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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.4 no.1 São Leopoldo jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Sobre a hospitalidade e a hostilidade: uma discussão do conflito frente ao imigrante

 

About the hospitality and the hostility: a discussion of the conflict concerning the immigrant

 

 

María Liliana Inés Emparan Martins Pereira

Coordenadora do Projeto Ponte. Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae-São Paulo. Rua Apinajés, 1709. Sumaré, 01258-001, São Paulo, SP, Brasil. liliana@bratex.net

 

 


RESUMO

Este artigo analisa o fenômeno imigratório tendo como referencial a Psicanálise. O estudo teórico se apoia em uma situação ficcional oferecida pela discussão do filme Tempos de Paz (Filho, 2009). A partir dos conceitos de hospitalidade e hostilidade, o estudo procura discutir a ambivalência tanto existente em relação ao imigrante quanto frente ao estrangeiro em nós mesmos. O artigo conclui que a mudança de território provoca efeitos na subjetividade que podem resultar em mudança de posição subjetiva desde que o sujeito consiga se confrontar com a hostilidade-hospitalidade primordial que o constituiu, e a estranheza reeditada pela imigração.

Palavras-chave: imigração, hostilidade-hospitalidade, psicanálise.


ABSTRACT

This article analyses the immigration phenomenon having Psychoanalysis as reference. The theoretic study is based on an off ered fictional situation discussing the movie Peacetime (Filho, 2009). Starting from the concepts of hospitality and hostility, it looks for discussing both the ambivalence existing in relation to the immigrant as well as to the foreigner in ourselves. The article concludes that territory moving causes effects in the subjectivity which can result in changing the subjective position since the subject seems to be able to deal with the primordial hospitality-hostility that constituted him and the estrangement reissued by immigration.

Key words: immigration, hostility-hospitality, psychoanalysis.


 

 

Um ato de hospitalidade só pode ser poético. (Derrida, 2003, p. 4)

 

Introdução

O presente artigo tem como finalidade discutir os conceitos de hospitalidade e hostilidade na interface com o fenômeno da imigração. Como estudo particular, baseou-se em uma situação ficcional, neste caso, um filme que trata do fenômeno imigratório no Brasil. A análise recai sobre os principais personagens do filme Tempos de Paz1 envolvidos diretamente na questão da imigração: o representante do estado brasileiro que recebe o imigrante e o próprio imigrante que anseia ser recebido.

O momento histórico em que se apoia a história do filme será considerado apenas em relação às peculiaridades do posicionamento político do Brasil frente ao imigrante, servindo como baliza para compreender as vicissitudes sofridas pelos personagens do filme na época em questão. Partirei, então, das análises realizadas por historiadores, contemplando, assim, a necessidade de contar com dados concretos sobre a história da imigração no Brasil para alcançar, posteriormente, o objetivo de uma análise a partir do referencial psicanalítico, que contribua para apresentar a questão da hostilidade e da hospitalidade face ao imigrante por meio dos efeitos na singularidade e nas relações que se estabelecem entre os sujeitos2. Todavia, cabe destacar que, evidentemente, não se negam os aspectos contextuais anteriormente referidos; estes fazem parte do cenário concreto e conhecido em que os sujeitos se movimentam. Pretende-se, contudo, efetuar um zoom nas subjetividades dos envolvidos, a partir do instrumental da Psicanálise. Sendo assim, as ideias, as imagens, as posições dos sujeitos em relação a esse discurso e o cenário oficial ganham interesse.

O alvo será, então, a análise do conflito que se cria entre ambos os personagens no qual a hospitalidade e a hostilidade frente ao estrangeiro ganham destaque. O estrangeiro será tratado aqui para além da concretude do fenômeno nacional e avançará sobre as fronteiras do psiquismo. O embasamento psicanalítico considerará que a constituição da subjetividade implica uma diferenciação entre eu-outroe comporta um estranho em nós mesmos. É isso que veremos primorosamente através do diálogo estabelecido entre os personagens do filme no impasse colocado frente à possibilidade de hospedar um estrangeiro e de lidar com a hostilidade decorrente disso. A tentativa de resolução dessa experiência conflitiva traz um efeito de subjetivação em ambos os personagens, ou seja, ao lidar com conteúdos recalcados se produz um deslocamento de posição.

 

O movimento das migrações

As imigrações de grupos religiosos, étnicos ou de diferentes nacionalidades têm várias causas. Neste texto, serão agrupadas em quatro grandes segmentos que abarcam problemas econômicos, como falta de emprego ou de condições de trabalho, crises e ausência de perspectivas de melhora, pobreza, exploração; políticos, tais como perseguições, exílios, atentados, falta de garantias civis, guerras; religiosos, como discriminação, não liberdade de culto, fanatismo; e sociais nos quais se sofre por discriminação, exclusão, intolerância contra grupos ou pessoas, conflitos culturais e/ou linguísticos etc. A imigração aponta, portanto, para um passado de sofrimento que se quer abandonar e para um futuro em que se projeta a esperança de mudança. Nas palavras de Escobari (2009, p. 19):

Os deslocamentos geográficos são tão antigos quanto a humanidade, mas certamente se apoiam na ideia (reforçada na pós-modernidade) de que é possível recriar um futuro independente do passado.

