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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.1 no.2 São Leopoldo Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

Do segredo à possibilidade de reparação: um estudo de caso sobre relacionamentos familiares no abuso sexual

 

From secret to repair possibility: a case study about family relationships in sexual abuse

 

 

Cátula PelisoliI; Débora Dalbosco Dell'AglioII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Centro de Atenção Psicossocial Casa Aberta - SMS/ Osório, RS. WP Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental. Porto Alegre, RS Brasil. catulapelisoli@yahoo.com.br
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Rua Ramiro Barcelos, 2600/115 - Porto Alegre, RS, Brasil. dalbosco@cpovo.net

 

 


RESUMO

Este estudo investigou como uma adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar percebe sua família em termos de coesão, hierarquia, afetividade, conflito e relações de identificação. Trata-se de um estudo de caso, do qual participou uma menina de 13 anos, que sofreu abuso sexual perpetrado por seu pai. Foi realizada a entrevista semi-estruturada e a aplicação dos instrumentos Familiograma - FG, Family System Test - FAST e Family Identification Test - FIT. Os resultados demonstraram a presença de alcoolismo e violência anterior por parte do abusador, ambivalência da pessoa autora da denúncia e incidência de violência física e psicológica, além da sexual de maus-tratos. Além disso, a menina evidenciou relações pouco afetivas e muito conflituosas com o abusador e relações mais significativas com a madrasta e alguns irmãos. Para a menina, a madrasta é também um modelo identificatório mais forte do que o pai. Pode-se concluir, a partir das percepções da adolescente, que o casal parental apresentava relacionamento conflituoso e pouco afetivo e que a família se caracterizava por relações desequilibradas e instáveis. Estudos sobre famílias em que ocorre abuso sexual são escassos no meio científico e tornam-se extremamente necessários, pois podem ampliar o conhecimento sobre o assunto e prover subsídios para as intervenções dirigidas a essa população.

Palavras-chave: abuso sexual intrafamiliar, relações familiares, violência doméstica.


ABSTRACT

This study investigated how an adolescent victim of intrafamilial sexual abuse realizes his/her family in terms of cohesion, hierarchy, affectivity, conflict and relations of identification. This is a case study, which involved a 13-year-old girl who had suffered sexual abuse perpetrated by her father. A semi-structured interview was conducted and the implementation of the instruments Familiograma - FG, Family System Test-FAST and Family Identification Test-FIT was done with the girl. The results showed the presence of former alcohol and violence by the abuser, ambivalence of the author of the report and incidence of psychological and physical violence. In addition, the girl reported having little affective and very conflicting relations with the abuser and more meaningful relationships with the stepmother and some siblings. The stepmother is also the stronger identification model for girl than the father. It is concluded that, from the adolescents' perception, the parental couple presented conflicting and little affective relationships and the family was characterized by unbalanced and unstable relationships. Studies about these families are scarce in scientific environment and are extremely necessary, in order to expand the knowledge on the subject, and in terms of providing subsidies for interventions targeted at this population.

Key words: intrafamilial sexual abuse, family relationships, domestic violence.


 

 

Revisão da literatura

A real prevalência do abuso sexual é maior do que tem sido divulgada pelos serviços e pelas pesquisas. Trata-se de um crime subnotificado, evidente perante a discrepância entre os números estimados de vítimas e a notificação (Kellog, 2002), que permanece em sigilo por muito tempo, até ser revelado pela vítima. O fato de que a maioria dos casos refere-se a abuso sexual intrafamiliar é um dos vários motivos pelo qual se considera a revelação um momento crucial e complexo (Caminha et al., 2003; Habigzang et al., 2005). Por isso, há uma demanda de intervenções qualificadas, com acolhimento e apoio por parte dos profissionais que recebem essas denúncias.

Pensando a família como o principal con texto de desenvolvimento do ser humano, com funções diversas como a de prover os cuidados básicos, transmitir valores, socializar a criança, entre outras (Ackerman, 1986; Bronfenbrenner, 1996; Osório, 1997) e sabendo que é exatamente nesse contexto que ocorre a maior parte das relações abusivas (Habigzang et al., 2005; Kellog e Menard, 2003; Kristensen et al., 1999), a meta deste estudo é obter dados que possam ampliar o conhecimento sobre esses sistemas familiares violentos, com o propósito de contribuir para a elaboração de estratégias de prevenção e tratamento.

Para Santos (2007), a família em que acontece o abuso sexual intrafamiliar é um sistema fragilizado, na qual o segredo dá a ilusão de unidade e de que a situação está sob controle. Historicamente, esse segredo ficou por muito tempo escondido na intimidade dos grupos familiares, qualquer que fosse a condição social das vítimas e dos ofensores (Giberti, 2005). Atualmente, entretanto, se reconhece esse problema como público, "superando o segredo com que a domesticidade garantia sua persistência e a impunidade dos agressores" (Giberti, 2005, p. 125).

A violência no contexto familiar não é somente um problema da família, mas constitui um problema social, com prejuízos não apenas no nível individual mas também no social, com impacto sobre as áreas do trabalho, educação, saúde, sociedade, segurança e economia (Corsi, 2006). O aumento do absenteísmo e a diminuição do rendimento laboral e escolar, a violência no âmbito escolar, as conseqüências para a saúde física e mental, as fugas de casa, as condutas de risco, a violência social e juvenil, os homicídios e as lesões corporais dentro da família, os delitos sexuais, bem como o incremento dos gastos nos setores da saúde, educação, segurança e justiça (Corsi, 2006) são algumas das conseqüências da violência familiar. Portanto, esse fenômeno não provoca impacto negativo somente sobre as relações familiares e o desenvolvimento físico e psicológico das vítimas, mas apresenta repercussões sociais e econômicas importantes.

