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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.5 no.1 São Leopoldo July 2012

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2012.51.04 

ARTIGOS

 

Considerações lacanianas sobre a Verneinung de Freud

 

Lacanian considerations on Freud's Verneinung

 

 

Leonardo Barreira Danziato

Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz, 60811-905, Fortaleza, CE, Brasil. leonardodanziato@unifor.br

 

 


RESUMO

O autor desenvolve uma livre leitura lacaniana do conceito de Verneinung encontrado no artigo de Freud "A Negativa". Retomando todo o histórico debate teórico e clínico em torno do tema, demonstra o caráter estrutural desse mecanismo, já sugerido por Freud, como originário para a produção do pensamento e, na tradição lacaniana, para a constituição do sujeito, discriminando o dos outros sugeridos por Freud, tais como a Verdrängung,a Verleugnung ea Verwerfung. Desenvolve esse percurso aproximando proposições freudianas e lacanianas, sem desconsiderar as diferenças das duas obras, mas lançando mão de uma liberdade teórica em sua leitura, necessária para sua argumentação. Intenta, assim, apresentar as consequências clínicas desse debate, tal como outros aspectos relevantes para o entendimento da lógica estrutural da relação entre o inconsciente e o campo da linguagem.

Palavras-chave: Verneinung, estruturas clínicas, sujeito, pensamento.


ABSTRACT

The author develops a free reading of the Lacanian concept of Verneinung found in Freud's article "The Negative". Taking up the entire historical theoretical and clinical debate around the issue, he demonstrates the structural nature of this mechanism, as suggested by Freud, as originating in the production of thought and, in the Lacanian tradition, for the constitution of the subject, distinguishing it from others suggested by Freud, such as Verdrängung,Verleugnung and Verwerfung. The author develops this pathway by bringing near Freudian and Lacanian propositions, without disregarding the differences of the two works, but making use of a theoretical freedom in his reading, which is necessary to his argument. He attempts, therefore, to present the clinical consequence of this debate, as other aspects relevant to understand the structural logic of the relationship between the unconscious and the realm of language.

Key words: Verneinung, clinical structures, subject, thought.


 

 

Em seu texto sobre a Verneinung, Freud (2007 [1925]) retoma de forma bastante original uma série de questões de ordem estrutural no que tange ao processo constitutivo do pensamento. O texto, que inicialmente parece conter apenas algumas considerações descritivas sobre o mecanismo da denegação, tal como se apresenta na clínica, logo impõe um raciocínio estrutural para que se possa dele tirar suas consequências. É assim que, numa virada radical, Freud propõe que os tempos da Verneinung estão implicados na constituição do pensamento, e não somente no jogo denegatório que o analisante encena quando se escusa do conteúdo de suas associações pelo artifício do não.

Seguindo Lacan, vamos acompanhar e esclarecer esse debate lógico e estrutural aproximando ao que, do ponto de vista lacaniano, definimos como os operadores da constituição do sujeito e de uma "privação originária" (Lacan, 1998a, p. 699), de um buraco estrutural, a partir do qual um funcionamento em cadeia se observa.

Desde muito cedo Freud apresenta uma disposição para tratar dessas questões num âmbito estrutural. Mesmo porque ele sempre soube de uma condição constitutiva da falta para o sujeito, que denominou de "realidade psíquica da castração" (Freud, 1976c [1924]). Tal realidade é elevada por Freud à condição de origem das possibilidades simbólicas do sujeito, pois é a partir desta experiência insuportável com a castração, de como se passa por isso e do que dela se faz, que uma existência simbólica lhe é permitida ou não. A dor de existir sempre remeteria à dor da castração. O que se faz com essa experiência, portanto, coloca o sujeito num determinado lugar estrutural em sua relação com as representações psíquicas, com o desejo e com a verdade, de forma a constituir uma realidade inconsciente para cada um.