Todavia, o passado não se circunscreve apenas à geografia ou à história de um país que se deixou para trás, mas inclui a própria constituição da subjetividade. Portanto, somados a esses fatores estruturais, que são efeitos do contexto histórico de um país - de onde se emigra, ou daquele para o qual se imigra - existem as posições singulares, tanto dos sujeitos que "decidem"3, por diversas razões, mudar de país, quanto daqueles que recebem esses imigrantes. Ou seja, o movimento realizado por sujeitos em relação à mudança de território provoca efeitos na subjetividade, seja pela diferença de cultura, seja pela língua, seja pelas relações estabelecidas etc.

A partir de uma leitura psicanalítica, a imigração pode ser entendida, então, de uma outra forma, isto é, em relação aos efeitos na subjetividade. O sujeito que chega a um país ou a uma região e o sujeito que recebe o estrangeiro sofrem um estranhamento, que remete inconscientemente aos primórdios do psiquismo, à constituição da subjetividade que se pauta na familiaridade e na diferenciação entre o eu-outro (Freud, 1914). Estabelecendo um paralelo, pode-se considerar que o confronto com o imigrante, que encarna uma diferença radical, aciona conteúdos inconscientes da fundação do sujeito, em relação à forma hospitaleira e hostil com que foi recebido o bebê humano pelo casal parental. Propicia, portanto, um efeito de regressão subjetiva, pela perda de referenciais familiares. Considero que a regressão pode, por um lado, ligar conteúdos psíquicos dispersos, dando-lhes um contorno que a figura do imigrante pode encarnar, concretizando, assim, um posicionamento que alterna a receptividade e a expulsão desse outro diferente. Ou, por outro lado, pode contribuir para a separação e a diferenciação em relação a esse outro primordial, reeditado agora na figura do imigrante, permitindo, assim, aceitar sua alteridade.

Estou me referindo aqui à ideia de que frente à diferença de um novo espaço, de um outro, se convoca um sujeito que poderá lidar com esse conflito de várias formas: ora se aferrando ao passado e a sua pátria, idealizando seu passado, negando os motivos da saída e a realidade do novo país; ora recalcando a estranheza frente ao novo, negando a própria origem e o esforço de adaptação, idealizando o novo país, ou, por fim, construindo uma terceira posição que realize um trabalho de elaboração do luto da pátria de origem, que considere perdas e ganhos, assumindo a escolha de deixar um país e viver em outro, efetivando um pertencimento. O movimento de sair de um lugar e ingressar em outro pode promover um deslocamento psíquico, uma mudança de posição. Assim, como aponta Rosa (Rosa et al., 2009, p. 501), "Muitos que migram buscam, de certa forma, ampliar horizontes, conquistas, promover deslocamentos psíquicos ou mesmo romper apegos melancólicos a estilos de vida estagnados e superados".

 

Sobre o contexto histórico do filme

Sabe-se que os movimentos de maior intensidade na história da imigração para o Brasil ocorreram no final do século XIX e começo do XX4. Os contingentes de imigrantes eram formados, em sua maioria, por alemães, espanhóis, italianos, japoneses, sírios, turcos e portugueses.

O filme retrata um desses momentos: o cenário brasileiro do final da II Guerra Mundial5. Faz-se necessário, então, esboçar, ao menos, o momento pelo qual o Brasil passava para melhor compreender a sutileza do recorte histórico e da cena que se instaura: um imigrante polonês que desembarca no Brasil, no período de Getúlio Vargas e é impedido de entrar no país.

Tucci Carneiro (2003, p. 23) faz uma análise histórica da relação do Brasil com seus imigrantes, a partir das imagens socialmente construídas. Ela nos diz que a imagem do imigrante "foi sempre construída pela diferença em relação ao 'outro'"6. Ou seja, a referência é a oposição em relação ao autóctone, entendida aqui como um outro diferente - oposição que se constrói a partir da crença de que existe uma identidade do brasileiro que persiste apesar das transformações histórico-culturais; identidade que se cria, portanto, em relação a pares contrários7.

No caso brasileiro, a referência foi, por um lado, o grau de civilização e progresso e, por outro, a pureza da raça dos grupos de imigrantes. Consequentemente, tem-se como característica identitária do brasileiro a nãocivilização e a miscigenação.

