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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.2 São Leopoldo Dec. 2010

 

ARTIGOS

 

Acordes do sofrimento humano

 

The chords of human suffering

 

 

Clarissa MedeirosI; Tânia Maria José Aiello-VaisbergII

IInstituto de Psicologia da USP. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, 05508-030, São Paulo, SP, Brasil. clarimede@uol.com.br
IIInstituto de Psicologia da USP e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Av. John Boyd Dunlop, s/n, Jardim Ipaussurama, 13060-904, Campinas, SP, Brasil. tanielo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho investiga os fundamentos psicopatológicos exigidos pela psicanálise winnicotiana, articulando-se metodologicamente por meio de reflexões teórico-críticas de textos deste autor. Percebeu-se que seu pensamento alinha-se coerentemente com a adoção de um modelo psicopatológico relacional sui-generis, que se opõe e repele uma perspectiva pulsional, valorizando a singularidade pessoal autêntica e os vínculos inter-humanos. Descortina-se, desse modo, uma visão diferenciada da saúde emocional, a qual traz consigo importantes implicações clínicas.

Palavras-chave: psicanálise, psicopatologia, D.W. Winnicot.


ABSTRACT

This paper investigates the psychopathological grounds required by Winnicotian psychoanalysis, building its methodological structure with theoretical and critical reflections on this author's writings. It was possible to notice that his thoughts align coherently with the adoption of a peculiar relational psychopathological model which opposes and rejects a pulsional perspective and values the authentic personal singularity and the human bonds. Therefore, there is the revelation of a differentiated view of emotional health, which brings up important clinical implications.

Key words: psychoanalysis, psychopathology, D.W. Winnicot.


 

 

Compreender a natureza do sofrimento humano é uma preocupação antiga de vários campos da ciência, despertando especial dedicação dos pesquisadores as circunstâncias em que o sofrimento se torna adoecimento físico e mental. Inúmeras teorias foram e continuam sendo criadas na tentativa de entender, explicar e curar estes adoecimentos, algumas restritas a uma visão organicista de fundo químico-biológico, outras abrangendo condições internas e externas da existência dos indivíduos.

Desse modo, este trabalho tem como objetivo investigar os fundamentos psicopatológicos exigidos pela psicanálise winnicottiana, considerando-se as particularidades da noção de saúde presente em sua obra. Propomos a vinculação da teoria winnicottiana a um olhar psicopatológico relacional, em contraposição a modelos psicopatológicos pulsionais presentes majoritariamente no campo psicanalítico. Observamos no trabalho de D.W. Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, contribuições fundamentais para a psicologia que utiliza a psicanálise como referencial teórico, cabendo ressaltar que a riqueza e fecundidade do seu pensamento têm provocado sua leitura por psicanalistas de todo o mundo. Entretanto, observamos um fenômeno singular no Brasil que é a criação ou encontro deste pensamento a partir de diferentes perspectivas de leitura. Citamos, pela importância em nosso percurso de trabalho, as contribuições de Gilberto Safra, Zeljgo Loparick e do Grupo Ser e Fazer, da USP, liderado por Tânia Aiello Vaisberg, no qual nos inserimos. Nossa leitura de Winnicott é feita a partir de Bleger (1989), que pensa este autor como alguém que chega a realizar o projeto politzeriano (Politzer, 1928) de uma psicologia concreta, isto é, ocupada com o acontecer humano a partir de sua perspectiva dramática. Este tipo de leitura se pauta pela observação do preceito winnicottiano que vê na submissão um mal. Assim, a perspectiva Ser e Fazer não se coloca como leitura de discípulos ou adeptos para Winnicott, mas como a de interlocutores que podem, sempre que julguem necessário, introduzir novos conceitos que iluminem melhor os fenômenos tratados.

Por meio de conceitos que versam sobre a transicionalidade, o holding e o brincar, Winnicott propõe importantes transformações na maneira de entendermos o desenvolvimento humano, muitas vezes rompendo radicalmente com noções clássicas rumo a uma aproximação sensível das condições de vida na contemporaneidade.