O sujeito, então, em seu processo constitutivo teria que lidar com essa realidade psíquica da castração, simbolizando-a na medida em que lhe for possível, mesmo que seja para nada querer saber dela. Simbolizar a realidade da castração exige, contudo, sua inscrição no campo fálico e seu recalcamento - Verdrängung. Mas não só isto poderia ocorrer diante da castração.

Freud utiliza quatro termos para falar da relação do sujeito com essa realidade psíquica da castração. Propõe que as formas para lidar com essa realidade variam constituindo o que chamamos de "estruturas clínicas". No texto "As Neuropsicoses de Defesa" (1976a [1894]), ele já faz uma distinção de mecanismos estruturais, que denomina de "defesa", determinante ou da histeria, ou da neurose obsessiva, ou da paranoia. É bem verdade que o conceito de defesa neste momento ainda não se configurava em seu caráter estrutural, que depois viria a possuir os termos Verdrängung (recalque), Verwerfung (rejeição, foraclusão), Verleugnung (desmentido, renegação) e Verneinung (denegação, negativa). Mas lá já aponta uma distinção fundamental das formas estruturais com as quais o sujeito lida com a realidade da castração.

A título de esclarecimento, e como uma introdução a problemática da Verneinung, vale a pena uma definição sucinta e inicial para que possamos nos deter um pouco nas sutilezas das traduções de determinados termos freudianos.

Hans (1996), em seu "Dicionário Comentado do Alemão de Freud", aponta as diferenças etimológicas e de sentido desses termos. Retomemo-las aqui rapidamente. O que salta aos olhos é a repetição do prefixo Ver nos quatro termos. É um prefixo que dá o significado de "ir muito adiante", de "intensificação de uma ação", de forma a trazer consequências, eventualmente em excesso. Evoca os sentidos de transformação, fechamento, extinção, perda, entre outros. Ou seja, é um prefixo que dá um sentido de manutenção e efeitos de uma ação, de "ir ou ser levado a outro lugar" (Hans, 1996, p.314).

A Verneinung evoca a ideia de negar rebatendo algo com um não, tal como dizer não, ou simplesmente responder com um não. Suas traduções mais aceitáveis são "negativa" e "denegação" (Hans, 1996, p. 315). Freud (2007 [1925]) a define como um artifício do sujeito para lidar com conteúdos inconscientes que, negados, poderiam aparecer ou serem ditos. Em seu célebre exemplo, comenta uma passagem clínica. Diz o analisante: "O senhor me pergunta quem pode ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe". Recomenda Freud: "E nós corrigimos: 'Portanto, é a sua mãe'". Assim, ao interpretar tais ideias, podemos desconsiderar a negativa [Verneinung] da frase e destacar apenas seu conteúdo (2007 [1925], p. 147).

A Verleugnung tem um sentido linguístico de ser uma negação que permanece ambígua entre a verdade e a mentira, como por exemplo, quando se nega a própria presença: "mandar dizer que não está presente" (Hans, 1996, p. 303). Em Freud, o termo aparece inicialmente de uma forma genérica, confundindo com a Verwerfung, mas posteriormente toma a forma do mecanismo que se apresenta no fetichismo. O fetiche seria produzido por uma Verleugnung da castração, ficando a um meio termo entre acatá-la ou negá-la. Daí porque na perversão encontramos uma ambígua posição entre o ser e o não ser castrado ou, como nos diz Mannoni (1973, p. 9), "eu sei, mas mesmo assim". É o que ecoa na Verleugnung.

Verdrängung talvez seja o mais conhecido e delimitado dos termos de Freud, já que designa o processo de clivagem do sujeito comumente conhecido como recalcamento. Tem o sentido, segundo Hans (1996, p. 355), de empurrar para o lado, desalojar, de ser um movimento de afastamento do incômodo. Propriamente dizendo, um recalcamento, o que pressupõe uma inscrição da falta, no sentido fálico que isso propõe, mesmo que o sujeito "nada queira saber sobre isso". Não querer saber sobre a castração materna, pressupõe, neste caso, que já se saiba, que tal realidade tenha feito sua inscrição. A ação do Verdrängung, como um desalojar o incômodo, implica o incômodo, ou seja, a simbolização da castração. A neurose se instala aí como um desconhecimento da divisão, um "não sei" tão típico da histeria e tão comum na clínica e no discurso do neurótico, que se faz ignorante de seu saber inconsciente por um gozo que lhe traz tal condição alienada: não sabem que sabem.

