeito, uma verdade

evanescente, que não perdura senão na medida em que o contraste entre a dúvida e minha existência se mantém. Trata-se de uma verdade que me diz que eu sou alguma coisa, mas que não me diz nada sobre esse “isto” que eu sou efetivamente. Eu sou um puro “isto”, um vazio de atributos e de significações (BULCÃO NASCIMENTO, 2008, p. 360).

Isso nos remete diretamente ao próprio resultado do processo de separação, tal qual descrito por Lacan. Realmente, num primeiro momento, Descartes pode ainda ser dito ‘lacaniano’, a verdade do sujeito não tendo ainda sido excluída. Não é senão no movimento seguinte que tal exclusão se produz, quando Descartes ‘petrifica’ essa verdade ao fazer do pensamento uma substância, a essência desse sujeito, passando assim da pura existência aos juízos de atribuição. Contrariamente a Lacan, a verdade que Descartes procura é aquela que depende da garantia fornecida pelo Outro. Eis aí o passo de “traição” à verdade do sujeito: no “pós-cogito” o passo que se dá é o passo irreversível em direção à reinserção do sujeito no mundo do sentido, à alienação, portanto. Com esta identificação substancial entre o sujeito e o pensamento, volta-se ao campo do Outro: S1-S2 tem sua conexão restabelecida (BULCÃO NASCIMENTO, 2008, pp. 360-1) 9 .

Vemos, assim, que, em Descartes, a operação de separação, por assim dizer, é primeira, enquanto que em Lacan é segunda. Em todos os casos, entretanto, esta operação implica um corte do binário S1-S2.

 

O unário e o binário: S1 como fora da cadeia (S1 / $ ? a / $)

Neste ponto, o que devemos observar é a existência de um tempo lógico anterior, tempo em que não há ainda alienação significante. Para que haja alienação, não basta que o significante venha do Outro. É preciso também que haja uma concatenação entre os dois polos. É a articulação produtora de sentido que gera a alienação, o sujeito sendo capturado na armadilha e apagado no processo de representação que teve lugar no campo do Outro.

Portanto, se se chega a “interromper” este processo representativo de articulação entre S1 e S2, tem-se sucesso em obter S1 sozinho e, como tal, fora da cadeia. Ora, a chave da diferença entre alienação e separação reside exatamente na diferença entre S1 sozinho e S1 formando par com S2. No nível de S1-S2, S1 tem um valor articulador, é um significante mediador entre o sujeito e o Outro. Dito de outra forma, na alienação, há a imersão do sujeito no Outro, suas leis sendo respeitadas e o reconhecimento sendo desejado e obtido10 . De outro lado, S1 sozinho tem um valor completamente oposto. “É um significante redutor do Outro. É um significante que, paradoxalmente, se instala, vale, fora do sistema significante”. E se a cadeia é cortada, isto quer dizer que o sujeito não está representado no Outro: “é na medida em que o sujeito renuncia à sua representação significante, isto é, renuncia a seu devir significante, que ele é suscetível de tornar-se pequeno a. (...) Uma vez que o pequeno a não é um significante e S1, se é um significante não é um significante como os outros, todos os dois parecem partilhar o estatuto de fora de cadeia”, e, portanto não articulados aos outros significantes (MILLER, 1986-87) 11 .

Vejamos o diagrama da separação:

 

 

É, com efeito, o encontro do sujeito com o objeto a, causa de seu desejo, que lhe permite realizar o corte de S1-S2 e fazer de S1 o significante de sua diferença fundamental, diferença pura, irredutível. O que acontece é que S1 sozinho não pode ser do sujeito senão um representante pontual, ou seja, ele não pode senão indicar a presença do sujeito numa frase de significação absoluta: “tu és isto”. Esta frase tem uma significação “absoluta” na medida em que ela não tem seu sentido ou decifração nas mãos do Outro. Ora, se o Outro não tem nenhuma influência aí, isto significa imediatamente que o que é aí revelado é exatamente o que é mais íntimo ao sujeito, sua verdade mais particular. Vemos, portanto, a estreita associação entre esta verdade e o objeto a: o objeto a, enquanto ligado ao mais íntimo desejo inconsciente do sujeito, é propriamente o produto desta revelação, é o que surge por trás das insígnias que ocupam este lugar do Um (S1) e que representam o sujeito para os outros significantes. Cortado o “para” da relação, não resta ao sujeito senão ser “representado” por sua própria falta, índice de gozo: a / $.