Tanto em condições típicas do desenvolvimento quanto em condições inesperadas, como no caso do abuso sexual intrafamiliar, a família exerce forte influência sobre a vítima e sobre a forma como ela lida com o problema. Como demonstraram Fassler et al. (2005), o ambiente familiar pode funcionar como mediador das conseqüências do abuso sexual. Neste estudo, o ambiente familiar foi investigado em termos de conflito, expressividade e coesão. Foi possível constatar que, se for menor o conflito e forem maiores a expressividade e a coesão familiar, melhor será o prognóstico. Nesse sentido, também Cohen e Mannarino (2000) afirmaram que o suporte e a adaptabilidade familiar são preditores das conseqüências pós-vitimização. Segurança e proteção provida pela família também têm sido vistas como características que podem assegurar um prognóstico mais favorável para as vítimas (Kellog, 2002).

No meio científico, alguns pesquisadores também têm se proposto a investigar aspectos familiares no contexto do abuso sexual. No trabalho de Habigzang et al. (2005), há uma descrição caracterizando essas famílias a partir de aspectos como estratégias de organização, configuração, práticas educativas e tentativas de proteção. Outros trabalhos investigaram o autor da violência intrafamiliar (Caminha, 2000; Cohen, 2000), sua renda, número de filhos, configuração (Deslandes, 1994), entre outros aspectos. Destaca-se que esses estudos obtiveram suas informações a partir de processos jurídicos ou prontuários de serviços de atendimentos. Por outro lado, Narvaz (2005) e Santos (2007) realizaram suas pesquisas a partir de entrevistas com mães de vítimas de abuso sexual. Outros trabalhos que ouviram as próprias vítimas de violência foram os de Kristensen (1996), que investigou abuso sexual em meninos, e De Antoni e Koller (2000), que pesquisaram adolescentes vítimas de violência intrafamiliar.

Este trabalho teve por objetivo investigar como uma menina vítima de abuso sexual intrafamiliar percebe a sua família, em termos de coesão, hierarquia, afetividade, conflito e relações de identificação. A coesão é definida como proximidade emocional ou apego entre membros da família; a hierarquia diz respeito às relações de poder estabelecidas entre eles (Gehring, 1993). Por sua vez, afetividade e conflito são, respectivamente, sentimentos positivos e geradores de estresse e agressividade. As relações de identificação, por sua vez, tratam da incorporação de padrões de pensamento e comportamento de um modelo, neste caso, um membro familiar (Teodoro, 2006). Este estudo, portanto, buscou identificar como essas características se manifestam no contexto do abuso sexual intrafamiliar.

 

Método

Delineamento: foi desenvolvido um trabalho exploratório a partir do delineamento de estudo de caso (Yin, 2005), para descrever as percepções de uma adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar quanto às características familiares. O estudo de caso tem base em várias fontes de dados, as quais permitem a inclusão de elementos quantitativos e o caracterizam como uma estratégia de pesquisa abrangente (Yin, 2005).

 

Participantes e contextualização

Participou deste estudo uma menina vítima de abuso sexual intrafamiliar, perpetrado pelo pai. A menina foi convidada a participar da pesquisa, depois de ser acolhida em um centro de referência no atendimento a vítimas de violência sexual, em Porto Alegre-RS. A acolhida, nesse serviço, dá-se, na maioria dos casos, logo após a denúncia, já que os setores que a recebem encaminham diretamente a esse centro. A avaliação da veracidade da situação abusiva foi realizada pela equipe do próprio serviço, que tem anos de experiência de atendimento a essas situações. Dessa forma, o caso encaminhado à pesquisa tratava-se de situação de abuso sexual confirmada clinicamente pelos profissionais dessa instituição de atendimento às vítimas.

No momento da pesquisa, a menina ainda não estava em processo psicoterapêutico, tendo em vista que esse procedimento possibilita a reestruturação da percepção da vítima quanto à sua família. O serviço que realizou a acolhida encaminhou o caso a atendimento em outro serviço da rede. A equipe de pesquisa certificou-se do encaminhamento e colocou-se à disposição para esclarecimentos.

Instrumentos: foram utilizados os seguintes instrumentos:

(a) Entrevista semi-estruturada, baseada no Protocolo de Entrevista com Meninos (Kristensen, 1996), que investiga dados gerais das participantes, como idade, escolaridade, atividades cotidianas, relacionamentos, e que busca obter dados sobre a família e uma breve descrição da situação abusiva e da atual;

(b) Entrevista sobre a família (Pelisoli, 2008), com questões que focalizam aspectos de que a participante gosta e de que não gosta na família, o que percebe e aprecia em relação a pessoas mais próximas ou distantes dela, a situações boas ou ruins que aconteceram com a família, à forma de resolução de problemas, além de questões sobre as expectativas quanto à formação de sua própria família no futuro;

(c) Family System Test - FAST (Gehring, 1993), que é uma técnica tridimensional que possibilita avaliar a percepção do indivíduo sobre a coesão e hierarquia na família e subsistemas em situações típicas, ideais e conflituosas, por meio de um tabuleiro monocromático com peças em madeira que representam figuras familiares. Alguns estudos desenvolvidos no Brasil já utilizaram esse instrumento e demonstraram sua utilidade na avaliação de famílias (De Antoni, 2005; Falcão, 2006; Fleck e Wagner, 2003);