O termo Verwerfung, linguisticamente falando, tem o sentido de arremessar, atirar, jogar, descartar algo inútil ou inadequado. Tem uma conotação jurídica de "preclusão", de descarte, de eliminação (Hans, 1996, p. 368). Traduzido dos textos de Freud como "rejeição" e por Lacan (1985 [1955-1956]) como "foraclusão", vem falar de uma impossibilidade originária de inscrição de um elemento significante, que por isso mesmo retornaria vindo do real, na forma, por exemplo, de uma manifestação delirante.

Freud, por ocasião do episódio psicótico do "O Homem dos lobos" (Freud, 1976b [1918], p. 108-111), em que ao cortar o dedo fica paralisado diante deste real que se lhe apresenta, afirma que o sujeito nada quer saber dessa realidade da castração, nem mesmo no sentido do recalque. Com isso, diferencia o mecanismo da neurose, a Verdrängung, do mecanismo da psicose, a Verwerfung, já que no recalcamento o sujeito obtém um saber da castração.

A Verwerfung, pois, padeceria de uma impossibilidade de saber da castração, por conta da rejeição de um significante primordial, sobre o qual se depositariam as significações de um segundo tempo do recalque. A psicose, tal como Freud (1976c [1924], p. 233) nos diz no texto "A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose", é um problema, no primeiro tempo, do recalque originário. Seguindo a leitura lacaniana, podemos dizer que o que não pode ser inscrito originalmente, pela falta de um significante primordial, retorna não como uma metáfora, definida como uma substituição significante, mas no real (Lacan, 1985 [1955-1956]). A substituição metafórica inviabilizada pela falta da primeira inscrição dá ao psicótico outra relação com a palavra, utilizando-a como coisa.

Deixo aqui esses esclarecimentos terminológicos, com algumas questões em aberto, para retomar o tema que nos interessa. Esses termos certamente retornarão em suas relações com a Verneinung.

Como disse, o texto "A Negativa" tem uma estrutura bastante curiosa. O que parece ser um texto simples e pequeno, e aparentemente descritivo de um fenômeno pontual da clínica - a denegação - toma um rumo inesperado, elevando o mecanismo da Verneinung ao patamar estrutural. Se Freud inicialmente descreve o mecanismo utilizando de exemplos clínicos, logo depois vai localizá-la na origem do pensamento. No fim das contas, Freud quer dizer que é uma Verneinung que permite ao sujeito a possibilidade do pensamento. Ou por outro lado, que é necessária uma negação originária para que se possa pensar, livrando o sujeito dos efeitos do recalcamento e da compulsão do princípio do prazer.

O que descreve como um mecanismo que se apresenta na clínica, não passa de um artifício utilizado pelo analisante para revelar o recalcado pela sua forma negativa: "O senhor me pergunta quem pode ser essa pessoa no meu sonho. Não é minha mãe". A Verneinung é, assim, uma forma de "suspensão do recalque, [mas] naturalmente ainda não sua plena aceitação [Annahme]" (Freud, 2007 [1925], p. 148).

Como vimos, Freud toma isso como regra; se o analisante diz veementemente que "não é isto", desprezamos a negativo e tomamos como um conteúdo associativo. A ênfase na negação delata o caráter denegatório da frase. Mesmo o analisante denegando o conteúdo que se lhe apresenta, temos que escutar essa frase em sua condição de afirmação significante: trata-se de uma associação.