Separação e Travessia do Fantasma

A passagem do sujeito alienado ao sujeito separado tem outras implicações. Em primeiro lugar, ela implica uma delimitação entre o sujeito do inconsciente e o eu (moi). Vemos, efetivamente, que o sujeito do inconsciente (je) está do lado da verdade evanescente, do S1 sozinho e fora da cadeia12 . De outro lado, o eu está do lado do Outro, da cadeia articulada, do discurso intersubjetivo e da verdade caucionada por um pacto institucionalizado. A oposição profunda entre o sujeito do inconsciente (o je) e o moi revela-se assim por via da operação de separação, a qual faz aparecer um outro tipo de verdade, um outro tipo de demanda.

Na verdade, a operação de separação tem uma condição: o encontro com a falta. A falta do/no Outro, a própria revelação de que o desejo do Outro é uma falta. Portanto, a pergunta da separação é: o que eu sou no desejo do Outro? (SOLER, 1995, p. 51). Na operação de separação, assim, o sujeito é separado do registro do sentido, da cadeia significante como tal; mas, se ele está separado do Outro como linguagem, ele não se separou do Outro como desejo. Nesse contexto, fica claro que na operação de separação o sujeito continua às voltas com o Outro, não mais pela vertente do saber, como na alienação, mas pela vertente do desejo. A operação de separação é, deste modo, ‘a operação por excelência pela qual o sujeito formula a questão sobre o desejo do Outro, para a qual o fantasma surgirá como resposta’13 .

* * *

O que é o fantasma? O fantasma, propriamente falando, constitui-se como uma defesa contra o real. Ele é uma espécie de tela que dissimula o encontro com o real e o torna suportável ao sujeito. Em outras palavras, há algo que vem do real que é intolerável ao sujeito, algo que ele deve mascarar, obturar. Esta “coisa” é a castração, é a falta primordial que bate à porta do sujeito desde seus primeiros momentos de existência. Com efeito, é em razão do fato de que o objeto de satisfação falta (por exemplo, o seio da mãe) que a criança se torna um sujeito desejante. Se a mãe estivesse sempre lá, o sujeito não adviria jamais, pois não haveria o movimento inaugural da demanda. Suprido, o indivíduo permaneceria no estado de perpétua inércia. Vemos, assim, que a castração e a alienação se implicam reciprocamente, pois é a primeira que impulsiona o sujeito a ir de encontro ao Outro (LACAN, 1967) 14 .

O objeto está então faltando, e o sujeito vai justamente homologar esta perda do objeto formando um fantasma. Neste primeiro momento, o fantasma não é mais do que a representação imaginária do objeto perdido. Este objeto que serve de suporte ao fantasma é então o objeto que causa e coloca em movimento o desejo do sujeito. O objeto do fantasma é o objeto a, o que é bem indicado por seu matema: $ ? a.

Contudo, o fantasma não é somente uma formação defensiva, um resultado de um mau encontro com o real, um efeito deste desejo primitivo do objeto perdido. O fantasma é também a matriz dos desejos atuais. Pelo fantasma, toda a realidade do sujeito vai ser mesmo atravessada pelo desejo, pois o fantasma enquadra, emoldura a realidade. Dito de outro modo, podemos também ver no fantasma uma função organizadora da realidade humana e, enquanto tal, o fantasma não é somente uma função puramente imaginária, mas também uma função simbólica15 . Seu matema deixa entrever isso sob a forma desta barra ($) que divide o sujeito para sempre, que é a marca de sua entrada na linguagem e seu assujeitamento a ela. Desta maneira, o fantasma é o conceito que permite amarrar os três registros: o simbólico (representado pela barra do $), o imaginário (pequeno a) e o real (pequeno a) 17 .

Todavia, não é somente com a pulsão e com o sujeito do inconsciente que o fantasma tem relações. Ele as tem também com o eu. Com efeito, a relação do fantasma com a pulsão e com o sujeito do inconsciente revelou-se imediatamente, já que o fantasma se colocou precisamente como uma espécie de roupagem e de véu da pulsão. Realmente, se o fantasma pode ordenar a relação do sujeito à realidade, é porque ele emoldura a correlação do sujeito com o gozo.

* * *

Contudo, nos é necessário agora examinar sua relação com o eu, com a instância psíquica que é encarregada precisamente de modificar o mundo para obter satisfação.

O sujeito do inconsciente, vimos, é o verdadeiro sujeito do desejo, o verdadeiro portador das ambições pulsionais. O eu, de outro lado, é a interiorização, num certo sentido, das leis da linguagem, das leis do Outro. Ele é o representante de uma lei exterior, de uma lei estranha e estrangeira. Desta maneira, quando o eu tenta organizar os modos de satisfação do sujeito via alteração real do mundo exterior, ele vai fazê-lo encontrando um compromisso entre as exigências das pulsões e as do Outro. Em outras palavras, o eu tentará satisfazer as pulsões sem arriscar perder o amor do Outro.

