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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

Pascal Quignard: o silêncio, o ruído, a palavra na ponta da língua1

 

Pascal Quignard: the silence, the noise, the word on the tip of one’s tongue

 

 

Janaina Rocha de Paula*

UFMG

 

 


RESUMO

Este artigo pretende abordar a escrita de Pascal Quignard, a partir das noções de tradução e transposição apresentadas por Alain Badiou. Os tratados quignardianos expostos nos livros La Haine de la musique e Le nom sur le bout de la langue nos apresentam o deslocamento produzido a partir de uma experiência de perda na/da linguagem, que instaura uma tensão permanente no corpo. Na tentativa de traduzir essa palavra que falta, Quignard demonstra o gesto de transpor esse silêncio a partir de uma forma que inclui os ruídos do corpo e os vestígios dessa experiência.

Palavras-chave: Literatura e psicanálise, Tradução, Transposição, Real, Gozo


ABSTRACT

The present article aims to analyze Pascal Quignard’s writings through the notions of translation and transposition as presented by Alain Badiou. Quignard’s treaties outlined in the books La Haine de la musique and Le nom sur le bout de la langue present a displacement produced by the loss in and of language, responsible for installing a permanent body tension. Such body tension is perceived by the subject as deadly. By trying to translate this missing word, Quignard demonstrates the gesture of transposing the silence through body sounds and the traces of the experience.

Keywords: Literature and psychoanalysis, Translation, Transposition, Real, Jouissance


 

 

Certos sons, certas cantilenas dizem que
o “tempo” antigo faz atualmente em nós
(Quignard, 1999)

 

Os ruídos do corpo: o silêncio e a palavra na ponta da língua

“Existem ruídos que se apaixonaram em cada um de nós”. São essas as palavras de Pascal Quignard, no livro Ódio à Música. O silêncio, os ruídos, as lágrimas: figuras rítmicas, presenças fulgurantes na sua obra. A casa da música, o corpo, a boca, a palavra sobre a ponta da língua: “a noite está na fonte das palavras” (QUIGNARD, 1999, p.14). Talvez porque haja, no silêncio, um ruído. Um ruído de um corpo que o suporta, ou não suporta, que o atravessa e é atravessado por ele. Casa do silêncio, da memória perdida, da lembrança.

Uma espécie de música acrescentada que desmorona o solo, que se dirige imediatamente para os gritos que nos fizeram sofrer sem que nos seja possível nomeá-los, quando nem era possível que conhecêssemos sua fonte. Sons não visuais, que ignoram para sempre a visão, erram em nós. Sons antigos nos perseguiram. Ainda não víamos. Ainda não respirávamos. Ainda não gritávamos. Ouvíamos. Nos momentos mais raros, poderíamos definir a música: algo de menos sonoro do que o sonoro. Algo que liga o ruidoso (Ibid., p.15).

Essa breve passagem nos oferece a medida exata da presença daquilo que se repete na escrita desse autor: “a prevalência de algo que se perdeu e que se refaz em seu texto, por meio das formas recriadas no espaço de sua obra que quer reescrever o perdido”. Uma escrita tecida na solidão e “marcada pela singular experiência do silêncio” (SILVIANO BRANDÃO, 2006, p.65). É dessa experiência que Quignard vai tratar no livro Le nom sur le bout de la langue e Ódio à música. A escolha dessa palavra – tratar – não é de todo distraída. Em pelo menos dois de seus livros, Quignard (1993) organiza sua escrita sob o nome de Tratados. Ao tomarmos essas obras como via de acesso à escrita quignardiana, não podemos nos esquecer de que essa palavra nos remete para as acepções: tratar, trato, estudo ou obra desenvolvida a respeito de uma ciência ou arte, etc. Tratar: curar, transformar. É preciso guardar essas definições para que possamos recuperá-las, neste texto, um tempo depois. É, então, no “Petit traité sur Meduse”, terceiro tratado deste último livro citado, que o autor nos apresenta a seguinte imagem:

Ma mère se tenait toujours à la extrémité de la table à manger, le dos à la porte de la cuisine. Brusquement, ma mère nous faisait taire. Son visage se dressait. Son regard s’éloignait de nous, se perdait dans le vague. Sa main s’ avançait au-dessus de nous dans le silence. Maman cherchait um mot. Tout s’arrêtait soudain. Plus rien n’existait soudain. Éperdue, lointaine, elle essayait, l’oeil fixe sur rien, étincelant, de faire venir à elle dans le silence le mot qu’elle avait sur le bout de la langue. Nous étions aux aguets, comme elle22 (QUIGNARD, 1999, pp. 55-56).

E ainda:

Cette tête qui se dresse soudain, la contemplation du corps qui cherche à faire revenir le mot perdu, ce regard parti au loin, ce regard impliqué dans la recherche de ce qui ne peut revenir – l’ensemble de cette tête est impérieusement sexuel33 (Ibid., p.70).

