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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.2 São Leopoldo dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento

 

The promotion of psychological development in the aging process

 

 

António M. Fonseca

Universidade Católica Portuguesa. Faculdade de Educação e Psicologia. Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005, Porto, Portugal. afonseca@porto.ucp.pt

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é apresentar as principais bases teóricas e empíricas no âmbito da promoção do desenvolvimento psicológico em pessoas idosas. A orientação da psicologia do desenvolvimento para a população idosa deve-se ao interesse partilhado por um número crescente de psicólogos no uso de abordagens desenvolvimentais do comportamento humano. Através delas tem sido possível entender melhor a plasticidade do processo de envelhecimento e a importância das relações entre os indivíduos e os seus contextos de referência para a compreensão da diversidade no decurso do desenvolvimento humano, na segunda metade da vida. A emergência de uma perspectiva desenvolvimental aplicada ao indivíduo idoso fez-se acompanhar do aparecimento de intervenções simultaneamente dirigidas ao próprio indivíduo e aos contextos comunitários a que ele pertence, tendo como elemento comum a preocupação com o respectivo desenvolvimento. As bases conceituais e empíricas mais importantes subjacentes à promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento são apresentadas neste artigo, discutindo-se igualmente as implicações desta perspectiva para o desenho de programas de intervenção e para a ciência desenvolvimental, realçando a sua pertinência para a compreensão e promoção da vida das pessoas idosas.

Palavras-chave: desenvolvimento, envelhecimento, intervenção psicológica.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to present the main theoretical and empirical foundations for the promotion of psychological development with older people. The orientation of developmental psychology to older people has arisen because of interest among psychologists in using developmental approaches of human behavior and development for understanding the plasticity of the aging mind and development, and the importance of relations between individuals and ecological setings as a framework to understand diversity in the course of human development in the second half of life. A developmental psychology perspective applied to older people development has arisen as well through the implementation of interventions designed and delivered both in individualized and community-based ways. The most important conceptual foundations and empirical work being done to defi ne bases and features of developmental psychology applied to older people will be discussed as well as the implications of it for applications of developmental science aimed at improving human development of older people through the provision of programs and policies predicated on the use of a developmental psychology perspective for understanding and enhancing the lives of older people.

Key words: development, aging, intervention.


 

 

Introdução

O estudo científico do envelhecimento humano tem contribuído para modificar a visão tradicional deste período do ciclo de vida, baseada em modelos conceituais em que predominam as noções de declínio e incapacidade. Tipicamente, estes modelos, que enfatizam a noção de déficit ligada à vivência da condição de idoso, assentam numa visão reducionista, de tipo organicista, descrevendo as pessoas idosas como incapazes ou em risco de se tornarem incapazes, ou como um problema que tem de ser enfrentado. De fato, pelo menos até a década de 90 do século XX, o desenvolvimento positivo na velhice foi, implícita ou explicitamente, encarado sempre como a ausência de comportamentos negativos ou indesejáveis. Com efeito, ainda hoje não é raro que uma pessoa idosa que apresente um grau de funcionalidade indicativo de um desenvolvimento positivo seja vista como alguém que não tem demências, que não está senil etc.

Inspirado por esta necessidade de aprofundamento de uma visão positiva do envelhecimento humano, o objetivo deste texto é apresentar as bases teóricas e empíricas que fundamentam a possibilidade de promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento, em linha com a importância crescente que o estudo dos processos de envelhecimento tem adquirido no mundo todo.

Falar em promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento significa basicamente a possibilidade de as pessoas idosas, não obstante a idade cronológica, poderem continuar a apresentar traços positivos de desenvolvimento psicológico, algo visível sobretudo nos indivíduos cujo processo de envelhecimento corresponde a um "envelhecimento bem sucedido" (Baltes e Carstensen, 1996; Fonseca, 2005a). A visão positiva do envelhecimento, que fundamenta a promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento, surge a partir do interesse dos cientistas desenvolvimentais em aprofundar o conceito de plasticidade do desenvolvimento humano (Lerner, 2006), destacando o papel das relações entre os indivíduos e os contextos ambientais para a compreensão das diferenças interindividuais no decurso desse desenvolvimento.