O ideal de branqueamento fez com que grupos de imigrantes não brancos fossem desprezados. Aqui podemos considerar, como exemplo, o preconceito contra os africanos negros e os chineses, na época da proclamação da República8 e, posteriormente, em relação à vinda dos japoneses nos períodos compreendidos entre 1908 e 1923, considerados como perigo amarelo.

Posteriormente, as teorias racistas seriam o alicerce para as perseguições em relação a judeus, ciganos, assírios, poloneses e russos, ocorridas no governo Vargas, cujo alinhamento político se inspirava nos regimes nazi-fascistas. Essas práticas anti-semíticas paradoxalmente conviviam com o ideário de um Brasil de democracia racial e de cordialidade e eram "justificadas" pelo temor de uma conspiração judaico-comunista (Tucci Carneiro, 2003).

Perazzo (2003) discute também algumas medidas adotadas em relação aos cidadãos do chamado Eixo9 que arribavam ao Brasil, como a "reclusão dos imigrantes indesejáveis", no período que vai de 1942 a 1945. Os prisioneiros de guerra, em especial alemães, japoneses e italianos, ficavam em campos de concentração10. Ribeiro (2003) descreve o clima político na era Vargas, em relação aos imigrantes contrários aos ideais do Estado, no qual as perseguições e torturas eram sofridas por comunistas, anarquistas e antifascistas.

Essas análises mostram que o imigrante representava o que se desejava como nação, ou seja, aquilo que faltava ao Brasil: ordem, progresso e pureza. Pode-se compreender, portanto, que os imigrantes que não tivessem as características ambicionadas não seriam valorizados. Contudo, os conflitos mais paradoxais surgiam justamente nos casos de não integração social do imigrante "ideal", seja pela sua dificuldade com a língua, com os costumes e com a cultura brasileira, seja por possuir outras formas de pensar, isto é, os conflitos ocorriam por questões em relação a sua origem, a sua tão almejada diferença.

 

A análise do conflito a partir da Psicanálise

Desde o ponto de vista psicanalítico, pensar-se-á na ambiguidade que despertava a figura do imigrante em relação ao que se desejava e não se possuía. Em outras palavras, o imigrante era alvo de um movimento de hospitalidade e de abertura ao diferente e, ao mesmo tempo, de hostilidade e de fechamento perante pessoas ou grupos não homogêneos que ameaçariam a "brasilidade".

Esse movimento, que aproxima e repele ao mesmo tempo, foi estudado pela Psicanálise, tanto na relação do sujeito com o outro diferente, quanto em relação aos conteúdos próprios inconscientes, negados, expulsos, segregados e, nesse sentido, considerados estrangeiros ao sujeito (Freud, 1919). Seriam estes, portanto, marcas muito primordiais impressas no psiquismo e na constituição do sujeito.

Derrida (2003) relembra as interpretações de Benveniste a partir da palavra hostis que, em latim, significa tanto hóspede, quanto hostil, inimigo, passando a criar o termo hostipitalidade. A partir dessa condensação, a nova palavra, que agrega a hostilidade e a hospitalidade, explicita um conceito que reúne a duplicidade e a ambiguidade do movimento daquele que recebe e daquele que chega.

Nesse sentido, o filme Tempos de Paz pode ajudar a pensar o conflito vivido entre dois sujeitos - um nativo e outro imigrante, ao se depararem com a alteridade -, e como essa relação de hospitalidade e hostilidade é configurada. A história do filme retrata uma ficção na qual um ex-ator polonês ao final da II Guerra Mundial trata de fugir dos horrores do nazismo e imigrar para o Brasil, imaginando um país sem violência, um país de paz. Frente à imagem paradisíaca da natureza exuberante do Rio de Janeiro, ele diz: Se há um homem feliz no mundo, é no Brasil, fala que remete a um imaginário de perfeição acalentado por tantos imigrantes em relação ao país11.

Contrapondo-se a esse paraíso, a realidade brasileira é retratada através da figura de um ex-torturador da polícia política de Getúlio Vargas, atormentado ao temer a represália de seus ex-prisioneiros que obtém liberdade via anistia. No momento da chegada do imigrante, ele desempenha o cargo de Chefe da Imigração da Alfândega do Rio de Janeiro cuja função é não permitir a entrada de nazistas. Esse personagem encarna a posição ambígua do Brasil - através da participação e do envio de tropas do país no cenário internacional da guerra contra o nazismo, e da ditadura vivida na Era Vargas, onde se perseguiam e se torturavam opositores ao regime, que poderiam paradoxalmente ser comunistas ou nazistas.

No caso específico da nacionalidade desse imigrante, sabe-se que, do lado do Brasil, historicamente existia uma posição contrária à entrada de poloneses, considerados pelo governo e políticos da época como "homens sem profissão e sem trabalho, provavelmente comunistas" (Tucci Carneiro, 2003, p. 42). Do outro lado, vê-se a relação idealizada entre um imigrante e o país escolhido em relação à hospitalidade, deixando de lado qualquer ideia de hostilidade. Essa posição será colocada em cena na chegada ao Brasil e trará efeitos em relação à sua subjetivação.