Descartar a negação implica outras fórmulas freudianas, como a de que não há negação no inconsciente (Freud, 2006 [1915]). O que quer dizer que o sujeito mantém uma relação de inscrição com o inconsciente, de maneira que a estrutura de significantes que o caracteriza, apenas se inscreve produzindo efeitos sobre ele. Tais efeitos se configuram numa condição inicialmente afirmativa, numa afirmação originária, constituindo relações de oposição, de ausência e de presença, instituindo a presença com base na ausência e constituindo a ausência na presença. Em outros termos, podemos dizer que a forma como a estrutura significante se movimenta, tal como sugere Lacan (1999 [1957-1958]), opera apenas pelas vias da metáfora - substituição significante - e da metonímia - combinação significante - mas não pela via da negação. Assim, "falou tá falado", não adianta negar, mas associar é preciso. Que o analisante tenha o "direito" de negar é aceitável. Mas o analista não pode se convencer disso.

Outra questão clínica se impõe aqui: se a Verneinung é uma suspensão do recalque, mas não a sua aceitação, é por que ela produz um juízo intelectual substituto do recalque, o que não traz maiores consequências clínicas para o sujeito. O que Freud parece querer dizer, é que a verdade do sujeito aparece aí velada, sem que o sujeito se implique no significante que a desvela. Isso nos faz pensar exatamente na relação do sujeito com o significante e suas consequências, pois mostra a ineficiência de uma intervenção clínica no âmbito do esclarecimento.

Logo depois, Freud insiste afirmando que mesmo o analista esclarecendo ao analisante sobre o conteúdo de sua denegação, ainda assim, o recalque permanece não aceito. Diz ele: "Disso resulta, então, uma aceitação apenas intelectual do recalcado, o essencial do recalque permanece intocado" (Freud, 2007 [1925], p. 148). Hyppolite (1998, p. 897) nos lembra que, nesse caso, convencer o analisante do conteúdo denegado, ainda assim não remove o recalque, pois aí teríamos apenas uma dupla negação: uma negação da negação.

Portanto, não se trata na clínica, de um assentimento do sentido que o conteúdo possa ter para o sujeito, já que, como nos ensina Lacan (1998b), um significante não se remete a um significado, mas da relação que mantém com o significante em seus efeitos simbólicos, imaginários e de real. Ou seja, não se trata, na análise, de esclarecimento do sentido oculto, mas de produzir tais efeitos significantes. Daí porque qualquer intelectualização da análise, ao contrário de seus objetivos, mantém o recalque.

É nesse ponto que o texto de Freud dá uma virada que devemos acompanhar com a ajuda de Lacan, porque nos parece que a observação da Verneinung na clínica e suas consequências mostram a Freud uma dupla feição da relação do sujeito com o significante, que ele denomina lançando mão da dualidade entre intelectual e afetivo. É como se observasse com pertinência que a substituição intelectual do recalcado guardasse outras consequências que o sujeito não suportaria, pois o implicariam com o seu ser.

Certamente, a dualidade intelectual/afetivo não é a mais adequada para ilustrar tal problemática, e aqui também a leitura de Lacan ajuda a esclarecê-la. Mesmo que acompanhe as formulações topológicas de Freud - e em alguns momentos ele demonstra sua dificuldade em se livrar dessa dualidade metafísica - vemos nesse texto como explica a gênese na "função do juízo", como oriunda primariamente da função de representação das pulsões. Diz ele: "[...] o estudo da função psíquica de emitir juízos nos enseja, talvez pela primeira vez, uma visão aprofundada de como uma função intelectual surge a partir do jogo de forças dos impulsos pulsionais primários" (Freud, 2007 [1925], p. 150).

Com isso Freud esclarece como a função intelectual origina-se como um substituto do recalcado, a partir da Verneinung. Toda uma discussão sobre uma clínica dos afetos e das "resistências" fica ultrapassada, porque a partir daqui podemos dizer que não se trata de responder a essa topologia dual, mas de transformar sua estrutura.

