SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número2Psicoterapia e liberdade humana: uma discussão a partir de Ortega y Gasset índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.2 São Leopoldo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Três perspectivas em psicoterapia infantil: existencial, não diretiva e Gestalt-terapia

 

Three perspectives in children's psychotherapy: existential, non-directive and Gestalt-therapy

 

 

Cristine Monteiro Mattar

Universidade Federal de Sergipe. Cidade Universitária Professor José Aloísio de Campos. Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze, 49100-000, São Cristóvão, SE, Brasil. cristinemattar@ig.com.br

 

 


RESUMO

O artigo apresenta três perspectivas em psicoterapia infantil: a psicologia existencial, de acordo com as reflexões de Sören Kierkegaard, a proposta não diretiva de inspiração rogeriana e a perspectiva da Gestalt-terapia. As três possuem aproximações no que se referem às atitudes do psicoterapeuta e à opção pelo método fenomenológico, o qual visa apreender o sentido do brincar e de outras expressões da criança. Diferem, contudo, quanto à concepção do homem, já que a psicologia existencial discorda de que haja neste uma tendência à totalidade ou de que ele seja regido por uma força que busca sempre o equilíbrio. A psicologia existencial vai pautar-se na estratégia de aproximação indireta e paciente que caracteriza a relação de ajuda definida por Kierkegaard, a qual permite nítida aproximação entre a filosofia e a psicologia clínica. No trabalho de Axline acerca da ludoterapia, destacamse as oito atitudes definidas como indispensáveis para a atuação do psicoterapeuta infantil. A suspensão de todo julgamento e a aceitação incondicional do modo de ser da criança, como quer que esta se apresente, fundamentam uma prática não diretiva que facilite a expressão dos sentimentos. A Gestalt-terapia, por sua vez, vai propor técnicas e atitudes também com o objetivo de facilitar a autoexpressão dos sentimentos vivenciados pela criança e o desenvolvimento da awareness de si e do mundo. Dessa forma, este artigo apresenta as contribuições de três perspectivas fenomenológicas para aqueles que se propõem a atuar na prática da psicoterapia com crianças.

Palavras-chave: psicoterapia infantil, psicologia humanista, psicologia existencial, Gestalt-terapia.


ABSTRACT

This article presents three methodological perspectives in children's psychotherapy: existential psychology, according to Kierkegaard's refl ections; the non-directive proposition, of Rogerian inspiration and Gestalt-therapy's perspective. The three perspectives show some proximity regarding the psychotherapist's atitudes and the option for the phenomenological method, which aims at comprehending the sense of playing and other of the child's expressions. They differ, however, in relation to the concept of men that will ground their practices, since existential psychology disagrees that there is in men a tendency to totality or a force always in search of balance, notions which are pertinent to the other two. Existential psychology will be guided by a strategy of patient and indirect approach, characterizing the aid relationship defined by Kierkegaard, which allows clear approximation between philosophy and clinical psychology. In Axline's work about ludotherapy, eight atitudes are highlighted as essential for the children's psychotherapist's performance. The suspension of all judgment and the unconditional acceptance of the child's way of being, although present, sustain a non-directive practice, which makes the expression of feelings easier. Gestalt-therapy, on its turn, proposes varied techniques and at itudes also with the objective of making self-expression of the feelings experienced by the child easier, developing an awareness of him/herself and the world. Therefore, this study seeks to discuss the contributions of these three perspectives to those who intend to perform in the psychotherapy practice with children.

Key words: children's psychotherapy, humanist psychology, existential-phenomenological psychology, Gestalt-therapy.


 

 

Apresentação

A escritora de contos infantis Eva Furnari (2000) narra a história do personagem Lolo Barnabé e sua família. No início da narrativa, Lolo e sua mulher viviam em uma caverna e todas as noites eles se reuniam em torno do fogo para conversar. Aos poucos, a fim de obter mais conforto, Lolo começou a inventar e construir móveis e eletrodomésticos, roupas e objetos. Com o tempo, precisaram de mais espaço e construíram uma casa. Como estavam muito ocupados, era preciso uma empregada para cuidar da casa e do filho que tiveram. As conversas à noite já não aconteciam mais.

O bordão que se repete ao longo do texto a cada nova invenção, "todos ficaram felizes, mas nem tanto" (Furnari, 2000, p. 8), revela que a insatisfação estava sempre presente e que os objetos fabricados não bastavam, trazendo sempre a necessidade de novas invenções. Ao final, Lolo e Brisa já não sabem mais o que inventar. Neste momento, param para pensar. A história termina sem um final conclusivo, sugerindo ao leitor que reflita, quem sabe vendo na história um espelho de seus próprios questionamentos.

A história de Lolo e sua família, lida com alguns clientes na clínica psicoterápica ou com os pais no contexto da clínica com crianças, é vista sempre como algo muito familiar e cotidiano. As preocupações com o consumo, a falta de tempo, a insatisfação que nada sacia, a criação de necessidades para comprar mais, a procura pela novidade, a agenda cheia, tanto dos pais quanto da criança, são fenômenos corriqueiros na sociedade contemporânea e, muitas vezes, valorizados. Em geral, tais preocupações estão atreladas aos ideais de desempenho, sucesso, perfeição, produção e rapidez, o que faz com que, muitas vezes, tais questões levem a família a procurar psicoterapia para os filhos, caso estes não correspondam ao modelo que "deveriam" seguir. A criança ideal será aquela que se mostrar disciplinada, com iniciativa, desinibida, produtiva, que for (hiper) ativa - no sentido de ter que dar conta de várias tarefas em diversos espaços - e, ao mesmo tempo, organizada em suas múltiplas atividades além da escola, a fim de se preparar desde já para o futuro. Quando a criança não se encaixa neste modelo, quando se mostra agitada demais, ou quieta demais, com raiva ou triste, muitos pais decidem procurar o psicoterapeuta, ouvir a palavra do "especialista" e, se possível, consertar o que vai mal. O psicólogo, por sua vez, deve estar atento, pois corre o risco de também se deixar aprisionar pelos mesmos valores e querer adequar a criança ao padrão considerado ideal pelos pais, pela escola, pela mídia. Tentará apressá-la, se for "lenta", fazêla falar, se for "tímida", ou acalmá-la, se for "agitada, ansiosa, hiperativa". Desta forma, estará afinado com as expectativas externas sobre a criança, mas não estará próximo desta.

