SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número1Neuroética e neurociência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.6 no.1 São Leopoldo jun. 2013

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2013.61.08 

ARTIGOS

 

Madame Bovary e histeria: algumas considerações psicanalíticas

 

Madame Bovary and hysteria: some psychoanalytic considerations

 

 

Thalita Lacerda Nobre

Universidade Católica de Santos. Av. Conselheiro Nébias, 300, 11015-002, Vila Mathias, Santos, SP, Brasil. thalita_l@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo parte da compreensão freudiana sobre a constituição psíquica feminina e a histeria como vicissitude psicopatológica, utilizado como objeto de estudo a personagem Madame Bovary, do romance de Gustave Flaubert, publicado na França em 1856, ano do nascimento de Freud. Considerado o principal expoente e fundador da escola literária do realismo, Flaubert criou uma personagem feminina com uma série de conflitos que retratam os costumes burgueses europeus da segunda metade do século XIX, bem como deixam claro o lugar reservado à mulher neste contexto cultural. A sua mulherzinha - como Flaubert virá denominar a personagem central durante a elaboração do romance - é uma importante representante do desejo feminino de transformação, porém, é possível perceber uma desmedida nesses desejos, o que a coloca no campo da afetação psicopatológica. O realismo com que Madame Bovary é apresentado tornou o romance bastante discutido ao longo dos tempos. Quando foi publicado, causou impacto na sociedade francesa, chegando a ser proibida sua publicação. Apesar disso, a história construída por Flaubert mantém-se atual. pois refere-se ao enigma da feminilidade e da patologia histérica, ambas atemporais.

Palavras-chave: psicanálise, histeria, Madame Bovary, literatura francesa.


ABSTRACT

This article starts from the freudian comprehension about female psychic constitution and hysteria as psychological destiny, for this, the article focuses on Madame Bovary, character extracted from Gustave Flaubert's novel published in France in 1856, the same year that Freud was born. Considered the founder and principal exponent of the literary school of realism, Flaubert created Madame Bovary, a female character with a series of conflicts that portray the European bourgeois customs of the second half of the nineteenth century, as well as make clear the place reserved for women in this cultural context. The little woman - as Flaubert will call the central character during the preparation of the novel - is an important representative of the feminine desire for transformation, but it is possible to realize thesedesires are excessive, which places Madame Bovary in the field of psychopathology affectation. The realism with which Madame Bovary is presented made it widely discussed over the years. When published, it caused impact on French society, and its publication was eventually prohibited. Nevertheless, the story built by Flaubert is still up-to-date because it refers to the riddle of femininity and hysterical pathology, both timeless.

Key words: psychoanalysis, hysteria, Madame Bovary, french literature.


 

 

A mediocridade doméstica arrojava-a a fantasias custosas, a ternura matrimonial a desejos adúlteros. Teria querido que Charles a espancasse para poder com mais justiça detestá-lo, vingar-se dele. Às vezes, espantava-se das conjeturas cruéis que lhe ocorriam [...] (Flaubert, 2005, p.133).

O presente artigo é decorrente da dissertação de Mestrado que apresentei no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, que teve por objetivo realizar uma leitura psicanalítica do romance Madame Bovary de Gustave Flaubert, privilegiando a exposição que o autor oferece das ações, dos devaneios e das fantasias da personagem central dessa obra literária que possibilita pensar na neurose histérica feminina.

O intuito de utilizar o entendimento psicanalítico acerca da histeria na compreensão de uma obra literária se dá, dentre outros aspectos, pela atualidade do tema. Madame Bovary foi uma personagem criada nos anos 1800, entretanto, carrega consigo questões pertinentes ao feminino e seus deslocamentos que podem ser encontrados, inclusive, na atualidade.

Isso não quer dizer que a época e a cultura não influenciem a roupagem com que as patologias se apresentam, pelo contrário, o que se pode dizer a partir da criação da Psicanálise por Freud é que o processo de constituição do psiquismo humano não se modifica, mas sim que as questões construídas pela humanidade serão formuladas de acordo com o contexto histórico e social.

Por essa razão, a histeria produzida no século XIX pode ser diferente da manifestação histérica que se apresenta na atualidade, mas, ainda assim, é uma psicopatologia que traz sofrimento psíquico e pode ser compreendida por meio do processo analítico.

