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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.2 no.1 São Leopoldo June 2009

 

ARTIGOS

 

A pesquisa em psicologia clínica: reflexões a partir da leitura da obra de Winnicott

 

Research in clinical psychology: reflections on the collected works of Winnicott

 

 

Luziane Zacché Avellar

Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito Santo. Avenida Antonio Gil Veloso, 2556/901, Praia da Costa, Vila Velha, ES, Brasil. luzianeavellar@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Nos últimos anos, é frequente o debate sobre a complexidade da pesquisa na área de ciências humanas. A psicologia clínica possui algumas particularidades e convoca para o debate, para a busca de novos caminhos e de novas possibilidades metodológicas. Neste artigo, pretende-se discutir as particularidades da pesquisa em psicologia clínica e objetiva-se apresentar como a leitura da obra de Winnicott permite a compreensão da pesquisa como um ato criativo.

Palavras-chave: pesquisa, Winnicott, psicologia clínica, jogo do rabisco.


ABSTRACT

In the last few years, there is a frequent discussion about the complexity of research in human sciences. Clinical psychology has some characteristics that motivate the discussion and search of new ways and new methodological possibilities. In this article, we discuss the details of research in clinical psychology and present how the collected works from Winnicott allows the comprehension of research as a creative act.

Key words: research, Winnicott, clinical psychology, squiggle game.


 

 

As questões pertinentes à problemática da pesquisa em psicologia clínica fazem parte do cenário que compõe a pesquisa nas ciências humanas. Essa questões, tais como as discussões sobre objetividade versus subjetividade; quantitativo versus qualitativo; interno versus externo e sujeito versus objeto têm sido frequentemente debatidas nos últimos anos, embora não sejam exclusivas da psicologia, muito menos da psicologia clínica. A superação de tais dicotomias vem possibilitando o convívio de diferentes referenciais teóricos e metodológicos num movimento criativo de produção de conhecimento, sem deixar de atender à exigência do rigor científico.

Existem algumas especificidades quando a atividade de pesquisa se dá no campo da clínica, as quais se originam em uma conjunção de fatores, como as diferentes teorias e a multiplicidade das práticas psicológicas. A realidade com a qual a psicologia clínica lida é complexa e demanda conhecimentos específicos, bem como uma reflexão permanente sobre o problema da intervenção. Para Giami (2004), é importante indagar sobre o lugar que ocupa a pesquisa clínica, entre (ou com) a prática de intervenção (ou de terapia) e a pesquisa científica (experimental ou de campo), na área das ciências sociais e da psicologia.

Huber (in Giami, 2004), afirma que a pesquisa em psicologia tem por objetivos a observação, a descrição e a explicação dos fenômenos e processos encontrados em psicologia clínica para a elaboração e a aquisição de um saber teórico. Também aponta para a dupla fundamentação da clínica: (i) no conhecimento e (ii) no campo da prática. Isso significa que a prática desafia a teoria e a convoca constantemente para a sua reformulação.

Para D'Allones (2004a, p. XXI)

psicologia clínica, procedimento clínico, métodos clínicos, mantém com a teoria uma relação particular: mais do que aplicá-la, trata-se de interpelá-la, de discuti-la, de levá-la a julgamento. É nas articulações, recuperações, falhas, atrasos, insuficiências das teorias existentes, confrontadas às exigências das situações que um pensamento teórico aberto, vivo, forçosamente multidirecionado, é possível e adaptado a seus objetos.

Dada a complexidade e multiplicidade do campo, o psicólogo clínico é colocado diante de situações que lhe exigem rápida adequação de seus instrumentos sem que se percam o rigor e a ética. D'Allones (2004c) afirma que, pela própria natureza da área, os procedimentos clínicos mantêm relação estreita com as práticas; estas podem ser diversas e exercidas em diferentes contextos com diferentes objetivos. Se for enfatizada a prática clínica, o foco recai necessariamente na ação e na intervenção e o procedimento é visto como a própria ligação com a prática1.