(d) Teste de Identificação da Família - FIT (Remschmidt e Mattejat, 1999), adaptado para uso no Brasil por Teodoro (2000), que avalia as relações de identificação na família. Esse instrumento busca esclarecer tais relações a partir da classificação de cartões que descrevem atributos de personalidade (seguro de si, independente, medroso, nervoso, satisfeito, tranqüilo, entre outros), na percepção real (o quanto a pessoa se considera semelhante a alguém) e ideal (o quanto a pessoa gostaria de ser semelhante a alguém) sobre os diferentes membros da família;

(e) Familiograma (Teodoro, 2006), que avalia a família em termos de duas dimensões: afetividade (sentimentos positivos entre as pessoas) e conflito (sentimentos que podem gerar estresse ou agressividade). As análises estatísticas do instrumento apresentaram adequada consistência interna e elevados índices de correlação item-total (Teodoro, 2006).

Cada instrumento foi avaliado qualitativa e quantitativamente, de acordo com as orientações dos manuais, e as entrevistas foram analisadas pelo método de análise de conteúdo (Bardin, 1977). Os resultados foram apresentados de acordo com os seguintes contextos: a) Contexto familiar; (b) Contexto abusivo/Vitimação; e (c) Contexto atual.

Procedimentos e Considerações Éticas: o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição onde foi realizada a pesquisa. O setor onde foi realizada a coleta de dados também oficializou a sua aceitação quanto à realização do estudo, mediante assinatura ao Termo de Concordância da Instituição. Foi realizado contato com os profissionais responsáveis pelo acolhimento da participante, que permitiram que fosse feito um convite aos responsáveis pela menina. Os responsáveis legais, assim como a própria adolescente, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nesse momento, os objetivos da pesquisa, os procedimentos a serem adotados e a segurança sobre a confidencialidade dos dados foram aspectos apresentados à pessoa responsável e à participante (Conselho Nacional de Saúde, 1996). A coleta de dados foi individual e necessitou de três encontros com duração média de uma hora. As entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise. Os nomes utilizados para a apresentação do caso neste trabalho são fictícios.

 

Resultados

Caso Sílvia

Dados gerais da participante: Sílvia tem 13 anos e não estava estudando no momento da entrevista. A menina encontrava-se abrigada há duas semanas, e a matrícula na oitava série estava sendo realizada. Sílvia entrou com seis anos na escola e nunca foi reprovada. A menina gosta de estudar e nunca teve problemas de relacionamento. Fora da escola, gosta de escrever poesias e de jogar vôlei. Ela diz que tem facilidade de fazer amizades e que tem muitos amigos. O pai tem 33 anos e é casado com Márcia (madrasta), de 31. Os irmãos são Tiago e Felipe (filhos do pai e da madrasta) e Amanda (filha só da madrasta). Os irmãos entraram recentemente na escola, e Amanda, que tem 12 anos, está na quarta série. Sílvia residia com essas pessoas até ser abrigada; não tem nenhum contato com sua mãe biológica.

Dados das entrevistas:

Contexto familiar: até os oito anos, Sílvia morava somente com o pai. Na disputa pela guarda dos filhos, a mãe ficou com o irmão, Lucas, e o pai ficou com a menina, porque assim solicitou. Seus pais ficaram juntos por mais ou menos três anos. Quando morava com o pai, enquanto ele trabalhava, a tia (irmã do pai) cuidava de Sílvia. Essa tia era agredida pelo pai da menina.

Sílvia considera que, com exceção do pai, era "legal morar com os irmãos e a madrasta". Quando o pai estava junto, ele "incomodava muito. Não dava pra conversar, pra fazer nada... Não dava pra olhar TV, pra fazer nada...". Uma situação que a adolescente relata como positiva é a do tempo em que ela e a família moraram em outro município por dois anos (dos onze aos treze anos de Sílvia). O pai não gostava de morar naquela cidade e, como havia terminado o relacionamento com a exmulher (com quem namorou depois da mãe de Sílvia e antes da madrasta), decidiu se mudar. O pai trabalhava como pedreiro, mas trabalhara também como taxista. A menina gostava dos amigos e da escola daquela cidade.

No dia-a-dia da família, as crianças iam para a escola. No turno oposto, Sílvia, sua irmã e a madrasta limpavam a casa, tomavam chimarrão, conversavam e olhavam novela. Os irmãos ficavam brincando. Então, no final do dia, o pai chegava do trabalho e "incomodava". Para ela, o pai queria tudo "nas mãos", "ficava pedindo para que as pessoas fizessem coisas para ele o tempo todo". Também desligava a televisão, mesmo quando a família estava assistindo a algum programa. Segundo a participante, o pai chegava "de cara feia, incomodando, chegava falando nome, brigando já. Mas aí ele se arrumava e já saía". Os finais de semana eram iguais, com o pai trabalhando também e voltando para casa alcoolizado, em muitas ocasiões.

