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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

"Negar é no fundo querer recalcar”: notas a partir da leitura do texto Die Verneinung1

 

“To deny is deep down wanting to repress”: notes from the reading of Freud’s Die Verneinung

 

 

Jorge A. Pimenta Filho*

Hospital das Clínicas da UFMG

 

 


RESUMO

Partindo das noções operativas das negatividades, retoma-se o artigo de Freud – A negativa –, sob o enfoque do ensino de Jacques Lacan, que, em seu retorno a Freud, situa e distingue aquilo que, da linguagem, se destacará como critérios da abordagem estrutural.

Palavras-chave: Negatividades e estrutura, Behajung; Verneinung, Verdrangung, Verwerfung.


ABSTRACT

From the concept of negativity, the author reads Freud’s Die Verneinung based on Jacques Lacan’s teaching, who in his return to Freud locates and distinguishes the elements of language which will stand out as criteria for the structural approach.

Keywords: Negativities and structure, Behajung, Verneinung, Verdrängung, Verwerfung.


 

 

Introdução

O artigo Die Verneinung foi publicado por Freud em 1925 e, na “Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”, está publicado no volume XIX, traduzido ali com o título de A negativa.

A primeira indicação é a de que Die Verneinung não é, estritamente falando, um conceito, mas uma operação que age sempre sobre uma determinada frase. Essa palavra (Verneinung) é, pois, um substantivo que provém do verbo alemão verneinen, que, em linguagem corrente, pode ser traduzido como “dizer não”.

Uma segunda indicação é a de que se deve distinguir negação – Verneinung – de denegação (Abweissung). Esta última foi utilizada para traduzir uma frase do início do texto de Freud: “Entendemos essa fala do paciente como uma maneira de denegar/repelir, por meio de projeção, a ideia que acaba de aflorar em sua mente” (FREUD, 1932/2007, p. 146). Essa noção de denegação tem um sentido jurídico, que se pode designar como uma não aceitação, ou uma recusa daquilo que emerge na instância do Outro da linguagem.

Retomaremos, a seguir, outras operações de negatividade que se articulam ou não à Verneinung. Utilizamo-nos, nesse comentário, de anotações feitas em seminários realizados no IPSM-MG – Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais2 .

 

Discutindo o texto de Freud

“Agora você pergunta, quem pode ser essa pessoa do sonho. A mãe não é. Nós retificamos: ‘então é a mãe’. Ao interpretar, tomamos a liberdade de deixar de lado a negação e escolher o conteúdo puro da ideia. É como se o paciente tivesse dito: “Certo, me ocorreu que essa pessoa é a mãe, mas não me apraz admitir essa ideia”. (FREUD, 1925/1974, p. 142).

A partir desse parágrafo, tomado do texto freudiano, podemos inferir a questão do sujeito constituído no campo do Outro. E dizer que o “não” do paciente não nega o que foi dito, mas assinala a incompletude da construção por um: “não foi dito tudo”. É que por uma questão de estrutura, tudo, não pode ser dito, pois não há palavras para tudo dizer, ou: nem tudo é recoberto pelo simbólico, algo falha, rateia, escapa, faz resto. Diremos que esse “não” nos mostra que o Outro aqui foi barrado (A/) e a interpretação de Freud está colocada aqui a partir da falha do Outro: “Nós retificamos: então, é a mãe”. Dessa forma, a expressão “não é a mãe” designa a relação do discurso ao Nome-do-Pai – a interdição do objeto pela Lei. Se fizermos uma escansão nessa frase – “não é...” – possibilitamos o surgimento da relação do sujeito ao ser; retorno como “não sou”, aparecendo aqui a simbolização primordial, a morte da coisa, ou a palavra como morte da coisa, o que designa o “fading” (apagamento) do sujeito representado pelo $ (S barrado).

“Que é que você considera mais inverossímil nessa situação? O que você acha que nesse momento está mais longe de você?... ‘Tenho uma nova ideia obsessiva...’” (Ibid.).