Para Sévigny (2001, p. 15) "o sentido etimológico da palavra clínica é observar diretamente, junto ao leito do paciente". Não se trata de restringir os problemas às situações individuais, mas de ampliá-los para grupos, organizações, acontecimentos e situações sociais que são examinadas em sua singularidade. O autor enfatiza a preocupação com a mudança, com o estar junto ao leito, e dá ênfase ao acompanhamento de um processo de mudança mediante o qual se auxilia o sujeito na busca da compreensão e da resolução do seu próprio problema, ao invés de intervir diretamente sobre este. Nesse sentido, não se trata de curar, mas de acompanhar um processo de mudança.

Nessa linha de reflexão, vale a pena tomar a citação LoBianco et al. (1984, p. 8) para definir a área de atuação do psicólogo clínico:

[...] aquele que atua na área específica da saúde, colaborando para a compreensão dos processos intra e interpessoais, utilizando enfoque preventivo ou curativo, isoladamente ou em equipe multiprofissional em instituições formais ou informais. Realiza pesquisa, diagnóstico, acompanhamento psicológico, e atenção psicoterápica individual ou em grupo, através de diferentes abordagens teóricas.

Ao partir dessa concepção, entende-se que há uma estreita relação entre a clínica, a pesquisa e o campo social, o que confere o caráter de complexidade aos fenômenos a serem investigados. A esse respeito, D'Allones (2004a, p. XXII) afirma que:

[...] a dimensão social é inerente à psicologia clínica, ao procedimento clínico. Eles [a psicologia clínica e o procedimento clínico] colocam diferentemente a questão do social e contribuem para sua renovação, mantendo-o ao mesmo tempo exterior e interior ao sujeito.

Em outra passagem, esse mesmo autor, ao tratar da relação entre o social e a subjetividade, afirma:

[...] a resposta que a clínica pode trazer é buscar em um movimento de volta, de análise e aprofundamento da subjetividade e intersubjetividade, envolvidas na complexidade das situações sociais. Reafirmando que isto é tanto verdadeiro, pois quanto mais se vai em direção ao subjetivo, mais se encontra ou reencontra o social (D'Allones, 2004c, p. 30).

Diante dessas questões, faz-se necessário indagar: (i) qual é o lugar que ocupa a pesquisa em psicologia clínica?; (ii) no campo da intervenção?; (iii) no campo da investigação da pesquisa científica? Entende-se que é na fronteira compartilhada pelos campos da teoria e da prática que se inscreve a pesquisa em psicologia clínica. Para dar sustentação teórica a essa ideia, recorre-se à leitura da obra de Winnicott (1975, 1976, 1978), contudo, antes de prosseguir, faz-se uma breve apresentação do autor. Tomaram-se como referência alguns textos de sua obra, especialmente: O brincar e a realidade (Winnicott, 1975), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (Winnicott, 1978) e O ambiente e os processos maturacionais (Winnicott, 1976).

 

Contribuições de Winnicott para a psicologia

As contribuições da obra de Winnicott podem ser observadas nas mais diferentes áreas e abordam temas que versam sobre o desenvolvimento infantil, psicopatologia, aspectos técnicos, passando por questões da filosofia, cultura, dentre outros. Pediatra que se tornou psicanalista, teve o mérito de desenvolver uma teoria a partir de observações clínicas, fato que dá validade e legitimidade para sua obra. Suas contribuições não se restringem aos aspectos da clínica psicanalítica, pois adentra, também, na educação, na estética, nas situações sociais, na saúde mental etc. Um aspecto marcante de sua obra é a ousadia que evidenciou, ao valorizar os aspectos externos para o desenvolvimento infantil, numa época que o mais comum para os psicanalistas era manter o interesse nos aspectos intrapsíquicos2.