A situação positiva que aconteceu na família foi o fato de o pai brigar com a madrasta e, depois, prometer que iria parar de beber. Para a menina, o mês em que o pai ficou sem beber foi bom: "ele não xingava verbalmente, como ele xingava e chegava incomodando. Só que se ele não bebe, ele fica só em casa enchendo o saco igual". As situações negativas com a família aconteciam sempre que o pai bebia e "incomodava". Uma situação em especial foi citada pela menina quando o irmão Tiago precisou ser internado, permanecendo nove dias no hospital. O irmão apresentava convulsões desde muito pequeno (dois meses) e tomava medicação. Quando estava com quase três anos, pararam com a medicação. Então, um dia, ele convulsionou e precisou ser internado. O pai ia bêbado ao hospital. Sílvia, sua irmã e o outro irmão ficavam na casa da irmã da madrasta, enquanto esta estava com Tiago no hospital. Ficaram todos muito ansiosos com a situação. Segundo a participante, quando Tiago saiu "ficou muito feliz de abraçar a família".

Sílvia não conhecia a mãe, e o pai sempre dizia e fazia tudo para que a filha se posicionasse contra ela: "Falava que ela não me queria, que ela largou dele para ficar com outros homens". Mas a madrasta também disse à menina que ele fazia os mesmos comentários sobre ela (madrasta) e que a verdade poderia não ser bem aquela. A participante disse que o pai "vivia falando mal da mãe". E a madrasta pedia que ela não julgasse, porque ela não a conhecia. Hoje, Sílvia pensa diferente. Ela conheceu a mãe aos 11 anos: um ex-cunhado de sua mãe conhecia o pai e o reconheceu na frente da casa. Levou a mãe da menina até lá, e elas se encontraram e conversaram um pouco. Nessa ocasião, perto do aniversário da menina, a mãe disse que voltaria (indicara o dia do aniversário para buscá-la e prometera que ela conheceria o irmão), mas não retornou. Depois, a adolescente e sua família se mudaram e ela nunca mais viu a mãe, da qual tivera uma boa impressão. Sílvia relata que não gostava muito dela naquela época, mas tinha vontade de conhecer o irmão. "Agora eu acho que eu gosto dela, não sei. Depois que eu vi o jeito que o pai é eu entendi porque ela caiu fora de lá. Ela tinha 16 anos quando casou com ele, né. Daí quando eles se separaram eu acho que ela tinha uns 18, 19".

A menina também conta que o pai a protegia muito. Quando a madrasta pedia que Sílvia fizesse alguma coisa, ele brigava com a madrasta e dizia que não era para ela fazer nada. Mas a menina relata que foi vendo "como ele era" e passou a "não apoiar muito ele". Ele ficou com muita raiva disso, conta a participante. Para a menina, a madrasta "é legal. Bem legal. Ela sempre, quando eu precisava de alguma coisa ela ajudava, sabe? Sempre precisava falar com ela, ela falava, conversava". Os irmãos, como diz a garota, são "bagunceiros, fazem arte. Eles são gêmeos: daí um quer esse caderno, o outro quer o mesmo caderno só para brigar. Dá uma coisa diferente, daí o outro quer e o outro quer também, daí os dois brigam". A irmã de onze anos "é tri também. Ela é bagunceira também, apronta... É que a minha irmã ela é muita nervosa, sabe? Qualquer coisa ela já briga com todo mundo. Ela briga e discute com todo mundo. Mas ela implica...". As duas não brigam.

A pessoa que Sílvia considera mais próxima dela, que mais ajuda quando precisa, é a madrasta. Ela protege a menina nas brigas com o pai, leva ao médico, e "faz uma guerra", se precisa. Ela xinga o pai. Em uma ocasião, a participante teve que ir ao médico por causa de uma freqüente dor no peito. O pai foi ao médico, mesmo contrariado. Mas a madrasta acompanhou e ficou com Sílvia. O médico disse que a dor deveria ser de "incomodação". Ao saírem do hospital, a menina desmaiou e teve que passar a noite lá para realizar alguns exames. Nada foi encontrado. Antes das dores e de se sentir nervosa, Sílvia relata que uma briga aconteceu: "O pai me deu um tapa. Começou a brigar, daí começou a dor no peito."

Contexto abusivo/vitimação: o pai de Sílvia, segundo ela, era alcoolista e agressivo. Ele chegava do trabalho, tomava banho e saía para beber. As brigas familiares sempre envolviam o pai. A madrasta era agredida verbal e fisicamente, assim como os filhos. A menina relata que a madrasta registrou uma ocorrência contra ele, alegando que ele havia batido nela. Segundo Sílvia, isso era freqüente, inclusive quando a madrasta estava grávida.

A menina relatou uma situação em que o pai estava bebendo em um bar e Sílvia estava passando na rua. Uma amiga chamou-a e perguntou como ela estava; elas conversaram. Quando Sílvia chegou em casa, levou uma surra porque o pai não havia gostado de "vêla conversando na rua". Ele lhe deu tapas no rosto, usou chinelo para bater nela e chutou-a. Em outra situação, desferiu até um chute no estômago da menina. Sílvia relata que, quando era pequena, o pai não batia nela. Quando ele estava sóbrio, também "incomodava", brigava, mas não saía batendo e nem falava "tudo que vinha na boca". As brigas terminavam quando ele ia deitar.

Sílvia conta que, quando pequena (tinha cinco, seis e sete anos), o pai tirava as roupas dela. Ela não lembra o que exatamente acontecia nessas ocasiões, mas sabe que ele tirava sua roupa quando estava dormindo: em seguida, acordava e fingia que continuava dormindo. Segundo a participante, o pai "tentou mesmo" uma vez. Ela sentiu dores e ele percebeu e perguntou: "O que foi?", ela respondeu: "Nada!" e continuou fingindo dormir. Isso aconteceu quando Sílvia tinha sete anos.