A estranheza provocada pelo reconhecimento de um outro diferente em ambos os personagens aparece recalcada. No imigrante, na tentativa de falar o idioma português perfeitamente, negando-se inclusive a conversar com seus compatriotas na sua língua materna. No nativo, na ideia enganosa de que conhecia todas as histórias de sofrimento dos imigrantes, assim esse outro não se apresentaria como alguém diferente, mas como a repetição do mesmo, do já conhecido.

Quando entramos num lugar desconhecido, a emoção sentida é quase sempre a de uma indefinível inquietude. Depois começa o lento trabalho de familiarização com o desconhecido, e pouco a pouco o mal-estar se interrompe. Uma nova familiaridade se segue ao susto provocado em nós pela irrupção de "um outro". Se o corpo é tomado por reações instintivas as mais arcaicas pelo encontro com o que ele não reconhece imediatamente no real, como o pensamento poderia realmente apreender, sem espanto, "um outro"? (Dufourmantelle, 2003, p. 28).

No cenário do filme, a não permissão do ingresso do imigrante polonês ao Brasil, além de refletir também uma ambiguidade em relação às leis de imigração da época, coloca em xeque a veracidade da identidade do estrangeiro. O personagem aprende a falar português antes de fazer a viagem, o que o ajudará, pensa, a esconder sua origem polonesa-judia, mas principalmente porque "aprender uma língua estranha me fez esquecer...". Pode-se ler nas entrelinhas que o esquecimento diz respeito à violência, à hostilidade da guerra. Assim, ele aceita, aparentemente sem hostilidade, aprender a língua dos "donos da casa", negando a violência que sempre implica abrir mão do que é familiar. Há uma necessidade de negar a vida pregressa de violência e de horrores, de deixá-la para trás e de tentar uma nova vida. Essa mudança inclui também o abandono de sua anterior profissão de ator e a tentativa de ser reconhecido como um agricultor. "O Brasil precisa de braços fortes para a lavoura", é a frase incansável que repete, na tentativa de encontrar uma explicação lógica para o seu movimento. Essa negação será a armadilha que fará com que o Chefe de Imigração o confunda com um nazista camuflado.

Vemos, portanto, na figura do imigrante, o recalcamento da perda. Ele apresenta um esquivamento da estranheza frente ao novo e uma tentativa de mudar de vida. Todavia, há um trabalho de luto a ser realizado por aquele que deixa seu lugar de origem, mesmo quando se deseja emigrar. Freud já apontava isso em seu texto Luto e Melancolia (1917) quando disse que o luto é uma reação frente a uma perda de algo que ocupou o lugar de um ente querido, um país, um ideal (p. 275), perda esta que exige um trabalho de elaboração a ser realizado.

Koltai (2000) considera essa estranheza e nostalgia do estrangeiro, do exilado, como efeito da perda dos referenciais conhecidos. Assim, quem deixa o seu país terá que se defrontar com um outro, situação que implica sair do familiar e entrar em contato com o estranho. O interessante é que o efeito desse trabalho de elaboração da perda do familiar pode promover uma mudança de posição, que inclua a inovação. Ela esclarece: "O trauma de ruptura pode provocar uma subversão e levar o sujeito a realizar o que jamais poderia ter feito em seu país natal" (Koltai, 2000, p. 21).

 

Sobre o conflito

Quem é você afinal? A quê e por que veio? Perguntas feitas ao estrangeiro que parecem fazer eco às verdadeiras perguntas recalcadas do extorturador: Deveria eu me sentir culpado pelas barbáries que cometi? Se eu apenas cumpri ordens, quais foram as próprias? O que significa sofrer?

A partir das perguntas explícitas ou latentes, o setting do filme muda, apesar de se passar no mesmo lugar específico. A assimetria se acirra, obrigando os personagens a assumirem suas posições intensamente: o ex-policial, desde o lugar de poder e da lei - porém, não de uma lei à qual todos estão submetidos, mas de uma lei própria, implacável; o imigrante, do lugar de quem está submetido ao outro, de alguém que está em suas mãos, sem escolha. Nesse momento do filme, o outro é ainda o oposto de mim e não o outro da diferença.

Nas cenas seguintes, a hostilidade se explicita, provocando uma guerra de sobrevivência que se estabelece entre os personagens e é apresentada através da proposta perversa do Chefe de Imigração, que consiste em que o ator tente fazê-lo chorar em 10 minutos, em troca do salvo-conduto do Brasil ou o embarque no navio. Em um diálogo cruel entre o imigrante e o ex-policial, o que se coloca em cena é a subjetividade de ambos, deflagrando o que hospedam no psiquismo e o que desejam expulsar. Pode-se considerar que a proposta do ex-policial de fazê-lo chorar em troca do salvoconduto, ao qual na verdade o imigrante teria direito, traz implícita também uma abertura, a possibilidade de um deslocamento.