Para contribuir com a discussão proposta neste texto, será mantido o foco em uma de suas obras: Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil (Winnicott, 1971), texto publicado em 1971 em que o autor relata como, por meio do jogo squiggle game (Jogo de Rabiscos), utilizou conhecimentos psicanalíticos no contato com crianças e adultos.

O Jogo de Rabiscos é um procedimento clínico concebido e utilizado por Winnicott (1971), que valorizava a possibilidade de o analista participar livremente do Jogo, o qual pode ser sintetizado da seguinte forma: em uma situação de consulta, paciente e terapeuta realizam traços livres alternadamente e cada um deve modificar o rabisco do outro assim que produzido. O aspecto mais valorizado é a liberdade dos parceiros e a ausência de regras, o que resulta no temor do autor em transformá-lo em uma técnica.

Winnicott (1971) assinalou a importância do estabelecimento do espaço potencial como parte dos procedimentos necessários para uma intervenção terapêutica. Esse aspecto é elemento fundamental não só na consulta, mas também no processo analítico com crianças ou adultos. Com este trabalho, pode-se observar de que maneira o autor enfoca o jogo como elemento terapêutico, dentro do qual a criança se surpreende, realizando uma comunicação significativa para o analista. Tal situação, valida o fato de que mais importante do que interpretar é sustentar essa situação terapêutica. A leitura do texto citado anteriormente nos permite fazer algumas reflexões e identificar algumas afinidades entre as atividades da clínica e da pesquisa em psicologia.

O primeiro ponto a ser destacado é a possibilidade de o analista participar livremente do jogo. Esse é um aspecto inaceitável para os moldes da ciência positivista, pois tem como um de seus princípios a dissociação entre sujeito-objeto. No entanto, enfatiza-se essa participação, porque ela confirma a maneira como se entende, a clínica: como prática e pesquisa. Assim, se inscreve no campo da intersubjetividade humana.

Nessa linha reflexiva, o profissional está implicado no processo, ele afeta e é afetado3. Acredita-se ser esta uma qualidade essencial também na atividade de pesquisa. O que se almeja é um modelo de pesquisa que se aproxime do fenômeno humano e que apresente resultados socialmente relevantes.

Ao se debruçar sobre o tema da implicação (Balint, 1966, in D'Allones, 2004c), destaca três momentos distintos: o primeiro, da tomada de consciência intelectual e afetiva da implicação na complexidade de suas ramificações, ou seja, da maneira como cada um usa sua personalidade, suas convicções, seus processos inconscientes; o segundo, a tomada de distância e papel, principalmente pela confrontação com os outros e o terceiro, o manuseio e controle da relação, especialmente pela organização crítica dos métodos. Sobre esse assunto ainda se pode citar Bleger (1998, p. 26) que trata da participação do entrevistador no processo da entrevista e afirma "que o instrumento de trabalho do entrevistador é ele mesmo, sua própria personalidade, que participa inevitavelmente da relação interpessoal".

Isso significa que se está falando dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais? Se situado no campo da clínica, não há muitos problemas, mas, como as ponderações referem-se ao âmbito da pesquisa, talvez se encontrem mais opositores no tratamento da questão. Recorre-se, novamente, a D'Allones (2004c, p. 25) quando afirma que:

[...] falar de fenômenos transferenciais é aproximar-se de uma conceituação psicanalítica, ainda que permanecendo prudente. Não é grande risco: toda situação interpessoal é o lugar de fenômenos transferenciais, algumas mais do que outras, e de uma maneira organizada. Sem querer ir além, corre-se o risco de ser um obstáculo sem efeito.

Outro aspecto que se destaca na obra de Winnicott é o jogo como elemento terapêutico, dentro do qual a criança se surpreende. A possibilidade de surpreender-se trata de condição para as atividades de clínica e de pesquisa, uma vez que em ambas o que se revela é o inédito. Para D'Allones (2004c, p. 33) "quando nos voltamos sobre uma atividade clínica (intervenção e pesquisa) tomamos consciência de que nada é fortuito ou de pouca importância: o sujeito da pesquisa, o sujeito que faz a pesquisa, os sujeitos envolvidos, as estratégias".

