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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

O acompanhamento terapêutico na perspectiva lacaniana: contribuições para uma clínica em construção1

 

The therapeutic accompaniment in the Lacanian Perspective: contributions to a clinic under construction

 

 

Felippe Figueiredo Lattanzio*; Lucas Henrique Braga**

UFMG

 

 


RESUMO

A partir de um breve histórico do acompanhamento terapêutico, tenta-se traçar algumas perspectivas para essa clínica na orientação lacaniana. A noção de secretariar é retomada, e busca-se relacioná-la com as ideias de intervenção no Outro (Zenoni), amarração/grampeamento pelo social e trivialização do delírio. Algumas vinhetas clínicas são apresentadas com o intuito de exemplificar essas formulações.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico, Psicose, Lacan.


ABSTRACT

From a brief history of therapeutic accompaniment, we try to draw some perspectives for this clinic in the Lacanian orientation. The concept of secretary is related to the ideas of intervention in the Other (Zenoni), stapling by the social and trivialization of delirium. Some clinical vignettes are presented in order to illustrate these formulations.

Keywords: Therapeutic Accompaniment, Psychosis, Lacan.


 

 

Introdução: breve histórico do acompanhamento terapêutico

O acompanhamento terapêutico surgiu como uma prática alternativa ao tratamento de pessoas que possuem dificuldades de inserção na sociedade, devido a algum quadro de sofrimento mental. Esta prática teve origem em Buenos Aires e Porto Alegre, no início da década de 70, e era mais difundida entre clínicos do setor privado, sendo eles autodenominados “amigos qualificados”. Posteriormente, esse nome é mudado: deixa-se de acentuar o componente amistoso e este é substituído por um assistencial – de alguém que, mesmo estabelecendo vínculos afetivos com o paciente, possui com ele uma relação de trabalho terapêutico e um distanciamento que afasta a identificação. Entretanto, apesar da novidade da proposta, por um longo período o uso dessa prática no Brasil foi incorporado como mais uma técnica médica de adaptação do sujeito à realidade. Durante toda a década de 80, o uso dessa prática é contaminado por uma visão ainda incipiente da teorização de Lacan, e é rejeitada pela maioria dos adeptos da psicanálise. Estes eram contrários à ideia de que o acompanhante se prestaria meramente a servir de identificação imaginária para o paciente, estabelecendo estratégias para a evitação da dimensão persecutória/erotômana e suprindo, provisoriamente, a função simbólica. Ou seja, o acompanhante serviria como uma espécie de bengala identificatória, sem a qual o paciente não conseguiria caminhar sozinho. Na década seguinte, a prática segue recebendo críticas de outros campos, pois se fazia urgente que ela se pautasse no pragmatismo exigido pelo social, que no momento ganhava força e ocupava o espaço da clínica – a abordagem comportamental, centrada nas habilidades sociais, ganhava espaço. A virada do século traz para o acompanhamento terapêutico uma conciliação teórica entre o campo social e o psíquico: a saída com o paciente promove uma situação que pode catalisar um fazer específico, antes impedido pelas paredes dos consultórios e instituições, abrindo inúmeras possibilidades de intervenção pelo acompanhante (GUERRA & MILAGRES, 2005, pp. 62-65).

 

Secretários do alienado

Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan nos indica qual posição o analista deve tomar em relação ao psicótico: secretário do alienado2 (LACAN, 1988, p. 235). Se o Outro, para o psicótico, é absoluto, cabe ao acompanhante esvaziar esse lugar – o paciente, então, terá chances de lidar com um Outro possível. Essa indicação e seus posteriores desenvolvimentos (por exemplo, ZENONI, 2000) servem como norte para o trabalho do acompanhante: junto com o paciente, propicia-se a construção de uma significação que busque barrar a invasão do gozo e tentar instaurá-lo na posição de sujeito, retirando-o do lugar de objeto do gozo do Outro. Diversamente das neuroses, em que o analista ocupa um lugar de suposto saber, na psicose o sujeito já parte de um saber constituído. Nesse sentido, cabe ressaltar que as possíveis intervenções não devem incidir no psicótico, mas sim no Outro, no social. Tal afirmação pode ser explicada pela fixação no estádio do espelho presente na psicose, que faz com que a linguagem não dê contorno ao eu, cuja imagem é frágil. Por isso, jamais podemos, no manejo clínico, intervir contra a imagem que um psicótico tem de seu eu, que é quebradiça e se amarra num significante frouxo que, se confrontado, pode fazer com que o sujeito se sinta despedaçado, como nos primórdios do estágio do espelho3 . Não há interpretações nem restrições feitas à pessoa do psicótico, mas sim uma tentativa de sempre mostrar que há uma Lei à qual tanto o paciente quanto nós e os outros estamos submetidos (ZENONI, 2000a, p. 23; ZENONI, 2000b, p. 33).