O ex-policial consegue contar sem se abalar as torturas que cometeu e alega estar cansado de ouvir as histórias de guerra dos imigrantes: o que você pode me contar que pode me causar uma emoção diferente?

A pergunta nos remete ao texto de Freud O estranho (1919). Nesse trabalho, Freud nos adverte sobre a ambiguidade presente nos termos unheimlich (estranho) e o seu oposto heimlich (familiar) que, além da significação original, podem comportar o sentido oposto. Freud (1919) refere, também que, ao eliminarmos a estranheza frente ao novo, aquilo que é visto, ouvido, vivido etc. se torna familiar, já conhecido. Sendo assim, extensivamente, podemos inferir que o personagem do filme, ao considerar a priori que todas as histórias lhe são familiares, repele, expulsa e anula o estranhamento, o desconforto e o desconhecimento que, nesse caso, poderiam significar a possibilidade de se interrogar e de interrogar o outro. Interrogar-se diz respeito à (im)possibilidade de reconhecer o outro na sua alteridade, o que poderia provocar algum movimento na repetição da posição adotada por ele. Contudo, a familiaridade também revela que existe algo íntimo e oculto que não pode ser revelado.

Nas palavras de Enriquez (1998, p. 40):

O estrangeiro real e o estrangeiro em nós se juntam. Rejeitando o estrangeiro, se está seguro igualmente de sua própria coerência e identidade. O estrangeiro sempre faz mal àquele que recusa a interrogação. Pois justamente o papel do outro em sua pura alteridade, do estrangeiro, é sempre questionar nossa certezas.

Diante da frieza e da hostilidade do Chefe de Imigração, cai o véu do imigrante em relação ao idioma português que considerava uma "língua falada por passarinhos, tão doce, tão alegre".Considero que essa fala sobre a "beleza" da língua e do país, recorrente em tantos imigrantes, mostra a imaginarização de uma língua como representante dos estereótipos sociais de um país considerado "alegre e pacífico por natureza"12. Tacitamente também revela o que se espera dessa nação: uma grande mãe que os receba, que os acolha, porém, uma mãe que não castre, que elimine o dois da diferença entre o eu-outro e faça um de novo13. Paralelamente, os imigrantes que dizem nada entender sobre a língua estrangeira e se recusam até a falar mantêm, todavia, uma posição semelhante em relação ao país para onde imigram, no sentido da necessidade especular de que o outro os entenda, os traduza, como faz a mãe em relação ao seu bebê.

O imigrante do filme, ao cair o véu imaginário da língua, entra em contato com a não perfeição, com a falta. Consequentemente, cai também o véu do direito-dever à hospitalidade, que "pressupõe uma casa, uma linhagem, uma família, um grupo familiar ou étnico recebendo um grupo familiar ou étnico" (Derrida, 2000, p. 21-22). Isso, por sua vez, implica dois na diferença.

Em outras palavras, a constatação da falta, aos poucos, vai configurando um deslocamento do personagem imigrante, pois se instala uma diferença de posição que propicia a alteridade entre ambos. Relativizam-se, assim, os lugares do poderoso e do submisso, encarnados nos personagens do policialcruel e do imigrante indefeso. É justamente a possibilidade da diferença o que permite esse deslocamento.

Nenhum que chega é recebido como hóspede se ele não se beneficia do direito à hospitalidade ou do direito ao asilo, etc. Sem esse direito ele só pode introduzir-se "em minha casa" de hospedeiro, no chez-soi do hospedeiro (host), como parasita, hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de detenção ou expulsão (Derrida, 2003, p. 53).

O conflito se inicia quando, apesar de falar bem o português, o estrangeiro diz não ter palavras para contar o horror que viu na guerra. "O teatro nunca vai falar do mundo que eu vi", ele diz.Assim, o imigrante deve deixar de lado a ficção das mãos calejadas de agricultor e usar da realidade das mãos do artista e da sua linguagem. Aos poucos, percebe que não é através do relato da realidade de horror do nazismo que conseguirá fazê-lo chorar. Mais do que a concretude do choro, trata-se de poder narrar o que aconteceu, de encontrar palavras que falem em nome próprio. E isso também significa lidar com a dificuldade real de narrar sua história de dor falando uma língua que não a materna. Como contar a história de sofrimento de seu país de origem? Precisará, então, entrar em contato com os conteúdos estrangeiros que o trauma recalcou.

Em outras palavras, será necessário que aquilo que foi recalcado e, nesse sentido, hostilizado, se torne acessível, familiar.