A emergência de uma perspectiva de promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento comporta, finalmente, toda uma série de implicações teóricas e metodológicas, bem como aplicações no âmbito da ciência desenvolvimental destinadas a melhorar a vida dos idosos, através da implementação de políticas e programas capazes de favorecer um desenvolvimento positivo das pessoas mais velhas.

 

O desenvolvimento psicológicona velhice

Sob o ponto de vista psicológico, o envelhecimento abrange a segunda metade da vida, podendo ser definida a meia-idade como a respectiva porta de entrada. De um modo geral, o envelhecimento tem sido descrito como uma fase da vida marcada por transformações de ordem muito variada, começando pelo componente biológico e terminando no componente social. É consensual, também, que o impacto de toda esta série de transições é condicionado, em larga medida, pelas trajetórias desenvolvimentais percorridas pelo indivíduo durante a idade adulta (Furstenberg, 2002; Heckhausen et al., 1989). Dado os múltiplos níveis de organização considerados na estruturação do desenvolvimento humano durante este período, o envelhecimento pode ser definido como um período do ciclo de vida em que a generalidade das características pessoais (biológicas, psicológicas e sociais) muda de uma forma relacionada entre si, orientando-se progressivamente para a construção de uma imagem de si mesmo como idoso (e que se diferencia da imagem que habitualmente se faz de um adulto).

O desenvolvimento psicológico no decurso do envelhecimento envolve uma série de ajustamentos individuais face à ocorrência de mudanças no self, decorrentes de alterações corporais, cognitivas e emocionais, expectativas sociais, relações interpessoais, alterações familiares, profissionais, na rede de relações e no próprio contexto de residência (levando, por vezes, à institucionalização). Dada a enorme variabilidade interindividual, nem todos os indivíduos lidam com estas transições da mesma forma, como ilustram os resultados desenvolvimentais, os quais são substancialmente diversos de pessoa para pessoa. As diferenças individuais nesse processo adaptativo constituem, assim, um componente essencial do desenvolvimento psicológico na velhice, sendo provocadas pela diferente combinação de fatores e características biológicas, psicológicas e sociais, não detendo qualquer uma destas características primazia sobre as restantes (Fonseca, 2005b; Lerner, 2002).

Assim, a enorme diversidade presente nas trajetórias desenvolvimentais ao longo da velhice encontra a sua origem tanto nas modificações de cariz biológico e psicológico a que qualquer indivíduo está sujeito à medida que a idade avança, como nas relações que os indivíduos estabelecem com pessoas e instituições que encontram nos respectivos contextos sociais, ou seja, família, redes informais de relações, vizinhança, comunidade, sociedade, cultura e segmento da história. O elemento essencial que ajuda a compreender a multiplicidade de trajetórias desenvolvimentais constatada nesse período da vida (como de resto em qualquer período do ciclo de vida) é o "elemento relacional", considerando as relações que mutuamente se estabelecem entre uma "pessoa-em-desenvolvimento" e os múltiplos sistemas definidos pela ecologia do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 2005).

Ao contrário dos modelos que enfatizavam a noção de déficit ligada à vivência da condição de idoso e que foram predominantes até meados do século XX, a segunda fase no estudo do processo de envelhecimento preconiza a existência de uma enorme diversidade no modo como se encara esse mesmo processo, evoluindo de uma perspectiva de regulação de déficits para uma perspectiva claramente desenvolvimental. É óbvio que esta evolução obriga a modificar completamente pressupostos sobre "o que é desenvolver-se", quando se fala em envelhecimento, e a mudar os quadros de referência, quando se fala em desenvolvimento (por exemplo, não pensar apenas numa lógica de desenvolvimento físico ou de crescimento funcional). Na verdade, um dos principais erros quando se aborda o processo de envelhecimento é encará-lo mediante a aplicação de perspectivas de ordem organicista suscetíveis de enviesar todo o raciocínio subjacente à compreensão do processo de envelhecimento, o qual deve ser feito por intermédio de uma nova leitura, que tenha em conta a natureza das relações que se tecem entre o indivíduo e o contexto, moldando direções específicas desse mesmo desenvolvimento (Fonseca, 2005b).