Lacan explica que o afeto que está em jogo aí não passa de um efeito de uma primeira inscrição, de uma primeira relação do sujeito com o significante. Em suas palavras: "O afetivo, nesse texto de Freud, é concebido como aquilo que, de uma simbolização primordial, conserva seus efeitos até mesmo na estruturação discursiva. Essa estruturação, dita ainda intelectual, é própria para traduzir sob a forma de desconhecimento o que essa primeira simbolização deve à morte" (Lacan, 1998c, p. 385). Podemos, pois, concluir que o afeto é o efeito das primeiras inscrições significantes para o sujeito, antes mesmo de poder portar a palavra, sem as quais não há troca afetiva.

Temos uma boa oportunidade de admirar em Freud seu conhecimento do que Lacan vi-ria a denominar de efeitos do significante. A psicanálise não é uma prática intelectualista, nem de sentido, nem tampouco uma clínica dos afetos, mas uma experiência na qual se apresenta a relação do sujeito com o significante em seus efeitos de verdade. O analisante é convocado não a vivenciar os seus afetos, mas a associar livremente, demonstrando os efeitos que uma inscrição significante faz no sujeito, incluindo aí os afetos.

Lacan (1998d) em um determinado momento da sua obra tentou demonstrar a função e o campo da fala e da linguagem em Psicanálise, apontando as relações constitutivas do sujeito com a linguagem, de forma que a fala do analisante demonstraria tais fenômenos da clínica, confirmando o caráter encarnado do significante. Sendo a psicanálise uma experiência com a fala, o analisante é aí convocado a dispor-se numa outra relação com o significante, de forma que isso tenha efeitos de deslocamentos - metafóricos e metonímicos - em sua fala e em sua vida. Assim, não se trata de uma verdade dos afetos que se manifestariam contra o intelectual, mas de saber tirar os efeitos dessa relação do sujeito com o significante.

A Verneinung, então, nos remete a este ponto estrutural da constituição do sujeito em sua condição significante. E Freud, mais uma vez, não nos deixa a ver navios, e nos indica o que é que se passa nesse processo de origem do sujeito e do pensamento.

A hipótese de Freud, como disse, é que a Verneinung está na origem da função intelectual do pensamento, chega mesmo a afirmar que se faz necessário o símbolo da negação para que o sujeito possa livrar-se dos efeitos do recalque. Isso porque, como vimos, o juízo negativo é o substituto intelectual do recalque.

O que Freud quer dizer com isso?

Primeiramente que, de início não temos o pensamento. Se pensar pressupõe uma negação, podemos concluir, que de início não temos nem o pensamento, nem a negação. E que o sujeito estaria originalmente numa condição de afirmação - Bejahung (Freud, 2007 [1925], 150) - constitutiva. Teríamos que pressupor um momento mítico de gênese do sujeito no qual tudo se afirma, tudo se inscreve numa "simbolização originária", em que o sujeito se dispõe numa condição, segundo Lacan (1988) de alienação fundamental, e na qual não haveria propriamente um sujeito.

Assim, tivemos miticamente um tempo de uma afirmação - bejahung - primordial, uma aceitação por parte do sujeito dessa inscrição original, sob a qual se dispôs alienadamente, e sem a qual nada se pode negar, já que para se negar é preciso que, primeiro, se afirme, tal como se observa na frase do analisante de Freud. No entanto, algo dessa afirmação original, deste todo mítico, tem que ser posto para fora, numa exclusão fundamental que permitiria um buraco na estrutura, e consequentemente, a movimentação em cadeia dos significantes. Podemos aqui aproximar essas proposições lacanianas sobre uma expulsão originária na cadeia significante à posição de Freud quando afirma: Sobre isso, "a confirmação [Bejahung] seria um substituto da unificação e pertenceria a Eros; a negativa [Verneinung] seria, então, a sucessora da expulsão, pertencendo à pulsão de destruição" (Freud, 2007 [1925], p. 150).