Com base nesse texto freudiano, que se refere ao relato do paciente, podemos colocar em destaque o discurso obsessivo, que tem como paradigma o funcionamento da denegação – pois o sujeito (obsessivo) fica capturado na infindável alienação do pensar, uma extensão do momento de compreender, uma protelação da ação, sem uma conclusão. Trata-se, pois, do equívoco do pensar, sistema construído pelo sujeito que o preserva de um encontro com a falha do Outro. “É a mãe”, afirma o psicanalista como sendo o sentido exato, o que fica rejeitado na procrastinação do neurótico obsessivo.

Passemos a comentar agora a articulação entre negação e recalque – a relação entre Verneinung e Verdrängung, que são formas de negatividades.

Propomos a partir do que nos indica Freud, que a negação é uma suspensão do recalque. Sublinhamos que se propõe, aqui, uma suspensão, e não uma eliminação ou ação de desrecalcamento – há uma suspensão, mantendo e conservando o recalque. O termo aqui utilizado é o de uma Aufhebung3 do recalque, como sendo a suspensão temporária do recalque4 . O que ocorre, por exemplo, com o chiste – quando há uma flexibilização, uma suspensão ou franqueamento da censura. Esse franqueamento opera possibilitando que o recalcado penetre na consciência sem afetar o trabalho do recalque. Permanece, portanto, a divisão subjetiva – o $ –, com a separação entre pensamento e afeto; este, um resíduo ou descarga inassimilável, que redundará na conversão histérica ou nas intermináveis dúvidas e ruminações obsessivas.

A título de ilustração, vejamos o que está disposto no terceiro parágrafo do texto de Freud:

Nota-se, portanto, que o conteúdo recalcado de uma ideia ou pensamento pode penetrar na consciência, sob a condição de que se deixe negar. Isso porque a negativa é um modo de tomar conhecimento do recalcado em um plano apenas intelectual. O que está em jogo, nesse caso, é só uma suspensão do recalque, naturalmente ainda não sua plena aceitação. Vê-se como a função intelectual se separa aqui do processo afetivo. Com a ajuda da negação, se faz retroceder apenas uma das consequências do processo de recalque, a de não chegar seu conteúdo de representação à consciência. Resulta disso um modo de aceitação intelectual do recalcado com persistência do essencial do recalque (…) – o processo do recalque em si continua inalterado. (Ibid.).

Já a partir do quarto parágrafo, Freud discute a questão do juízo:

(…) a tarefa da função intelectual do juízo é afirmar ou negar os conteúdos de pensamento. (…) Negar algo no juízo significa no fundo dizer: ‘Isto é algo que prefiro recalcar’. A condenação é o substituto intelectual do recalque e o ‘não’ é a sua marca, um certificado de origem, como se fosse um ‘made in Germany’. A função de juízo tem que tomar duas decisões: deve atribuir ou negar uma qualidade a uma coisa e deve conceder ou impugnar a existência de uma representação da realidade. A qualidade sobre a qual deve decidir-se poderia ser originalmente boa ou má, proveitosa ou nociva. Expresso na linguagem das mais antigas moções pulsionais orais: ‘(Eu) quero comer isto ou quero cuspi-lo’, e numa mais ampla transferência: ‘(Eu) quero introduzir isto em mim e quero expulsar isto de mim’. Assim: ‘Isso deve estar em mim ou fora de mim’. ‘O eu-prazer originário quer (…) introjetar-se todo o bom, lançar fora de si todo o mau. O mau, o estranho ao eu, o que se encontra fora, lhe é em princípio idêntico. (Ibid.)