Paralelamente, o ex-policial também tem conteúdos recalcados, já que afinal amputara e deformara, em uma sessão de tortura, as mãos do médico que salvara sua irmã. Para ele, foi necessário um "véu": enquanto quebrava "osso por osso das mãos do médico", escondeu o rosto.Essa tentativa de tornarse estranho frente ao torturado mostra a necessidade de encobrimento de conteúdos estranhos e insuportáveis que precisariam não ser reconhecidos nem pelo outro, nem por ele próprio. Eis aqui seu conflito. Há algo que o amedronta e que se mostra como da ordem do recalcado que retorna: as mãos decepadas que remetem à castração, ou seja, às impossibilidades, proibições e renúncias vivenciadas (Freud, 1919).

A angústia concretizada nas lembranças dessa cena traumática remete à impossibilidade de simbolização do vivido; assim, a repetição encarnada nesse real do corpo que ele decepou parece retratar a impossibilidade de dizer, de narrar o horror cometido. Para isso, ele não tem palavras. Há um ponto em comum entre o imigrante e o ex-policial: assim como o imigrante que não conseguia relatar o que lhe aconteceu em uma língua estrangeira, o ex-policial não conseguia ouvir as histórias de horror dos estrangeiros. Pode-se então pensar que as histórias que ele dizia se repetirem nos relatos dos imigrantes judeus eram, na verdade, as suas próprias repetições, aquilo que retorna e para o qual não há representação14. Ou seja, o que nunca foi possível de ser ouvido, o que causa dor no outro e nele próprio aparece, timidamente, em uma pequena lágrima que cai de repente.

Observa-se também no policial um deslocamento e o irrepresentável ganha algum tipo de simbolização através daquilo que não tem sentido: um poema declamado15 pelo ator que faz chorar o ex-policial. Trata-se do Solilóquio de Segismundo da peça A vida é sonho, de Pedro Calderón de la Barca (1600-1681), metáfora sobre o direito a viver, de ser outro, de ser livre.

Ai, mísero de mim! Ai, infeliz
Descobrir, oh Deus, pretendo,
já que me tratas assim
que delito cometi
fatal, contra ti, nascendo.
Mas eu nasci, e compreendo
que o crime foi cometido
pois o delito maior
do homem é ter nascido.
Só quereria saber
se em algo mais te ofendi
pra me castigares mais.
Não nasceram os demais?
Então, se os outros nasceram
que privilégio tiveram
que eu não tive jamais?

Nasce o pássaro dourado,
joia de tanta beleza
e é flor de pluma e riqueza
ou bem ramalhete alado
quando o céu desanuviado
corta com velocidade
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
e porque, tendo mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e muito cedo
a humana necessidade
ensina-lhe a crueldade,
monstro de seu labirinto;
e eu, com melhor instinto
tenho menos liberdade?

Nasce o peixe e não respira,
aborto de ovas e lamas,
é apenas barco de escamas
quando nas ondas se mira
e por toda parte gira
medindo a imensidade
de sua capacidade;
tanto lhe dá sul ou norte.
E eu que sei da minha sorte
tenho menos liberdade?

Nasce o regato, serpente
que entre flores se desata
e como cobra de prata
entre as flores se distende
celebrando a majestade
do campo aberto à fugida.
Por que eu, tendo mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão,
num vulcão todo transfeito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração;
que lei, justiça ou razão
recusar aos homens sabe
privilégio tão suave,
licença tão essencial
dada por Deus ao cristal,
a um peixe, um bruto e a uma ave?16

A captura psíquica do policial acontece tanto através da encenação, dos movimentos do corpo, das mãos que se mexem, ou seja, nos gestos que falam palavras não conhecidas, quanto principalmente pela voz, pelo som das palavras ditas, através da melodia, da musicalidade da prosódia e, não do seu conteúdo, já que, como ele mesmo diz, "Pior, eu não entendi nada que o sujeito disse". É justamente o paradoxo de um imigrante que fala bem o português - o que teoricamente faria com que o brasileiro pudesse compreendê-lo melhor - que, nesse caso, não promove o entendimento, mas o encontro entre os dois. O encontro com o recalcado de cada um.

Pode-se inferir que o ex-policial foi fisgado pelos elementos mais primários da linguagem, que têm relação justamente com o que Melman (2000) aponta em relação à língua materna, de cuja música e de cujos elementos fônicos o sujeito nunca se esquece. Ou, nas palavras do próprio autor:

Eu estou pensando no começo de tudo, quando não há absolutamente palavras, onde há essa espécie de rosário de entonação e de sons, mas onde há sentido; o sentido passa aí através dessas entonações, antes que a palavra surja (Melman, 2000, p. 199).