Estar diante do inédito é decorrência de toda atividade clínica e de pesquisa porque se lida com aquilo que é singular. Safra (2004) afirma que o ser humano é inédito, sempre existe a possibilidade de ser revelado e descoberto. Isso indica um princípio de trabalho que é necessariamente aberto. Nessa mesma direção, Castro (1999, p. 6) afirma que "pesquisar e produzir conhecimento não é colocar um ponto final na discussão, mas sim abrir um leque quase infinito de possibilidades, análises e discussões".

Para Plaza (2004) a psicologia clínica, lugar de um questionamento aberto, parece ser antidoutrinária. Essa psicologia tenta compreender o indivíduo o mais próximo de suas aspirações, seus códigos e suas representações. Refere-se a um quadro teórico necessariamente em movimento, confronta as suas referências com a complexidade das diversas situações que se apresentam. A autora afirma, ainda, que a fluidez4 da psicologia clínica - no plano de suas referências teóricas e seus mecanismos - poderá parecer, com relação a critérios das ciências duras, como uma prova de sua não cientificidade. No entanto, a psicologia clínica abriu um leque de reflexões e práticas: o plano do procedimento clínico e o da pesquisa clínica.

Safra (1996) afirma que o rabisco não tem uma fórmula definida, trata-se de um elemento não saturado que necessita da criatividade de um sujeito para que se transforme em algo reconhecível e para que possa veicular uma possível concepção sobre a experiência humana. No entanto, ao se transpor essa ideia para a atividade de pesquisa, numa espécie de jogo de reflexão, ela se torna de grande valia para a atualidade. Isso decorre do fato de que a ideia de atividade de pesquisa permite que a psicologia se realize mediante investigação e resultados de pesquisas. Também se torna possível experimentar e avaliar a capacidade de pesquisa que o pesquisador tem, e de procurar/investigar e manter o interesse naquilo que é inédito, sem encapsular o que há de singular em uma única teoria.

Nesse sentido, o "rabisco" permite a criatividade na atividade de pesquisa, pois sustenta a capacidade do pesquisador de participar livremente do jogo. Além disso, possibilita-lhe estar em disponibilidade para surpreender-se, para manter-se aberto à atividade de investigação e de construção do conhecimento. Isso, muitas vezes, implica solidão e desamparo, já que nenhuma teoria dá conta de explicar, integralmente, o homem em sua subjetividade. Paradoxalmente, é isso que oportuniza ao pesquisador transformar sua atividade em um ato criativo.

 

Reflexões sobre a pesquisa e prática

As reflexões aqui apresentadas se referem ao processo de elaboração de tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, no ano de 2001, com o título: Jogando na análise de crianças: intervir-interpretar em uma abordagem winnicottiana, sob orientação do professor Gilberto Safra, e dos procedimentos de pesquisa que subsidiaram a elaboração do texto (Avellar, 2001). Portanto, este artigo permite novas reflexões sobre a produção da tese e sobre o modo de fazer pesquisa em psicologia clínica.

A elaboração da tese teve como motivação as questões advindas da prática clínica, mais especificamente, o atendimento clínico de crianças e as dificuldades encontradas nessa prática cotidiana. As questões se originaram nas discussões feitas em supervisões clínicas - prática comum que consiste na apresentação do caso ou de uma sessão para discussão com um supervisor que pode acontecer individualmente ou em grupo. Nessas situações de supervisão, aquele que apresenta o caso relata para os demais o que se passou na sessão, levando em consideração suas observações, percepções e suas vivências durante o atendimento clínico. Essa atividade objetiva analisar e elaborar os procedimentos adotados durante a intervenção, além de suscitar reflexões espontâneas e trocas de experiências entre esses profissionais, e de permitir um distanciamento do profissional, em relação ao seu atendimento. Também indica a possibilidade, ou a necessidade, de realização de novas pesquisas.