É o que nos pode ser ensinado pelo caso C, acompanhado por um dos autores. C, internado há quase oito anos em um hospital psiquiátrico, era um paciente muito delirante e completamente desleixado com seu corpo: sempre era encontrado muito sujo, com feridas sem cuidar, usando trajes rasgados. No histórico com outros acompanhantes, o paciente já tentara anteriormente por muitas vezes consumir cachaça, obtendo êxito em algumas dessas ocasiões. Na volta de uma ida ao centro da cidade, C queria de qualquer forma parar e comprar uma dose de cachaça. O acompanhante disse a ele que ele não devia beber, pois isso não era permitido pelo juiz e atrapalhava sua medicação. No entanto, tal intervenção não surtiu efeito. C tentou em três bares e não conseguiu ser atendido – a situação estava se complicando, pois o paciente estava ficando já nervoso e exaltado. O acompanhante, então, fez uma intervenção no Outro: disse-lhe que ele próprio e C eram proibidos pelo juiz de consumir bebidas alcoólicas durante o acompanhamento. O paciente, então, disse que o juiz “não manda nada”. O acompanhante lhe respondeu: “Realmente. Mas isso não é ele quem decide. Mesmo o juiz, se quiser beber pinga no seu horário de trabalho, não pode. Nem ele pode beber álcool na hora imprópria.” Diante dessa fala, C se acalmou e o acompanhamento seguiu-se tranquilamente. A intervenção no Outro, mostrando que tanto o acompanhante quanto o juiz estavam também submetidos a uma Lei, foi apaziguadora para o paciente, que pôde tentar lidar com um Outro possível. Foi interessante quando, em ocasião posterior, C parou em um bar e pediu uma cerveja sem álcool, sem nenhuma intervenção da parte do acompanhante.

A posição de secretário, como se pôde perceber, nem sempre é tão discreta: nos momentos de aparição do mortífero, cabe ao acompanhante intervir e fazer oposição a essa destrutividade, que muitas vezes é ameaça de passagens ao ato. Para tal, uma das vias privilegiadas é a da trivialização do delírio, que é também útil no sentido de propiciar um maior enlaçamento social, uma vez que as construções delirantes não costumam ser forjadoras de laço. Jacques-Alain Miller observa que, em se tratando da demanda psicótica, uma manobra preciosa a ser usada seria aquela de “buscar a maior trivialidade possível que levaria à possibilidade de uma vida comunitária mínima, uma vida comum” (MILLER apud FERREIRA & TRÓPIA, 2000, p. 147). Em vez de “privilegiar temas que incitem o delírio, é importante dar destaque àqueles corriqueiros, uma conversa ordinária sobre aspectos do dia-a-dia” (MONTEIRO & QUEIROZ, 2006, p. 115). O Outro invasor manifestado pelo delírio perde assim sua força, sofrendo um esvaziamento de sentido e de gozo.

Isso pode ser ilustrado com um pequeno fragmento de outro caso, o do paciente J, um paranoico que responde a um processo por homicídio. Durante um dos acompanhamentos, J irritou-se com o fato de, ao receber o troco numa viagem de metrô, lhe ser entregue grande quantidade de moedas. Para o paciente, a pessoa do caixa deveria saber que ele não gostava de receber moedas e teria feito aquilo intencionalmente, ao que o acompanhante responde que os trocos no metrô “são assim mesmo” e chama atenção do paciente para as coisas que eles iriam fazer na cidade, pois já estavam atrasados. Dessa forma, a persecutoriedade do delírio se esvaziou, e o paciente voltou-se para as atividades cotidianas.

Para operar tal clínica, portanto, é necessária certa dose de invenção e de espírito de humor, desprendendo-se do furor interpretativo de dar sentido, lembrando as constatações feitas por Eric Laurent a esse respeito durante A Conversação de Arcachon. Laurent afirma que é preciso fazer-se de capitonê e de destinatário dos sinais mínimos do psicótico. O analista/acompanhante deve ter uma disponibilidade e vontade férrea para se fazer assim destinatário, ajudando o sujeito a fazer amarrações no campo social4 . A respeito da posição de secretário, ainda,

pode-se entendê-la no sentido copista, ou então no sentido de Hegel quando ele diz: “o filósofo é o secretário da história”. O secretário é quem tem o conceito, ele escolhe ser o destinatário da história, ouvir com atenção isso, mais do que aquilo (MILLER et al., 1998, p. 125).

