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Contextos Clínicos

versión impresa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.1 no.2 São Leopoldo dic. 2008

 

ARTIGOS

 

Imigração e sintoma na clínica com famílias

 

Immigration and symptom in the clinical psychotherapy with families

 

 

Sheila Skitnevsky Finger

Centro de Estudos em Psicanálise e Intolerância da Universidade de São Paulo, CEPI - LEI/USP. Rua Embaixador Raul Fernandes, 57/124, Jardim Europa, 01455-090, São Paulo, SP, Brasil. sheila@maepessoa.com.br e skitfinger@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto reflete sobre a clínica com famílias, a partir de dois eixos: a perspectiva lacaniana da clínica com crianças e famílias e o fenômeno da imigração. Utilizando um exemplo clínico de trabalho com imigrantes nos Estados Unidos, o texto ilustra a influência do papel dos pais na constituição e no desenvolvimento psíquico infantil, assim como a influência de aspectos sociais e culturais na formação de sintomas e de vivências individuais e familiares.

Palavras-chave: psicanálise, imigração, famílias.


ABSTRACT

This article analyzes the clinical work with families from two stand-points: the Lacanian perspective about clinical work with children and families, and the issue of immigration. Using a clinical working example of immigrants in the United States, the article illustrates the influence of the role of parents on the psychological constitution and development of children, as well as the influence of social and cultural aspects on the formation of individual and familial symptoms and experiences.

Key words: psychoanalysis, immigration, families.


 

 

Introdução

O indivíduo não existe fora do meio - ele é constituído pelas relações sociais, pela linguagem, e pela cultura que o permeia1. Neste sentido, o analista oferece uma perspectiva relacional, contextual e multidimensional para a compreensão e interpretação de todas as manifestações humanas, sejam elas individuais ou coletivas, pessoais ou sociais [...] Não se trata de transpor leituras clínicas individuais para o coletivo, mas sim de compreender o indivíduo contextualizado em seu meio social (Skitnevsky Finger, 2008, p. 2).

Utilizei esse preâmbulo para iniciar uma apresentação sobre o tema "O que pode o analista frente à intolerância"2. A concepção da psicanálise como instrumento crítico e analítico do indivíduo contextualizado em seu meio social tem me acompanhado cada vez mais. Como é discutido adiante, caracterizar psicanálise como relacional, informada por uma leitura psicanalítica lacaniana, conduz a um parâmetro intersubjetivo e inter-relacional.

 

Como a Psicanálise Lacaniana pensa a criança e a família

Sabe-se que Lacan considerava sua teoria "puramente freudiana" - e que, inclusive, muitas vezes se retirou de eventos "lacanianos", por considerar que estes, ao discutirem práticas e considerações supostamente "lacanianas" - e não "freudianas" - não lhe diziam respeito. Essa passagem, por si só, faz ver que não há psicanálise sem psicanalistas, ou seja, que a subjetividade dos psicanalistas influencia sua perspectiva teórica, clínica e sua visão de mundo. Nesse sentido, os aspectos da "abordagem lacaniana" utilizados neste texto refletem o universo de minha subjetiva compreensão e de minha identificação com certos aspectos dos ensinamentos de Lacan. Isso se justifica porque não há como referenciar teorias ou teóricos sem que a referência fique inundada por nossa subjetividade.

Psicanálise relacional

Desde seu primeiro caso publicado, o de Anna O., Freud percebeu, por meio da sintomatologia apresentada, a origem psíquica conseqüente dos relacionamentos da paciente com sua mãe, seu pai, a madrasta - e, posteriormente, com suas novas relações. Dessa primeira observação, nasceu uma teoria que iria privilegiar as relações humanas - da infância à vida adulta - para a compreensão, a elaboração e a ressignificação dos problemas que afligem o ser humano. É importante notar que a perspectiva relacional não se restringe apenas às primeiras relações do bebê com o mundo, mas a todo o universo humano com o qual cada indivíduo se relaciona. As relações são vivenciadas, significadas e compreendidas na dependência de um conjunto de fatores que incluem desde o biológico até os aspectos socioculturais, englobam as experiências pessoais e familiares, além de envolverem o contexto histórico e político.