Porém, há também outra questão importante, que tem a ver com o corpo do ator e com suas lembranças. Ele diz que o texto declamado foi um trecho de uma peça que representou. Atuar, para um ator, significa colocar em cena algo em que passa a acreditar. Só assim se tornará real para os espectadores, confundindo-se, então, com a personagem. Parafraseando Yankelevich (2000), em uma citação sobre o que faz a cantora de ópera La Callas ser reconhecida para mais além do texto da ópera e do timbre de sua voz, poder-se-ia dizer que, no caso do ator-imigrante, foi a presença de sujeito no seu corpo, ao declamar e representar, o que provocou a emoção e o reconhecimento pelo ex-policial de que se tratava de algo importante de ser escutado, de uma história singular17.

Justamente neste ponto, do qual se convoca a subjetividade significante do sem sentido das palavras, cai a defesa, cai uma lágrima. Ambos sofredores da violência que praticaram ou da qual foram vítimas têm em comum a humanidade do sofrimento de conviver com sua estrangeiridade.

 

Considerações finais

"Nem tudo é verdade", reconhece o ator, confessando não somente que os versos do poema não tinham sido as palavras agonizantes do seu professor antes de morrer, como também que a linguagem não promove a certeza, mas, ao contrário, a dúvida. "Com a palavra pode-se mentir. A palavra é feita para mentir" (Fedida, 1988, p. 51). Isto é, a vida precisa da ficção ou ela é mesmo uma ficção que se torna verdade.

Perplexo, o ex-policial pergunta: "O que o senhor acha que provou para mim?". O imigranteator responde: "Para o senhor não provei nada, provei para mim mesmo. Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços para a agricultura, mas eu sou ator. Esta é minha profissão. Eu não sei para quê serve o teatro no mundo depois desta guerra, só sei que tenho que continuar a fazer o que eu sei fazer. Um dia alguém vai saber para quê serve, se serve. Para mim basta fazer. Fazer teatro. Como a receita de mingau do professor Cracoviak, alguém tem que saber como se faz".

Saber para que serve o teatro é diferente de saber fazer teatro, pois saber como se faz significa colocar a subjetividade em cena e falar daquilo que é estranho e que se desconhece. Nesse caso, a encenação do imigrante-ator não é uma simples atuação, mas representa uma mudança de posição subjetiva. Em outras palavras, ao entrar em contato com aquilo que foi recalcado, se abre a possibilidade de resgatar algo do que foi esquecido e abandonado: o desejo de ser ator, o desejo de viver apesar da dor, de falar de sua diferença.

No caso do ex-policial, houve também um deslocamento de posição. Ao cair uma lágrima, mais do que ser afetado pelo sentimento, abre-se a possibilidade de escutar o outro, de sentir a diferença da história singular de cada um e, ao mesmo tempo, de estabelecer algum contato com o próprio recalcado.

Por último, é importante destacar que a discussão entre ambos e a proposta do ex-policial de fazê-lo chorar em troca do salvo-conduto mostram que, nesse caso, colocou-se em cena a possibilidade de movimentação de algo que estava cristalizado, ou seja, de forma inconsciente, o conflito propôs uma abertura.

Esses deslocamentos dos personagens foram, então, por um lado, efeito da intensidade que o contato com o diferente pôde provocar na subjetividade de cada um - caminho de mão dupla que implica a possibilidade de se haver com o estranho em nós mesmos. Por outro lado, a cena que ocorreu entre ambos diz respeito à explicitação dos conteúdos hostis e hospitaleiros que a subjetividade sempre encena.

Nesse diálogo estabelecido entre os personagens, o que se coloca em cena - mais além de oferecer um documento que permita a entrada concreta de um estrangeiro em terra familiar - são os conteúdos estrangeiros que se infiltram; são as frestas que permitem a emergência do recalcado em terras subjetivas, promovendo certa mobilidade entre a hostilidade e a hospitalidade.

 

Referências

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Submetido: 15/10/2010
Aceito: 01/12/2010

 

 