Tendo em vista essa demanda e a necessidade de reflexão sobre a prática da psicoterapia infantil, este trabalho tem por objetivo apresentar três perspectivas fenomenológicas que poderão ser úteis na clínica com crianças, lembrando sempre que cada criança é um indivíduo singular e que o mais importante é a relação genuína de aceitação, confiança e cumplicidade que se estabelece com ela.

 

O método fenomenológico e a epochéna clínica

A fenomenologia surgiu com o matemático e filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que buscava uma fundamentação rigorosa para o conhecimento. Voltou-se primeiramente para as ciências exatas e, em seguida, para a filosofia, ao procurar a fundamentação das primeiras.

Em 1884, ele começou a assistir às aulas de Franz Brentano, que ensinava filosofia em Viena, modificando, assim, sua concepção de filosofia. Husserl não a assumia, até então, como verdadeira ciência, tendo em vista a diversidade de sistemas filosóficos, incompatíveis com o seu desejo de rigor científico. De acordo com Fragata (1959), Brentano contrastava com esta visão pessimista, o que trouxe a Husserl novo entusiasmo:

A pura objetividade com que (Brentano) tocava todos os problemas, a sua exposição por meio de aporias, a finura dialética com que ponderava todos os argumentos possíveis, o discernimento das equivocações, o retorno às fontes primitivas dos conceitos filosóficos na intuição - tudo isto, escreve Husserl, encheu-me de admiração e segura confiança (Husserl, 1919, p. 154-155).

Husserl compreendeu que a filosofia merecia ser considerada com seriedade, como ciência rigorosa. Para dar consistência científica à filosofia, e, a partir dela, a todas as ciências, decide começar estabelecendo seus fundamentos. Este esforço dará início à Fenomenologia husserliana.

A palavra fenomenologia deriva do verbo grego phaíno, que significa fazer brilhar, fazer ver, indicar, mostrar-se, aparecer. Fenômeno é o que se mostra ou aparece. Husserl vai tornar independente aquilo que aparece na consciência do objeto exterior, da existência da coisa em si mesma, à qual o fenômeno estivera aprisionado na tradição. O fenômeno que antes era pensado sempre como relativo a um objeto, exterior, ficará agora encerrado no campo da consciência:

Sem negar qualquer relação a um objeto exterior, Husserl prescindirá dele radicalmente, considerando o fenômeno na sua pureza absoluta, como aparecimento em si mesmo, isto é, como a própria coisa simplesmente enquanto revelada à consciência, - e por isso caracterizá-lo-á de puro ou absoluto. [...] A fenomenologia [...], no sentido husserliano, será, portanto, o estudo dos fenômenos puros ou absolutos, isto é, uma "fenomenologia pura' (Fragata, 1959, p. 80, grifos do autor).

O objetivo da fenomenologia é descrever com rigor os fenômenos, ou seja, as coisas consideradas como meros aparecimentos na consciência. Esta descrição será feita pela intuição, quer dizer, olhando de forma penetrante para os fenômenos, apreendendo-os de forma intuitiva em sua plena evidência, como são em si mesmos. "Nada está em contato mais íntimo conosco do que a própria consciência", afirma Fragata (1959, p. 81). Não se trata, na fenomenologia, de deduzir, partindo dos efeitos às causas para buscar a raiz profunda dos fenômenos. A descrição atende apenas ao que aparece na consciência, isto é, aos objetos singulares apreendidos imediatamente que são considerados como conteúdo da consciência, fenômenos. Segundo Fragata (1959, p. 82):

De um modo geral e no seu sentido mais vasto, fenômeno estende-se a tudo aquilo de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja. Portanto, não só objetos de consciência, mas também os próprios atos enquanto conscientes, sejam eles intelectivos, volitivos ou afetivos, são para Husserl "fenômenos'.

Husserl não põe em dúvida a existência do mundo em si, o que ele faz é suspender o próprio juízo relativo a esta existência, "mesmo que se trate da existência do próprio 'eu' e dos seus pensamentos" (Fragata, 1959, p. 92). Esta suspensão foi designada com a palavra grega epoché, usada na Antiguidade pelos céticos pirrônicos da filosofia que ""suspendiam' ou se "abstinham' de qualquer assentimento por não reconhecerem razões decisivamente eliminatórias da incerteza" (Fragata, 1959, p. 92). Todavia, Husserl não irá recorrer à epoché no sentido dado pelos céticos, mas como um instrumento de depuração, ou seja, em lugar de duvidar da existência do mundo ou suprimi-lo, ele será entendido apenas "sob o aspecto como se apresenta à consciência, - reduzido à consciência" (Fragata, 1959, p. 92). A tese do mundo em si mesmo será colocada entre parênteses. Para sair da atitude natural ou mundana, aquela em que habitualmente vivemos, para a transcendental ou fenomenológica, Husserl parte da atitude natural, e "eleva-nos à "consciência transcendental' através da 'consciência psicológica'" (Fragata, 1959, p. 100). Esta elevação se faz por meio de duas reduções, psicológica e transcendental. Na primeira, em lugar do mundo em si, surge o mundo consciente, reduzido às vivências, ou psicológico, quando se fala na primeira pessoa do singular. Ao sujeitar os fenômenos singulares a uma série arbitrária de variações, redução eidética, se chega ao que se apresenta como invariável, comum, a essência ou eidos. Fragata (1959, p. 108) exemplifica o método das variações pelas quais é possível levar do indivíduo, "este homem", à essência ou eidos ainda empíricos, "homem branco" ou "homem negro", e daí à essência pura, "o homem como tal". Exercitando a epoché de forma mais radical, a subjetividade psicológica transforma-se em subjetividade transcendental. Através desta atitude, coloca-se entre parênteses o "eu" na sua realidade total, enquanto existente no mundo, e todos os seus atos, a fim de atingir os fenômenos verdadeiramente puros. "O eu, assim depurado, é o eu puro, apto a conhecer sem vício, como 'expectador desinteressado' [...] ou imparcial [...], tudo o que se apresenta como é, ou melhor, tudo o que dele brota; é o eu numa nova atitude oposta à natural, - o eu em "atitude fenomenológica' ou "transcendental'" (Fragata, 1959, p. 114-115, grifos do autor). A epoché radical permite o contato imediato com as coisas como se apresentam na sua evidência originária à consciência. O fenomenólogo deve apenas olhar puramente para esses fenômenos puros, "deixar-se orientar por eles como se apresentam na sua 'evidência originária', explorando, descrevendo as riquezas insondáveis deste novo mundo, que é a 'consciência pura'" (Fragata, 1959, p. 117). Por fim, tem-se a definição da fenomenologia husserliana pelo próprio Husserl: "Disciplina puramente descritiva que explora, pela intuição pura, o campo da consciência transcendentalmente pura" (Husserl in Fragata, 1959, p. 116).