Nesses dois fragmentos, Pascal Quignard traz as marcas de um acontecimento vivido na infância. A mãe na ponta da mesa, a palavra na ponta da língua. As crianças em torno dela, estáticas, esperando a palavra perdida, esquecida, impronunciável. O encontro com o corpo materno à procura da palavra perdida torna-se uma experiência descrita sob o signo de Medusa, acontecimento imperiosamente sexual porque instaura uma tensão permanente no corpo. Nesse tempo da infância, Quignard cai petrificado sob o olhar da Medusa, imerso num real pré-linguístico, pois ele também perdeu a voz por duas vezes, desenvolvendo o sintoma de mutismo. Num tempo depois, ele tece a partir do silêncio, no vazio da palavra perdida. Talvez esse tenha sido o destino para essa experiência de perda, de estupor na linguagem, de um corpo estático à espera da voz que por alguns instantes se calou. Destino de uma experiência pulsional, se pudermos recuperar do conceito freudiano os aspectos sexual e silencioso. O silêncio da voz da mãe produz ruídos no corpo do filho, um silêncio guardado pelo contorno da boca, mas que não faz calar a pulsação de um corpo que respira. É essa língua tricotada entre o silêncio da palavra e a respiração do corpo que escava o solo em que é tecida a escrita de Quignard. É no silêncio desse corpo afetado e vivo que encontramos a voz da sua escrita: “écrire, c’est entendre la voix perdue” (Ibid., p.94).

No ensaio “Pascal Quignard, Poética de uma vida escrita”, Ruth Silviano Brandão (2006) nos diz que Quignard conheceu a Medusa, uma figura que representa, na obra desse autor, a imersão num real. Lugar dos fragmentos, dos resíduos de afetos que apenas precariamente acendem a linguagem. “Nesse lugar do silêncio vazio da palavra ele continua a escrever”, privilegiando o silêncio e a solidão, mas não como tentativa de recuperar o fragmento perdido, fazendo desaparecer o fracasso da palavra desencontrada, num trabalho insano de reparar a cicatriz. Se Quignard “reescreve o perdido”, talvez seja mesmo a partir do ponto de construção de uma memória esquecida, da lembrança que aparece como um fragmento, um rastro, um sopro. “Non dans l’affluence incessante du retour mais dans le choix de l’oubli”44 (Ibid., p.67).

Em sua “poética do silêncio” 55, o autor ensaia na ficção o retorno ao ponto do silêncio da palavra perdida. A escrita de Quignard transita entre a realidade e o real, traçando a descontinuidade entre esses dois registros. Atravessa a experiência da perda da palavra e torce o seu sentido, fazendo bascular a autenticidade do fato vivido e, então, nos diz: “Todas as vidas são falsas. A narração é que é viva, ou vital, ou vitalizante, ou vivificante” (Ibid.). Narrativa tecida através da lembrança da infância, da cicatriz no corpo e do silêncio da palavra na ponta da língua.

A palavra que falta marca a escrita desse autor e, se por um lado, o lança aos domínios do olhar de Medusa – “aquele que cai sob o olhar de Medusa transforma-se em pedra e aquele que cai sob o olhar da palavra que falta tem a aparência de uma estátua” (Ibid., p.28) – por outro lado, é essa ausência que torna a sua escrita imperativa. Quignard busca “a nudez sonora extremamente ferida, infantil, que permanece sem expressão no fundo de nós mesmos” (Ibid., p.9), aquilo que está antes da palavra, procurando, na origem, a coisa literária.

 

Através: palavra esticada

A narrativa de Quignard atravessa a lembrança e trabalha na distância necessária entre a experiência rememorada da infância e a palavra que a designa. Se a escrita representa – e aí ela é um artifício que tenta circunscrever ou inscrever uma experiência num outro registro –, ela, a escrita, na própria tentativa de reescrever, reapresenta. No texto de Quignard, escutamos a pulsação de um corpo à espera da palavra impronunciável representada pela imagem do corpo petrificado sob os efeitos do olhar da Medusa. Essa imagem escrita representa e nos apresenta o ponto de espanto diante do silêncio da boca. Um silêncio, insistimos, que produz efeitos ruidosos no corpo daquele que espera. A palavra do texto não é a experiência em si, mas o ponto de perda dessa (e nessa) experiência. Ponto do impossível, porque a “linguagem não é captura: não se apodera de nada da substância do real, nem sequer da mais ínfima porção” (PONTALIS, 1988, p.144). É isso que permite a Quignard dizer que “quelque chose manque au langage” (QUIGNARD, 1993, p.67), alguma coisa falta a ela porque na sua operação está inscrita a impossibilidade de satisfazer sua exigência – tudo dizer. E ainda na sua operação está o ponto de perda que a anima e lhe dá vida.