Sobressaem-se na passagem supracitada duas indicações, que são as do juízo de atribuição e juízo de existência. Para entendermos a noção de juízo de atribuição faz-se imperativo esclarecer uma operação fundamental que a funda, a saber, a Ausstossung, ou seja, a expulsão. Podemos entender essa noção de expulsão, a partir de Lacan, como sendo o que se constitui como fundante do real, que certifica a perda a que o discurso, ou a entrada na lei simbólica, condena todo sujeito falante, quer dizer, o que encarna o irrepresentável do real no significante e atesta o limite ou impossível d’alíngua.

Com essas noções de juízo tomadas por Freud, temos uma distinção definitiva entre psicanálise e psicologia, sendo a função de juízo conjugada às pulsões originais. Não se trata, pois, do sujeito psicológico (fundado na noção de ser), mas de um desser, referente ao sujeito do inconsciente.

O juízo é, com efeito, a função que, no discurso, afirma e nega. E a afirmação é aqui a afirmação simbólica – Behajung. Afirmação do corpo simbólico do sujeito que promove a introdução de um significante fundamental para a constituição do sujeito (o Nome-do-Pai inscrito edipicamente). Só haverá recalque – Verdrängung – se houver essa afirmação inicial. Mecanismo também necessário e prévio à Verneinung, operação que destaca aquilo que é da ordem do retorno do recalcado: ‘(Não) é minha mãe’. A função do juízo é indissociável à lei do discurso. Negar é o exercício da função que afirma o elemento irredutível – a barra separadora de significante e significado. A negação (Verneinung), operando o retorno do recalcado, vai possibilitar que certos significantes “liberados” do recalque estejam à disposição na cadeia discursiva.

O estudo do juízo talvez nos abra a visão, pela primeira vez, para o surgimento de uma função intelectual a partir do jogo das moções pulsionais primárias. O julgar é a evolução objetivada da inclusão no eu ou da expulsão do eu, realizadas originalmente conforme o princípio do prazer (Ibid.).

Freud afasta, destarte, toda a possibilidade de se pensar as pulsões ditas primárias, constituídas fora do campo da linguagem. E ainda mais: a pulsão habita a função orgânica numa relação que não é nem de apoio, nem de complementaridade, mas de subversão. A pulsão só é concebível porque o sujeito fala, e, a fortiori, porque ele fala sem saber que fala. Ou, como se pode dizer: ele, o sujeito, fala para além do que acredita dizer.

A Bejahung, vimos há pouco, constitui aquilo que é chamado de afirmação simbólica primeira; e está, assim, correlacionada a uma inclusão significante – Einbeziehung ins Ich (literalmente: inclusão no eu) – que comporta uma Ausstossung aus dem Ich – uma expulsão do eu, ou seja, o real excluído da ordem simbólica.

Podemos representar essas operações através do esquema seguinte5 :

 

 

Articulando essas noções de negatividade, diremos que a negação, ou Verneinung, constitui-se como a sucessão de uma expulsão, ao passo que a Ausstossung se estabelece sobre a possibilidade de uma Bejahung (ou afirmação simbólica), quer dizer, sobre uma frase afirmada que pode ser riscada, tratando-se, pois, de uma elisão significante. Elisão que já se encontra na matriz da Verneinung e que determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante.

A Verneinung afirma o sujeito no lugar em que uma coisa pode deixar de existir. Pelo princípio criacionista do significante, a coisa já “era”. O sujeito inconsistente na cadeia significante é introduzido na dimensão de falta a ser, vem a esse lugar na ignorância de sua causa e, do real, recebe a condição de ser de desejo. O desejo é a metonímia incessante dessa falta – marcado pelo -? (menos-fi minúsculo) da castração. A Verneinung funda a pergunta sobre a existência do sujeito.

Referimo-nos por ora a consigna de Lacan de que não há, no campo do Outro, um significante que represente o sujeito, sendo essa falta fundante do campo da representação. Não há um objeto da representação. O objeto existe fora. Para que se tenha o surgimento do sujeito é preciso que entre os significantes da cadeia simbólica haja um destaque, que, de um lado, se localize sujeito barrado (sujeito do inconsciente) e, de outro, a queda do objeto a. Os objetos que outrora traziam satisfação devem ser perdidos. A condição da prova de realidade é o objeto perdido, o resto caído de outra satisfação.