O objetivo deste trabalho não é aprofundar neste momento o estudo da Fenomenologia de Husserl, mas mostrar que o método fenomenológico se justifica como uma interessante possibilidade para a psicologia clínica, na medida em que se volta para a descrição da apreensão do mundo pela consciência, ou seja, do conteúdo intencional da consciência. Embora o termo epoché tenha se vulgarizado no meio psi de forma muitas vezes pouco fiel à definição e aplicação que lhe foi dada por Husserl, uma vez conhecida e exercitada de forma rigorosa, poderá fazer com que se esteja mais atento à própria consciência dos fenômenos na clínica, ao modo como se apresentam em sua evidência originária. Afirma Fragata (1959, 117): "Graças à atitude aonde nos conduziu a 'epoché' mais radical, estamos em contato imediato com as 'coisas' que se nos apresentam na sua evidência originária [...]". Dessa forma, em lugar de possuirmos o mundo em si, apenas podemos ter acesso à consciência do mundo. Em outras palavras, somente se tem acesso ao fenômeno, que é o mundo apreendido pela consciência.

A clínica pautada pelo método fenomenológico pretende descrever o que se passa com o cliente a partir daquilo que ele mesmo revela através da fala, do silêncio, do desenho ou das técnicas projetivas. Considera que tal descrição, que é um modo de apreensão do mundo, de si mesmo e do outro, será sempre singular (Mattar e Sá, 2008; Sá, 2002; Feijoo, 2000).

Embora a psicologia existencial não especifique uma abordagem em psicoterapia infantil, como acontece com a Ludoterapia não diretiva e com a Gestalt-terapia - por não partir de uma concepção desenvolvimentista da existência -, alguns trabalhos foram publicados de forma a relacionar o método fenomenológico e a filosofia da existência ao contexto da psicoterapia infantil. Em um destes trabalhos, Feijoo (1997) discutiu os aspectos teóricos e práticos da psicoterapia infantil sob a ótica fenomenológico-existencial. A autora afirma que é preciso exercitar a epoché para que o terapeuta atue de forma própria que não se confunda com a vivência cotidiana. Através do brincar, a criança poderá expressar toda a sua hostilidade, e o terapeuta vai criar um ambiente permissivo para que ela externe esses sentimentos, sem criticá-la, censurá-la ou dar-lhe lições de moral. Essa forma de atuar vai diferenciar o psicólogo das pessoas comuns, pois a ele cabe a compreensão desta expressão. A expressão dos sentimentos pode ser ambígua e contraditória. As intervenções do terapeuta deverão mobilizar os sentimentos de forma que estes apareçam através do brincar, da ação e pela linguagem (Feijoo, 1997).

Segundo Feijoo (1997), a atitude ética do terapeuta frente ao cliente-criança é isenta de seus valores. Não cabe ao terapeuta avaliar uma atitude feia ou bonita, certa ou errada. Deve evitar uma atitude de julgamento, uma direção quanto ao caminho que a criança deve seguir. Nesse sentido, também se aproxima da proposta de Axline (1972). Ressalta ainda que a atuação do psicoterapeuta deva ocorrer muito mais como uma arte do que uma técnica e que os aprendizes de ludoterapia passam por momentos difíceis em que se separar da forma como lidam com o cotidiano torna-se uma tarefa árdua. Lembra que é comum que psicólogos inexperientes cometam alguns deslizes como entrar em competição com a criança que assume no mundo uma postura autoritária, para mostrar à criança "quem é que manda". Agir desta forma implica em prejuízo do processo, pois neste contexto não há lugar para disputa, a relação deve se estruturar como de ajuda. O psicólogo atua como facilitador que, junto com a criança, cria condições de crescimento num ambiente que lhe permita a expressão dos seus significados. Desse modo, o terapeuta irá aonde o cliente está, agindo de acordo com o método proposto por Kierkegaard (2002a [1849]) para aquele que pretende ajudar o outro.

 

A estratégia da comunicação indiretaem Kierkegaard e a relação de ajudana psicologia existencial

O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) empreendeu importante crítica da filosofia como especulação ou sistema. Defendeu que o interesse do filósofo deveria ser a existência concreta do homem e sua ação no mundo, em lugar dos intermináveis esquemas teóricos distanciados da vida. O que um filósofo pensa e escreve, defendia Kierkegaard, deve fazer sentido para si mesmo como existente, ou não passará de mera teorização acadêmica.

Kierkegaard alertava para o distanciamento do existente em relação a si mesmo, seu desconhecimento de si mesmo, que o faz viver na ilusão de ser o que não é. Perdendo-se na multidão, tentando se esquecer de que é um Indivíduo1 (Kierkegaard, 2002a [1849]), o homem se deixa levar pelos outros, pela moda, por aquilo que todos são e fazem. Ao querer ser como "todo mundo" transforma-se em "ninguém". Para o pensador dinamarquês, a doença mortal é o desespero, miséria espiritual que consiste no querer libertar-se de si mesmo.

Afirmava Kierkegaard (2002b [1849]) que o psicólogo sabe o que é o desespero quando se encontra diante dele, conhece-o e não se contenta com a opinião de quem não se crê ou crê desesperado. Compara-o ao médico, o qual tem condições de saber se aquele que se julga são é, no fundo, um doente. Assim, o psicólogo também tem condições de reconhecer o desesperado mesmo que este não aparente sêlo, não tenha consciência de o ser e tenha uma vida tranquila do ponto de vista da opinião comum. O desespero é justamente a "inconsciência em que os homens estão de seu destino espiritual" (Kierkegaard, 2002b [1849], p. 28).

Este tipo de desespero passa completamente despercebido. Perdendo assim o seu eu, um desesperado desta espécie adquire uma aptidão sem-fim para ser bem visto em toda parte, para se elevar na sociedade. Aqui, nenhuma dificuldade, aqui o eu e sua infinitização deixaram de ser um entrave. Polido como um seixo, o nosso homem gira dum lado para outro como moeda corrente. Bem longe de o tomarem por um desesperado, é precisamente um homem como a sociedade o quer. (Kierkegaard, 2002b [1849], p. 37).