Se é o filósofo quem consegue transcender a mera sucessão temporal dos fatos e apreender o conceito, a história torna-se inteligível a partir de sua intervenção. Por isso ele é o destinatário da história (SPENCER & KRAUZE, 1997, p. 58). O conceito de secretário, portanto, invoca essa disposição do acompanhante para se fazer destinatário daquilo que o paciente traz.

É necessário, por fim, lembrar que para existir tal clínica é necessária grande dose de flexibilidade, no sentido de respeitar sempre as escolhas do paciente. A equipe multidisciplinar (como é o caso do PAI-PJ) deve ser levada a sério, e não é incomum que algum paciente chegue à instituição e “eleja” como interlocutor principal não o psicólogo ou psicanalista, mas um advogado ou outro profissional qualquer. Nesse sentido, a transferência estabelece-se com o referido advogado e, strictu senso, será a ele que caberá o manejo clínico do caso. Para tanto, é preciso que haja diálogo constante entre a equipe e aparatos como sessões clínicas e seminários, que contribuam para o bom andamento de uma clínica que se reinventa a cada dia.

 

 

Referências bibliográficas

FERREIRA, C. M. R & TRÓPIA, M. R. A. B. (2000) “O escriturário das suplências”, in Curinga, nº 14. Belo Horizonte.         [ Links ]

GUERRA, A. M. C. & MILAGRES, A. F. (2005) “Com quantos paus se faz um acompanhamento terapêutico? Contribuições da psicanálise a essa clínica em construção”, in Estilos da Clínica, vol. X, nº 19. São Paulo.         [ Links ]

LACAN, J. (1988) O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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MILLER, J.-A et al. (1998) Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica: a conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira.         [ Links ]

MONTEIRO, C. P. & QUEIROZ, E. F. (2006) “A clínica psicanalítica das psicoses em instituições de saúde mental”, in Psicologia clínica, v. 18, n. 1. Rio de Janeiro.         [ Links ]

RIBEIRO, T. C. C. (2002) “Acompanhar é uma barra: considerações teóricas e clínicas sobre o acompanhamento psicoterapêutico”, in Psicologia ciência e profissão, vol. 22, n. 2. Brasília.         [ Links ]

SPENCER, L & KRAUZE, A. (2006) Introducing Hegel. Cambridge: Icon Books.         [ Links ]

STEFFEN, R. (1988) “A tópica do imaginário”, in CHECCHINATO, D. (Org.) A clínica da psicose. Campinas: Papirus.         [ Links ]

ZENONI, A. (2000a) “Qual instituição para o sujeito psicótico?”, in Abrecampos, ano 1, nº 0. Belo Horizonte.         [ Links ]

_________. (2000b) “A clínica da psicose: o trabalho feito por muitos”, in Abrecampos, ano 1, nº 0. Belo Horizonte.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: setembro de 2009
Aprovado para publicação em: novembro de 2009

 

 

1 O presente artigo é baseado na experiência dos autores no Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Tal programa foi criado em 2000 para prestar assistência a portadores de sofrimento mental que mantivessem algum vínculo com a justiça. A "intervenção" do PAI-PJ junto aos pacientes infratores auxilia o Poder Judiciário, por meio de uma equipe multidisciplinar do programa (psicólogos, advogados, e assistentes sociais), a definir qual a melhor medida judicial a ser aplicada, com a intenção de conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social.
2 Apesar de algumas críticas à concepção de secretário do alienado, pensamos que a noção de secretariar é bastante útil para indicar a posição do analista frente à psicose. O termo alienado é que pode ser colocado em questão, dado que a partir da ideia de forclusão generalizada fica complicado referir-se ao psicótico como alienado.
3 Cf. LACAN, J. (1949/1998) “O estádio do espelho como formador da função do eu”, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Também STEFFEN, R. (1988) “A tópica do imaginário”, in CHECCHINATO, D. (Org.) A clínica da psicose. Campinas: Papirus.
4 Nesse sentido, J. A. Miller diz, em Arcachon, de uma suplência possível a partir da equivalência entre sintoma e laço social: “O laço social é ele mesmo o aparelho do sintoma construído pelo sujeito. É o sentido mesmo do que chamei de parceiro-sintoma” (MILLER et al., 1998, p. 130). Dessa forma, as saídas periódicas com o acompanhante são veículo propiciador dessa amarração para o psicótico.
* Psicólogo; mestrando em teoria psicanalítica pela UFMG, bolsista da CAPES. E-mail: felippelattanzio@terra.com.br
** Graduado em Psicologia pela UFMG. E-mail: lucashbraga@yahoo.com.br

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