Estamos diante da operatividade da falta na estrutura; se não falta nada, se a estrutura está plena, lotada, nada se movimenta. Um elemento tem que ser posto fora, para que, pela via do buraco, quanto mais se tire, maior fique. É o vazio que permite o movimento, e essa mitologia freudiana nada mais é que uma explicação da origem do vazio e do externo. É um espaço vazio na estrutura que permite a sucessão dos significantes. Para tanto, um significante deve ter sido originalmente expulso. Esse seria o movimento foraclusivo que constituiria para o sujeito o externo, como o que não lhe convém, e o real como uma impossibilidade de significação. Mas vamos com calma nesse ponto. Retornemos a Freud, no qual talvez possamos encontrar maiores esclarecimentos. Para Freud, esse tempo inicial quase mítico é um momento no qual a tudo é apenas atribuído um valor relativo ao prazer. O "Eu-prazer" atribui a si o que é agradável, excluindo o que lhe é desagradável e mau. Assim, "inicialmente, para o Eu-prazer não há diferença entre o mal, o que é estranho [Fremd] ao Eu e tudo aquilo que se situa fora do Eu. As três categorias são idênticas" (Freud, 2007 [1925], p. 148). Temos, então, num primeiro tempo da Verneinung, apenas um "juízo de atribuição"; o que é bom ou mau. É com o abandono da preponderância do princípio do prazer, que a psique aprende "que não é somente importante saber se uma coisa [Ding] (objeto de satisfação) possui uma qualidade 'boa', isto é, se merece ser acolhida no Eu, mas também, se ela está presente no mundo externo, de modo a que seja possível apoderar-se dela conforme surja a necessidade [Bedürfnis] para tal" (p. 149); ou seja, um "juízo de existência".

É importante notar, como propõe Hypollite (1998), que temos aí um mito originário do interno e do externo, que Freud lança mão para situá-lo como prévio à função do julgamento da existência. Antes da prova de realidade da existência do objeto no mundo externo, há esse tempo originário em que o objeto passa por esta oposição que se lhe inscreve atributos significantes. Para que depois possa ser questionado em sua existência, o objeto necessita ser inscrito como significante, numa behajungoriginária. É preciso que ele seja afirmado primordialmente numa realidade significante para que possa ser posto à prova em sua realidade de existência. Ou seja, ele deve existir necessariamente como significante para o sujeito. Lembro que existir como significante - seria mais rigoroso dizer inscrever-se como significante - pressupõe que tenha sumido como coisa - das Ding.

Encontramos esse raciocínio em Freud (1972 [1900]) já no capítulo VII da "Interpretação dos Sonhos", no qual apresenta seu primeiro modelo de aparelho psíquico, como um desenvolvimento do esquema que já havia apresentado no "Projeto para uma Psicologia Científica" (Freud, 1977a [1950]) e na Carta 52 (Freud, 1977b [1950]). Ao descrever a "experiência de satisfação alucinatória", Freud nos fala de uma inscrição mnêmica originária do sujeito, que produziria um primeiro traço para onde o sujeito retornaria em busca de encontrá-lo. A experiência de satisfação alucinatória seria, pois, um reinvestimento desse traço perceptual, movido pelo princípio do prazer. O caráter alucinatório dessa experiência tem que ser vencido pelo sujeito de forma que possa fazer um movimento em busca de um objeto no mundo externo, numa "ação específica". É necessário, pois, um distanciamento dessa realização alucinatória, função essa atribuída ao princípio de realidade. O abandono dessa experiência acompanharia o fracasso da satisfação alucinatória. O sujeito, depois de insistir com esse traço, deparar-se-ia com um ataque pulsional ainda mais violento, que determinaria um adiamento do prazer. Paulatinamente, o sujeito iria abdicando dessa experiência, de forma a encontrar um objeto no mundo externo que possa dispor de alguma satisfação. Freud entende que, inicialmente, há para o sujeito uma identidade entre percepção e representação, uma "identidade de percepção", que o sujeito tem que negar para poder recorrer ao objeto externo. Se não faz isso, permanece numa vivência alucinatória com o objeto, por não tê-lo perdido. Na verdade, temos aí uma dupla perda, pois quando o objeto se inscreve como traço já está automaticamente perdido. É necessária uma segunda perda do objeto enquanto traço perceptual para que daí se faça um movimento em busca do objeto externo (Freud, 1977a [1950], p. 571-585).