Uma série de dados que a investigação tem realçado nos últimos anos evidencia a existência de plasticidade no desenvolvimento psicológico no decurso da segunda metade da vida, algo que fica evidente, aliás, se for levado em conta o leque de diferenças interindividuais e a verificação de diferenças no desenvolvimento intraindividual ao longo deste período (no domínio cognitivo, por exemplo). Contudo, apesar desses dados, o olhar social predominante acerca da natureza do desenvolvimento na velhice continua a ser regulado por um modelo de déficit, o que faz com que a atenção da comunidade política, nomeadamente, continue centrada na prevenção e/ou redução dos problemas causados pelo envelhecimento. Evidentemente não é possível (e muito menos desejável) negar a existência de problemas associados ao envelhecimento, ou a importância dos esforços dirigidos à prevenção desses mesmos problemas. Todavia, o advento de uma perspectiva positiva em torno do envelhecimento tem conduzido cada vez mais à ideia de que a melhor forma de prevenir os "problemas do envelhecimento" é focar a atenção na valorização das forças das pessoas mais idosas e promover mudanças positivas na segunda metade da vida, em ordem a uma adaptação cada vez mais bem sucedida entre as competências individuais e as exigências ambientais.

 

Promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento

As raízes da "promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento" encontramse no trabalho de psicólogos e de biólogos que estudaram a plasticidade dos processos desenvolvimentais emergentes da integração de níveis de organização biológicos e contextuais. O recurso à integração de níveis de organização diferenciados para a interpretação das mudanças desenvolvimentais teve o seu início nos anos 70 do século XX (Gottlieb et al., 2006; Lerner, 2006; Overton, 2006) e constitui-se como uma resposta à controvérsia nature-nurture, resolvida pela adoção de uma perspectiva integradora entre as influências genéticas e contextuais no desenvolvimento humano.

No quadro das perspectivas contemporâneas de estudo do desenvolvimento humano, o enfoque deste trabalho centra-se nos conceitos e modelos associados às teorias de desenvolvimento inspiradas no paradigma contextualista (Fonseca, 2005b, 2007), sendo várias as características que definem estas teorias:

• relação entre variáveis nature e nurture, entre continuidade e descontinuidade, no decurso do desenvolvimento humano;

• ntegração de todos os níveis de organização definidos pela ecologia do desenvolvimento humano (do biológico e fisiológico ao cultural e histórico);

• regulação desenvolvimental através de uma influência mútua entre os níveis atrás definidos, da parte genética ao funcionamento mental, ao comportamento, à cultura e sociedade e, finalmente, à história;

• plasticidade no desenvolvimento humano: como consequência da integração de níveis de análise do desenvolvimento humano, o sistema desenvolvimental é caracterizado por um potencial para a mudança ao longo do tempo;

• plasticidade relativa: a regulação do desenvolvimento imposta, por exemplo, por questões biológicas ou contextuais, pode simultaneamente facilitar ou constranger oportunidades para a mudança, pelo que a magnitude da plasticidade pode variar ao longo do ciclo de vida. Em todo o caso, o potencial para a plasticidade constitui uma orientação fundamental do desenvolvimento humano.

A combinação destas variáveis no âmbito do sistema desenvolvimental proporciona a base para as mudanças de ordem intraindividual e para a diversidade interindividual, constituindo a sua observação em qualquer ponto do ciclo de vida uma evidência da plasticidade desse mesmo sistema.