Observamos a relevância desta discussão, por explicitar que as abordagens psicopatológicas, como qualquer produção humana de conhecimento, encontram-se inseridas em contextos políticos, históricos e culturais, indicando sempre um posicionamento diante do humano, do sofrimento e do adoecimento. Por trás de toda teoria e prática, encontramos pressupostos antropológicos mais ou menos explícitos, fundamentais para a compreensão e o uso de um saber. Todas as teorias assentam-se sobre pressupostos éticos e antropológicos relacionados com os contextos e as condições concretas em que o conhecimento é gerado (Bleger, 1989).

Tomando como objetivo a reflexão sobre os fundamentos psicopatológicos do pensamento winnicottiano, compreendemos a psicopatologia essencialmente como teoria do sofrimento. E, por sofrimento, denominamos um fenômeno singular que não se encontra entre outros seres vivos, baseado no reconhecimento de que todo e qualquer mal estar, esteja ou não ligado às dores físicas, à precariedade social, à vitimização ou à esfera dos relacionamentos humanos é experimentado como sofrimento humano (Aiello-Vaisberg, 2006a, 2006b). Podemos afirmar que Winnicott é um autor preocupado com o sofrimento emocional e temos, em nossa perspectiva de leitura, duas possibilidades: a experiência de sofrimento, a partir do ponto em que já existe um self constituído, ou a impossibilidade de experiência, quando o bebê ainda não existe "desde o seu próprio ponto de vista", que permanecerá como marca existencial, mesmo que não seja psiquicamente registrada. A não divisão da clínica em casos orgânicos, sociais e psicológicos nos permite ver que não somente nos casos denominados supostamente "psicogênicos" caberia falar em psicopatologia como teoria do sofrimento humano. Em um de seus mais importantes trabalhos, Winnicott (1982 [1945]) se apresenta fundamentalmente preocupado com a constituição de uma teoria do sofrimento humano, colocando como objetivo o estudo dos processos de desenvolvimento primitivo do bebê para o esclarecimento da psicopatologia da psicose. Em nossos termos, afirmamos que sua teoria permite o esclarecimento de um fenômeno fundamental que é o sofrimento humano radical que subjaz à psicose, isto é, o sofrimento radical que subjaz a um adoecimento emocional.

Nesse sentido, traçamos um percurso que se inicia com a apresentação do que chamamos de modelos psicopatológicos pulsional e relacional (Greenberg e Mitchell, 1994), seguindose com a discussão de uma visão winnicottiana de saúde. Finalmente, estabelecemos o modelo relacional de psicopatologia como o mais coerente com as concepções de homem, saúde, sofrimento e adoecimento presentes no pensamento winnicottiano e suas consequências para o campo psicanalítico e psicológico de modo mais amplo.

 

Modelos psicopatológicos

Dentro da proposta de apresentação dos modelos psicopatológicos pulsional e relacional, destacamos o trabalho de Greenberg e Mitchell (1994), no qual encontramos a diferenciação rigorosa de variadas abordagens psicanalíticas, a partir destas duas estruturas de pensamento:

Os modelos pulsional e relacional apontam para questões diferentes como determinantes das dificuldades psicopatológicas na vida. [...] A maneira com a qual um observador psicanalítico vê um paciente, os tipos de categorias diagnósticas nas quais o coloca - todas dependem, em si, das suposições teóricas anteriores do observador quanto aos constituintes básicos da experiência humana, isto é, seu compromisso com um modelo teórico (Greenberg e Mitchell, 1994, p. 287).

A visão estrutural-pulsional implica na compreensão do adoecimento como desequilíbrio de forças internas de natureza sexual e agressiva do indivíduo que lutam pelo controle mental. Estas forças seriam organizadas a partir de elementos repressores e elementos reprimidos, constituindo-se nisto a base de funcionamento do psiquismo. Neste modelo, o adoecimento é circunscrito à dinâmica interna individual, sendo o homem concebido como mônada, isto é, suas condutas se dão a partir de um suposto aparelho psíquico endógeno. Nesse sentido, como apontam Greenberg e Mitchell (1994), o objetivo humano seria a eliminação de tensão biológica.

Por sua vez, a visão relacional busca posicionar a psicopatologia num campo vincular, compreendendo o adoecimento como fenômeno que acontece na intersubjetividade e não em um suposto aparelho psíquico individual que se encontraria em desequilíbrio devido a forças motivadoras conflitantes em seu interior. O adoecimento ocorreria entre pessoas e não dentro de alguém, configurando-se o objetivo humano como o encontro das experiências vinculares necessárias para o desenvolvimento.

