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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.4 no.1 São Leopoldo jun. 2011

 

RESENHA

 

A cultura dos superdotados?

 

The gifted child culture?

 

 

Marcele T. Homrich Ravasio

Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo. Rua Dr. João Augusto Rodrigues, 471, 98801-015, Santo Ângelo, RS, Brasil. celehomrich@ibest.com.br

 

 

BERGÉS-BAUNES, M.; CALMETTES-JEAN, S. 2010. A cultura dos superdotados? Porto Alegre, CMC Editora, 264 p.

A cultura dos superdotados? é uma publicação originada nas Jornadas de Estudos do Hospital Sainte-Anne (França) e tem como referencial teórico a psicanálise, sendo o foco adentrar na questão: o que esconde a inflação do significante superdotados? O livro, publicado no Brasil com tradução da professora Dra. Maria Nestrovsky Folberg1, pela editora CMC, discorre sobre superdotação e psicanálise, entrando nos contextos social, clínico e escolar.

O livro é estruturado por pequenos textos organizados em quatro eixos: (i) panorama e estabelecimento da questão; (ii) confrontação teórico-clínica; (iii) clínica, retratos, sociedade; e (iv) e a escola?

O primeiro eixo visa discutir a questão da avaliação psicológica, os conceitos de quociente intelectual (QI) e as possíveis repercussões que tais quocientes podem produzir no fechamento de questões da ordem da estruturação subjetiva. Como ponto de partida, retoma questões básicas como o pedido que chega até os consultórios, em que há a tríade tédio-superdotação-atestado de dons, cujo discurso constitui uma uniformidade com sentido unívoco, sem questionamentos.

Ao longo do primeiro eixo, elementos históricos acerca das testagens, assim como os principais nomes no campo são trazidos para a discussão produzindo problematizações sobre a lógica que propõe o quociente intelectual. O diagnóstico de superdotação, sustentado pela lógica do QI, traz consequências sérias, produzindo uma satisfação reparadora e uma afirmação fálica na estrutura familiar.

No decorrer do primeiro eixo, são também discutidas as teorias sexuais infantis, a escrita, o corpo e o discurso acerca do tédio. Tais elementos trazidos especificamente em cada texto possibilitam pensar acerca do saber sexual como saber não dito, recalcado, no qual um não sei se coloca na possibilidade de se lançar na busca de conhecimentos, ou seja, um saber inconsciente que jamais será sabido. Na lógica contrária, coloca-se a criança supostamente superdotada:

o gozo do superdotado está posto em mostrar a insuficiência e a não pertinência da questão proposta - reivindicação fálica, a negação do sujeito do inconsciente. O tédio coloca-se exatamente nessa lógica mortífera: a pulsão de morte. Assim, a escrita impossibilitada, dificultada, trêmula e desalinhada, entra como projeção do corpo, demonstra uma relação primária com o objeto, uma persistência do elo de dependência.

No segundo eixo, denominado Confrontação teórico-clínica, os autores retomam a discussão sobre o QI, porém trazendo elementos pontuais que devem ser focados pelos colegas psicólogos, evitando uma concepção redutora. O eixo também apresenta exemplos clínicos acerca da demanda da criança superdotada e de sua família, o lugar da criança na estrutura familiar e seu lugar frente ao desejo dos pais.

Uma das hipóteses seria que a demanda dos pais com a criança dita superdotada está na lógica de uma não demanda, é a marca nelas da ausência de desejo de seus pais, ou pelo menos a busca desvairada desse desejo. Uma segunda hipótese a partir das discussões dos textos ainda seria: não se pode dizer que não existe demanda por seus pais, mas se há demanda, elas se desenvolvem sobre o fundo de um imperativo de gozo que o sujeito supõe ser uma injunção do Outro.

A criança dita superdotada estaria privada, em sua relação com o Outro, do que constitui o alcance simbólico dessa relação e do apoio que lhe permitiria levar em consideração suas próprias faltas. Assim, a criança apresenta dificuldade de articular sua enunciação, as próprias marcas inconscientes de sua subjetividade. Essas marcas permanecem clivadas de toda falta, clivadas no sentido de recusa. O corpo se manifesta como portador da dimensão sexual, desconectado da fala e da demanda, anunciando os sintomas como a enurese, os transtornos de higiene, os maus jeitos, a inabilidade.