1 Filme brasileiro dirigido por Daniel Filho, lançado em 2009.
2 Apesar de, neste caso, tratar-se dos personagens do filme, não de sujeitos reais, considerar-se-ão suas falas como reais, em relação às representações possíveis, frente a uma situação histórica que realmente ocorreu: a hostilidade perante os estrangeiros na época de Getúlio Vargas. Tendo como base essa referência será analisado, ao longo do artigo, o diálogo que se estabelece entre ambos os personagens a partir de seus efeitos discursivos, o que significa levar em conta de que forma os elementos recalcados vão se revelando nos personagens. Para a Psicanálise, os conteúdos inconscientes são passíveis de serem reconhecidos através dos efeitos provocados no sujeito (Freud, 1915). No caso dos personagens, a possibilidade de entrar em contato com os conteúdos recalcados promove o deslocamento das falas e a mudança de posição subjetiva, como procurarei mostrar ao longo do artigo.
3 Esta decisão nem sempre é livre, já que existem várias categorias de imigrantes, tais como, refugiados, exilados, ilegais, clandestinos, indocumentados etc.
4 De 1891 a 1920, 2,5 milhões de imigrantes chegaram a São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Vitória (De Boni in Véras, 2002, p.94).
5 Conflito armado que fica recalcado no título do filme Tempos de Paz.
6 Trata-se do texto obtido a partir palestra transcrita: A imagem do imigrante indesejável. O destaque entre aspas consta do texto original.
7 Alguns autores questionam este conceito de identidade no singular, como Baumann (2005) e Hall (2006).
8 Segundo Decreto n. 528 (28/06/1890), "Indígenas da Ásia ou da África somente mediante autorização do Congresso Nacional" (Tucci Carneiro, 2003, p.25).
9 O Eixo era formado por Alemanha, Itália e Japão.
10 A autora usa o termo campos de concentração embora considere que as condições de reclusão desses imigrantes em muito diferiam das dos judeus; os grupos que ficavam internados, no Brasil, não realizavam trabalhos forçados nem eram eliminados.
11 Esse imaginário de perfeição consistiu, por um lado, na idealização da América. O "fazer a América" existia no pensamento europeu, que considerava este continente como uma terra de oportunidades, especialmente nos séculos XIX e XX. Por outro lado, no caso do Brasil, desde a época do chamado "descobrimento", tem-se a famosa frase de Pero Vaz de Caminha "em se plantando tudo dá", ao se referir às terras brasileiras. Paralelamente, a idealização da vida nos trópicos foi sendo construída ao longo da história através da ideia de uma terra paradisíaca, onde haveria mais liberdade.
12 A questão da natureza ganha duplo significado: o primeiro faz referência a um país "abençoado por Deus e bonito por natureza" como diz a canção de Jorge Benjor e o segundo, a certa caracterização "inata" ou "natural" do brasileiro como povo alegre e pacifista.
13 Está-se pensando aqui na relação especular mantida nos primórdios entre a mãe e o bebê, considerada uma unidade, uma completude.
14 Há sempre um resto que escapa à representação, à simbolização que Freud chamou de umbigo do sonho, referência encontrada em nota de rodapé no Sonho de 23-24 de julho de 1895 (Freud, 1900, p.119).
15 Segundo o Dicionário Aurélio: declamar significa justamente recitar em voz alta com tons e gestos apropriados.
16 Esta versão citada do poema é apenas uma das traduções possíveis, por isso, decidi colocar também o texto original: "¡Ay mísero de mí, y ay, infelice! Apurar, cielos, pretendo, ya que me tratáis así, qué delito cometí contra vosotros naciendo; aunque si nací, ya entiendo qué delito he cometido. Bastante causa ha tenido vuestra justicia y rigor; pues el delito mayor del hombre es haber nacido. Sólo quisiera saber, para apurar mis desvelos (dejando a una parte, cielos, el delito de nacer), qué más os pude ofender para castigarme más. ¿No nacieron los demás? Pues si los demás nacieron, ¿qué privilegios tuvieron que yo no gocé jamás? Nace el ave, y con las galas que le dan belleza suma, apenas es flor de pluma o ramillete con alas, cuando las etéreas salas corta con velocidad, negándose a la piedad del nido que deja en calma; ¿y teniendo yo más alma, tengo menos libertad? Nace el bruto, y con la piel que dibujan manchas bellas, apenas signo es de estrellas gracias al docto pincel, cuando, atrevido y crüel la humana necesidad le enseña a tener crueldad, monstruo de su laberinto; ¿y yo, con mejor instinto, tengo menos libertad? Nace el pez, que no respira, aborto de ovas y lamas, y apenas, bajel de escamas, sobre las ondas se mira, cuando a todas partes gira, midiendo la inmensidad de tanta capacidad como le da el centro frío; ¿y yo, con más albedrío, tengo menos libertad? Nace el arroyo, culebra que entre flores se desata, y apenas, sierpe de plata, entre las flores se quiebra, cuando músico celebra de las flores la piedad que le dan la majestad del campo abierto a su ida; ¿y teniendo yo más vida tengo menos libertad? En llegando a esta pasión, un volcán, un Etna hecho, quisiera sacar del pecho pedazos del corazón. ¿Qué ley, justicia o razón, negar a los hombres sabe privilegio tan süave, excepción tan principal, que Dios le ha dado a un cristal, a un pez, a un bruto y a un ave?" (Calderón de la Barca, 2009).
17 "Mas o porquê La Callas é La Callas é que em sua voz há a presença de seu corpo, e esta presença nos fala. Não é o texto de ópera que nos fala, não é a personagem da ópera que ela está cantando que nos fala: La Callas fala-nos dela, não no texto,não na música, mas ela marca o texto e a música de uma singularidade absoluta. É a presença de seu corpo por inteiro, de sua história, de sua vida, e de tudo que ela fez com isso que ela pode colocar em sua voz" (Yankelevich, 2000, p. 246).

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