A Medusa talvez seja, nessa narrativa, a metáfora do encontro com o ponto de impossível presente na linguagem. A experiência descrita por Quignard o coloca defronte com o silêncio da linguagem e o corpo materno; e o que temos dessa articulação é uma língua pulsional intrusiva. Estando a palavra ausente, o cenário é o dos gestos, do olhar, do estupor. Corpo diante de corpo sem mediação da palavra. Esse silêncio consiste numa rede de rumores discretos, mas intensos, que desenha no corpo uma primeira grafia. Essa metáfora nos permite ler essa experiência como um instante de fragmentação, anterior ao sentido, despertando uma intensidade e nos mostrando que a lembrança desses afetos traça um circuito que não cessa de se atualizar. Para Quignard, “a obsessão sonora não consegue separar do que ela ouve o que ela não cessa de querer ouvir e o que ela não pode ter ouvido” (QUIGNARD, 1999, p.36). Diante da lembrança desse acontecimento, a linguagem fracassa à medida que o sexual resta como aquilo que permanece excedendo a estrutura da linguagem. Isso pelo fato de despertar em seu corpo um prurido de intensidades, afetando a estrutura da linguagem, mas não se aderindo a ela. Então foi preciso deslizar dessa metáfora, incorporar o seu ponto de estupor, para perceber que “cada palavra reencontrada é uma maravilha”, um reencontro sempre em deslocamento, em outro lugar. A forma nominal do verbo nos fornece a imagem de uma ação em movimento, a força de um acontecimento que se produz no texto.

Passando do Le nom sur le bout de la langue ao Ódio à música, a tirania do silêncio é aproximada da música que faz do corpo a sua presa. “A música é intrusão e captura o corpo. Ela mergulha na obediência aquele que ela tiraniza” (Ibid., p. 131). Esse silêncio que se impõe o faz dizer que “não conseguirei saber em que momento a música se afastou de mim” (Ibid.). A música se afasta quando é convocada a produzir uma semântica que forneça o sentido à experiência. Quando é chamada a traduzir esse ponto em que o intraduzível apresenta a sua face resistente e insistente. A inscrição da morte revela sua violência e seu correlato não pode ser outra coisa senão o gozo, mas não o gozo deletério do início, aquele que o petrificava, mas um gozo como esse lugar atópico em que a lógica do “não-todo” preserva a sua potência.

O intervalo morto é a mão que o tempo estende. Que a morte interrompa, essa interrupção está em nós; ela está em nosso corpo sexuado, em nosso nascimento, em nosso grito como em nosso sono. Em nosso sono como em nosso pensamento. Em nossa marcha sobre dois pés como na linguagem humana (Ibid., p. 162-163).

Ao tentar recuperar o fragmento da perda da palavra que escapou, um resquício que seja para inscrevê-la numa trama de sentido, a escrita realiza de novo – porque é a mesma e outra – a perda. A escrita de Quignard atravessa essa perda ao mesmo tempo em que se realiza nela. O que importa na arquitetura desse trajeto são os percursos que apontam as linhas pelas quais retorna o que se afirma – e o que se afirma na escrita de Quignard é o silêncio –, fazendo devir o que é ativo. A linguagem reflui para a ponta da língua, lugar exterior onde não há nada, colocando o sujeito defronte ao vazio. E Quignard escreve, continua a escrever, produzindo uma trama em torno do desagregador, do fragmentário, fazendo poética desse corpo que conhece o silêncio e a morte. Saboreia o prazer da solidão, o “não-todo” da linguagem, realizando uma escrita que revela o valor precioso e absoluto do silêncio e, não apenas, o seu passivo inexpurgável.

O que transpira na escrita desse autor não é a “memória viva” da mãe sem voz. Não como bloco compacto, memória funesta (lembro “Funes, O Memorioso”, de Borges) 66, mas um certo deslizamento metonímico da lembrança. Nessa operação do texto, “memória e esquecimento, reconstrução e ficção, invenção e apagamento” (CARVALHO, 2003, p. 64) agem entrelaçados, como a trama e a urdidura do movimento de tessitura do tear. A tentativa de traduzir o silêncio, “revisitando os lugares de sua nostalgia” talvez tenha aberto, na escrita de Quignard, a possibilidade do surgimento do novo. E, assim, será preciso seguir mais um pouco em outro lugar, nos domínios do insólito, lugar em que “algo germina sem vir aos lábios daquele que espia” (QUIGNARD, 1999, p. 56).

É esse trabalho de reescrita de uma experiência que inclui o aspecto pulsional de um corpo que atravessa a morte, silencia e escreve e, ainda, escreve, silencia e atravessa a morte que chamamos aqui de tradução. Tomemos o texto de Derrida no momento em que o autor nos convida a acompanhar

(…) esse movimento de amor, o gesto desse amante que trabalha na tradução. Ele não reproduz, não restitui, não representa; no essencial, ele não devolve o sentido original, a não ser nesse ponto de contato ou de carícia, o infinitamente pequeno de sentido (DERRIDA, 2002, p. 49).

É essa ideia da tradução – como um trabalho que não restitui, que não afasta os pontos que resistem e que opera a partir da criação de uma forma – que nos interessa aqui. Esse parece ser o ponto da escrita de Pascal Quignard, esse “amante silencioso” que escreve o Ódio à Música e o Le nom sur le bout de la langue. Quignard revisita lugares e reescreve incluindo o estupor da palavra perdida sem, no entanto, tentar recuperá-la. “Torce a dimensão anterior, e, assim, desenha uma nova topologia” (SILVIANO BRANDÃO, 2006, p. 65). Não se livra do estupor, não abandona o silêncio da palavra na ponta da língua e, no entanto, segue na sua escrita, nos demonstrando, por meio do seu gesto, a passagem do corpo de um gozo petrificado a um outro modo de gozo incluído no trabalho da mão que cinge o papel e faz vibrar o instrumento. Ele cria uma forma que inclui a fratura da língua, atravessado pela memória de um corpo estático, de um olhar fixado no tempo da ausência que revela “as sombras no interior da boca que se cala”.