A partir de Freud e de suas conceitualizações sobre o Complexo de Édipo e de Castração3, a relação mãe-filho passou a ser compreendida como a relação fundante do sujeito, e as outras relações da mãe, para além do filho, como fundante do ser social no filho. Ou seja, tendo a mãe outras relações que lhe interessem - o pai, outros desejos, outros interesses para além do filho e da maternidade - possibilita que a criança possa vir também a reconhecer e a se relacionar com o mundo para além da mãe. Mais ainda, se a constituição subjetiva da criança se inicia na relação dual - com a mãe - é através do Complexo de Édipo que ela se concretiza. Isto é, a partir da castração (ao incesto), operada por meio desse complexo, a criança se vê direcionada para a triangulação relacional, e, dali em diante, para relações terciárias. A elaboração desse complexo aponta a criança para uma busca de objetos, interesses, desejos, e parceiros. Assim, tem-se que o sucesso do complexo de Édipo introduz a criança no mundo social.

Nesse sentido, Lacan oferece uma releitura ainda mais esclarecedora. Primeiro, sobre a relação dual, Lacan destaca que a "mãe" pode ser a biológica, ou qualquer outro indivíduo que ocupe e exerça esta função materna - de suprir, de desejar e de interpretar o mundo externo (social) e interno (próprios desejos e pulsões) para a criança. Trata-se, portanto, de uma função, geralmente - e alguns diriam, preferencialmente - exercida pela mãe, mas não obrigatoriamente por ela. Como alerta Bleichmar (1984, p. 45), ao introduzir a discussão sobre o Édipo em Lacan , "quando, na descrição do Édipo que Lacan realiza, fala-se de mãe ou pai, o que está se denominando por trás desses termos são determinadas posições que um personagem pode ocupar, ou, melhor ainda, as funções que realiza (grifo meu)." Bleichmar (1984, p. 45) ainda complementa: "[...] se um pai tem com seu filho uma relação dual, em que o desejo deste é ser o objeto do desejo daquele, em que o menino é o falo do pai e, graças a isto, este não se reconhece como castrado e sim que é fálico, então esse pai real pode ocupar a posição do que, no primeiro tempo, chama-se de mãe". A segunda contribuição de Lacan sobre a constituição do sujeito refere-se ao pai que possibilita a castração e, conseqüentemente, a passagem para a relação terciária e simbólica. Lacan também relativiza a função paterna como uma função. O pai - ou quem ou o quê estiver exercendo a função paterna - intervém para cortar a relação simbiótica entre mãe e criança. Assim, marca a criança e lembra à mãe que esta o deseja; ou seja, que seu desejo tem um outro objeto além da criança: o pai. A castração, primeiramente imaginária (criança se apercebe de que não é o falo, ou objeto de desejo da mãe) e, num segundo momento, simbólica (mãe é castrada, não existe objeto de desejo da mãe) inaugura o sujeito como um ser castrado, em busca de seus objetos. Em outras palavras, o sucesso do complexo da castração, conforme é descrito por Lacan, introduz a criança, igualmente, no mundo social - da cultura, da linguagem, da busca e da sublimação.

Lacan ainda faz notar que, se a mãe não reconhece nem legitima esse corte e essa marcação, então a fala do pai é muda, sua função é ineficaz e o desenvolvimento de uma estrutura psicótica é um grande risco. Numa carta à Dra. Jenny Aubry, Lacan (1986 [1969]) afirma que a efetivação da castração e da fundação da criança como um sujeito desejante é condicionada pelo "caso que a mãe faz do pai" e pela fala desta:

Aquilo sobre o qual nós queremos insistir é que não é unicamente da maneira como a mãe se acomoda com a pessoa do pai que conviria se ocupar, mas do caso que ela faz de sua fala [...] dito de outro modo, do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei (Lacan in Checchinato, 2007, p. 146).

É, por essa razão, imprescindível para o desenvolvimento subjetivo da criança que a mãe encontre outros objetos de desejo que possam exercer essa função castradora, para não se utilizar do filho como justificativa para suas faltas, ou deixá-lo preso e submetido à posição não subjetiva de objeto de seu desejo.

A efetivação das funções materna e paterna introduz o bebê no mundo. Assim, a forma como o bebê vai interagir, entender, ser e estar no mundo estará profundamente marcada pelas características subjetivas daqueles que lhe exercem essas funções. Em outras palavras, se a castração inaugura o ser social e suas relações terciárias, a subjetividade dos pais determina a "roupagem simbólica" do sujeito a advir: os estilos de escolha de objeto; a compreensão e interação com a cultura na qual estão inseridos; suas histórias de vida, sua compreensão de presente, passado e futuro; suas formações sintomáticas e fantasmáticas.