O "eu", para Kierkegaard (2002b [1849]), se constitui como desespero, até que decida assumir-se em sua singularidade, ou seja, aceite ser o "eu" que verdadeiramente é e se aceite como lançado ao mundo de contingências e possibilidades. A palavra desespero não tem aqui o sentido corrente, de reação a um acontecimento desesperador, mas diz respeito a uma condição do homem pelo fato de se constituir como síntese de opostos, que são os paradoxos da existência: necessários e possíveis, temporal e eterno, finito e infinito.

O projeto autoral de Kierkegaard teve a intenção de promover uma aproximação do leitor, atraindo-o com os temas sobre os quais escrevia, para então começar a desfazer os laços de sua ilusão. Este projeto está descrito na obra Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor (2002a [1849]), em que o filósofo sugere as atitudes nas quais deve pautar-se aquele que deseja ajudar o outro. De acordo com Feijoo (2000), estas atitudes podem ser também aquelas do psicoterapeuta existencial.

Kierkegaard (2002a [1849]) propõe o seguinte: a ilusão só pode ser destruída por meios indiretos, pois a intervenção direta a fortalece; aquele que pretende ajudar não deve esperar reconhecimento por sua ajuda, nem orgulharse dela; é preciso promover de forma cuidadosa e paciente a aproximação, a fim de chegar onde o outro está e começar por aí, caminhando com ele; deve-se entender o que o outro entende, da forma como entende, colocando-se de maneira humilde na relação, como desconhecendo mais do que aquele a quem ajuda; deve-se assumir a responsabilidade por sua atuação, e usar metáforas, quando necessário, pois as interpretações poéticas podem ajudar aquele que fala do seu sofrimento; o ajudante precisa ser um ouvinte atento, escutando o que o outro tem mais prazer em contar sem assombro; deve se apresentar com o mesmo tipo de paixão do outro homem, seja em tom alegre, para os alegres, seja em tom menor, para os melancólicos. Por fim, deve fazer tudo isso sem temor, embora não se possa fazê-lo com plena certeza e segurança.

Kierkegaard (2002a [1849]) pressupõe que o outro se encontra iludido e distanciado de si mesmo, não se conhece nem sabe de si mesmo. Por este motivo, a aproximação deve dar-se de modo sutil, a fim de que aquele que está sob a ilusão não sinta a ajuda como ameaça e permita que o ajudante se aproxime, como alguém que compartilha de seus pontos de vista, de sua ilusão. Ao invés de romper os laços da ilusão diretamente, o que se propõe é desfazê-los aos poucos e de forma cuidadosa. Portanto, a suspensão dos juízos e representações e a aproximação indireta através do brincar permitirão ao terapeuta infantil estabelecer com a criança uma relação de confiança e permissividade. Ao deixar de avaliá-la ou julgá-la, de procurar ajustá-la às expectativas dos adultos a seu respeito, e de competir ou mostrar-se impaciente com as dificuldades que ela revele, o terapeuta estará aberto ao que se apresentar, a fim de captar e compreender o sentido das experiências vividas pela criança e ajudá-la no processo de expressão de sentimentos, autorreconhecimento e singularização.

Rollo May (1974, 1980) estabeleceu aproximações entre a filosofia da existência e a psicologia clínica. Um dos poucos psicólogos a citar Kierkegaard, May (1974, 1980) deixou clara a influência da filosofia kierkegaardiana em seu pensamento quando narrou um episódio sobre o período em que esteve internado com tuberculose, por exemplo. Ao longo da internação, que durou um ano, ele estudou os dois únicos livros escritos até aquele momento sobre a angústia: O problema da ansiedade de Freud, onde a ansiedade, na primeira teoria, é o ressurgimento da libido reprimida, e, depois, na segunda hipótese, uma reação do ego à ameaça da perda do objeto amado; e O conceito de angústia de Kierkegaard, que descreve a angústia como um desejo daquilo que se teme, uma antipatia simpática. Eis como descreve a diferença entre as duas leituras:

O que me impressionou fortemente foi que Kierkegaard escrevia precisamente sobre o que meus companheiros doentes e eu próprio estávamos sofrendo. Freud, pelo contrário, escrevia em nível diferente, dando formulações dos mecanismos psíquicos pelos quais se evidencia a ansiedade. Kierkegaard estava retratando o que é diretamente experimentado pelos seres humanos em crise [...]. [...] Freud escrevia no nível técnico, onde seu gênio era supremo; talvez ele soubesse, a respeito da ansiedade, mais do qualquer outro até aquela época. Kierkegaard, um gênio de categoria diferente, escrevia em nível existencial, ontológico; ele conhecia a ansiedade 2 (May, 1974, p. 2-3).

Não obstante a importância das influências da filosofia da existência levadas por May da Europa para os Estados Unidos, ao cunhar a expressão psicologia existencial-humanística, May (1974) tentou fundir duas perspectivas que apresentam pressupostos filosóficos e origens históricas diferentes (Feijoo e Mattar, 2008). A psicologia humanista pauta-se nos valores do Humanismo, que remonta à Grécia Antiga, aos ideais do Renascimento, e, principalmente, ao Movimento do Potencial Humano que floresce na década de 1960 nos Estados Unidos, período de grande prosperidade econômica e otimismo. A psicologia existencial, por sua vez, se fundamenta na Filosofia da Existência, que tem seu surgimento com Kierkegaard, na primeira metade do século XIX, na Dinamarca, no Existencialismo sartreano francês dos trágicos anos do pós-guerra, na década de 1940, e na Daseinsanalyse de Martin Heidegger, Medard Boss e Ludwig Binswanger. Enquanto a psicologia humanista crê em uma essência humana positiva inata, que confere uma tendência ao crescimento, ao equilíbrio e à autorrealização, a psicologia existencial recusa qualquer traço essencial a priori, pois compreende o homem como uma abertura livre, indeterminada, lançada ao mundo, que não possui potenciais latentes, mas possibilidades, frente às quais está fadado a escolher. Traz à luz de forma mais intensa as temáticas da solidão, angústia, vulnerabilidade e ser-para-a-morte, que marcam inevitavelmente a existência do homem em qualquer idade.