 

Traduzir e transpor

A espera da palavra, o corpo da mulher no seu instante de morte, o estupor daqueles que são capturados, num rápido lampejo, pela boca que se abre sobre a palavra esquecida. É a partir dessas figuras, que nos fornecem a imagem de uma experiência pulsional, que a escrita de Quignard opera. De certa forma, essa espera é atualizada a cada gesto do escritor e músico, quando ali à espera da palavra e no silêncio entre a música produzida e aquela silenciada, ele experimente de novo essa Trieb por vir (LACAN, 1964/1998, p.61). Se insistimos no aspecto pulsional dessa experiência é porque é esse o ponto que nos indica que, diante do irrepresentável que captura e imobiliza aquele que o vê, e do que sobra dessa experiência, o que se constrói é uma forma.

No capítulo “Tiquê e Autômaton”, de O Seminário, livro 11, a repetição é definida a partir do autômaton, como um retorno insistente comandado pelos signos que determinam o sujeito. Ela visaria à inscrição do trauma, entendido aqui como o inassimilável, motivado pelo princípio do prazer e pela tendência à homeostase que orienta o funcionamento psíquico. No entanto, ao seguir nessa via repetitiva o que se produz é um encontro com o real, um encontro “essencialmente faltoso”, pois não é possível capturá-lo na trama simbólica. Ora, a repetição é uma via para “tratar” o traumático, quer dizer, para tratar esse ponto em que uma falta está desde sempre colocada, porque faltam significantes para traduzir isso que é da ordem do sexual. Entretanto, o trabalho de repetição – como gesto insistente de traduzir – apresenta a função da tiquê, a outra face da repetição, no seu movimento de deixar irromper o real. Do lado da tiquê, “o que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz, como que por acaso” (LACAN, 1964/1998, p. 60).

Há uma possibilidade de gozo que a insistência no trajeto pulsional desvela, há uma possibilidade de gozo traçada nessa “via-crúcis” pela qual passa o corpo, mas a medida entre o fragmento perdido e esse recuperado não parece ser exata. Resta sempre uma parcela de gozo que resiste a entrar na regra da substituição significante. Desse lado, podemos pensar a repetição a partir de um resíduo que seria atualizado a cada volta no circuito pulsional, como prosa laboriosa do que foi. Tentativa de traduzir e assimilar à cadeia significante esse aspecto inassimilável do traumático situado num tempo anterior. Por outro lado, quando Lacan nos diz que o que se repete é sempre algo novo que se produz, temos que pensar a repetição a partir da emergência de um real que escapa, como intensidade do que vem, tendo o impossível articulado ao acaso. Ao fazer irromper o novo nesse circuito determinado, a repetição deixa que algo se inscreva no mesmo instante em que apresenta o impossível a insistir e não se escrever.

Não poderíamos dizer que ao insistir nessa via, ao tentar traduzir o que excedeu os limites da representação, ao passar e repassar pelos caminhos pelo qual o corpo foi afetado, a escrita de Quignard nos mostra a possibilidade de acesso a uma outra forma de gozo? A um outro modo de gozar? Quer dizer, na tarefa de traduzir o gozo, de estabelecer uma gramática, o que se afirma é uma renúncia à tarefa tradutiva e a exigência de criação de uma forma para transpor esse novo que resiste para além de todos os arranjos significantes. Ao insistir nessa via repetitiva, revisitando os lugares dos afetos e enigmas produzidos nesse tempo da infância, o gozo mortífero do início é circunscrito e, de certa forma, cifrado. Mas, se a tradução não visa a uma restituição do sentido, uma sintaxe fechada e exaustiva, o próprio trabalho de traduzir esbarra no ponto em que nada mais se traduz.

A literatura quignardiana apresenta-se como limite à experiência de linguagem, revelando esse impossível que resiste a uma total absorção na ordem simbólica. Literatura realizada à beira do real e do gozo. Ao buscar os “intervalos mortos”, “o intruso” e o “desorientado”, em que o “eco era a voz do invisível e a música penetrava o corpo e invadia a alma”, Quignard tenta abordar pela via do simbólico essa assimbolia, deixando aparecer nas brechas e lacunas do seu texto essa lalíngua de ruínas, marcando a separação e o desconforto e revelando, nessa escrita taciturna, o trabalho de um gozo que sulca no corpo o limite do representável.