Assim se consolida, no nível do funcionamento psíquico, a distinção entre o subjetivo e o objetivo .

 

 

Conclusão

A extração ou queda do objeto a – resto caído dessa operação simbólica de separação no campo do Outro – é a condição absoluta do trabalho da prova de realidade e, concomitantemente, do surgimento do desejo. Aqui temos a distinção de duas regiões, de dois elementos heterogêneos: o subjetivo, representado, “dentro” e o objetivo, real, “fora”. O sujeito se mantém indeciso, na vacilação entre dois significantes. O objeto a faz sua aparição fora do sujeito. O campo da realidade é sustentado pelo fantasma. Freud nunca considerou a realidade como padrão objetivo de medida ao qual o sujeito deveria se adaptar, pois para Freud a realidade é atravessada pelo filtro do fantasma, que fornece consistência ao “pouco de realidade” que é a marca de todo o ser falante.

Finalmente, distinguiremos a Verwerfung (rejeição ou forclusão), o termo que Lacan nomeia como o mecanismo específico da psicose, em que, distintamente da neurose não se tem uma afirmação simbólica inicial fundante (a Behajung). A Verwerfung indica a ausência da função do Nome-do-Pai (Pº) e implica, pois, a rejeição do juízo primeiro, carência do efeito metafórico substitutivo, que denota a impossibilidade de significar a realidade psíquica com a marca do falo. Assim, na psicose, os efeitos dessa carência retornam como gozo no real: negativismo (negação não dialetizável), formas de intrusão de gozo, petrificação de objeto, ausência de laço social etc. Há, efetivamente, um abismo insolúvel que separa, na psicose, a Verwerfung da Verneinung.

 

 

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1925/1974) “A Negativa”, in ESB, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

_________. (1925/2007) “A Negativa”, in Escritos sobre a psicologia do inconsciente, vol. 3. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

HYPPOLITE, J. “Comentário falado sobre a Verneinung de Freud”, in LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

VIDAL, E. A. (s/d) “Comentário sobre ‘A Negação’ – de S. Freud”, in Letra Freudiana, Ano VIII, vol.5, pp. 9-15.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: setembro de 2009
Aprovado para publicação em: dezembro de 2009

 

 

1 Este texto foi, originalmente, preparado para uma intervenção no Seminário de Leitura e Investigação – IPSM-MG (Belo Horizonte, 01/11/99), a convite de Henri Kaufmanner, a quem o autor agradece pela amabilidade e apreço.
2 Referimo-nos aos Seminários constantes da Unidade 3 – Psicose: déficit ou enigma? – do Curso de Formação em Psicanálise, ministrados pelos psicanalistas Henri Kaufmanner (Leitura e Investigação) e Francisco Paes Barreto (Conceitos e Matemas). Curso frequentado pelo autor no segundo semestre letivo de 1999.
3 Termo que ganha espessura conceitual na filosofia de G. W. F. Hegel, referente ao ato de suprassumir, que deságua na suprassunção (Aufhebung), isto é: trata-se de um ato de negação, conservação e elevação do objeto do conhecimento.
4 “É a palavra dialética de Hegel, que ao mesmo tempo quer dizer negar, suprimir e conservar e, no fundo, suspender” (cf. HYPPOLITE, 1998, pp. 893 e seguintes).
5 Cf. VIDAL, E. A. (s/d) “Comentário sobre ‘A Negação’, de S. Freud”, in: Letra Freudiana, Ano VIII, vol. 5, pp. 9-15.
6 Ibidem.
* Sociólogo; Mestre em Educação pela FAE/UFMG. Membro da EBP e da AMP. Atua profissionalmente no Hospital das Clínicas da UFMG, junto ao Setor de Saúde do Adolescente. E-mail: jorgepi@terra.com.br

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