 

O método não diretivo de Virginia Axline: as atitudes do psicoterapeuta infantil

Na psicoterapia infantil, pode-se dizer que o brincar será o modo indireto de ir onde a criança se encontra, partindo daí a fim de ajudá-la no autorreconhecimento. A perspectiva da ludoterapia desenvolvida por Virginia May Axline (1911-1988), a partir da não diretividade, em muito se aproxima desta forma de comunicação indireta.

Axline trabalhou com Carl Rogers (19021987), fundador da Abordagem Centrada na Pessoa. Adotando o método não diretivo no atendimento a crianças, Axline publicou, em 1947, a obra Ludoterapia (1972), que viria a se tornar, ao lado do conhecido Dibs em busca de si mesmo (1989), uma referência para o psicoterapeuta infantil não diretivo. No livro, a autora apresenta os princípios que considera indispensáveis para os que se propõem a atender crianças e que dizem respeito muito mais à atitude do terapeuta do que a técnicas ou informações teóricas.

De acordo com Axline (1972), a primeira condição é gostar de crianças, respeitá-las e tratá-las com sinceridade. O terapeuta deve assumir uma atitude diferente daquela dos outros adultos com os quais a criança convive, no sentido de que deve ser permissivo e aceitador, não dar ordens e não apressar a criança por impaciência. Seu papel não é passivo e sim de alerta, de sensibilidade e de constante apreciação daquilo que a criança diz ou faz. São necessários uma compreensão e um genuíno interesse pela criança, de modo a encorajá-la a compartilhar seu mundo interior. Mantém uma atitude profissional em seu trabalho e não revela as confidências da criança aos pais, professores ou quem quer que seja que pergunte sobre o que ela fez ou disse durante a sua hora de terapia. Esta hora é da criança, e o que faz ou diz é estritamente confidencial.

Axline (1972) resume em oito as atitudes básicas do terapeuta junto à criança. São elas:

(i) O terapeuta deve desenvolver um amistoso e cálido relacionamento com a criança, de forma que logo se estabeleça o rapport. O contato inicial é de imensa importância para o sucesso da terapia. Axline denomina "estruturação" ao desenvolvimento do relacionamento de acordo com os princípios básicos, que visam conduzir a criança à autoexpressão, entendimento de seus sentimentos e autoconhecimento. É necessário um empenho sincero em entender a criança e o controle sobre respostas que contrariem os princípios básicos, além da aceitação e reflexão de sentimentos sem tentar fazer a criança agir como outras crianças e sem coagir. Lembra que é preciso não ser cálido e amigável em excesso. Revela ainda que a maioria das crianças entra prontamente na sala de brinquedos. Uma vez nesta, deve-se cuidar para evitar os elogios ou críticas feitos às ações praticadas na sala, dizendo, por exemplo, que a criança é organizada e comportada por guardar os brinquedos, ou o contrário, que é preguiçosa ou indisciplinada por não guardá-los. Observa-se o seu modo de revelar-se, sem julgar ou criticar. Evitam-se as sugestões, deixando que a criança escolha o que quiser fazer durante a sessão. Evitar-se-ão também as falas do impessoal, que esperam que a criança aja como todas as outras.

É importante refletir os sentimentos que se mostram. Se a criança diz, após um desenho, "eu não pinto muito bem", não cabe ao terapeuta dizer que não é verdade, que o desenho está muito bonito etc., pois, assim, se afasta do sentimento da criança e fica centrado em si próprio.

(ii) É necessário aceitar a criança exatamente como ela é, aceitar genuinamente o que ela diz ou faz, já que a criança pode perceber a rejeição, mesmo que velada. Esse ato permite, assim, à criança a coragem para exprimir os sentimentos verdadeiros, sem se sentir culpada por estes. Ressalta que a aceitação não é o mesmo que aprovação no sentido de incentivo aos sentimentos expressos, o que se busca é possibilitar o seu reconhecimento. De acordo com este princípio, o terapeuta não tenta mudar a criança e não começa a fazer algo esperando que a criança o acompanhe.

(iii) O terapeuta deve estabelecer uma sensação de permissividade no relacionamento com a criança, de forma que esta se sinta livre para expressar por completo os seus sentimentos. A hora da terapia pertence à criança, para ser usada como ela quiser. A criança escolhe usar ou não usar o material, o terapeuta não a encoraja nem faz sugestões. O objetivo, segundo Axline, é levar à autossuficiência, independência e capacidade de autodireção. O terapeuta aceita o silêncio, como qualquer outra expressão. A criança, segundo a autora, resiste aos esforços para mudá-la, e, por vezes, o seu silêncio, ou o fato de não brincar podem ser "testes" para o terapeuta, quando a criança está atenta se ele também deseja modificá-la e se, de fato, ela é livre para agir ali como quiser. Não deve fazer nenhuma pergunta tencionando esquadrinhar a vida íntima da criança, o que o fará permanecer na própria curiosidade. A criança deverá sentir-se à vontade para fazer tudo o que quiser, sem sentimento de culpa ou de ridículo, a fim de libertar-se das tensões, tornando-se emocionalmente relaxada, e, assim, chegar ao que a autora chama de comportamento construtivo.

(iv) O terapeuta fica atento para reconhecer os sentimentos que a criança está exprimindo e os reflete de maneira tal que possibilite a ela obter uma visão interior do seu comportamento. Durante os primeiros contatos, as respostas do terapeuta parecerão inexpressivas: serão respostas ao conteúdo, não ainda ao sentimento que a criança está exprimindo; terapeuta e criança estão se experimentando e tentando estabelecer contato, a criança está explorando a sala de brinquedos. Pode-se responder às perguntas objetivas de maneira direta, o que permite à criança ir adiante, partindo daquele ponto.

Axline (1972) estabelece uma diferença entre o reconhecimento e a interpretação. O reconhecimento consiste em captar o sentimento expresso e reconhecê-lo, a fim de ajudar a criança a ter uma visão clara de si mesma. Deve-se devolver exatamente as palavras da criança, incluindo o símbolo que for por ela utilizado, sem tentar traduzir o comportamento simbólico em palavras. Se a criança disser "o boneco", "o menino", o terapeuta usará os mesmos termos. Se disser "eu", o terapeuta pode dizer "você". Na interpretação, ao contrário, se tenta traduzir o comportamento simbólico em palavras, dizendo o que acha que a criança quis dizer com seus atos.