A necessidade deste compromisso remonta ao aprendizado fundamental do eu, à ocasião de suas primeiras experiências. De fato, o eu aprendeu que a satisfação vinha sempre do Outro. Sendo assim, o eu acabou por confundir o objetivo de encontrar satisfação com a obediência ao Outro, ele acabou por confundir a procura de satisfação pulsional com a procura de amor. Dito de outro modo, o eu chegou à conclusão de que, se a satisfação vinha sempre do Outro, era preciso então tê-lo em alta conta, era preciso respeitá-lo, obedecer-lhe, na intenção de obter dele a garantia da satisfação futura.

Desta maneira, o eu vai barrar, impedir toda moção de desejo que comprometa o respeito e o amor do Outro. Eis aí o paradoxo humano: a fim de garantir a satisfação (segura), ele se priva da satisfação (imediata). Ele a impede porque ele fica preso na armadilha, na ilusão de que ele não pode obter satisfação senão através do Outro, através de seu desejo, de sua legitimação e reconhecimento.

O eu, assim, aprende a sacrificar a pulsão pelo amor. Ensinou-se ao eu a renunciar ao prazer do erotismo para poder ser amado. O que se passa então é uma interiorização do Outro, de suas prescrições e de suas proibições. O eu é como a voz do Outro, seu intérprete interno. Ele é o sujeito identificado aos ideais do Outro. É o que permitiu a Lacan instalar, na sua teoria, no lugar do eu, a linguagem e suas leis, a linguagem e sua articulação estrutural.

* * *

Porém, por que dissemos justamente que seria o conceito de fantasma que serviria de ponte entre a questão do sujeito – e, por trás dela, aquela do gozo – e o eu? Pura e simplesmente porque o objeto do fantasma é precisamente o que se põe entre o objeto da pulsão e o “objeto do eu”, entre a pura vontade de gozo e a demanda desesperada de amor.

Com efeito, é pelo fantasma fundamental que as exigências pulsionais encontram sua dimensão psíquica em termos de conteúdo organizado, conteúdo que será utilizado pelo eu para fazer face à “realidade intolerável”. O fantasma fundamental é, desta forma, não apenas uma espécie de guia de interpretação dos eventos que atingem o aparelho psíquico, mas também um meio de acessar o gozo. É assim que o fantasma desempenha o duplo papel de dar testemunho de um mau encontro com o real e de fornecer o material a partir do qual a realidade pode tornar-se de novo um “espaço habitável” 18 . Em outras palavras, é por causa do fantasma que todo encontro com o real deixa de ser impossível de suportar.

Esta ligação entre a pulsão, o fantasma e o eu mostra-se ainda mais clara no caso da satisfação sublimatória, na qual o eu consegue precisamente conjugar as exigências do Outro (sua demanda de ser amado) e as exigências da pulsão. Esta conjugação é possível justamente quando os objetos fantasmáticos que mobilizam a libido encontram também aprovação da sociedade, quer dizer, quando eles são socialmente valorizados (LACAN 1959-1960/1978, p. 113).

* * *

Isto dito, o que podemos constatar é que o eu, por si mesmo, não tem o que se poderia chamar “uma vontade própria”. Se o eu luta por um compromisso entre a pulsão e o Outro, recusando muitas vezes à pulsão um meio de se satisfazer, isto é assim apenas pelo fato de que o eu é o resultado de um argumento falacioso, aquele que diz que, para obter satisfação, é preciso de início renunciar a ela.

Percebemos, dessa maneira, que o eu é um falso sujeito, já que ele não deseja, propriamente falando, nada. Ao contrário, esta demanda de amor do eu não é um verdadeiro desejo e tem apenas uma só raiz: a pulsão, sua exigência de gozo. Em outras palavras, é porque o eu quer garantir a satisfação pulsional que ele se faz escravo das leis do Outro. Ao fazer isso, o eu parece mudar de mestre, mas na verdade não há senão um e único mestre: a pulsão. Assim como há apenas um único e verdadeiro sujeito desejante: o sujeito do inconsciente.

De fato, se nos voltamos sobre nossas construções iniciais, lembraremos que a pulsão não visa senão uma só coisa: a satisfação, a qual só pode ser obtida por meio da repetição do percurso do trilhamento primordial. Eis a realidade da pulsão e a única realidade verdadeiramente irredutível do sujeito: a pulsão exige a repetição deste caminho, e é tudo.