Em síntese, a possibilidade de estabelecimento de relações adaptativas entre os indivíduos e os contextos é um fator distintivo da mudança desenvolvimental (Baltes et al., 2005; Gottlieb et al., 2006; Thelen e Smith, 2006), proporcionando um quadro teórico capaz de influenciar a realização de escolhas metodológicas de investigação diversificadas e não circunscritas a determinadas técnicas estandardizadas. Mas a ênfase no estudo das condições do modo como o indivíduo (mais ou menos idoso) age no quadro de um determinado contexto e o modo como isso contribui para a regulação do seu desenvolvimento alimenta o interesse em abordagens centradas na pessoa, mais do que em abordagens centradas em variáveis isoladas (Daatland, 2003).

É na ligação entre os conceitos de plasticidade e diversidade que encontramos a base para a justificação de um pensamento desenvolvimental associado ao envelhecimento, podendo inclusivamente a segunda metade da vida servir como um testing ground para a exploração e verificação de certas teorias desenvolvimentais, forjando uma nova visão do desenvolvimento psicológico na velhice e das oportunidades de promoção desse mesmo desenvolvimento. O conceito de "envelhecimento bem sucedido", surgido no início dos anos 90 do século passado e largamente disseminado a partir disso (a ideia de "envelhecimento ativo" hoje tão em voga tem aí a sua primeira origem), é exemplo de como uma nova visão acerca do processo de envelhecimento pode introduzir um novo vocabulário associado à velhice e suscitar o interesse de agentes sociais e políticos, tendo em vista a melhoria da vida dos idosos e das respectivas famílias.

Assim, a possibilidade de promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento tem igualmente subjacente um conjunto de princípios que sustentam a necessidade de os idosos passarem a ser vistos como "pessoas a desenvolver" e não como "problemas a resolver". Pode-se discutir estes princípios com base em duas hipóteses: a primeira hipótese gerada é que, se as competências individuais forem estimuladas pelos recursos da comunidade - espaços cívicos e culturais, centros de ocupação de tempos livres, universidades seniores etc., podem prever-se benefícios positivos no funcionamento individual; a segunda hipótese preconiza que, quando uma pessoa idosa manifesta competência e permanece um agente ativo do seu próprio desenvolvimento, ele ou ela experimentam uma trajetória desenvolvimental onde se integram contributos diversos (de origem biológica e cultural) que se reforçam mutuamente e alimentam simultaneamente o self e a capacidade para interagir no quadro da família, da comunidade e das instituições da sociedade.

Esta segunda hipótese evidencia a necessidade de existência de contextos suscetíveis de favorecer o desenvolvimento psicológico em presença, quantidade e acessibilidade suficientes, refletindo as necessidades dos indivíduos idosos e permitindo-lhes explorar todas as capacidades de que sejam detentores. Há, pois, todo um conjunto de domínios ou "ativos" ecológicos (Bronfenbrenner, 1999) - humanos, físicos e institucionais, relacionais e comunitários - que estruturam os recursos e as oportunidades de desenvolvimento na velhice. Cada um desses domínios pode ser indexado a diferentes contextos de desenvolvimento.

O primeiro domínio engloba os recursos humanos presentes no ambiente que rodeia a pessoa idosa; entendem-se por "recursos humanos" forças, capacidades e talentos individuais demonstrados através do desempenho de papéis sociais. Este "ativo ecológico" é representado pelos indivíduos que se envolvem em atividades de cariz desenvolvimental (por exemplo, frequência de atividades culturais, de aprendizagem, de voluntariado) e que, também por isso, funcionam como modelos para os restantes cidadãos mais velhos.

O segundo domínio traduz os recursos físicos e institucionais presentes no ambiente que rodeia a pessoa idosa. Estes recursos constituem oportunidades de aprendizagem, lazer e envolvimento, favorecendo igualmente a criação de rotinas.

O terceiro domínio implica as relações interpessoais e comunitárias que se estabelecem no seio da família e da coletividade, quer através de redes informais de amigos e pares, quer através do envolvimento em redes formais de ocupação de tempos livres e de apoio psicológico, materializando assim os recursos antes referidos.