No campo psicanalítico, temos majoritariamente presente um enfoque psicopatológico tripartite, o qual classifica diferentes tipos e graus de sofrimento humano em três categorias: as neuroses, as psicoses e os casos fronteiriços ou borderline. Observamos que diferentes autores transitam por estas categorias, comprometendo-se mais ou menos explicitamente com um modelo psicopatológico a partir do qual se organizariam. Noções como estruturas, defesas, fantasias e condutas são descritas ora como fenômenos intrínsecos ao funcionamento individual, ora como condições inseparáveis dos vínculos em que se dão. Cabe ressaltar, além disso, que os teóricos frequentemente utilizam o que Greenberg e Mitchell (1994) denominaram estratégias de acomodação, isto é, constroem seu pensamento de maneira mais comprometida com o modelo estrutural-pulsional e, com o decorrer do tempo, lançam mão de modificações mais coerentes com um modelo relacional. Compreendemos essas estratégias como tentativas de colocar estes grandes paradigmas em diálogo, respondendo a demandas clínicas vivas e sempre em transformação. Paralelamente, as acomodações sugerem também a intenção de inserir-se na tradição, enraizada num pensamento pulsional, sem abrir mão das novas ideias que vêm com o modelo relacional.

 

Concepções de saúde no pensamento winnicottiano

Encontramos em Winnicott muitas concepções de saúde que iluminam diferentes facetas de seu pensamento a respeito desta questão. Em textos que versam especificamente sobre o tema (Winnicott, 1990f), a noção de saúde aparece como flexibilidade, isto é, como a segurança de poder transitar por intermédio de diferentes posicionamentos existenciais sem que se perca o acesso à unidade de si. Para Winnicott, a flexibilidade compreenderia a alternância de estados integrados e não integrados de si, possibilitando experimentar estados excitados de criação e ação sobre o mundo, assim como estados tranquilos de relaxamento e afrouxamento das fronteiras e diferenciações do próprio self de maneira sustentada. Encontramos também a saúde associada ao amadurecimento emocional, concepção ligada à existência de tarefas próprias de cada período da vida a serem alcançadas. Nesse contexto, cada um passearia de modo mais ou menos bem sucedido por diferentes etapas do desenvolvimento emocional, a fim de trilhar um amadurecimento saudável. São exemplos destas tarefas o alcance da unidade e a personificação do self, fenômenos ligados ao desenvolvimento emocional primitivo, o alcance da transicionalidade, a possibilidade de viver a triangulação entre pessoas totais, a capacidade de brincar e até mesmo de morrer como fenômeno inserido no viver criativo. A possibilidade de brincar, experimentando o próprio viver de modo genuíno e criativo é sempre relacionada à saúde no pensamento winnicottiano, havendo uma enorme preocupação em sua diferenciação daquelas situações em que o brincar está presente em um nível comportamental, porém, não existencial. Não basta haver interação de alguém com objetos, sejam eles brinquedos, fenômenos culturais ou relacionamentos, para que o brincar winnicottiano esteja presente, pois este abarca necessariamente a experiência de si em autenticidade, espontaneidade e não submissão. Para Winnicott, o brincar diz respeito também à possibilidade de tolerar os mistérios do mundo, sustentando a ausência de explicações e entendimentos absolutos para questões existenciais humanas sem que se perca a sensação de ser vivo e real.

Winnicott (1982 [1945]) tem na psicose a matriz clínica de seu pensamento, ou seja, construiu sua complexa teoria do desenvolvimento emocional humano baseado na atenção às experiências e relações primitivas do bebê como cerne da integração ou ausência desta no self. Dá especial valor ao desenvolvimento emocional primitivo, argumentando estarem aí localizadas as raízes da saúde ou doença emocional e mental. Sob este prisma, apresenta uma concepção original de saúde, não descartando da pessoa dita saudável o acesso a experiências "aparentemente" loucas. Para Winnicott, o bebê não é psicótico ao nascer, mas ainda não desenvolveu um sentido de si mesmo a partir do próprio ponto de vista, o que o torna indiferenciado e não integrado, mas não psicótico. A psicose na teoria winnicottiana é compreendida como formação defensiva diante de agonias primitivas e, portanto, como adoecimento. No entanto, o contato com experiências iniciais primitivas do self, com as fantasias onipotentes não é necessariamente disruptivo e faz parte do desenvolvimento humano natural e, portanto, da condição humana. A loucura, para Winnicott, não é sinônimo de psicose, mas abrange esta possibilidade humana como colapso e queda nas agonias impensáveis, abarcando também as experiências onipotentes primitivas que são as bases de um viver criativo. Observamos um aspecto desta questão nas palavras de Winnicott (1990d [1965], p. 99):