O pai não permitia que a menina fosse à casa de ninguém, nem da tia. A tia falou para a conselheira tutelar de sua desconfiança com relação à situação abusiva. Para a menina, o pai tinha medo de que ela falasse algo para a tia ou para alguém. Muitas vezes, ele saía de casa e a deixava trancada, sozinha. Quando tinha oito anos, o pai conheceu a atual madrasta, casou com ela, e nunca mais aconteceu nada. Para Sílvia, o pai apenas tentou abusar dela: "tentava pelo menos, porque não conseguiu".

Nos últimos meses, o pai e a madrasta começaram a brigar muito e a madrasta, muito amiga de Sílvia, falou sobre sua decisão de se separar do pai. A menina ficou com medo de que eles se separassem de fato e que ela precisasse morar sozinha com o pai e, assim, voltasse a ser abusada. Então, contou as situações pelas quais havia passado para uma amiga, que contou para sua mãe. O pai dizia para ela que teria que ficar com ele para sempre, e, com isso, "enchia o saco" dela. A mãe de sua amiga, no início, não tomou nenhuma atitude. No entanto, num outro dia, a menina foi para casa delas após ter brigado com o pai. O pai havia derramado café quente em sua madrasta e a chutou. Ela ficou sentada fora de casa até ele dormir. Entrou na casa só depois disso. No outro dia, o pai começou a discutir novamente. Sílvia fugiu, foi para a casa da amiga para proteger-se. A mãe da amiga efetuou a denúncia, e a menina foi abrigada.

A amiga foi a primeira pessoa que ouviu seu relato. Ela ficou apavorada com o que ficou sabendo e perguntou como ele teve coragem de fazer isso. Depois que soube da denúncia, Amanda (irmã de Sílvia) se lembrou de que a menina já havia comentado isso anteriormente, quando era mais nova. A irmã disse que Sílvia falou para ela que "o pai pegava eu, pelado, e me namorava", mas a menina não lembrava.

Contexto atual: para Sílvia, "é melhor estar em casa", mas considerou que estava sendo "bem tratada" no abrigo. A menina estava se relacionando bem com as crianças, os adolescentes e com os monitores do abrigo. Entretanto, para ela, o tempo no abrigo passa devagar: "parece que é muito cansativo, sabe?" "Parece que... Parece que faz um ano já que eu to aqui". Como é possível compreender, a participante tem vontade de estar com as pessoas da família, apesar de parecer bem no abrigo. Como Sílvia não está estudando, fica cuidando de um bebê, que é filho de uma menina abrigada, de 12 anos. Pela tarde, ela joga carta, joga vôlei, brinca e conversa com as outras crianças.

A menina também diz ter "problemas nos nervos": em algumas situações treme, tem vontade de chorar. Quando ela começa a pensar no que lhe aconteceu, sente dores no peito, fica nervosa, sente tonturas e tremores. Nesse momento, se alguém fala alguma coisa, ela briga. Sílvia diz também que, se fica nervosa, "desconta" em alguém. Mesmo quando ninguém fala nada (como chamá-la de "magra"), ela tem vontade de chorar.

A adolescente relata sua preocupação com sua situação no abrigo: "eu não sei o que vai ser de mim agora né, não sei com quem é que vou morar, onde é que eu vou ficar, daí eu fico nervosa com isso também. Eu começo a pensar assim, sabe, nas minhas amigas, que eu podia estar no colégio, podia agora tá com meus irmãos, tá do lado deles e sei lá,começo a ficar nervosa, começo a tremer".

Por conta disso, a menina apresenta diversos sintomas de ansiedade e insônia. Na casa de passagem, Sílvia relata sentir dores físicas, como dores de cabeça e no peito e diz que fica pensando muito no que aconteceu. A madrasta foi visitar a menina no abrigo e relatou que está sem dinheiro, que o pai saiu de casa, e os irmãos passaram mal. Para a madrasta, eles estavam sentindo a falta do pai e da irmã. Sílvia gostou da visita da madrasta, abraçou-a, mas sentiu saudades dos irmãos.

A adolescente vivencia sentimentos ambíguos pelo pai. Quando questionada sobre o que pensa sobre ele, o que acha do pai, responde: "Não sei. Eu gostava assim dele. Mas só que agora eu lembro dele, o que ele fazia, um pai assim, não sei... daí eu fico nervosa, sabe?!"

Sílvia relata que pode contar com o apoio de Roberta, uma amiga, e da mãe de Roberta. Além delas, Sílvia diz que é "cheia de amigas". Como diz Sílvia, "é mais fácil contar com uma amiga, um amigo meu do que com uma tia minha. Por isso né, quando eu saí de casa eu fui pra casa de um amigo, porque se eu fosse pra casa de uma tia, ela ia me mandar pra casa de novo".

Quanto a suas expectativas para o futuro, Sílvia afirma querer estudar, fazer um curso superior e construir sua família. Quer ser bem diferente dos seus pais e deseja que seus filhos sejam bem diferentes dela. Quer que seja melhor do que a família que teve. Planeja completar os estudos antes de ter filhos, e, com isso, dar maiores oportunidades para eles. Quer ter um casal de filhos e trabalhar, junto com um futuro marido para ter uma vida melhor. Pretende ter um relacionamento amistoso com este marido: "Sem briga. Se for discutir, não discutir, acho que conversa, sabe?! Não brigar. E nem na frente dos filhos também. Compreender, conversar separado... E na conversa, não ficar discutindo xingando um ao outro. Se vê que tem uma coisa errada, tem que ir conversar pra ver se resolve..."