A regulação do comportamento individual nestes diversos domínios de promoção do desenvolvimento psicológico é, finalmente, caracterizada pela adoção de estratégias de coping que implicam, de forma mais ou menos consciente, estruturas e funções alargadas de cariz bio-fisiológico, psicológico e relacional. A análise destes mecanismos de regulação do comportamento durante a velhice e o papel por eles desempenhado na promoção do desenvolvimento psicológico durante o envelhecimento conduzem ao modelo proposto em várias ocasiões por Baltes e colaboradores e designado genericamente por modelo SOC - Seleção, Otimização, Compensação (Baltes e Freund, 2003).

O recurso a mecanismos de seleção, otimização e compensação funciona como uma forma de explicar o modo como decorre com sucesso a orquestração da vida humana, sendo visto como um modelo de adaptação suscetível de ser aplicado a diversos domínios do funcionamento humano (performance física, relações sociais, actividade cognitiva etc.), especialmente a partir da meia-idade e durante a velhice (Baltes e Carstensen, 1996; Freund et al., 1999; Heckhausen e Schulz, 1995). No essencial, o modelo SOC procede da convicção que o curso da vida supõe alterações regulares em termos de objetivos e do sentido da própria vida, requerendo tais alterações que se façam mudanças sistemáticas na distribuição de recursos. Enquanto na primeira metade da vida o investimento primário de recursos é dirigido a processos que configuram essencialmente ganhos desenvolvimentais, na segunda metade da vida, cada vez mais recursos são investidos no sentido da manutenção desses ganhos e da reparação das perdas, de forma a limitar as suas consequências.

Em conformidade, defende-se que a adoção dos mecanismos a que o modelo SOC se refere está positivamente correlacionada com a ocorrência de desenvolvimento psicológico no decurso do envelhecimento e negativamente correlacionada com a ocorrência de problemas de adaptação e de comportamentos desajustados durante a velhice, como evidenciaram Freund e Baltes (2002), recorrendo a medidas de avaliação dos processos de seleção, otimização e compensação aplicados à regulação de comportamentos em pessoas adultas e idosas.

 

Lidar com o envelhecimento: mudanças e adaptações

A atenção nos mecanismos de controle primário e secundário usados pelos indivíduos ao longo do ciclo de vida para lidarem com as mudanças decorrentes do processo de envelhecimento levaram Heckhausen e Schulz (1995) a defenderem que os seres humanos possuem uma necessidade intrínseca de controlar as suas vidas. Quando os esforços instrumentais para modificar os acontecimentos (controlo primário) se revelam insuficientes ou infrutíferos, o indivíduo tende a fazer os ajustamentos adaptativos necessários socorrendo-se de mecanismos cognitivos (controlo secundário), por meio dos quais, por exemplo, reduz os objetivos a alcançar ou estabelece comparações que o beneficiem (Heckhausen e Schulz, 1995). No entanto, acrescenta-se que tão ou mais importante do que assumir que o envelhecimento (sobretudo ao nível dos muito idosos) comporta, em geral, mais perdas do que ganhos, é verificar até que ponto as pessoas estão conscientes desse fato, algo necessário para que possam proceder à elaboração de estratégias, visando atenuar ou eliminar, tanto quanto possível, o impacto dessas mesmas perdas. Por outras palavras, será que as pessoas reconhecem, à medida que vão envelhecendo, a ocorrência deste fato objetivo que é a redução das suas capacidades?