O que Freud descreve aí é uma experiência mítica de emergência do desejo a partir da inscrição significante. É o movimento em que o objeto se perde como coisa - das Ding - marcando as relações do sujeito, daí por diante, apenas com seus traços. Mas se o sujeito pode abandonar essa vivência alucinatória do objeto, é porque ele se inscreveu como um traço, perdendo-se como coisa. A partir disso o sujeito pode tentar reencontrar esses traços nos objetos externos. Daí por que o encontro do objeto é apenas o seu reencontro (Freud, 2007 [1925], p. 149).

Lacan1 tira consequências radicais desse esquema, apontando a importância dessa inscrição originária na determinação do mundo simbólico. Para que o sujeito possa reencontrar o objeto é necessário substituí-lo numa retranscrição metafórica, de forma que, reencontrando-o, possa saber, mesmo que não saiba, que ele contém apenas um traço do traço. Exatamente por isso que, ao encontrar o objeto, já se o conhecia. Essa inscrição originária, diz Lacan, comprova a precedência do significante na construção do sujeito e consequentemente do objeto. O objeto, portanto, quando reencontrado no mundo externo já deve estar devidamente inscrito, sob pena de não reencontrá-lo na realidade, mas no real. Se encontramos os objetos, mesmo que seja apenas para gozar deles aos pedaços, é porque já estavam inscritos, não na magia do destino, ou no romantismo das estrelas, mas na estrutura significante. Essa simbolização primordial (Lacan, 1998c) tem a função de dar ao sujeito a estrutura através da qual poderá reencontrar o objeto. Não precisa ir muito longe para confirmar seu caráter de linguagem.

Quero, assim, acompanhar Freud em sua lógica da constituição dos juízos quando afirma que, antes do juízo de existência, encontramos um tempo da atribuição. Antes de pensar sobre a existência, seja a do sujeito, ou a do objeto, constitui-se primeiro um lugar espacial do dentro e do fora (Freud, 2007 [1925], p. 149), como condição para tal existência. A atribuição de um valor ao objeto - objeto bom ou mau - e seus mecanismos de introjeção e de expulsão - Ausstossung - constituem esse tempo mítico de inscrição dos lugares, seja do real, seja de um lugar subjetivo. Logicamente que o entendemos como um momento mítico, já que, nesse tempo, não podemos falar propriamente do sujeito. Mas vemos uma primeira constituição do real como um externo, pela expulsão originária de um elemento dessa estrutura plenificada, demarcando um buraco no Outro, e inscrevendo um lugar subjetivo para o sujeito, de forma que, a partir daí, ele possa pensar em sua existência.

Essa expulsão originária é o antecessor da negação ou, por outra, a Verneinung é sucessora da expulsão (Freud, 2007 [1925], p. 150). Temos que pensar, então, esse tempo de uma atribuição originária, em que um significante foi expulso foraclusivamente, como define Nasio (1995). Só a partir dessa "foraclusão fundamental" é que o sujeito pode então pensar em sua existência, já que se constitui nesse movimento um lugar existencial, seja o interno, seja o externo, seja o real.