Contudo, pareceria um pouco drástico afirmar isso desta forma, já que – a partir do exame do funcionamento do aparelho psíquico – se tornou claro que a forma pela qual esse caminho é percorrido é muito importante. Sim, pois, caso contrário, se estaria mesmo correndo o risco de alucinar até a morte. Está aí justamente o ponto irredutível de todo sujeito humano. A pulsão é uma pulsão de morte, a qual ordena a repetição a todo custo. Mas, então, por que saímos deste circuito alucinatório? De uma maneira acidental, poder-se-ia dizer. Prematuros e incapazes de fazer qualquer coisa em prol de nossa própria sobrevivência, acontece de um outro ser humano nos salvar a vida. Vimos o dia entre seres que tomam a seu encargo a sobrevivência dos recém-chegados. Com esta ajuda do Outro, temos nossas primeiras necessidades satisfeitas, e é a partir desse fato, desse movimento do Outro em nossa direção, que os caminhos de satisfação pulsional vão inscrever-se em nosso sistema mnêmico. Deste modo, é porque dependemos do Outro para sobreviver que acabamos por construir caminhos de satisfação que se desviam, pouco a pouco, da estratégia rápida, direta e suicida da alucinação indefinida.

Esta relação de dependência tem uma consequência ainda mais ampla quando pensamos que ela nos inscreve num sistema de troca simbólica e nos obriga a utilizar palavras para nos referir a objetos, significantes para descrever sensações e para determinar objetivos. O que deveria ser um simples meio de retardamento da obtenção de satisfação (não alucinar até a chegada da boa percepção) acabou por se transformar num longo desvio cheio de curvas sinuosas. É justamente esse desvio que constitui o que é propriamente humano, e é esse sujeito humano que despertou o interesse de Freud e depois o de Lacan. Este sujeito que não sabe nada sobre seus desejos fundamentais e cuja única possibilidade de lhes aceder se oferece por meio de remanejamentos sucessivos de suas inscrições mnêmicas. É por isso que a psicanálise utilizará uma técnica que se centra na palavra, posto que é somente através dela que podemos penetrar um pouco mais neste terreno pouco desbravado. A revolução freudiana consiste exatamente nesta descoberta de que o sujeito humano desconhece seu desejo irredutível. Assim advertido, ele poderá ter uma escuta especial na sua prática clínica, uma escuta que tem sua atenção dirigida para o que se repete, para o que se traveste, se transforma, mas sempre persiste e retorna. É nesta insistência que Freud vai reconhecer os desígnios da pulsão e poderá tentar empreender a cura. “Cura”, entretanto, não significa aqui dar ou restituir ao sujeito a liberdade absoluta sobre seus caminhos de satisfação, mas apenas lhe permitir uma certa mobilidade no que concerne a todo acesso possível a estes modos de satisfação. A “cura” psicanalítica não visa restituir ao sujeito o poder total de seu destino e de seus desejos, mas apenas dar-lhe a possibilidade de trabalhar, de agir sobre um terreno de contingência, sobre uma pequena brecha que se abre no real pulsional.

É por isso que o trabalho analítico se centra na abordagem do fantasma, porque é por seu intermédio que o sujeito pode aceder ao seu próprio gozo e esperar, a partir daí, uma mudança no mesmo. A cura psicanalítica não busca, assim, nada senão dar ao sujeito a chance de fazer sua a sua própria verdade, fazer seu o seu próprio estilo, não no sentido de se apropriar de algo que já estaria lá, mas, antes, no sentido de construir algo a partir dali. Um estilo que vem, sobretudo, do objeto pequeno a, e não um estilo importado do Outro. O que a “cura” persegue, desse modo, é a travessia do fantasma, este movimento que implica a assunção da falta fundamental, a assunção de um significante que não adquire significação senão por relação ao objeto causa de desejo; este movimento que implica que o sujeito possa renunciar à sua representação significante e tornar-se ele mesmo pequeno a19 .

 

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em: outubro de 2009
Aprovado para publicação em: dezembro de 2009

 

 