Num estudo realizado com 100 alemães, homens e mulheres, com idades compreendidas entre os 20 e os 85 anos, Heckhausen et al. (1989) procuraram verificar até que ponto existe uma relação entre comportamento e crenças subjetivas acerca do envelhecimento, ou seja, até que ponto a consolidação de crenças relativas ao curso de vida pode associar-se ao modo como o indivíduo concebe o seu envelhecimento e o dos outros, agindo em conformidade com essas concepções e "produzindo" o seu próprio desenvolvimento. Os indivíduos eram questionados acerca da ocorrência de mudanças num largo número de atributos, de natureza física e psicológica, suscetíveis de se desenrolarem entre os 20 e os 90 anos, bem como acerca da maior ou menor capacidade para controlar tais mudanças. O estudo acabou por demonstrar que os indivíduos têm consciência, efetivamente, de que, à medida que a idade avança, as perdas vão, progressivamente, ganhando terreno em relação aos ganhos (sobretudo a partir dos 70 anos de idade), acreditando que se sobrepõem a esses (maior percentagem de perdas do que ganhos) a partir dos 80 anos. No entanto, mesmo nesta idade, subsiste a crença de que a "sabedoria" pode continuar a aumentar, sendo este o principal ganho percepcionado pela generalidade dos sujeitos. O conjunto de crenças partilhadas pelos participantes deste estudo (com poucas diferenças quanto à idade e quanto ao sexo) parecia, contudo, não influenciar negativamente na sua percepção quanto ao respectivo desenvolvimento psicológico. Apesar de os sujeitos encararem o envelhecimento como um processo inevitavelmente ligado a mudanças menos desejáveis e menos controláveis que aquelas que se verificam ao longo da idade adulta, mantinham o otimismo e a convicção nas potencialidades individuais, contrariando claramente o estereótipo negativo geralmente atribuído à velhice (Heckhausen et al., 1989).

Como explicar, então, que o envelhecimento possa ser "bem sucedido" quando se está perante uma oscilação entre ganhos e perdas desenvolvimentais no sentido de um progressivo predomínio das perdas sobre os ganhos, de que as pessoas têm inclusive plena consciência? Várias possibilidades podem ser levantadas. Uma, de natureza ecológica, aponta no sentido de um ajustamento das condições ambientais por forma a fazer face aos desafios do envelhecimento, procurando-se alcançar um ajustamento recíproco entre o indivíduo e o meio onde vive (Lawton, 1999); outra, ligada aos mecanismos de controle, preconiza uma avaliação das mudanças que se sucedem com o envelhecimento em termos das crenças que as pessoas mantêm acerca de si, reagindo face a essas mudanças pela reformulação dos seus objetivos e aspirações (Brandtstadter et al., 1997); e a terceira, inspirada na psicologia desenvolvimental do ciclo de vida, recorre ao modelo SOC para justificar como os indivíduos podem utilizar mecanismos de "orquestração" das suas próprias vidas que lhes permitem maximizar os ganhos e minimizar as perdas, potencializando um envelhecimento bem sucedido (Freund et al., 1999).

O recurso a mecanismos de "seleção-otimização-compensação" como uma forma de explicar o modo como decorre com sucesso a orquestração da vida humana constitui, a partir do trabalho pioneiro de Paul Baltes, um modelo de adaptação suscetível de ser aplicado a diversos domínios do funcionamento humano (performance física, relações sociais, atividade cognitiva etc.), especialmente a partir da meiaidade e durante a velhice. No essencial, o modelo SOC procede da convicção de que o curso da vida supõe alterações regulares em termos de objetivos e do sentido da própria vida, requerendo tais alterações que se façam mudanças sistemáticas na distribuição de recursos. Enquanto na primeira metade da vida o investimento primário de recursos é dirigido a processos que configuram essencialmente ganhos desenvolvimentais, na segunda metade da vida cada vez mais recursos são investidos no sentido da manutenção desses ganhos e da reparação das perdas, como forma de limitar as suas consequências.

Considerando a globalidade do desenvolvimento humano, alcançar o sucesso nos múltiplos processos adaptativos que o decurso desse desenvolvimento pressupõe, implica sempre, numa perspectiva de ciclo de vida, supor uma interacção pessoa-ambiente em que se procura maximizar os ganhos e minimizar as perdas desenvolvimentais (Baltes e Carstensen, 1996). Para Baltes e Smith (2004), o modelo SOC adquire a sua expressão mais significativa algures na meia-idade, altura em que verdadeiramente a percepção do envelhecimento começa a fazer-se sentir de forma irremediável. Daí por diante o sistema SOC apresenta indícios de uma menor ativação, nomeadamente no que diz respeito à estratégia conhecida por "seleção escolhida" (quando o indivíduo, guiado por uma motivação própria, seleciona um dado percurso desenvolvimental de entre um leque de oportunidades), devido provavelmente à diminuição de recursos que, mais cedo ou mais tarde, afetam os indivíduos idosos (Baltes e Carstensen, 1996). Contudo, são generalizadas as evidências que apontam para uma correspondência entre o uso de comportamentos de "seleção-otimização-compensação" e a obtenção de resultados desenvolvimentais favoráveis (bem-estar, experiência de emoções positivas, satisfação de vida, sentido para a vida, realização de objetivos pessoais).