No texto La famille (Lacan, 1978 [1938]), Lacan caracterizou a família como uma instituição, ou seja, como um complexo, no qual os membros estão ligados pelas construções imaginárias e simbólicas, pelas angústias, pelos mitos, pelos desejos e pelas frustrações. A criança é, dessa forma, resultado dos sintomas dos pais: ela responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar (Lacan, 1986 [1969]). Todavia, as demandas referentes à criança não partem somente dos pais, mas da sociedade como um todo, que exige que a criança corresponda a uma imagem-modelo, proposta pelas ideologias, sejam elas políticas, sociais, pedagógicas ou psicológicas. Portanto, a criança é também resultado do contexto sociocultural, histórico e político em que está inserida. No texto "Da criança-sintoma (dos pais) ao sintoma da criança", Zornig (2001) apresenta a ligação fundamental entre a criança e a demanda parental e lembra que seus sintomas, apesar de entrelaçados nas questões dos pais, não se esgotam nesses aspectos. A autora cita Balbo (in Zornig, 2001), o qual também alerta que as demandas referentes à criança não partem somente dos pais, mas da sociedade como um todo; elas exigem que a criança corresponda a uma imagem-modelo proposta pelas ideologias. Dessa maneira, as crianças, assim como seus sintomas, precisam ser contextualizados em seu complexo familiar, social, cultural, histórico e político.

 

A experiência de imigração como ilustração do impacto social na subjetividade: inside out X outside in

Em momentos de crise, como em situações de morte, traumas, acidentes, mudanças bruscas e repentinas, a estrutura familiar se abala. Toda mudança traz uma conseqüência psíquica, mas as mudanças que colocam o sujeito - e a família - em situações críticas inéditas podem ter um efeito desestruturador ainda maior. A experiência de imigração é um dos exemplos mais ilustrativos desse fato.

Durante minha estada de 10 anos em Boston, nos EUA, trabalhei em diversos centros médicos e comunitários que atendiam também a imigrantes e estrangeiros. Tive, por isso, a oportunidade de "escutar", de perto, as dores e os amores deste processo que se denomina de "aculturação" - uma denominação, devo dizer, bem apropriada: estrangeiros, sejam eles imigrantes (decididos a ficar), estudantes ou expatriados (residentes provisórios) não têm outra opção senão se submeter a um "banho de cultura", que faz rever, questionar e duvidar toda a própria subjetividade4.

Em minha tese de doutorado (Skitnevsky Finger, 2008) sobre a experiência de imigrantes nos Estados Unidos, analisei as conseqüências subjetivas das imposições sociais e culturais em relação a novos imigrantes. Para descrever a experiência subjetiva do processo de aculturação, utilizei a metáfora "reformatação da identidade": assim como com um computador, que, para ser devidamente "reformatado", tem seus files, programas, espaços vazios e preenchidos, revistos e reconfigurados, estrangeiros passam por um processo de revisão e reconfiguração da noção subjetiva da identidade, ou seja, da noção de eu/moi. Em terras estrangeiras, onde nos deparamos com linguagens verbais e não-verbais diferentes, frente a estilos diferentes de ser, falar, se comportar, pensar as relações sociais e o mundo, onde somos vistos não pelo que aprendemos a pensar que somos, mas pelo que os outros "lêem" e deduzem, baseados em nossa nacionalidade, gênero, cor de pele ou sotaque, é inevitável se questionar, se rever, se "reformatar". Para alguns, esta se constitui uma grande oportunidade de revisitar velhas manias e crenças desgastadas, uma chance de se re-inventar, se ressignificar; para outros, todavia, é um destampamento das defesas, a origem de muita angústia, por vezes paralisante; outras, desorganizadora.

Como ponderei naquele trabalho (Skitnevsky Finger, 2008), talvez tenha sido a minha posição de estrangeira que tenha me possibilitado ler e enxergar tão claramente o intenso efeito que as pressões culturais, sociais e políticas exercem sobre o sujeito. Não cabe aqui explicitar detalhadamente minhas considerações e conclusões, mas posso afirmar que mergulhar na história da imigração norte-americana e na história da construção da identidade nacional foi uma oportunidade de perceber o quanto os aspectos de fora para dentro, outside in, influenciam a experiência subjetiva, inside out, de dentro para fora.