Na história da Psicanálise, tem-se que a neurose histérica foi a primeira patologia sobre a qual Freud se debruçou e que contribuiu para a construção da teoria psicanalítica. O entendimento acerca da origem da histeria ocorre em conjunto com as principais descobertas freudianas como o inconsciente, as fantasias, o recalque, os mecanismos de defesa do ego, a transferência, as identificações entre outros conceitos. Com isso, é possível considerar que as compreensões de Freud a respeito da histeria tiveram grande importância para a construção deste campo do saber que é a Psicanálise.

Freud, assim, utilizou esse destino psíquico como ponto de partida para formular conceitos fundamentais em teoria psicanalítica. E, à medida que o conhecimento a respeito da Psicanálise se aprofundava, outras questões acerca do feminino eram constituídas. Birman (1997, p. 131) entende que:

[...] se o início do percurso freudiano foi marcado pela indagação sobre o enigma da mulher, pela mediação da figura da histeria e que esta preocupação ainda obcecava Freud nos seus textos tardios sobre a sexualidade feminina, forjados entre 1925 e 1932, foi, contudo, a problemática da feminilidade que passou a dominá-lo no final de sua pesquisa.

Freud, em sua construção teórica, partiu das considerações patológicas que atormentavam suas pacientes histéricas, mas conforme a teoria ganhava consistência, as dúvidas a respeito do feminino tornaram-se mais presentes, chegando a fazê-lo debruçar-se sobre as questões constitutivas da feminilidade e a sugerir que os estudiosos buscassem ampliar os conhecimentos a esse respeito.

A obra de Flaubert, com seu aspecto realista, apesar de explicitar uma realidade cultural diferente da que vivemos na atualidade, pode ainda contribuir para o entendimento da histeria por meio dos sonhos e dos desejos femininos, que se tornam delirantes tais como protagonizados por Emma Bovary, o que oferece, a nosso ver, fundamentos para a discussão a respeito da psicopatologia em questão.

Flaubert é um autor instigante em sua obra. Mais especificamente, em Madame Bovary, é possível notar - inclusive pelas cartas que ele endereça aos amigos durante a confecção do romance - uma intensa preocupação em escolher as palavras mais adequadas ao que pretendia narrar.

A obra não foi escrita com o intuito de agradar ao leitor e à sociedade da época, pelo contrário, a linguagem e as palavras cuidadosamente escolhidas objetivavam expor algo que se estabeleceria como uma crítica ao senso comum burguês de sua época.

Além disso, entendo que a linguagem utilizada por Flaubert caracteriza seus próprios anseios expostos por meio da protagonista. O autor atribui àquela que chama de sua mulherzinha1 aspectos próprios e altamente conflitantes.

Conforme alguns autores consideram e pode-se notar em suas Cartas exemplares - que serviam para a comunicação durante a execução de seu projeto literário -, Flaubert, desde muito jovem, interessava-se pelas artes e utilizava sua escrita para fazer críticas quanto ao modo de organização da cultura europeia de sua época.

No que tange à literatura romântica, o autor também tecia comentários críticos e, em 1851, ao retornar de uma viagem empreendida à Africa e ao Oriente, após a morte de seu melhor amigo, começou a produzir o que viria a ser sua obra prima.

Na ocasião do início dessa produção, escreveu para sua amante Louise Collet em outubro de 1851, que gostaria de escrever um romance livre dos clichês literários, que pudesse ficar marcado como algo diferente do que os leitores já esperavam dos autores e questionou-se quanto ao fato de conseguir cumprir a empreitada a que se propôs.

Esse questionamento de Flaubert pode ser entendido como uma inquietação por parte do autor quanto ao estilo e ao conteúdo das obras literárias produzidas na Europa naquela época.

Flaubert não aparentava satisfação com a produção romântica, por isso buscou em Madame Bovary expressar algo diferente, uma trama com personagens muito próximos à realidade, tão reais que lhe renderam um processo judicial pela exposição de aspectos íntimos da história da protagonista. Foi considerado um agressor à moral pública e religiosa da sociedade, mas conseguiu absolvição após argumentar, utilizando sua boa retórica, que suas intenções não eram senão as de proteger a moral da época. O romance, segundo o argumento da defesa, trazia a mensagem de advertência quanto aos perigos de se oferecer uma educação acima da média às mulheres.

Com seu estilo realista e detalhista, Flaubert criou sua mulherzinha, expondo criticamente os costumes burgueses da segunda metade do século XIX e, consequentemente, o lugar reservado à mulher na sociedade europeia oitocentista.