Neste ponto, é necessário recordar o pressuposto básico, pertencente à psicanálise, de que as defesas se organizam em torno da ansiedade. O que vemos clinicamente quando encontramos uma pessoa enferma é a organização das defesas e sabemos que não podemos curar o nosso paciente através da análise das defesas, embora grande parte de nosso trabalho se dedique a fazer exata>mente isso. A cura só chega se o paciente pode chegar à ansiedade em torno da qual as defesas foram organizadas. Pode haver muitas versões subsequentes disto, e o paciente chega a uma após outra, mas a cura só chega se o paciente atingir o estado original de colapso.

Observamos, nesta afirmação, que o contato com aspectos primitivos do self faz parte da experiência humana, abrangendo estados de não integração em alternância com estados de incipiente continuidade de ser. Ser atirado neste movimento sem sustentação ambiental pode levar uma pessoa a agonias impensáveis de desintegração que estão na base das defesas psicóticas. Winnicott afirma que o contato com ansiedades primitivas pode ter efeito curativo sobre uma pessoa enferma quando dado de maneira sustentada, sendo condição para a superação deste posicionamento existencial. Nessa perspectiva, poder experimentar aspectos primitivos do self numa relação sustentadora é um passo em direção à saúde emocional e mental. Aquelas pessoas que não puderam encontrar holding nestas experiências iniciais e foram lançadas de forma disruptiva em agonias e no colapso também encontram possibilidades de retomar sua saúde emocional através de experiências de vida ou análises que favoreçam a regressão à condição de dependência. Ainda que o fenômeno pareça paradoxal e estranho à primeira vista, algumas vezes a saúde exige "enlouquecer" para curar-se. Para Winnicott (1990f), a saúde contém a possibilidade de contato com experiências primitivas da ordem da não integração e movimento integrativo, compreendendo a alternância segura entre estes estados como direção desejável para um viver criativo e ancorado no chamado verdadeiro self (Winnicott, 1990a [1960]).

No campo do adoecimento emocional, Winnicott foi sensível aos fenômenos de desperso-nalização e desrealização, que se encontram presentes quando estamos diante de alguém que não se sente inteiro em um corpo próprio, não consegue experimentar as próprias ações e o mundo ao seu redor como detentores de sentido, tem uma sensação contínua ou episódica de futilidade do viver, fenômenos que ocorrem quando aspectos primitivos de si referentes aos estados tranquilos de não integração e aos estados excitados não puderam ser vividos de maneira sustentada. Winnicott afirma que o movimento em direção a uma existência saudável pode ser um percurso mais árduo para alguns e menos difícil para outros, dependendo da oportunidade de ser acolhido em um ambiente suficientemente bom, em relações de cuidado suficientemente bom. Compreendemos que o ambiente suficientemente bom é essencialmente vincular, tomando-se o pensamento winnicottiano à luz da psicologia concreta proposta por Bleger (1989). O ambiente é constituído do conjunto de cuidados que permite a sobrevivência do bebê, o qual depende, absolutamente, dos seres humanos que a ele se vinculam, vendo-o já como humano, antes mesmo que ele próprio possa existir desde seu próprio ponto de vista (Winnicott, 1982 [1945]). As pessoas que experimentaram aspectos primitivos de si com holding seguem suas vidas com uma sensação segura de continuidade de ser, enquanto aquelas que não viveram um holding suficientemente bom são invadidas pelas ansiedades primitivas de maneira agônica, necessitando de experiências sustentadoras curativas, a fim de poderem viver a dependência e retomar o movimento em direção à saúde.