Podemos ilustrar esse momento mítico de constituição do real, tomando sua contraparte exemplificada pela psicose. Como vimos, a Verwerfung se daria por uma falha nessa afirmação originária, e por uma rejeição de um significante primordial determinando uma não inscrição em "primeira instância", de forma que a "retranscrição"2 - tal como proposta por Freud na "carta 52" (1977b [1950]) - não se faz possível no simbólico. Assim, "tudo que é recusado na ordem simbólica, no senti-do da Verwerfung, reaparece no real" (Lacan, 1985 [1955-1956], p. 21). Eis o mecanismo da psicose. É por uma rejeição primordial que o psicótico não pode reencontrar o objeto como uma substituição metafórica de significantes, mas encontra-o tal e qual. Freud, por sua vez, sinaliza para esse fato afirmando: "Quanto ao caso em que há uma disposição em negar sistematicamente [Verneinungslust] o negativismo de alguns psicóticos, provavelmente pode ser compreendido como um sinal que houve - pela retirada dos componentes libidinais - uma defusão e separação das pulsões" (Freud, 2007 [1925], p. 150). Na psicose uma dificuldade originária nessa "expulsão primordial" - como um recalcamento originário do falo (Lacan, 1985 [1955-1956]) - determinaria uma impossibilidade de ancoragem simbólica na constituição desse real.

A partir desse modo mítico, cujo movimento de expulsão constitui os lugares do real para o sujeito e seu próprio lugar subjetivo, este significante expulso, ou foracluído fundamentalmente, não se perde, mas faz sua função de demarcação-balizamento desses lugares.

Na psicose, esse significante se perde, não fazendo sua função de demarcação-balizamento, ficando o psicótico preso a uma realidade da coisa [Ding]. O objeto não se perde, por não ter sido perdido como um significante, ou por outra, por não ter sido inscrito como significante. O psicótico fica, então, sem saber da sua existência. Assim, a realidade da castração fica desconhecida, mas não no sentido do recalque, ou seja, foraclui-se de uma significação. Uma atribuição fundamental não se fez presente na psicose, já que o sujeito não assentiu em sua alienação fundamental, perdendo-se enquanto existência (Lacan, 1988b).

Lacan (1995 [1956-1957]) nos diz, então, que é a partir desse todo onipotente materno, de uma atribuição universal do pênis, que o sujeito vai produzir uma negação, entrando na lógica da existência. Para que a castração se faça simbolizar, é necessária essa atribuição universal do pênis, inclusive à mãe, para que dela possa ser tirado. Por falta dessa atribuição, a castração não se faz uma questão na psicose.

O Édipo não seria outra coisa, senão a oportunidade de uma substituição metafórica da mãe onipotente do todo da atribuição, pelo um do significante nome-do-pai. Por uma operação lógica de negação do todo é que emerge a possibilidade do pensamento, na qual o sujeito também se destaca desse todo, cuja vivência alucinatória o engloba. Negando, o sujeito se constitui, afirmando-se como um significante. Assim, a Verneinung marca os tempos míticos de fundação do Édipo, permitindo ao sujeito um acesso à realidade psíquica da castração e um pensar sobre a realidade de sua própria existência.

A existência, portanto, implica esse negativo da linguagem e do significante, pois é a partir daí que uma singular, pela marca do "traço unário" (Lacan, 2003 [1961-1962]), produz a identificação do sujeito. Portanto, negar é viver, como um artifício de oposição ao Outro, como marca de uma singularidade do sujeito no todo pasteurizado de Eros.

 

Referências

FREUD, S. 2007 [1925]. A Negativa. In: S. FREUD, Escritos sobre a psicologia do Inconsciente, vol. III:1923-1940/Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, p. 145-157.

FREUD, S. 1972 [1900]. A Interpretação dos Sonhos. In: S. FREUD, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IV e V. Rio de Janeiro, Imago, p. 361-793.         [ Links ]

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Submetido: 14/11/2011
Aceito: 22/03/2012

 

 

1 Essas proposições de Lacan perpassam toda a sua obra, sendo difícil citar uma ou duas que comportem essas elaborações. Posso, contudo, referir-me a obra inaugural: "A Instância da Letra no Inconsciente..." (Lacan, 1998b).
2 O termo retranscrição remete-se a Carta 52, onde Freud (1977b [1950]) propõe um modelo semelhante ao da Interpretação dos Sonhos, e que Lacan retoma no Seminário 3, sobre As Psicoses.