Em seu texto “O literário e o irrepresentável: a escrita literária segundo Pascal Quignard”, Maria Cristina Álvares revela que essa captura é da ordem do gozo sexual. Apesar de Quignard não utilizar o termo pulsão em seus escritos literários, ou de muito raramente o fazer, a introdução dessa ideia se justifica pelo fato de que a pulsão tem como características principais ser sexual e silenciosa. Diríamos, ao lado dessa autora, que se trata aqui de um gozo “não-todo”, inscrito nos domínios da significância, e que arrebata o sujeito. Um gozo-devir que cala, um gozo no corpo para além dos domínios do falo. O que é da ordem da pulsão ou, se quisermos, desse gozo – fórmula que parece deixar claro a intricação entre vida e morte – não se esgota, não desenvolve, apenas encontra destinos. A autora do artigo considera que aquilo que aparece sob as designações de “fascinação, sideração, estupor, petrificação, instante de morte e rapto no abismo” (ÁLVARES, 2001, p. 4) nos indica a presença disso que se cala e, ao mesmo tempo, afeta, ao irromper no fluxo das palavras fonéticas:

É de uma experiência extrema e, no entanto, tão comum ao sujeito falante que deixa de o ser, nem que seja por uns instantes que nasce a escrita como mise au silence du langage e subversão da ordem que a mesma linguagem instaura no mundo e, correlativamente, mise en évidence de uma coisa (muda e sem imagem) que se manifesta numa violência em que vida e morte são indestrinçáveis (ÁLVARES, 2001, p. 5).

Para Quignard, “os escritores se fixam para sempre no espanto. Um escritor se define simplesmente por esse estupor na língua” e o que o leva a continuar a escrever “é o fato de que toda palavra abre a nostalgia, entre o inferno e o traço e o Erzatz da alucinação” (QUIGNARD, 1993, p. 67). Talvez ele o faça como tentativa de abrir um destino – um destino mais além – para o que resta dessa experiência de perda que petrifica o corpo e o abandona no tempo de espera. Com o que resta, resta tecer o fio na ponta da letra. Essa operação de tessitura que ele realiza na escrita não parece ser uma tentativa de costurar o complemento que falta à palavra não pronunciada, desaparecida, aquela da ponta da língua. Não parece ser uma tentativa de negar o vazio aberto pela boca à espera da palavra. Ele escreve e traduz uma língua distante, “laboriosamente enterrada e tricotada”, traduz a experiência do encontro com aquilo que falta à língua materna – língua da mãe e língua que ele fala – e, no seu trabalho, deixa vazar pelas lacunas do texto o irredutível em sua materialidade. A forma criada por Quignard – os tratados – talvez se constitua como aquilo que trata essa fratura, justamente por não obstruir os espaços por onde escorrem os rumores dessa língua estrangeira.

 

O silêncio da palavra, os ruídos no corpo: sobre isso se constrói uma forma: Le nom sur le bout de la langue

Traduzir é também transpor, nos ensinam os dicionários. E a transposição é uma operação que exige a criação de uma forma, um artifício. Alain Badiou (2004) retoma a ideia de transposição em Mallarmé – transposição poética –, para aproximá-la da cura em psicanálise. Neste texto, tomamos tradução e transposição na tentativa de mostrar que a escrita de Pascal Quignard opera nesse movimento de tradução de uma experiência de desaparecimento que incide no corpo, de um passado esquecido e, no entanto, nunca lembrado, para transpô-la por meio da criação de uma forma. Assim, nos parece que entre a tradução e a transposição a conjunção e, ao contrário do verbo, oferece a medida de um movimento um pouco mais adiante.

O termo cura abre um campo semântico vasto, mas, quando associado ao adjetivo psicanálise, aponta para um sentido específico. Entre as significações da palavra cura encontramos uma que se aplica a queijos e madeiras. Curar um queijo ou uma madeira é “realizar sua máxima potencialidade, torná-lo melhor, ou atingir uma condição de utilização. Assim um queijo curado realiza plenamente seu próprio sabor” (SAMPAIO, 2006, p. 88). Parece ser esse o sentido de cura que Badiou propõe ao aproximá-la da transposição poética. Uma cura que apura o sabor do desaparecimento, que promove uma passagem de um estado a outro sem, no entanto, negar o ponto de silêncio que o incita. A diferença sofrida nessa passagem não é nos elementos da transposição, mas no modo como esses elementos são rearranjados, no desenho que se forma a partir do trabalho de incluir e torcer o que é da ordem pulsional. Se o que está no início da operação de transposição são os efeitos de uma experiência que acorda um corpo e o coloca à espera da palavra desaparecida, disso o sujeito não se cura. Desse desaparecimento que o incita e que o habita ele não “descura”.

Seguindo Badiou (2004), a transposição poética é uma passagem na língua, uma passagem do ponto de impotência da língua à experiência de impossível na língua. Esse autor recupera o trabalho de transposição poética em Mallarmé77, para quem a causa da impotência seria a perda ou o desaparecimento. É esse “desastre”, esse “mal-estar”, que a operação do poema deve superar através de uma lógica que lhe é própria. O poema se ocupa do desaparecimento do objeto, ele o examina e tenta organizar uma vitória sobre o desaparecimento. Uma vitória que não é uma tentativa de consolo, nem ao menos o retorno daquilo que desapareceu. Uma vitória que não recupera e, ainda, não nega essa experiência absoluta. Para Badiou, existe no poema de Mallarmé a organização de um desaparecimento na língua que visa a conseguir a vitória sobre o desaparecimento inicial. Essa operação, que parte dos vestígios da perda, produz uma forma, um artifício que trata a perda do objeto, produzindo um desaparecimento segundo. O que se afirma ao final é o próprio desaparecimento, porque o poema não traz de volta o que foi perdido, ele mimetiza, trabalha sob os vestígios, organiza o desaparecimento e produz uma forma que não nega a perda, ao contrário, afirma o ponto de impossibilidade. “O texto faz advir a possibilidade do ‘mais impossível ainda’ como alteração fundamental do ‘ainda’” (BADIOU, 2002, p. 120). Em Mallarmé, o poema organiza um dispositivo consistente que vem maquinar a apresentação sensível de um regime do pensamento atravessado pela subtração e pelo isolamento. Como um artifício, o poema ultrapassa em poder aquilo de que o sensível é capaz, por tocar o ponto do inominável.