Winnicott (1990f) estabelece a alternância de estados, o movimento entre integração e não integração como direção desejável ao longo de toda a vida, o que se contrapõe à desintegração ou a um sentimento de inautenticidade como defesa contra a desintegração. Nesse sentido, podemos compreender que se apropriar do chamado verdadeiro self é um movimento inesgotável que, na ausência de sustentação ambiental, torna-se interrompido. O adoecimento básico, a partir desse olhar, diz respeito a afastar-se desta dança, o que geraria falhas na constituição de si, assim como a sensação de não ser vivo e real.

Dessa maneira, o modelo psicopatológico implícito em seu pensamento trata o adoecimento como defesa contra queda nas agonias impensáveis, defesa contra as falhas ambientais, caracterizando-se como fenômenos dissociativos em maior ou menor grau que levam o homem à impossibilidade de se sentir vivo, real e presente num corpo próprio. A partir desse olhar, não podemos falar na pessoa que adoece sem considerar o contexto concreto de sua história e o momento atual em termos de um ambiente capaz de oferecer condições sustentadoras. Para Winnicott (1990e [1969]), não podemos conceber um bebê sem sua mãe, caracterizando-se o foco não nos indivíduos separados, mas nas relações de cuidado, de sustentação possível entre pessoas. Daí vem a ideia de ambiente suficientemente bom (Winnicott, 1982 [1945]), ou seja, de um contexto físico e psicológico de cuidados que atenda de maneira sensível e precisa às necessidades de alguém, favorecendo o desenvolvimento de seu potencial. O adoecimento se dá nos vínculos1, isto é, no espaço interpessoal que pode oferecer sustentação existencial ou não, o que é completamente diferente de um adoecer determinado por quantidades de energia pulsional endógena não administradas satisfatoriamente por um indivíduo.

Aproximando-nos da concepção de loucura e da psicopatologia implícita na obra winnicottiana, notamos que este psicanalista introduz visões transformadoras no campo das teorias sobre o sofrimento e adoecimento humanos, porque obrigam a uma revisão da loucura e da psicose, permitindo ver o sofrimento psicótico na vida de todos. A atenção rigorosa sobre aspectos primitivos do desenvolvimento emocional quando tudo caminha bem e quando falhas ambientais trazem a irrupção de campos agônicos nos permite compreender com radicalidade que a loucura e a psicose não são realmente estranhas a ninguém, expressando aspectos fundamentais da condição humana (Aiello-Vaisberg, 2006a).