Dados do Familiograma: o Familiograma demonstrou uma relação de baixa afetividade e de alto conflito entre a madrasta e o pai. Na relação de Sílvia com cada membro da família, a afetividade mostrou-se baixa com o pai; média, com a madrasta e Amanda; e alta com os outros dois irmãos. As relações de conflito apresentaram níveis baixos com a madrasta; médios, com os irmãos; e alto com o pai.

Dados do Family Identification Test - FIT: Sílvia apresenta uma autocongruência negativa de -0,53, significando que ela não é do jeito que gostaria de ser.

As correlações podem ser classificadas como fracas, moderadas ou fortes. Assim, as relações de identificação real de Sílvia com cada membro da família não indicaram nenhuma correlação importante (moderada ou forte, conforme pode ser visto na Figura 1). As que mais se destacaram foram uma correlação negativa (-0,26) com Tiago; e positiva, com Felipe (0,33). As relações de identificação ideal revelaram correlações negativas com todos os irmãos e com o pai (Figura 2). Com a madrasta, Sílvia apresentou uma correlação positiva (0,48), indicando que ela é a única pessoa da família com quem gostaria de ser parecida.

 

 

 

 

Dados da Family System Test - FAST: em situações típicas, a menina percebeu a família como um grupo de baixa coesão e hierarquia baixa e inversa, com ela e a madrasta apresentando maior poder. Idealmente, ela deseja que sua família possua alta coesão e média hierarquia, com a madrasta tendo maior poder sobre os membros da família. Em situações de conflito, Sílvia percebe sua família com baixa coesão e média hierarquia, com o pai e a madrasta demonstrando maior poder do que os filhos. A estrutura familiar foi avaliada como desequilibrada em situações típicas, equilibrada em situações ideais e instáveis no conflito. A avaliação das díades familiares é apresentada na Tabela 1.

Com relação aos subsistemas, destaca-se que Sílvia percebe o subsistema parental que tem baixa coesão em situações típicas e de conflito. A hierarquia, nessas situações, apresentase alta, com a madrasta revelando maior poder nas situações típicas, e baixa, no conflito. Idealmente, a participante gostaria que o casal apresentasse alta coesão e baixa hierarquia. Foram analisadas, ainda, as relações da menina com cada membro da família. Com relação à proximidade (coesão), Sílvia apresenta baixos níveis com Amanda e com o pai; médios níveis com a madrasta e com os irmãos Tiago e Felipe, em situações típicas. Idealmente, alta coesão é desejada com a madrasta, Amanda e Felipe; e média com Tiago e com o pai. No conflito, há baixa coesão com todos os membros da família.

Em situações típicas, a hierarquia apresenta-se com níveis baixos com a madrasta e inversa com o pai, ou seja, Sílvia acredita ter maior poder do que ele. Com os irmãos, a hierarquia apresenta níveis médios com Amanda e altos com os meninos, em situações típicas. Baixa hierarquia com Amanda e média hierarquia com os irmãos, madrasta e pai são desejados. Nas situações conflituosas, Sílvia indicou haver baixa hierarquia com Amanda e média com os outros irmãos, com a madrasta e com o pai.

 

Discussão

De acordo com os dados coletados, pode-se observar que Sílvia considera que sua família é composta pelos seguintes integrantes: pai, madrasta, os irmãos e a irmã (filha da madrasta). O pai é violento com todos da família, especialmente com a madrasta. Agride verbal e fisicamente a esposa e os filhos, independente de sua condição de saúde ou idade. O casal apresenta baixa afetividade entre eles, com muitos conflitos, segundo a participante. Há ainda uma relação de baixa proximidade entre eles (coesão) e uma hierarquia alta, com maior poder da madrasta. Sílvia gostaria que os pais fossem mais unidos. Seu pai e sua madrasta, segundo ela, relacionavam-se também de forma pouco afetiva e muito conflituosa. Esse fato confirma que a violência conjugal tem sido encontrada em muitos casos de estudos sobre abuso sexual infantil (Hornor, 2002; Kellog e Menard, 2003). Além disso, o pai é alcoolista, saindo todos os dias para beber com amigos. A história de testemunho de violência conjugal, agressões físicas e verbais e presença de alcoolismo pelo pai também foram aspectos comuns nas vivências dessa menina. Tais fatos foram também encontrados no caso relatado por Hornor (2002) e nos casos investigados por Santos (2007). O uso de álcool e a dependência química têm sido muito prevalente em casos de pais e padrastos de vítimas de abuso sexual (Carson et al., 1991, citado por Hornor, 2002).

O abuso sofrido por Sílvia foi crônico, perdurando por muitos anos de sua vida. Entretanto, o fato que ela considera "tentativa" de abuso limita-se a um episódio de maior agressividade do pai. Fica evidente o desconhecimento do conceito de abuso sexual, que não se restringe à penetração ou à sua tentativa, como no caso da participante. Para essa menina, o conceito de abuso sexual não é claro. Como para muitas pessoas de uma sociedade em desenvolvimento, de um país com importantes dificuldades nas diferentes áreas, incluindo a educação e a cultura, o abuso sexual está associado exclusivamente ao contato físico sexual. As tentativas de minimizar violências que não envolvem este tipo de contato são evidentes, no caso de Sílvia, e podem ser compreendidas a partir de uma visão sistêmica, em que a família quer manter uma união e um equilíbrio. O que, para o mundo acadêmico, parece algo que está claro, evidente e absolutamente conhecido, para as pessoas, principalmente as de classes menos favorecidas, parece ser ainda muito distante. E são essas as pessoas que mais precisam ter acesso às informações, já que estão mais desprotegidas, tanto pelos sistemas de saúde e de proteção quanto pelos próprios membros de suas famílias.