A transposição seria essa operação que parte da experiência de perda ou desaparecimento – causa da impotência –, vasculha seus rastros e cria uma forma que, ao contrário de redimir, produz um desaparecimento segundo. Como um artefato não natural, o poema deixa escorrer da experiência do desaparecimento as garantias de um retorno, enxuga a perda no trabalho mesmo de reproduzi-la num outro ponto, não mais no da experiência de impotência, mas no ponto de experiência do impossível. Para Badiou (2002), o poder de revelação de um poema, no seu trabalho de transpor, enreda-se em torno de um enigma, fazendo com que a verificação desse enigma transforme o real de impotência em potência do verdadeiro. É justamente por trabalhar na potência das línguas e tocar o seu impossível a se escrever numa lógica significante, que o poema revela a sua potência. A lógica do poema parte daquilo que restou dessa experiência – de uma experiência com o real – e fornece o contorno do encontro com o real do dizer. Essa passagem é operada na língua e revela que o poema toca o impossível, lugar da palavra na ponta da língua.

A transposição exige a criação de uma forma, a partir da recuperação dos vestígios da experiência – lembranças esquecidas e aquelas que não puderam ser esquecidas porque nunca foram lembradas – que potencializa o “sabor” desses vestígios. O poema é essa forma que apresenta e realiza o desaparecimento que é sempre o mesmo e outro. Isso porque se não há cura para a experiência pulsional, se o que resta são sempre os vestígios e, se a transposição é uma mudança no estado e não naquilo que sobrou dessa experiência de perda, o desaparecimento que o poema realiza parece ser o mesmo de antes. Trabalho de repetição do mesmo, apenas num outro lugar. De fato, a transposição é um trabalho que indica o deslocamento de elementos de uma posição para outra, um transporte, poderíamos dizer. Mas é uma transposição que exige, é essa a palavra, a criação de uma forma que, ao realizar ao máximo a potência do desaparecimento, ou os ruídos que sobram dessa experiência, no seu trabalho de repetir o mesmo produz o novo.

Ao aproximarmos o trabalho de tradução da operação de transposição, apontando que a escrita de Pascal Quignard flui por essas linhas, recuperamos da noção de tradução os seus aspectos de trabalho de transferir elementos de uma língua para outra numa operação que deixa descoberto o intraduzível. Traduzir e transpor seria “menos mudar de língua do que mudar a própria língua e, nela, reencontrar o estrangeiro da linguagem” (PONTALIS, 1988, p. 151), quer dizer, reencontrar esse ponto do real que a experiência do impossível revela. Ponto para o qual não há cura. Assim, a transposição seria uma exigência a mais diante disso que resta da tarefa tradutiva, ela exige a criação de uma forma que passa por um ponto e mira a outra margem, bem em frente, mas nessa travessia, ou nessa passagem percebe-se “que vai dar mesmo num outro ponto, muito mais abaixo, num ponto que não se podia imaginar antes”. É essa a vitória sobre a perda que a operação do poema mira, mesmo sem saber em que ponto vai dar. É a essa operação que Alain Badiou aproxima a cura em psicanálise. Uma vitória sobre a perda que exige a criação de uma forma por parte de um sujeito que é afetado por ela, mas não é “a presa, ou a vítima dessa perda”.

É essa operação que nos parece ser a exigência diante desse corpo pulsional, “não-todo” articulado à linguagem, que, não tendo mais que transmitir uma mensagem que o habitava, pode inventar novos usos. Isso não significa uma eficácia, ou um êxito que desconsidera a insistência pulsional com seus aspectos intraduzíveis. O que o poema traz é uma forma que, ao contrário de desconsiderar o impossível a se escrever numa arquitetura significante, opera a partir dele. Consentir com esse impossível é deixar soar o estrangeiro, o silêncio e o sem sentido (pas de sens) na forma criada.

 

E então: “vingar-se da voz que o abandonara”

Vingar: reparar, punir, mas também transpor, vencer. É dessa vingança que Pascal Quignard trata. Vingança trançada em torno dos vestígios de uma experiência de infância que produziu, a partir do silêncio da palavra, os ruídos no corpo. Se naquele tempo Pascal emudeceu, capturado pelo olhar da Medusa, agora ele escreve. Transpõe traços de uma experiência que se movimenta fora do espaço de circulação de significados. Realiza uma “poética da vida escrita” a partir da criação de uma forma: Le nom sur le bout de la langue. Transpõe o vivido para a forma criada e, assim, deixa soar a intensidade do gesto que a impulsionou.