(v) O terapeuta mantém um profundo respeito pela capacidade da criança de solucionar seus próprios problemas, se uma oportunidade lhe for dada. A responsabilidade de fazer escolhas, ou de estabelecer mudanças, pertence à criança, e a mudança advém do insight. Diferente do conformismo que às vezes se espera da criança, a adaptação a certos padrões estabelecidos não é um sinal de ajustamento. Por mais limitações que apresente, sempre é possível que a criança escolha.

(vi) O terapeuta não tenta dirigir os atos oua conversa da criança de maneira alguma. É ela quem o faz e indica o caminho, o terapeuta a acompanha. Na orientação não diretiva, o terapeuta não faz perguntas indiscretas; exclui os elogios, não critica o que a criança faz. Pode ajudar, se a criança pedir e dar informações sobre a maneira de usar o material, mas não sugerir. A hora de terapia não é uma hora de recreio, ou social, ou de experiência escolar, é a hora da criança. O terapeuta não é um companheiro de brincadeira, não é um professor, nem é um substituto da mãe ou do pai. Guarda para si suas opiniões, seus sentimentos e sua orientação. O terapeuta deixa seus próprios sentimentos fora da situação. Esse princípio impõe restrições ao terapeuta. Não é fácil deixar que a criança dirija por si mesma, o brinquedo, quando parece que ela está bem próxima do centro do problema e, no entanto, vê-se que ela gira em torno dele. A experiência ensina que não se pode apressar a terapia.

(vii) O terapeuta não tenta abreviar a duração da terapia. É um processo gradativo e assim deve ser reconhecido por ele. Axline (1972) fala em "prontidão": quando a criança estiver pronta para exprimir seus sentimentos em presença do terapeuta, ela o fará, e não se pode forçá-la a fazê-lo às pressas, o que a fará retroceder. Frequentemente a criança passa por um período de brinquedo aparentemente sem significado, durante a hora de terapia. Exige paciência e compreensão por parte do terapeuta. Deve deixá-la "em paz", demorar o quanto quiser, respeitar o ritmo da criança. Se a criança tem um problema, ela o trará apenas quando estiver pronta. O terapeuta não expressa os sentimentos da criança, apenas os reflete.

(viii) Por fim, o terapeuta estabelece apenas aqueles limites necessários para que se situe a terapia no mundo da realidade e para que a criança tome consciência de sua responsabilidade no relacionamento. Os limites são poucos, mas importantes. Restringem-se às coisas materiais, como evitar que se destrua irremediavelmente o material de brinquedo, que se danifique a sala ou que se ataque o terapeuta, e aos limites do senso comum, que visem à proteção da criança. Não há valor terapêutico em permitir situações de risco. A hora de terapia não deve estar tão desvinculada da vida cotidiana, a ponto de que o que nela acontece não possa ir além da sala de terapia.

Os limites propostos por Axline (1972) são os mínimos necessários, como o tempo da sessão e o cuidado para que a criança não se fira e não fira a outra pessoa. Se a criança ficar com raiva, reflete-se o sentimento. O terapeuta interferiu em algo que queria fazer, e isto a irritou. Pode-se ajudar a criança a enfrentar os limites que lhe serão impostos pelos relacionamentos humanos em sociedade. Caso a criança insista em ultrapassar o limite colocado, não cabe ao terapeuta passar um sermão nem fazêla sair da sala ou agir como se não se importasse. Não irá rejeitar a criança como se esta o tivesse desobedecido, uma vez que não se trata de uma relação pedagógica. Poderia dizer: era importante para você fazê-lo de qualquer jeito; queria me mostrar que podia fazê-lo.

Axline (1972) sugere usar material o mais resistente possível e define que qualquer ataque ao terapeuta deve ser interrompido imediatamente. A expressão de sentimentos negativos nos brinquedos não é censurada, e a criança pode usar o material que há na sala para esse fim. Após estabelecidos os limites, é preciso mantê-los. Deve-se esperar até o momento em que seja necessário falar deles, e a colocação dos limites é diferente da pressão para mudar ou transformar a criança.

Axline (1972) define uma terapia bem sucedida como aquela que liberta sentimentos e traz o desenvolvimento de insight que promoverá uma autodireção mais positiva. Seu livro Dibs: em busca de si mesmo (1989) exemplifica as intervenções pautadas nestes oito princípios. Sob suspeita de problemas mentais, Dibs passou a ser acompanhado em sessões de ludoterapia, no decorrer das quais teve a possibilidade de se expressar livremente, sem a presença de críticas e julgamentos, logrando, assim, contrariar todas as previsões feitas a seu respeito. A obra tornou-se um clássico para os que se interessam pela psicoterapia com crianças nesta perspectiva.

Por fim, Axline (1972, p. 124) resume o que compreende por psicoterapia infantil:

A experiência terapêutica é uma experiên cia de crescimento. Dá-se à criança a oportunidade de se libertar de suas tensões, de se desfazer, por assim dizer, de seus sentimentos mais perturbadores e, assim fazendo, de ganhar uma compreensão de si mesma que lhe permita autocontrolar-se. Através dessa viva experiência na sala de brinquedos, ela descobre a si mesma como uma pessoa, assim como novos caminhos que lhe permitam ajustarse ao relacionamento humano, de maneira saudável e realista.

A autora descreve, dessa forma, a concepção não diretiva pautada nos valores da Psicologia Humanista, em que a terapia constitui-se em espaço privilegiado para a atualização dos potenciais de crescimento e libertação da tendência autorrealizadora do indivíduo, ajudando-o a ser o autor de si mesmo.

 

A perspectiva da Gestalt-Terapia com crianças

Considerada uma referência para a prática da Gestalt-Terapia voltada para o atendimento infantil, a obra de Violet Oaklander (1980) descreve a abordagem gestáltica com crianças, cuja meta é ajudar a criança a tomar consciência de si mesma e da sua existência em seu mundo.

As técnicas propostas pela autora são vistas como meios de promover uma expressão de si mesmo que ajude a estabelecer a autoidentidade e proporcione uma forma de expressar sentimentos. Procura trabalhar primeiro com o que é fácil e confortável para a criança, antes de entrar nos lugares mais difíceis e desconfortáveis.

Nessa perspectiva, quando a criança revela algum tipo de perturbação, acredita-se que existe alguma disfunção no equilíbrio e no fluxo do organismo total, e a terapia pode ser descrita como o voltar-se para localizar e restaurar a função mal colocada.