Os aspectos outside in, fora para dentro, incluem de questões específicas, relacionadas à nova condição social do estrangeiro, às questões culturais gerais, relacionadas aos mitos e sentidos compartilhados da nova cultura. No caso dos Estados Unidos, a dicotomia entre "americanos" e "outros", a racialização condicionada ao país de origem, a marginalização dos grupos considerados "não-brancos", e as diversas manifestações e internalizações de formas de racismo compõem os mecanismos sociais que marcam a construção da subjetividade - de norte-americanos e estrangeiros (Skitnevsky Finger, 2008, p. 71-75).

Dos aspectos inside out, de dentro para fora, destaquei naquele texto que "a imigração faz falhar os sintomas". Ou seja, o convívio com elementos desconhecidos, nos quais as pessoas falam não apenas outra língua, mas com uma construção lógica e de pensamento diferentes, com uma outra gesticulação num espaço físico pessoal diferente e assim por diante, conduz a falhas inevitáveis das construções relacionais e imaginárias. Ao falhar, descortinam-se nossas angústias, desnudam-se os mecanismos de defesa. Essa é a crise como oportunidade em seu ápice, mas é também uma situação de proximidade perigosa ao sentimento de desamparo e de paralisação mental, que, em alguns casos, leva a sintomas de depressão, ansiedade e pânico (Skitnevsky Finger, 2008, p. 76-78).

 

Caso clínico

Ilustro essas constatações com um trabalho desenvolvido junto a famílias e a crianças estrangeiras, no sistema escolar. Além dos atendimentos clínicos, realizei também um trabalho de cultural liaison - mediação cultural - entre famílias estrangeiras e escolas. O objetivo era facilitar a comunicação entre as famílias estrangeiras e o sistema educacional - que, muitas vezes, tinham queixas sobre o comportamento das crianças recém-chegadas e revelavam preocupações quanto ao seu aproveitamento acadêmico e grau de socialização, ou até mesmo críticas quanto a suas crenças e mitos culturais.

Alguns casos foram marcantes, em especial o de uma família de brasileiros recém-chegados (alguns meses). A menina em questão era filha adolescente de um casal que tinha se mudado para juntar-se à família do esposo; nenhum deles falava eficientemente a língua inglesa. Tinham vindo com a promessa de um trabalho braçal, que não necessitasse de proficiência lingüística. Ele, para trabalhar em construções; ela, para ser doméstica em casas de família. A queixa da escola era de que a menina, filha desse casal, repetidamente, vinha à escola vestida em roupas vulgares e provocativas; além disso, não conseguia corresponder ao esperado academicamente. O professor, que a deveria auxiliar com aulas de reforço, se sentia acuado com seus comportamentos sexualizados e provocantes e, por isso, se recusava a encontrar-se com ela, se não houvesse outras pessoas presentes. A escola enviava bilhetes para os pais, que, aparentemente indiferentes, não respondiam nem atendiam aos vários chamados para reuniões na escola.

Depois de escutar as diversas queixas da escola, falei com os pais algumas vezes por telefone, até que se assegurassem de que eu estaria do lado deles no contato com a escola. Também tive alguns encontros com a mãe, a professora, a diretora, com e sem a presença da menina. Nesses contatos todos foi se desvendando a complexidade das relações, das motivações, dos conflitos e dos medos por trás dessa impossibilidade de comunicação entre criança e escola, criança e família, família e escola. Alguns fatores compunham uma complexa dinâmica "não-dita": vinda de uma cidade onde o corpo e a beleza física são considerados um atributo de valor, a menina tentava, insistentemente, fazer-se presente, notada e querida, por meio de seu jovem e belo corpo - já que, cultural e lingüisticamente, sentia-se impotente, desajeitada e desamparada. Os pais, acuados perante as dificuldades de entender a língua e interpretar a cultura, estavam infantilizados, perdidos no desamparo da impotência. Além disso, a tão recentemente "menina" de poucos 12 anos era, assim como muitos de seus pares, chamada a traduzir e a interpretar para os pais a insuficiente leitura cultural que já conseguia fazer. Na escola, descobriu que nem os bilhetes para os pais, que lhe acusavam o mau comportamento, poderiam ser lidos sem a sua tradução. Quando eu a encontrei, essa garota oscilava entre a manipulação perversa do contato entre seus pais e seus educadores e o desamparo de não ter nem pais nem educadores.