Quignard parece buscar a palavra na sua materialidade, tornando a experiência com o impossível absoluta, e fazendo da sua escrita um espaço litorâneo entre o saber sobre essa experiência e o gozo que se subtrai daí. O poema não recupera, não nega, não escamoteia o desaparecimento. Ao contrário, ele apresenta, mostra, revela, afirma esse ponto do real do dizer. E a poética de Quignard nos apresenta as formas do desaparecimento, as figuras que realizam o seu contorno: o silêncio, a casa, a boca aberta à espera da palavra perdida. É sobre essa borda, em que o nome se reduz ao silêncio, em que a tarefa de tradução se rendeu à renúncia, que o fio de sua poética toma corpo.

A frase Le nom sur le bout de la langue que dá nome ao seu livro, frase poema, parece ser a forma criada por ele como exigência da operação de transposição que realiza. Se essa forma não interrompe a ligação com as marcas de uma experiência que parece estar na sua origem, ela, a frase poema, reescreve essa experiência num outro ponto, na outra margem do rio. “Entre a história e a ficção, entre o corpo do sujeito e o corpus textual, entre as terras do literário e o terra-a-terra do vivido. Híbrido, litorâneo” (CASTELO BRANCO, 1994, p. 58), a frase poema é aquela que busca a palavra no seu sentido literal. Transpondo num nome, numa letra, aquilo que não se traduz mais.

Le poème est ce jouir. Le poème est le nom trouvé. Le faire-corps avec langue est le poème. Pour procurer une définition précise du poème, il faut peut-être convenir de dire simplement: le poème est l’exact opposé du nom sur le bout de la langue88 (QUIGNARD, 1993, P. 73).

É esse silêncio da palavra na ponta da língua – língua materna, língua da mãe – e os vestígios que restam dessa experiência que Quignard parece incluir na sua escrita. Le nom sur le bot de la langue é a forma criada, o destino para o que restou de uma experiência que atravessa o corpo. Uma vingança sobre o desaparecimento que não sendo nem a tentativa de recuperar a palavra perdida, nem ao menos de fazer desaparecer a experiência de perda, permite a ele continuar dizendo que “aussi, toujours, toute parole est incomplète” (QUIGNARD, 1993, p. 64) 99.

Esse amante do silêncio e da música busca na materialidade dos sons – feito de lalíngua e de notas musicais – aquilo que está além, ou aquém do verbo, aproximando-se e, ao mesmo tempo, se distanciando de suas fontes pulsionais. Permanecer aderido a essas fontes, numa eterna tentativa de restituir o sentido da palavra perdida, talvez o mantivesse preso a um gozo que petrifica. O encontro face-a-face com Medusa produz um gozo sexual que num primeiro momento imobiliza, mas em seguida o leva a um “désir irrévocable, beaucoup plus qu’irrésistible, d’affronter Méduse, de tenir tête, front à front, à la face à face féminine et humaine” 1010 (QUIGNARD, 1993, p. 85). Quignard beneficia-se desse estupor na linguagem, aproxima-se das fontes pulsionais para escrever no outro lado da margem. Há nesse gesto o deslocamento de um gozo mortífero para um outro modo de gozo, que não pode ser todo escrito na lógica da significação. A forma produzida mantém a intensidade do corpo, visto que o trabalho de transpor não significa uma abolição do resíduo pulsional.

Assim, ao passar e repassar por essa via o que se produz é um novo. Um novo corpo que porta os traços de outrora, mas que exige a criação de uma forma para deixar viver o que agora se apresenta como uma Trieb por vir. Ele escreve a partir da memória de um acontecimento que o aflige e da falta de memória dele, de um fragmento de vida e daquilo que é apenas o resto de um sonho. E assim, nos diz, no “Petit traité sur Méduse”, que “Ce petit traité qui concerne Méduse n’est qu’un morceau de ma vie. Le conte, au contraire de ma vie, est un morceau qui est resté du rêve”1111 (Ibid., p. 99).

O sonho desses amantes que trabalham na tradução é o de reencontrar a palavra que possa dizer isso que escapole aos domínios da trama simbólica. Traduzir, num só golpe, essa língua exilada e obscura dos gestos e da materialidade dos sons, na tentativa de apagar os vestígios do que é dispersão. Ao contrário disso, a tradução revela o intraduzível, deixando pulsar o estrangeiro que nos habita. A forma exigida na transposição não escamoteia esse vivo que insiste, mas que não cinde, diante de todas as tentativas tradutórias. A tarefa é então a de traduzir e transpor, a partir de uma forma, um nome, esse tutano intraduzível que resta como caroço diante de todas as injunções tradutórias, nos diz Derrida (2000).

Quer dizer, passar além de, inverter a ordem, retirar de um lugar e colocar em outro o que resta da pulsão, quando se renuncia a traduzir o que não mais se presta a isso. A criação de uma forma nos revela que

Écrire, c’est entendre la voix perdue. C’est avoir le temps de trouver le mot de l’énigme, de préparer sa réponse. C’est rechercher le langage dans le langage perdu. C’est parcourir sans cesse l’écart entre mensonge ou l’Eratz et l’opacité inintelligible du réel (...)1212 (Ibid., p. 94).