Castro (1999) afirma a importância da relação entre teoria e prática, a fim de subsidiar o desenvolvimento fundamentado da prática profissional e vice-versa, o que leva à formação de uma díade indissolúvel na produção de conhecimento contemporâneo. Ao analisar a modalidade de pesquisa qualitativa, Szymanski e Cury (2004) apontam para o duplo objetivo de contribuir para o conhecimento científico e oferecer um trabalho de cuidado psicológico.

Aiello-Vaisberg et al. (2003, p. 10) entendem que:

[...] as estratégias metodológicas que não dissociam a produção do saber de sua aplicabilidade prática são um ponto fundamental e distintivo de toda pesquisa que se quer clínica. Deste modo, o que é muitas vezes designado como "campo de aplicação" é, de fato, o campo inter-humano onde acontecem a clínica e a pesquisa concomitantemente.

Para Giami e Samalin-Amboise (2004), a reflexão sobre a prática constitui um modo de abordagem necessário ao clínico. Ela concorre para o progresso da prática, multiplica os intercâmbios e auxilia a constituição de uma política comum a ser utilizada no âmbito da prática. Entretanto, ela não é um procedimento de pesquisa. A reflexão sobre a prática aparece como um trampolim possível para passar da prática à pesquisa.

No trabalho que se toma como referência - a tese de doutorado: Jogando na análise de crianças: intervir-interpretar em uma abordagem winnicottiana (Avellar, 2001) - as reflexões suscitadas pelos atendimentos clínicos eram muitas e deram origem a um problema de pesquisa que exigiu um duplo movimento: o de aproximação e o de distanciamento. O primeiro formou-se durante as sessões, e o segundo, após a sessão, na qual se faziam anotações que serviram de base para posterior reflexão.

Na tese, fez-se a opção de tomar o relato de cada sessão como material de discussão, mantendo cautela para não deixar predominar, durante os atendimentos, o interesse pela pesquisa. Isso teria como consequência deixar em segundo plano os atendimentos. Um aspecto que favoreceu esse tipo trabalho foi o de que o problema de pesquisa se referia à atividade do clínico em seus aspectos técnicos. Portanto, interessava investigar as diversas possibilidades de se construir a intervenção na clínica infantil e não os processos psíquicos do paciente, se é que se pode fazer tal distinção.

A situação de pesquisa proposta exigia uma disposição do profissional em relatar todas as intervenções feitas nas sessões. Assim, ao término do atendimento, registrava-se tudo o que havia se passado, principalmente as dificuldades que se encontravam na condução das sessões. Esse procedimento gerou um volume bastante grande de material de pesquisa a ser trabalhado em um momento posterior.

Concomitantemente, fez-se um estudo teórico. A teoria de Winnicott subsidiou as reflexões suscitadas durante o trabalho clínico e de elaboração da tese. As reflexões colocaram em relevo a teoria e sua relação com a prática, segundo um movimento de "oscilação entre o material e a reflexão, ela (a teoria) se mostrava como um método particularmente criativo: descreve, ilustra, investiga, sugere, suscita, reforça e demonstra. Prova? Não fica evidente" (D'Allones, 2004b, p. 74).

Ao tratar do Estudo de Caso, D'Allones (2004b) cita uma passagem do livro de Winnicott (1971), Consultas Terapêuticas em psiquiatria infantil, já mencionado, em que o autor descreve o seu método ao propor o Jogo de Rabiscos: ele anota tudo que acontece durante a entrevista, inclusive as ações que ele mesmo faz, e diz: "não estou tentando provar coisa alguma com a apresentação desses casos" (Winnicott, 1971, p. 19). O que o autor faz é mostrar o que realizou e de que maneira, brindando todos com a apresentação de vários casos clínicos que integram o seu relato e as produções gráficas, fruto dos rabiscos entre ele e seus pacientes.