Novamente, deparamo-nos com os termos loucura e psicose, colocados lado a lado como possibilidades que se encontram mais explícitas ou latentes, expressando fenômenos que são naturais do humano. Percebemos nestas ideias um convite a refletir e discutir até que ponto a loucura, entendida não como expressão de fenômenos primitivos potenciais e esperados, mas como queda nas agonias impensáveis, pode ser considerada uma dissonância, ainda que possibilidade humana repleta de sentido. Mais além, seria possível contar com um ambiente de holding, com um ambiente suficientemente bom que se afaste qualquer flerte com vivências agônicas, preservando-se apenas experiências primitivas sustentadas às quais os indivíduos teriam maior ou menor acesso em seus registros existenciais? Winnicott trata a vivência das agonias impensáveis como consequência de falhas ambientais que ocorrem em torno do bebê, compreendido como pura sensibilidade em estado de dependência absoluta. Nesse sentido, delimita este fenômeno a suas características concretas, isto é, descrevendo-o como sensação de desintegração pré-simbólica que se dá no campo da sensibilidade, anterior a qualquer entendimento mental que possa surgir para auxiliar alguém a dar conta do mundo ao seu redor. As lacunas na constituição de si, daí decorrentes, se estendem pela vida afora, manifestando-se através de dissociações, defesas contra a sensação de desintegração que podem se apresentar de maneiras diversas, levando-se em consideração o desenvolvimento de recursos mentais para tentar atribuir sentidos aos episódios vividos. Paralelamente, pode existir na condição humana uma precariedade, um desamparo ou insegurança que não se resolvem completamente com a maternagem suficientemente boa, não havendo, portanto, garantias de sua permanência num estado secreto ou distante? Tal precariedade seria diferente da condição do bebê lançado em campos de agonias impensáveis, fenômeno condizente com as situações de falha no cuidado ambiental, remetendo-nos mais a uma condição existencial comum a todos. Tomando situações concretas do viver para nos auxiliar a distinguir estes fenômenos, podemos imaginar uma pessoa que, sem um cuidado ambiental suficientemente bom em sua primeira infância, foi invadida por ansiedades primitivas e desenvolveu defesas dissociativas contra agonias impensáveis. Esta pessoa pode ser acometida, por exemplo, por episódios de pânico em seu escritório, trazendo vestígios de um colapso anterior. Este contexto difere daquele de um outro adulto, mais afortunado, que tenha recebido holding, desenvolvido sua capacidade de confiança, mas, devido a algum episódio traumático como um acidente grave, se vê lançado em uma condição de desamparo e extrema aflição. A ameaça vivenciada neste segundo exemplo pode levar a pessoa a sentir uma interrupção dramática de seu viver, mas isto é diferente da agonia impensável da infância precoce, quando não estamos diante de alguém que exista inteiro a partir de seu próprio ponto de vista e, portanto, não tem recursos suficientes para dar contorno ao abismo. Compreendemos que o termo agonia, tal qual pensado por Winnicott, diz respeito às vivências concretas do bebê e da criança pequena quando não encontram sustentação. As aflições, interrupções, colapsos experimentados por um adulto não poderiam ser denominados agonias, ainda que a elas possam estar intimamente ligados, dependendo de cada biografia. Além disso, ao falarmos de uma precariedade da condição humana que seria comum a todos e não passível de superação através da maternagem suficientemente boa, remetemo-nos a uma sensação de vulnerabilidade de cada ser diante dos mistérios do mundo, das questões do nascer e do morrer, das delicadezas, inseguranças e sofrimentos de cada existência.

Ao tomarmos a alternância dos estados integrados e não integrados como fenômeno potencial humano que pode ser favorecido ou não por condições de sustentação ambiental, as condições concretas históricas e políticas servem de malha na tessitura das dramáticas pessoais e coletivas. Encontramos em alguns sociólogos preocupados com as condições da vida contemporânea contribuições significativas para iluminar o olhar em direção ao sofrimento humano numa perspectiva relacional.

Baumann (2007) utiliza a metáfora da liquidez para criticar os vínculos humanos na atualidade, chamando a atenção para sua instabilidade. A rápida necessidade de mudança na forma de nossas vivências, a fim de seguir uma adaptação submissa à realidade mostrada pela mídia, retiraria o valor e o sentido das experiências, tornando a vida algo a ser exibido e assistido, ao contrário de propriamente vivido. Paralelamente, observa a extinção das comunidades, grupalidades humanas que podemos compreender como responsáveis pela sustentação das experiências pessoais, e sua substituição pela sociedade, coletivização que lança o indivíduo no anonimato e na funcionalidade da ação, fazer dissociado do ser. Se pensarmos que esta liquidez dos vínculos afeta, necessariamente, a maternidade, temos que problematizar as condições que uma família tem de receber com genuína hospitalidade e acolhimento um bebê na atualidade. Os sociólogos apontam para a fragilidade e instabilidade das relações humanas, permitindo-nos fazer uma ponte a respeito da qualidade do cuidado possível em nossos grupos, o que pode favorecer ou não a queda em agonias impensáveis na infância precoce, originando adultos mais propensos a adoecer emocionalmente.

Giddens (2002), eminente pensador da cultura, preocupado inclusive com a leitura de Winnicott, faz relação entre a insegurança ontológica, a ansiedade existencial e as condições concretas de ausência de sustentação no mundo moderno:

Essas questões incluem aquelas apropriadamente chamadas de existenciais, sejam elas postas no nível da análise filosófica ou no nível prático por indivíduos que atravessam um período de crise psicológica. São questões de tempo, espaço, continuidade e identidade. [...] Investigar tais questões ao nível da discussão filosófica abstrata é, obviamente, muito diferente de vivê-las. O caos que espreita do outro lado das convenções cotidi>anas ordinárias pode ser concebido psicologica>mente como horror no sentido de Kierkegaard: a perspectiva de ser ultrapassado por ansiedades que atingem a raiz própria de nossa sensação de estar no mundo. A consciência prática, jun>to com as rotinas diárias reproduzidas por ela, ajudam a por entre parênteses essas ansiedades não só, nem mesmo principalmente, por causa da estabilidade que implicam, mas por seu papel constitutivo na organização de um ambiente de faz de conta em relação às questões existenciais (Giddens, 2002, p. 41).