Ao trabalhar nesse fio de encontro e desencontro da palavra, sem tentar recuperá-la toda, ou responder todo o enigma, esgotando o que seria o seu ruído insistente, Quignard1313 nos apresenta o trabalho que é exigido àqueles que atravessam o silêncio. Um trabalho que se aproxima daquele exigido em uma análise, quando então se tromba com esse aspecto de um corpo pulsional intensivo, como esse lugar em que a vida cava saídas, na versatilidade do impossível.

 

 

Referências Bibliográficas

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Artigo recebido em: dezembro de 2009
Aprovado para publicação em: março de 2010

 

 

1 Este artigo é um excerto da dissertação de mestrado – Tradução e transposição no campo da pulsão de morte – apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG em agosto de 2008, sob orientação do Prof. Dr. Paulo César de Carvalho Ribeiro.
2 Minha mãe ficava sempre na extremidade da mesa de jantar, as costas para a porta da cozinha. Bruscamente, ela nos fazia calar. Seu rosto se levantava. Seu olhar se distanciava da gente, se perdia no vazio. Sua mão avançava além de nós, dentro do silêncio. Mamãe procurava uma palavra. Tudo parava de repente. De repente, nada mais existia. Perdida, longe, ela tentava, o olho fixo em nada, brilhando, fazer vir até ela, no silêncio, a palavra que ela tinha na ponta da língua. Nós ficávamos à espreita, como ela.
3 Esta cabeça que se ergue de repente, a contemplação do corpo que procura fazer com que volte a palavra perdida, este olhar perdido ao longe, este olhar dirigido na procura daquilo que não pode voltar – o conjunto desta cabeça é imperiosamente sexual.
4 Não na afluência incessante do retorno/regresso, mas na da escolha do esquecimento.
5 Ruth Silviano Brandão nos diz que Pascal “privilegia o silêncio e a solidão, como condições essenciais para aqueles que, como ele, constroem uma poética da solidão”. Desse modo, “preserva sua autonomia, sendo congruente com aquilo que deve ser intratável no artista: a solidão do gesto criativo”. Ver SILVIANO BRANCÃO. (2006) “Pascal Quignard, Poética de uma vida escrita”, in A vida escrita. Rio de Janeiro: Sete Letras.
6 “Funes, O Memorioso” é um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges. Nesse conto, Borges nos revela a dolorosa febre de Funes pelos pormenores. Sofrendo de uma memória funesta, esse personagem se agarra aos detalhes que deveriam ser esquecidos, deixados no tempo distraído do pensamento que desliza. Para Funes, não há memória do esquecimento, uma memória que se constrói com resquícios do tempo passado e fragmentos de um por vir. O narrador do conto suspeita, então, que Funes não era muito capaz de pensar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. Cf. BORGES. (2001) Ficções. São Paulo: Globo, pp. 119-128.
7 No poema em prosa “Igitur”, podemos encontrar o trabalho de transposição realizado por Mallarmé. Sobre esse poema Mallarmé diz: “É um conto pelo qual quero esmagar o velho monstro da impotência, a fim de me encerrar no grande trabalho já reestudado”. E, ainda, “criei toda minha obra só por eliminação, e toda verdade adquirida nascia apenas da perda de uma impressão que, havendo luzido, tinha-se consumido e me permitia, graças às suas trevas descerradas, avançar mais profundamente na sensação das trevas absolutas”. O absoluto em Mallarmé se aproxima do que ele chama de o vazio, o nada, o infinito. O túmulo, a morte, as sombras são figuras que na sua poética oferecem um contorno a essa experiência do desaparecimento do objeto. No poema “Igitur”, elas aparecem não para negar ou consolar, mas ao contrário, para afirmar essa experiência de falta. No final da sua prosa poética, ele escreve: “prefiro a palavra para afundá-la de novo em sua inanidade”. Ver: MALLARMÉ, S. (1990) Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 72-117.
8 O poema é esse gozo. O poema é o nome encontrado. Fazer corpo com a linguagem é o poema. Para obter uma definição precisa do poema, talvez fosse necessário dizer simplesmente: o poema é o exato oposto da palavra na ponta da língua.
9 Sempre toda palavra é incompleta.
10 Desejo irrevogável, mais que irresistível de afrontar Medusa, de se colocar frente a frente à face feminina e humana.
11 Esse pequeno tratado que se refere à Medusa é somente um fragmento da minha vida. O conto, ao contrário da minha vida, é um fragmento que restou do sonho.
12 Escrever é escutar a voz perdida. É ter o tempo de procurar a palavra do enigma, de preparar a sua resposta. É procurar a linguagem dentro da linguagem perdida. É percorrer, sem cessar, o intervalo entre a mentira ou o Eratz e a opacidade ininteligível do real.
12 Pascal Quignard é escritor e músico, atividades em que o corpo, no seu eterno aspecto pulsante, não está, de modo algum, apartado do ofício. Trabalho de um corpo que escuta os ruídos de uma escrita tocada pela grafia de notas e, sempre, por uma palavra na ponta da língua. É sob esse fio tecido que ele cria as formas que parecem emergir de uma substância libidinal que tocam o corpo daqueles que se aventuram na sua leitura.
* Psicanalista; Mestre em psicologia pela UFMG. E-mail: janainardepaula@oi.com.br

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