O material produzido com as anotações das sessões e, na maioria dos casos, das discussões das supervisões de caso, exigiu uma organização e uma seleção do que seria utilizado. A partir disso, decide-se por apresentar três casos clínicos que se vinham conduzindo. Fez-se necessário realizar uma seleção que se operou em diferentes níveis. Nesse âmbito, D'Allones (2004b, p. 80) afirma que "O olhar e a percepção clínica supõem, propõem já uma leitura. Seleção pelo dispositivo, que condiciona, canaliza, pré-estrutura o material".

Ao relatar um caso, procede-se a uma seleção do material, impondo uma certa descontinuidade, certos recortes e espaços vazios que, certamente, possuem seus significados, pelos quais, muitas vezes, passa-se por cima, a fim de realizar uma redução dos elementos apresentados. Em alguns casos, há perdas difíceis de serem reparadas. É um risco que se corre. Turato (2003) e D'Allones (2004b) remetem à figura do bricoleur; ambos citam Levi-Strauss (1985) que ressignificou o termo, sem imputar qualquer interpretação pejorativa que remeta à possibilidade de reunir recortes diferentes, sem rigidez alguma que possa produzir um novo objeto de forma livre.

A escrita do caso é parte central do trabalho de tese. Ela é uma tentativa de apresentação daquilo que se pensou, se refletiu, se viveu e se experimentou em dois sentidos: o da pesquisa e o da intervenção.

A descrição dos diferentes momentos da elaboração da tese de doutorado permitiu sintetizar os passos seguidos para a realização de uma pesquisa em psicologia clínica como mostra a descrição abaixo: (i) questões com origem na prática profissional que conduziram à interrogações e à elaboração de um problema de pesquisa; (ii) elaboração de um plano de pesquisa que incluiu a escolha de um método de registro; (iii) escolha de um referencial teórico; (iv) interpretação do material registrado (análise dos dados); (v) construção do relato do caso (a figura do bricoleur) e (vi) construção de um corpo que integrasse os diferentes momentos da pesquisa, concretizando um trabalho de finalização do doutorado.

 

Considerações finais

As dificuldades que se encontraram na pesquisa em psicologia clínica serviram de motivação para a elaboração deste artigo. A leitura da obra de Winnicott, sobretudo o livro Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil (1971), inspirou a pensar a atividade de pesquisa como um ato criativo, por integrar em seu processo a construção de conhecimento que se inscreve no campo da intersubjetividade humana.

Nesse sentido, a prática profissional é um espaço privilegiado para se planejar e construir a pesquisa. Trata-se de tomar a prática como problema de pesquisa, com o intuito de melhorá-la em função dos seus próprios resultados. A situação clínica possui uma dupla fundamentação, a de construção do conhecimento e a do campo da prática. Pode-se conceber ambos (o campo do conhecimento e o das práticas psicológicas) como continuamente em construção, inacabados. Essas situações decorrem da necessidade da procura por respostas e resoluções aos problemas (re)conhecidos.

Na situação prática que se relatou, almejou-se ilustrar como as questões que tiveram origem na prática profissional (o atendimento clínico de crianças) motivaram e sustentaram um processo de pesquisa que resultou em um trabalho de conclusão do doutoramento em psicologia clínica.

 

Referências

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Submetido em: 24/03/2009
Aceito em: 05/05/2009

 

 

1 Entendem-se as práticas psicológicas de maneira ampla e os procedimentos como mais pontuais, de maneira que uma prática psicológica pode conter um ou mais procedimentos diferentes.
2 Para uma leitura introdutória sobre a obra de Winnicott, ver: Davis e Wallbridge (1982).
3 A implicação pode ser vista pela ótica da transferência e contratransferência. Sobre este tema remete-se o leitor ao trabalho de Slama (2004).
4 Grifo da autora.

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