Esta é, infelizmente, uma situação corriqueira entre imigrantes: as crianças e os adolescentes, por terem mais facilidade de aprender a língua e apreender os sentidos da nova cultura, tendem a ser usados pela família como tradutores e mediadores entre os pais e a nova cultura. Mas isso tem um preço bastante alto, tanto para as crianças, que passam a ter que conhecer as novas situações e a se relacionar com o mundo adulto (banco, escolas, médicos, autoridades), quanto para os pais, que se sentem acuados em sua função de serem os pais e de terem de exercer a autoridade. O trabalho com essas famílias, muitas vezes, objetiva fundamentalmente possibilitar que retomem suas funções e posições originais, para que possam caminhar e se reinventar a partir delas.

Com essa família, meu trabalho clínico e cultural foi o de mediar as tensões para que as ansiedades pudessem ser amainadas e para que cada qual pudesse retomar sua posição no complexo de suas relações - de pais, de estudante e de educadores. Ao professor "fóbico", foi sugerido que revisse seus valores e seus medos, pois é pouco provável que o que o amedrontava estivesse realmente no corpo ou no olhar de uma menina. Verbalizado esse problema, todos concordaram que seu medo estava ligado a alguma insegurança em relação a seus próprios desejos e a sua impulsividade. Um trabalho de escuta feito junto à diretora foi suficiente para fazê-la perceber essa situação e convencê-la a tomar atitudes com a devida autoridade. Em conjunto com os professores, criou-se um sistema de comunicação com os pais, mediante tradutores e conversas telefônicas, a fim de permitir a comunicação sem a intervenção da estudante. Com os pais, o trabalho de escutá-los devolveu-lhes a voz, as palavras, uma linguagem: durante um encontro com eles e os membros da escola - e sem a presença da filha - lhes foi finalmente explicado o que deles era esperado na tarefa de participação e de supervisão da filha (desde o tipo de roupas apropriadas à escola até a produção acadêmica). Ao serem diminuídas a barreira da língua e a da interpretação cultural e ao demandar-se que eles voltassem a intermediar as ações entre a cultura e a filha - papel fundamental da família -, presenciamos uma modificação psíquica, emocional e física. Aos poucos, suas falas foram denotando um reposicionamento no papel de pai e de mãe, como se tivessem ido buscar, em um passado não tão remoto, a função que lhes cabia.

Acompanhei por mais um tempo, indiretamente, o andamento dessa estudante. Sem a ansiedade de ter que responder por seus pais, sem o peso da inversão de papéis e com o alívio de voltar a ter seus pais e educadores como definidores de limites, regras e possibilidades, ela foi desfazendo as tensões e se transformando numa típica adolescente, ora menina, ora moça, com as dificuldades e as delícias próprias de sua nova condição e de seu novo lar.

 

Considerações finais

Pensar a família como uma instituição e um complexo, cada membro ocupando posições e funções, permite uma contextualização multidimensional dos relacionamentos familiares, dos sentidos e dos sintomas. Não se quer, assim, pregar a solidificação das funções e dos papéis, já que o processo analítico propõe justamente o contrário: que se percebam e se ressignifiquem essas posições míticas. No entanto, uma clínica com crianças que não leve em conta as relações familiares, e, especialmente, as relações pais-filhos, corre o risco de permanecer num recorte único e simplificado, o sintoma corre o risco de ser (mal)entendido como um sintoma individual, e não dinâmico, grupal, familiar.

É assim que alguns psicanalistas (Balbo, 1992; Checchinato, 2007; Jerusalinsky, 2007; Zornig, 2001) têm apresentado e proposto a inclusão dos pais na clínica com crianças, uma alternativa contextual e multidimensional para a análise dos sintomas. Como alerta Zornig (2001), a análise dos pais não encerra a sintomática da criança, pois sua etiologia não é apenas parental, mas reconhece a intensidade da influência da problemática dos pais sobre a subjetividade e a sintomatologia da criança. Mais ainda (Checchinato, 2007), não se trata de propor uma clínica vista apenas como orientação aos pais, mas, sim, uma clínica que diferencie a demanda dos pais da demanda da criança (e da demanda social, conforme aponta Balbo, 1992), para que a criança possa advir como sujeito, com seus sintomas e questões próprias.