Características comumente encontradas em casos de abuso sexual intrafamiliar como a presença de ameaças, o isolamento da vítima como medida de manutenção do segredo e o adiamento da denúncia por medo também estiveram presentes no caso de Sílvia. "A criança tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la", disse Gabel (1997, p. 11). Como descrito por Furniss (1993), por meio da denominação síndrome do segredo, as meninas são vítimas de ameaças e têm medo do que pode acontecer a elas e a sua família, assim como até mesmo ao próprio abusador, com quem possuem laços afetivos significativos. Dessa forma, essas meninas protelam a revelação e, ao fazerem isso, permitem que essa violência continue e que sejam vítimas de novos abusos. A revelação das situações sofridas foi adiada por anos, no caso de Sílvia: só aconteceu com a iminência de uma separação conjugal e diante do temor de ser novamente vítima do pai. Até conseguir revelar, Sílvia sofreu agressões e ameaças por parte do pai, que a agredia fisicamente após vê-la conversando com uma amiga na rua ou quando impedia a menina de visitar amigas e parentes.

Sílvia não é absolutamente quem gostaria de ser, ou seja, apresenta uma baixa autocongruência. Além disso, a menina demonstra claros sintomas de ansiedade, que afetam seu sono e seu dia-a-dia. O fato de não se lembrar de alguns acontecimentos, e até mesmo de ter contado a situação para a irmã e não se lembrar disso, podem indicar a presença de sintomas dissociativos, além dos ansiosos. Para Cortina e Marrone (2003), a adoção de estratégias defensivas, pela dissociação e negação, pode ser entendida também como uma maneira de amenizar vivências de separação prolongadas e de maus-tratos pelas figuras de apego primárias.

Apesar dessas dificuldades, um aspecto positivo é a identificação ideal com a madrasta, com quem gostaria de ser parecida. A madrasta é, para Sílvia, o único modelo a ser seguido, de toda a família. Pelo cuidado e proteção que significava para a menina, entende-se que este possa ser um fator de proteção neste caso. Além da madrasta, a participante pode contar com amigas e a mãe de uma amiga (que efetuou a denúncia) em situações problemáticas. Isso demonstra que, apesar de não contar com muito apoio familiar, a menina parece receber um significativo apoio social externo à família. Sabe-se que a existência de uma rede de apoio social, que visa proteger os direitos das crianças, minimiza os efeitos negativos da violência (Caminha et al., 2003). Família, escola, profissionais da saúde, Conselho Tutelar, Juizado da Infância e Juventude e outras instituições são consideradas por Caminha et al. (2003) como componentes dessa rede de apoio e proteção.

Somada aos sintomas de ansiedade e alimentando esses sintomas, parece estar a preocupação intensa com a situação de abrigamento e com o seu futuro. Sílvia comenta que não sabe o que será dela, como vai ser sua vida daquele momento em diante. A idéia de que o investimento em estudos e na vida profissional poderão lhe trazer um futuro melhor fazem com que ela tenha objetivos bem definidos. Este aspecto, aliado ao apoio institucional do abrigo e do serviço de saúde procurado, às amizades, às relações positivas estabelecidas com a madrasta e com os irmãos, são fatores que podem contribuir para minimizar os prejuízos decorrentes da violência sofrida pela adolescente. As conseqüências da violência ultrapassam o nível particular, familiar e individual. Elas tomam proporções sociais, que podem ser vistas tanto em curto quanto em longo prazo; nesse sentido, a escola é um dos contextos afetados. A menina entrevistada neste estudo ficou por um tempo afastada da escola, fato que pode influenciar nos relacionamentos e comportamentos nesse ambiente, tendo em vista as mudanças e o momento crucial pelo qual passava.

Sílvia gostaria de ter maior proximidade com seu pai, apesar de ele ter sido o perpetrador do abuso. Entretanto, mostrou sua baixa coesão com ele em situações rotineiras. A ambigüidade de sentimentos em direção ao abusador nos casos de abuso intrafamiliar é comum, tendo em vista que um forte vínculo afetivo existiu anterior à violência e que, muitas vezes, continua, mesmo depois de situações como essas. Amor e ódio, afeto e rancor coexistem na relação vítima/abusador. Farinatti et al. (1993), ao descreverem os personagens do abuso sexual, citam a ambivalência como mais um elemento afetivo característico da vítima, que é traída na sua expectativa mais fundamental: a de ter um pai protetor. Para esses autores, é impossível conciliar os contrários. Carinho e ódio são sentimentos contraditórios e presentes nas vítimas de abuso sexual intrafamiliar (Padilha e Gomide, 2004).