O desenvolvimento e crescimento normal de uma criança é parte essencial neste modelo de trabalho. O desenvolvimento sadio, contínuo dos sentidos, do corpo, dos sentimentos e do intelecto da criança constitui a base subjacente do senso de eu da criança. Um senso de eu forte contribui para um bom contato com o meio ambiente e com as pessoas desse meio ambiente, valor importante para a Gestalt-Terapia.

A maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda possui uma coisa em comum: alguma deficiência em suas funções de contato: olhar, falar, tocar, escutar, mover-se, cheirar e sentir o gosto (Oaklander, 1980). Crianças com problemas são incapazes de fazer bom uso de uma ou mais de suas funções de contato ao se relacionarem com os adultos de suas vidas ou com o ambiente em geral. A forma como fazemos uso de nossas funções de contato evidencia a força ou fraqueza relativa que sentimos. Se um senso de eu forte predispõe a um bom contato, Oaklander (1980) não se admira de que quase toda criança que atende em terapia não pense muito bem de si mesma, embora possa fazer tudo ao seu alcance para manter este fato oculto.

As crianças se protegem de alguma maneira. Algumas se retraem para não serem feridas. Algumas criam fantasias para se entreterem e tornarem suas vidas mais fáceis de serem vividas. Algumas brincam, trabalham e aprendem como se nada importasse, deixando de fora o que é doloroso. Algumas se protegem, querendo "aparecer", e estas são as que recebem mais atenção, o que tende a incentivar o comportamento mais detestado pelos adultos. As crianças fazem o que podem para ir em frente, para sobreviver, em direção ao crescimento. Em face de ausência ou interrupção no funcionamento natural, elas adotam algum comportamento que parece servir para fazê-las avançar. Assim, elas poderão agir de modo agressivo, hostil, irado, hiperativo; poderão se recolher para mundos de sua própria criação; poderão falar o mínimo possível, ou talvez nada; ter medo de todo mundo e de tudo, ou de algo em particular; tornar-se exageradamente solícitas e "boazinhas"; se apegar de forma irritante aos adultos em suas vidas; ter enurese ou encoprese, ter asma, alergias, tiques, dores de barriga, dores de cabeça, acidentes. Não há limite para o que possa fazer na tentativa de atender as suas necessidades. Debaixo destas tentativas de lidar com o mundo existem sempre necessidades não satisfeitas que resultam numa perda do senso de si próprio (Oaklander, 1980).

O terapeuta, nessa abordagem, trabalha para construir o senso de eu da criança, para fortalecer as funções de contato e para renovar o seu próprio contato com seus sentidos, sentimentos e uso do intelecto. Ao fazer isso, os comportamentos e sintomas que ela tem utilizado para a expressão e crescimento mal dirigidos frequentemente caem por terra sem que ela tenha plena consciência de que sua conduta está mudando. A sua consciência é redirigida para a percepção sadia de suas próprias funções de contato, seu próprio organismo, em direção a comportamentos mais satisfatórios. Para isso, Oaklander (1980) sugere diversas técnicas, como a da fantasia, dos desenhos de família, e materiais diferentes ao longo do livro, como argila, tinta para pintura a dedo etc.

Quando a criança em terapia experiencia os seus sentidos, o seu corpo, os seus sentimentos, e o uso que pode fazer do seu intelecto, ela recupera uma postura sadia frente à vida. Proporciona-se à criança o máximo de experiência nas áreas em que mais necessita, encorajandoa a ter presente o seu processo de experienciar.

A tarefa do terapeuta será, desse modo, a de ajudar as crianças a sentirem-se fortes dentro de si próprias, ajudá-las a ver o mundo a sua volta tal como ele realmente é, escolhendo sua forma de viver no mundo.

Para Oaklander (1980), são princípios fundamentais: gostar de crianças, estabelecer com elas uma relação de aceitação e confiança, conhecer algo acerca de como as crianças se desenvolvem, crescem e aprendem e compreender as questões importantes que correspondem a faixas etárias especificas; ter a habilidade de ser direto sem ser invasor, de ser leve e delicado sem ser demasiadamente passivo e não diretivo; saber algo sobre os sistemas familiares, conhecer as influências ambientais que agem sobre a criança (lar, escola, igreja, cursos etc.); ser aberto e honesto com a criança, evitar interpretações e julgamentos, aceitando a criança com respeito e consideração; começar com a criança no ponto em que ela está, independente do que ouça, leia ou diagnostique; relacionar-se com ela da forma que escolheu ser com ele agora; não fazer nada que não esteja à vontade para fazer, e se não estiver realmente disposto, sugerir outra atividade; estar atento à forma como a criança aborda a tarefa.

Aguiar (2005) propõe a necessidade de uma visão mais atualizada da Gestalt-terapia com crianças. Embora reconheça os méritos do trabalho de Oaklander (1980), não deixa de considerar que esta autora se concentra em recursos lúdicos e técnicas facilitadoras, em detrimento de um arcabouço teórico que as contextualize e dê sentido à condução do processo terapêutico. O risco de tal abordagem, que acabou se tornando frequente entre gestalt-terapeutas, está em reduzir a Gestalt-terapia à mera compilação de técnicas, definida apenas como flexível e intuitiva, como se isto já definisse tudo, sem uma fundamentação mais rigorosa do trabalho clínico com crianças. Tal fundamentação, ressalta Aguiar (2005), deve ser buscada na fenomenologia e no existencialismo, bem como na visão de campo e atitude dialógica. O homem é considerado em uma perspectiva holística e relacional, e, ao mesmo tempo em que é influenciado pelo meio, age sobre este, modificando-o. A autora refere os trabalhos de Axline e Oaklander, no já reportado período pós-guerra nos Estados Unidos, como sendo o surgimento de uma perspectiva existencial fenomenológica.

Para Aguiar (2005), a prática da Gestalt-terapia com crianças tem por objetivo a retomada do curso satisfatório de desenvolvimento da criança. Para isso, deve oferecer à criança a oportunidade de libertar-se daquilo que obstrui seus sentidos e seu contato pleno com o mundo. O fio condutor do processo terapêutico está na relação estabelecida entre a criança e o psicoterapeuta, por intermédio da metodologia fenomenológica e das técnicas facilitadoras, que proporcionarão à criança uma maior awereness a respeito de si mesma e do mundo, com a consequente expansão e flexibilização de suas fronteiras de contato. A autora retorna a Oaklander em suas ideias mais recentes, já na década de 1990, como referência para definir o objetivo da Gestalt-terapia infantil, que se refere a:

[...] reencontrar a vivacidade e o contato pleno com o mundo através da desobstrução de seus sentidos, do reconhecimento do seu corpo, da identificação, aceitação e expressão de seus sentimentos suprimidos, da possibilidade de realizar escolhas e verbalizar suas necessidades, bem como de encontrar formas para satisfazê-las, além de aceitar quem ela é na sua singularidade (Aguiar, 2005, p. 186).