1 Texto adaptado a partir do capítulo terceiro do nosso livro A Constituição da Realidade no Sujeito: Psiquismo, Real e Epistemologia (Salvador: Edufba, 2007). Nossos agradecimentos ao parecerista, cujos comentários e observações permitiram uma melhor formulação das questões tratadas.
2 Em termos freudianos, a ação capaz de fazer cessar a estimulação endógena é dita ‘ação específica’.
3 É neste sentido que se pode dizer que o verdadeiro significante primeiro é S2, já que ele precede logicamente a constituição de S1. Isto quer dizer que S1 não é significante senão por causa de S2.
4 Em Freud, também, a dimensão do significante, do sentido, pertence ao território da articulação entre as representações.
5 Em uma palavra, o significante é a primeira substância. Segundo a teoria de Lacan, somos conduzidos a concluir que a substância, o ser, está do lado do significante, e não do lado do sujeito.
6 Realmente, a oposição presença-ausência é possivelmente a oposição mais importante da ordem simbólica. Com efeito, é graças a esta distinção que a criança passa da ordem da necessidade àquela da demanda. Se a mãe não se ausentasse jamais, não haveria chance para que a criança começasse a desejar, a conceber algo como faltante.
7 Este mesmo resultado poderia ser atingido por uma outra via, a saber, por intermédio dos termos freudianos. Com efeito, o resultado da captura do real, do pulsional, indiferenciado e desordenado, é a própria construção de Bahnungen, cuja articulação em rede equivale à cadeia significante. Ou seja, aqui como lá, há, como resultado da imposição de uma estrutura determinada ao real, a produção de sentido. De fato, ser é, sobretudo, ser nomeado, ser distinguido, ser posto como diferente de uma outra coisa qualquer. Assim, em Freud, a produção de sentido vem como produto da articulação das representações; em Lacan, a produção do sentido vem como resultado da articulação dos significantes.
8 “Pensar” é utilizado aqui no sentido da articulação significante entre S1-S2. Isto respeita também o texto freudiano, para quem pensar era, sobretudo, articular as representações. Assim, “eu sou onde eu não articulo” equivale a “S1, quando separado de S2, desvela $”. Mas se a desaparição do sujeito é condicionada à articulação de S1 e S2, isto quer dizer que S1 sozinho não basta para apagar $, o que parece contradizer o que foi dito algumas linhas acima. Este paradoxo será resolvido a partir da noção de separação, que dá um estatuto especial à condição de S1 sozinho, não articulado a S2.
9 Para um estudo mais detalhado sobre as relações entre a constituição cartesiana do cogito e os conceitos lacanianos de alienação/separação, cf. BULCÃO NASCIMENTO, M. “As duas verdades: Lacan com Descartes”, in: Revista Estudos Lacanianos, v. 1, n. 2, pp. 357-364.
10 A noção de reconhecimento é, com efeito, essencial. Ela implica a ideia de um pacto, de um consenso ao redor de alguns princípios ou leis, que devem ser obedecidos.
11 MILLER, J.-A., Ce qui fait insigne, aula do 21/01/87.
12 Conforme observado pelo parecerista, o que está pressuposto aqui é a existência de um inconsciente fundado na cadeia significante (S1-S2) e seu contraste em relação a um inconsciente constituído de uns (S1-S1-S1-S1...).
13 Para toda essa passagem, estamos em débito para com os comentários feitos pelo parecerista.
14 LACAN, J. (1966-67) La logique du fantasme, aula de 18/01/67.
15 “A realidade inteira não é nada de outro que uma montagem do simbólico e do imaginário” (LACAN, 1967, La logique du fantasme, aula de 16/11/66).
16 Este duplo aspecto (imaginário e real) do objeto a justifica-se, de uma parte, pelo fato de que todos os objetos que pretendem assumir o lugar do objeto faltante desempenham um papel de suplência e, portanto, um papel imaginário de preenchimento. De outra parte, o aspecto real do objeto a torna-se evidente quando é lembrada sua definição enquanto mais-de-gozar, quer dizer, enquanto resto inassimilável mas ativo no psiquismo.
17 Pois o objeto do fantasma é, num certo sentido, também o objeto da pulsão, o objeto a. Entretanto, o objeto do fantasma não coincide totalmente com aquele da pulsão, uma vez que o objeto da pulsão não deve ser confundido com as formações imaginárias do fantasma. O objeto pulsional deve ser abordado antes do lado do prazer da boca, do que do lado do seio imaginário que o suscita.
18 Isso quer dizer que o eu vai substituir a realidade intolerável colhendo no mundo fantasmático o material que suas novas formações de desejo exigem.
19 No sentido de assumir(-se como) o produto que se revela por trás das insígnias que ocupam este lugar do Um (S1) e que representam o sujeito para os outros significantes. Cf. supra.
* Doutor em Filosofia pela USP (2005), com doutorado sanduíche pela University of South Carolina (2003-4). Mestre em Teoria Psicanalítica, pela Université de Paris VIII (1998). Tem ainda pós-doutorado pela UFBA (Prodoc-Capes, 2006-7) e USP (Fapesp: 2008-atual), com estágio na University of London – Birkbeck (2009). E-mail: marcosbulcao@yahoo.com.br

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