Sílvia acredita ter mais poder que o pai. Quanto a essa crença, segundo Hornor (2002), as famílias incestuosas são descritas como rígidas, presas em segredos e negação, com estruturas com limites desorganizados, isolamento, superdependência e papéis invertidos de mãe e filha. A inversão de papéis é ainda destacada por autores como Belsky (1980) e Forward e Buck (1989). A noção de abuso contém a idéia de abuso de poder e de confiança. Para Gabel (1997), o abuso sexual supõe uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande sobre o pequeno, a confiança que o pequeno tem no grande e o uso delinqüente da sexualidade ou o atentado ao direito que todo indivíduo tem de propriedade sobre o seu corpo. O poder é considerado um conceito chave para compreender as relações de violência na família. Junto com o dinheiro e o conhecimento, a violência é considerada uma das principais fontes de poder do ser humano, que, geralmente, é direcionada a mulheres, crianças e idosos (Corsi, 2006).

Já as relações com a madrasta e com os irmãos foram mais positivas. Identificações ideais positivas foram encontradas na relação com a madrasta, mostrando que a menina deseja ser como ela, que essa exerce função de modelo para ela. Pensando que essa percepção depende muito do momento vivenciado e do contexto, além dos afetos envolvidos, pode sofrer alterações no decorrer do desenvolvimento. Sílvia também gostaria de ter maior proximidade com os irmãos, com quem indica haver uma alta afetividade. Esse dado demonstra a importância dos irmãos na rede de apoio dessa menina. Bolsoni (2000) afirmou que, mesmo em famílias numerosas nas quais os irmãos têm que dividir os escassos recursos, o fato de ter irmãos contribui para o desenvolvimento emocional e social da criança. Da mesma forma, Poletto et al. (2004) encontraram aprendizados, trocas e apoio mútuo nas relações fraternas, apesar de existirem momentos de brigas e discussões.

 

Considerações finais

Sabe-se que muitos fatores estão implicados na origem e no desencadeamento de situações abusivas contra crianças e adolescentes, desde aspectos da ordem individual e familiar quanto macrossocial (Belsky, 1980; Gomes et al., 2002). Portanto, não há apenas um modelo explicativo que possa dar conta da complexidade do problema. Segundo Belsky (1980), os maus-tratos à criança são fenômenos sociopsicológicos e multideterminados. A família é apenas um dos contextos entendidos como envolvidos na etiologia da violência, e é compreendida como uma peça desse quebra-cabeças, que ainda inclui fatores relacionados ao indivíduo, à comunidade e à cultura.

Algumas limitações devem ser ressaltadas neste trabalho. A primeira delas refere-se às limitações inerentes de toda pesquisa qualitativa, que se restringe aos dados obtidos e não objetivam a generalização estatística (Newman e Benz, 1998). Mesmo assim, é possível inferir que os estudos realizados sejam passíveis de uma generalização analítica, na qual são geradas proposições teóricas aplicáveis a outros contextos (Alves-Mazzotti, 2006). Cabe colocar ainda que a investigação de vítimas de violência sexual merece particular atenção do pesquisador, implicando em cuidados éticos e maior disponibilidade de tempo, treinamento e disponibilidade emocional para acompanhar os casos. Em pesquisas quantitativas, há maior dificuldade de atender essas demandas. Como se trata de tema polêmico e perturbador para muitas pessoas, opta-se pela pesquisa qualitativa, garantindo, assim, os cuidados éticos necessários. Neste trabalho, foram adotados os procedimentos necessários para o encaminhamento da vítima a setores competentes da rede de atendimento. Além disso, foi enfatizada a necessidade e a importância do tratamento tanto aos responsáveis quanto à participante. Outra limitação diz respeito ao fato de que a coleta de dados incluiu apenas um informante: a própria vítima do abuso sexual intrafamiliar. Entretanto, este trabalho incluiu diferentes fontes de coletas de dados, o que reforça a fidedignidade da pesquisa.

A violência doméstica e mais especificamente o abuso sexual intrafamiliar desenrolam-se numa trama complexa, envolvida por sigilo, ameaças, barganhas e sentimentos ambíguos e intensos. Não somente as dinâmicas particulares da família, mas também influências sociais, culturais e históricas perpassam o fenômeno da violência nas relações de poder estabelecidas entre os membros da família e nas hierarquias controvertidas e questionáveis, que subjugam mulheres e crianças a homens violentos e seus comportamentos abusivos. Capacitar os profissionais que atuam diretamente com essas vítimas e suas famílias e orientar a sociedade tanto para efetuar a denúncia quanto para o que é denunciável são mecanismos que podem contribuir para que essas crianças e adolescentes, vítimas, tenham proteção adequada, conforme prerrogativa do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Falar em prevenção, atualmente, em nossa sociedade, parece um objetivo longe de ser atingido, quando se pensa que ainda falta muito para se conquistar a qualidade no manejo dos casos.

Segundo Corsi (2006, p. 40):

Perguntarse como se puede prevenir la violencia familiar implica interrogarse acerca de cuál es la etapa en la que nuestras comunidades se encuentram con relación a la percepción social del problema, es estado actual de la investigación sobre el tema y la voluntad política que cada Estado tiene para la formulación de una política global de prevención que abarque los sectores de educación, salud, justicia y acción social.

Dessa forma, é necessário, inicialmente, concretizar e qualificar as ações contra a violência doméstica e sexual em nossa sociedade. Na realidade brasileira, alguns projetos já estão sendo executados e ampliados como, por exemplo, o depoimento sem dano, a notificação compulsória e o Programa Sentinela. Entretanto, a formulação de políticas específicas e a elaboração de procedimentos e projetos devem vir acompanhados de investimentos na rede de atendimento, na capacitação profissional constante e na orientação da sociedade em prol do desenvolvimento saudável da criança e do adolescente.

 

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Submetido em: 26/08/2008
Aceito em: 25/11/2008

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