Um cotidiano que não dá sustentação, mas cria um faz de conta para promover maior afastamento, uma substituição da experiência vivida verdadeiramente pela informação ou exposição assistida na mídia, uma ausência da comunidade humana são visões que trazem o cenário perfeito para o surgimento de adoecimentos pautados na solidão, na artificialidade e no afastamento de si. Novamente, encontramos na sociologia um olhar pertinente para pensar as condições que um adulto tem na atualidade de prover cuidado, sustentação a um bebê humano, ser que se encontra em estadode pura sensibilidade. É importante não confundirmos a insegurança ou aflição do adulto que se encontra em situação de viver adversa com o que Winnicott denominava agonia impensável, desespero radical pertinente à condição de sensibilidade e vulnerabilidade do ser humano em sua infância precoce. A perda de sustentação na vida adulta é diferente desta perda na vida do bebê, ainda que possa remeter a pessoa adulta a uma situação inicial de sua biografia na qual não pôde encontrar cuidado suficientemente bom e viveu esta queda em toda sua radicalidade. O bebê e o adulto diferem drasticamente em termos de recursos para lidar com o sofrimento, o que tem consequências concretas distintas para o viver. A insegurança existencial de que nos falam estes importantes sociólogos nos parece adequada para descrever a situação do adulto que poderá ou não proporcionar um ambiente de cuidado suficientemente bom, diferindo da agonia do bebê quando não encontra tal ambiente e vivencia a queda no horror da desintegração.

O conceito de dissociação é utilizado com grande frequência nos textos de Winnicott, independentemente do tema e das ilustrações clínicas trazidas por ele. Não encontramos, porém, definições precisas deste conceito em sua obra. Winnicott (1982 [1945]) afirma que a dissociação acontece quando há uma integração incompleta ou parcial de algum aspecto do self. Em trabalho sobre a tendência antissocial, Winnicott (1997 [1965]) apresenta um caso clínico ilustrando o fenômeno dissociativo que faz com que a culpa pelo roubo seja sabida e declarada, porém não sentida. Tais observações convidam a um maior aprofundamento desta estratégia humana de sobrevivência existencial, exigindo que façamos uma diferenciação entre o que é experiência vivida com presença real e aquilo que chamaríamos de um esboço de vivência, informação mental ou rumor emocional sobre o que seria o não vivido de forma encarnada e inteira. Caminhando em direção à explicitação de uma psicopatologia relacional ou vincular que vê o sofrimento universalmente como afastamento de si por meio de defesas dissociativas em diferentes graus, as fronteiras entre as ditas neuroses e psicoses tornam-se tênues, assim como a diferenciação entre modelos de estratégias defensivas.

Refletir sobre os chamados fenômenos dissociativos nos faz voltar a atenção para a possibilidade de existirem duas abordagens psicopatológicas concomitantes na obra de Winnicott, as quais poderiam ser denominadas implícita e explícita (Aiello-Vaisberg, 2006a, 2006b). Em seu pensamento explícito, Winnicott (1982 [1945], 1990c [1963]) é fiel a uma divisão tripartite do sofrimento humano entre neurose, psicose e casos borderline, sendo que estes últimos abrangeriam fenômenos depressivos, a tendência antissocial e as constru-ções falso self. As neuroses são compreendidas como problemáticas relacionadas ao desejo, fenômeno que se opõe a necessidades e exige o amadurecimento pessoal. Ocorrem quando um suficiente grau de integração do self já pôde ser alcançado, atingindo-se então uma condição chamada de pessoa total. Para as outras duas categorias, estaríamos num campo de pessoas que ainda não alcançaram integração suficiente para viver relações triangulares e conflitos ditos edipianos. Para os neuróticos, Winnicott (1990c [1963]) recomenda que o psicanalista siga a técnica clássica descrita por Freud, enquanto, para os outros casos, afirma que o mais adequado seria fazer "uma outra coisa" (Winnicott, 1990b [1962]), a qual foi desenvolvida ao longo de toda sua obra como manejo de setting.