O terceiro eixo, Clínica, retratos, sociedade, apresenta recortes de casos clínicos sustentado pela discussão teórica que permeia o livro. Os textos discutem os excertos da clínica como sintomas que surgem a partir de atravessamentos sociais como configurações contemporâneas. A exigência de uma boa performance em tempos de alta publicidade, em que há um imperativo de gozar a qualquer preço. A inteligência estaria nessa lógica, solicitada e mantida na lógica publicitária de respostas rápidas e urgentes, sem suportar falhas ou intervalos: o não saber.

Ser superdotado, na lógica contemporânea de mercado e consumo é ser mais, é um plus. Esse plus aparentemente pode parecer um ganho, mas tem um alto custo na subjetividade daquele que se oferta a esse lugar: o gozo sem limite, o excesso, leva à morte. O sintoma se apresenta como impossibilidade de negar a inscrição da barra no S.

A terapêutica estaria na direção de que o "dito superdotado" possa desligar-se daquilo que elude a dimensão da falta na relação com o Outro para permitir sua enunciação. O trabalho com os pais estaria em trilhar um caminho para sair da suficiência em que estão confinados pela lógica que os aprisiona.

No último eixo, E a escola?, apresenta discussões teóricas e situações escolares em que a superdotação toma a cena. Os textos apresentam o fato de que a criança superdotada nem sempre está na situação de sucesso escolar. Na situação em que a criança apresenta seu fracasso em sala de aula, ou na situação inversa, em que apresenta seu "super", o pedido da avaliação pode vir do contexto escolar. Ao fim do último eixo, encontramos duas entrevistas acerca de algumas políticas e ações que estão sendo desenvolvidas na França.

O livro A cultura dos superdotados? coloca em debate uma discussão atual acerca dos sintomas da infância, assim como a lógica da inflação da infância na contemporaneidade, lógica capitalista que objetaliza a criança. Como afirma Voltolini (2008):

Nossa época parece se identificar com a criança. Não seria talvez porque nela, à semelhança do que se passa com as crianças, busca-se um "gozo polimorfo", sustenta-se uma "impunidade generalizada", espera-se um "prazer imediato" e ilude-se com um futuro libertador de "toda" nossa insuficiência?
Freud já havia pontuado em sua também já clássica referência sobre o "his majesty the baby" o lugar central, de majestade, devotado à criança nos dias de hoje, anotando o quanto os pais esperam que seus filhos realizem "o que eles não conseguiram realizar".
Mas não estaríamos em condição de invectivar que toda esta "hiperbolização" da infância guarda relações com os nossos principais impasses com ela? Afinal reclamamos hoje de uma "criança sem limite", mas que limites esperamos dela?
As novas patologias com as quais a marcamos se caracterizam pelo excesso, o sem limite: "hiper"ativa; "super"-dotada, etc., ou pela escassez, a deficiência: déficit de atenção. Ambos signos da dinâmica capitalista, que tem entre suas primordiais operações, a promoção do fator quantitativo (mais, menos; maior, menor) acima do qualitativo.

Aprofundar as produções teóricas acerca da superdotação possibilita irmos além da compreensão superficial e aparente dos discursos que predominam nos contextos escolares. A necessidade de escutar os pedidos que chegam às escolas, instituições que se dedicam ao assunto, assim como aos consultórios médicos e psicológicos, possibilitará novas formas de compreender a dinâmica em que tal criança se constitui e o lugar que ocupa na estrutura social e familiar.

 

Referências

VOLTOLINI, R. 2008. A escola e os profissionais d'A criança. In: Formação de profissionais e a criança-sujeito, 7, São Paulo, 2008. Anais... Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032008000100012&lng=pt&nrm=abn. Acessado em: 12/06/2010.

 

 

1 Professora PPG Educação UFRGS - Coordenadora NEPPE.

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