Contrariamente às primeiras definições de envelhecimento bem sucedido, focalizadas essencialmente na satisfação de vida ou num ajustamento do indivíduo a um determinado contexto, Baltes e Baltes (1990) são da opinião de que uma definição inclusiva de envelhecimento bem sucedido, com base na interação de mecanismos de "seleção-otimização-compensação", requer uma análise conjunta de indicadores de natureza objetiva e subjetiva por meio dos quais se possa compreender a variabilidade interindividual a todo o momento observada nos idosos, em termos de interesses, valores, saúde, recursos disponíveis, capacidades de realização etc. Em cada situação de envelhecimento bem sucedido se está perante um novo arranjo, uma "manifestação fenotípica", individualizada e criativa dos três mecanismos implícitos no modelo SOC: "A individualização desta estratégia de gestão da vida [SOC] assenta em padrões individuais, que podem variar de acordo com interesses específicos, saúde, preferências e recursos. Em cada caso de envelhecimento bem sucedido, existe uma apropriação criativa, individualizada, e socialmente apropriada, dos mecanismos de selecção, optimização e compensação" (Baltes e Baltes, 1990, p. 24).

 

Conclusão

O interesse teórico e a relevância social das mudanças que ocorrem durante o envelhecimento são razões suficientes para que a velhice suscite na atualidade cada vez maior atenção da comunidade científica. O avanço do conhecimento e da qualidade das intervenções destinadas a promover o desenvolvimento psicológico no envelhecimento considera tanto a análise das trajectórias desenvolvimentais percorridas pelos mais idosos, como as circunstâncias ambientais em que essas trajetórias se verificaram. E porque os indivíduos idosos são tão diferenciados entre si, não se pode nunca esperar que uma mesma intervenção possa produzir resultados idênticos quando aplicada a um idoso residente em meio rural e um residente em meio urbano, ou quando aplicada a um idoso pouco escolarizado e um muito escolarizado, por exemplo.

A ciência desenvolvimental contemporânea constitui uma abordagem suscetível de integrar os diversos contributos teóricos aqui explorados e, desse modo, facilitar a promoção do desenvolvimento psicológico no envelhecimento. Esta abordagem tem repetidamente sublinhado, de diversos modos, como é importante atender aos múltiplos caminhos por meio dos quais os indivíduos idosos, estabelecendo trocas dinâmicas com os contextos que habitam, não cessam de criar para si próprios e para os que os rodeiam oportunidades de desenvolvimento positivo. Como Bronfenbrenner (2005) resume de forma eloquente, é através destas relações que os seres humanos se tornam autenticamente humanos.

Ao defender-se este ponto de vista, se está perante uma oportunidade única para endereçar uma série de questões que, inspiradas pela psicologia, encontram a sua aplicação imediata no plano social e político: que ações, com que duração, em que comunidades, dirigidas a que idosos, podem verdadeiramente resultar na promoção de um desenvolvimento psicológico positivo no decurso do envelhecimento? Como pode esse desenvolvimento ultrapassar a esfera individual e estender-se à família e aos pares, à comunidade e à sociedade? Como podem todos, cientistas e agentes sociais e políticos, contribuir para o estabelecimento de relações mutuamente profícuas entre os cidadãos mais velhos e as sociedades tão carentes de justiça social?

 

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Submetido em: 30/04/2010
Aceito em: 31/07/2010

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