Aguiar (2005) enfatiza que a escolha pelo método fenomenológico dá-se pelo fato de que este não visa interpretar ou prescrever, mas sim descrever o significado do que é expresso pela criança na sessão terapêutica. Na interpretação se concede um significado ao que é trazido pela criança, pautado em um a priori teórico; na prescrição, o terapeuta estabelece formas específicas do uso de recursos lúdicos para que a criança resolva o que traz como problema; na descrição fenomenológica, o terapeuta possibilita que a própria criança "construa gradativamente o significado do material que traz para a sessão terapêutica, sem a interferência de qualquer "a priori' do terapeuta, seja ele de caráter teórico ou oriundo de seus próprios valores" (Aguiar, 2005, p. 187). Desta forma, as intervenções do terapeuta são feitas de forma descritiva, exercitando a colocação entre parênteses de ideias pré-concebidas. Entretanto, não se detém apenas na reflexão e na pura descrição do que a criança faz, como no trabalho de Axline, mas assume um papel mais ativo, fomentando um maior desenvolvimento do material trazido pela criança.

 

Considerações finais

O artigo apresentou três perspectivas de atuação em psicoterapia infantil, sendo as mesmas fundamentadas pelo método fenomenológico, o que as diferencia de abordagens diretivas, explicativas ou interpretativas. No caso da psicologia existencial, foi acrescentada a estratégia de comunicação indireta de acordo com a proposta kierkegaardiana. Alguns princípios e atitudes que podem auxiliar no trabalho da psicologia clínica com crianças foram trazidos, bem como apresentadas algumas diferenças entre as perspectivas abordadas, guardadas as suas semelhanças.

Pôde-se notar, com o trabalho de Axline (1972), que existem aproximações interessantes entre a não diretividade rogeriana e o método indireto de Kierkegaard, pois ambos propõem ir onde o outro está, promovendo a aproximação de maneira cuidadosa, e a escuta, sem pressa, de maneira atenta e interessada no que o cliente revela. Diferem, entretanto, quanto aos pressupostos filosóficos e alguns objetivos, uma vez que a primeira admite o homem como detentor de potenciais inatos ao crescimento e a segunda fala em estar lançado às possibilidades, sem nenhuma tendência inata que direcione o homem. Enquanto a psicologia humanista rogeriana fala em autenticidade como condição na terapia Kierkegaard, propõe, contudo, que se compartilhe da ilusão daquele que se quer ajudar. Sendo assim, a não diretividade no trabalho de Axline (1972) pretende permitir que o cliente cresça, o que ele fará por si só, quando lhe forem oferecidas as condições para tal, pois tem em si mesmo o potencial e o conhecimento do que é o melhor para si próprio. O cliente, portanto, sabe o caminho. Para a psicologia existencial, todavia, a grande maioria dos homens vive o desconhecimento de si, ignorando até mesmo ter um "eu". Além disso, o existente, nessa perspectiva, não alcançará a plena autonomia, tendo em vista as contingências às quais está lançado.

Buscou-se, por fim, refletir com aqueles que se encontram diante do desafio da psicoterapia infantil, contribuindo de forma mais prática no que se refere às atitudes do psicoterapeuta, possíveis técnicas a serem usadas para auxiliar a expressão dos sentimentos e a importância de aproximar-se da criança de forma interessada e cuidadosa.

 

Referências

AGUIAR, L. 2005. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo, Livro Pleno, 326 p.         [ Links ]

AXLINE, V.M. 1972. Ludoterapia. Belo Horizonte, Interlivros, 350 p.         [ Links ]

AXLINE, V.M. 1989. Dibs em busca de si mesmo. Rio de Janeiro, Agir, 290 p.         [ Links ]

FEIJOO, A.M.L.C.; MATTAR, C.M. 2009. Psicologia Humanista e Psicologia Existencial. In: C.D. TOURINHO; R.S. LIMA, Estudos em Psicologia: uma introdução. Niterói, Proclama Editora, p. 139-160.         [ Links ]

FEIJOO, A.M.L.C. 1997. Aspectos teórico-práticos na Ludoterapia. Fenômeno Psi, 1:4-11.         [ Links ]

FEIJOO, A.M.L.C. 2000. A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológico-existencial. São Paulo, Vetor, 193 p.         [ Links ]

FRAGATA, J. 1959. A Fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia. Braga, Livraria Cruz, 286 p.         [ Links ]

FURNARI, E. 2000. Lolo Barnabé. São Paulo, Moderna, 32 p.         [ Links ]

HUSSERL, E. 1919. Erinnerungen an Franz Brentano. In: O. KRAUS, Franz Brentano. Munique, Brech, p. 153-167.         [ Links ]

KIERKEGAARD, S.A. 2002a [1849]. Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor. Lisboa, Edições 70, 207 p.         [ Links ]

KIERKEGAARD, S.A. 2002b [1849]. O desespero humano. São Paulo, Martin Claret, 128 p.         [ Links ]

MATTAR, C.M.; SÁ, R.N. de. 2008. Os sentidos de "análise" e "analítica" no pensamento de Heidegger e suas implicações para a psicoterapia. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8(4):191-203.         [ Links ]

MAY, R. (org.). 1974. Psicologia existencial. Porto Alegre, Globo, 134 p.         [ Links ]

MAY, R. 1980. O significado de ansiedade: as causas da integração e desintegração da personalidade. Rio de Janeiro, Zahar, 374 p.         [ Links ]

OAKLANDER, V. 1980. Descobrindo crianças: abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo, Summus Editorial, 362 p.         [ Links ]

SÁ, R.N. 2002. A psicoterapia e a questão da técnica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 54(4):348-362.         [ Links ]

 

 

Submetido em: 14/03/2010
Aceito em: 19/07/2010

 

 

1 O filósofo escrevia o termo indivíduo com inicial maiúscula (Kierkegaard, 2002a [1849]).
2 A tradução mais adequada seria angústia, termo usado por Kierkegaard.

Creative Commons License