Em situações de enfrentamento do novo e desconhecido, como é o caso das imigrações, as conseqüências das experiências individuais subjetivas podem somar-se a conseqüências dinâmicas familiares. Nesses casos, principalmente as crianças, ainda sem muitas experiências de vida, sofrem duplamente pela perda da referência externa, advinda do processo de aculturação. Este processo ressignifica a referência cultural e social - linguagem, cultura, interação social - e a referência e o posicionamento dentro da família - principalmente quando pais e filhos se sentem desamparados, paralisados pela angústia ou pelo desconhecido.

Nos textos Chimneys Weeping (conferência pronunciada em Israel, em 30 de outubro de 1988) e A Propósito da Conferência em Israel (pronunciada após sua volta, em Paris, em 10 de novembro daquele ano), Melman (1992) discorreu sobre a língua materna e as conseqüências psíquicas de se adotar uma outra língua (devido à imigração, ou, em Israel, ao fato de o país fundar, a partir de sua instalação e criação, uma língua pátria nova a todos os seus habitantes). Além do distanciamento e das dificuldades inerentes à adoção de uma segunda língua, Melman (1992) aponta a necessidade de se eleger um "pai simbólico" e uma "mãe simbólica", que representem essa nova língua - e que, por suposto, não coincidem com os pais reais. Ele alerta: "Sendo assim, é natural que as relações sejam reciprocamente difíceis entre estes pais reais e simbólicos que podem parecer os únicos a valer, já que são os que podem ser identificados e reconhecidos no contexto social" (Melman, 1992, p. 46).

A inclusão dos pais nesses casos especiais se faz, portanto, ainda mais valiosa e necessária. Dado que membros familiares estejam interligados não apenas por seus laços afetivos, mas também pela sintomatologia familiar e parental e visto que a clivagem lingüística inaugura um distanciamento simbólico entre pais e filhos, um trabalho analítico em família pode promover não apenas a retomada das relações e funções entre seus membros - como descrito no caso clínico - mas também a possibilidade de que, como um grupo, entrevejam novos posicionamentos e novas possibilidades de se relacionar e estar no mundo, apreendidas nas oportunidades que situações como a imigração podem proporcionar.

 

Referências

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Submetido em: 03/10/2008
Aceito em: 05/11/2008

 

 

1 Segundo Betty B. Fuks, em seu livro Freud & a cultura (2003, p. 7), "se é verdade que o principal legado de Freud foi a fundamentação de um método de cura, no qual um homem, falando para um outro, encontra alívio à dor e à angústia, também é certo que a psicanálise inovou, de forma radical e irreversível, o modo de se refletir e pensar a cultura."
2 Semana da Psicologia, "Psicólogo brasileiro: Formação, problemas e perspectivas", da Universidade Cruzeiro do Sul. Mesa redonda: "Perspectivas rumo à tolerância", 26/08/2008, São Paulo/SP.
3 Segundo Tony Thwaites (2007), professor da Universidade de Queensland e quem descreve Freud enquanto teórico cultural, conceitualizações sobre o Complexo de Édipo e de Castração em Freud começam tão cedo quanto em "A Interpretação dos sonhos" (1900), sendo revisitado em "O pequeno Hans" (1908), em "Um tipo especial de escolha de objetos feito por homens" (1910), em "A dissolução do Complexo de Édipo" (1924) e finalizado, em 1925, com "Algumas conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica".
4 A experiência da imigração tem intrigado e interessado vários teóricos e terapeutas, que se deparam com sujeitos alavancados a experiências subjetivas transformadoras devido à mudança de lar/país/cultura. Na apresentação do livro de Charles Melman (1992), Imigrantes - Incidências Subjetivas das Mudanças de Língua e País, Contardo Calligaris faz um paralelo entre as palavras conferidas por Montpellier (1984) e a experiência de imigrantes, argumentando que "as migrações parecem produzir uma espécie de histeria 'experimental'. [...] Se concordarmos em definir a estrutura histérica como uma certa paixão de ser outro, diferente e uma paixão que leva o sujeito a se afastar da sua própria filiação, eis que o migrante se torna histérico por razões históricas ou sociais" (p. 9-10).

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