Ironicamente, encontramos nestes trabalhos comentários mais sutis quanto à suposta inexistência de neuróticos na Inglaterra e a impossibilidade de se encontrarem "casos bons" para a psicanálise, assim como sobre a provável existência de núcleos psicóticos em pacientes neuróticos. Winnicott abre caminho, dessa forma, para o aparecimento dos indícios de uma psicopatologia implícita não desenvolvida em que o sofrimento básico é o de não se sentir vivo e real. Greenberg e Mitchell (1994) colocam a teoria winnicottiana no modelo estrutural relacional, distanciando-a radicalmente do modelo pulsional e destacando uma concordância explícita em relação à psicanálise clássica que não se sustenta em um exame mais rigoroso:

Winnicott também desenvolveu uma teoria puramente de estrutura relacional, embora não fosse apresentada explicitamente como tal. A sua maneira de justapor as suas inovações à teoria anterior torna-se compreensível somente no arcabouço de suas fidelidades, uma lealdade à tradição clássica não forte o suficiente para afetar a estrutura básica de seu pensamento, mas suficiente para proclamar uma continuidade que não está lá (Greenberg e Mitchell, 1994, p. 286).

Defendendo o pertencimento de Winnicott a um modelo de pensamento relacional em oposição ao pulsional, Greenberg e Mitchell (1994) referem-se a uma má leitura que Winnicott teria feito de Freud e Klein, ignorando discordâncias e modificando construções teóricas para aquilo que ele julgava que seus predecessores gostariam de ter dito. Tal conduta geraria uma falsa impressão de continuidade, provocando uma noção equivocada, segundo a qual as teorias psicanalíticas seriam somatórias umas às outras, isto é, todo novo autor viria a acrescentar contribuições complementares e harmoniosas a um corpo teórico mais amplo.

Diante desse cenário, refletimos que Winnicott propõe transformações radicais e férteis nas compreensões do sofrimento e do adoecimento discutidas em psicologia, quando o referencial teórico escolhido é o psicanalítico. A apresentação de conceitos de saúde e doença em termos de um modelo psicopatológico relacional confere um posicionamento peculiar ao profissional de saúde mental, implicando-o diretamente na composição de um ambiente suficientemente bom ou não que irá proporcionar sustentação ao sofrimento vivido pelos pacientes. O olhar psicopatológico relacional constitui-se em intervenção em saúde mental, na medida em que dá ao profissional cuidador uma condição de necessária afetação, conduzindo seu esforço para um trabalho com a rede de sustentação que tem ao redor de cada problemática e não apenas com o indivíduo que se apresenta adoecido. Saúde e doença psíquicas são condições vinculares, deixando de ter sentido como fenômenos isolados que acontecem dentro de alguém. Além disso, pensamos que o modelo psicopatológico subjacente à teoria winnicottiana demonstra especificidades também frente a outros modelos de pensamento relacional, uma vez que Winnicott trata o "relacional" em termos absolutamente concretos. Em seu trabalho, os vínculos emergem de experiências concretas de cuidado que se iniciam na primeira infância, de maneira que a subjetividade se dá necessariamente entre pessoas. Isto difere de abordagens relacionais que tratam o mundo interno como fenômeno constituído a partir da interação entre psiquismos ou mentes. O pensamento winnicottiano, nesse sentido, se afasta radicalmente de concepções metapsicológicas para explicar as vinculações, atendo-se aos aspectos concretos do ser e fazer para formular uma teoria que encontra na clínica viva e na pessoa real e afetada do analista seus alicerces fundamentais de cuidado e saúde emocional.

 

Referências

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Submetido em: 11/05/2010
Aceito em: 13/08/2010

 

 

1 É importante salientar que, para sermos fiéis ao pensamento winnicottiano, não podemos falar em vínculo sob o ponto de vista do bebê, uma vez que este se encontra sensivelmente num estado fusional com a mãe ou cuidador. Falamos em vínculo a partir da perspectiva de um observador, o qual apreende duas pessoalidades envolvidas em relação e não um amálgama indiferenciado (Aiello-Vaisberg e Granato, 2006).

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