Seguindo o intuito de expor os costumes burgueses, em Madame Bovary, o autor inicia a exposição da trama com os acontecimentos da vida de Charles (futuro marido da protagonista); a personagem central é apresentada um pouco adiante, conforme Kehl (1998, p. 140-141) observa: "[...]só depois do casamento [...] o leitor vai saber um pouco sobre ela. É só depois de casada que Emma se torna a personagem principal de sua própria história." Desta forma, Flaubert segue as conveniências e prioriza, no início do romance, a história de um homem, que, no entanto, apresenta-se constantemente submisso às mulheres, principalmente à própria mãe, a quem delega a responsabilidade de decidir sobre as ações de sua vida.

Na reconstituição que Flaubert faz do período antecedente ao casamento de Emma, ele não expõe dados sobre sua infância; o relato parte da adolescência, quando, aos treze anos é levada pelo pai a um convento para receber educação formal. Desse modo, a jovem pôde ter acesso a um outro modo de educação, diferente da que obteria se vivesse na fazenda. Pode-se considerar que ela fazia parte das primeiras gerações de mulheres que receberam educação fora de casa, o início do ensino institucionalizado.

A estada no convento, portanto, permitiu que ela pudesse construir os ideais baseados na religiosidade, pela qual fazia penitências e se lisonjeava com os votos a cumprir, além disso, muito se interessava pelos sermões que propunham um consórcio eterno com Deus.

Além da religiosidade, um outro caminho também lhe foi disponibilizado para a construção de seus ideais de jovem romântica. Uma senhora fidalga, que constantemente visitava o convento, costumava conversar com as meninas que lá moravam e as ensinava canções galantes, contava histórias e emprestava romances, que eram lidos e fantasiados por Emma, como se ela própria pudesse tornar-se a protagonista de um conto fantástico e que seria salva por um cavaleiro que viria galopando em um cavalo preto.

A construção dessas fantasias pela protagonista aparenta pertinência se levarmos em consideração sua idade (permaneceu no convento dos treze aos quinze anos) e o contexto cultural em que estava inserida. Entretanto, compreende-se que, desde aí, é possível atentar para o modo peculiar no qual a personagem vive as situações que lhe aparecem.

Segundo Kehl (1998, p. 141), a somatória entre os ensinamentos religiosos recebidos por Emma e a literatura clandestina possibilitou-lhe compor para si "[...] uma personagem em que devoção e erotismo se combinam, uma espécie de Santa Teresa D'Ávila inculta, que busca no misticismo um gozo que gostaria de poder encontrar no amor dos homens."

Assim, entende-se que Flaubert brilhantemente consegue criar uma personagem central que capta o desejo feminino, desejo de ser outra, de estar em constante movimento, mas que comete excessos quando, desmesuradamente delega ao homem a resposta de sua pergunta identificatória impossível de ser respondida, referente ao que é ser mulher, em quem ela deve se transformar para conseguir receber o amor do outro.

Segundo a teoria freudiana, o destino psíquico da histeria pertence a quem reconhece a castração, porém, a muito contra gosto. Instala-se, então, na histérica uma espécie de revolta contra este destino e, ao mesmo tempo, uma esperança de que, de alguma forma, poderá obter uma compensação fálica.

Por isso, ela faz uma reivindicação ao homem da relação amorosa: que ele lhe dê o que ela sente faltar. É dessa forma que a histérica se coloca como objeto perante os homens, ou seja, quando delega a estes a resposta a sua questão identificatória crucial e impossível de ser respondida - "O que é ser mulher?". E, diante desta questão, impossível de ser respondida, já que o desejo está em constante transformação, a histérica se frustra.

O primeiro fato que pode trazer indício da fragilidade identificatória da mulherzinha de Flaubert é narrado quando, após a morte da mãe e a consequente irreverência com a Santa Madre Igreja, o pai é chamado para tirá-la do convento e a leva para morar na fazenda. Nessa ocasião, Emma sente-se lisonjeada em ocupar-se do mando dos empregados, lugar este reservado pelo pai e que a faz sentir-se bem (amada, talvez). Porém, o regozijo por realizar tarefas iminentemente femininas não se sustentou por muito tempo e a jovem logo se arrependeu de seu cotidiano e quis voltar ao convento.

Com esses dados, interpreta-se que Flaubert criou uma personagem cujo pai, em termos psicanalíticos, pode ter sido muito pouco interditor do desejo incestuoso da filha, pois, primeiro a internou no convento e, após a morte da esposa, permitiu, de certa forma, que ela ocupasse o lugar da mãe, instalando-se, portanto, como uma espécie de companheira do pai, isto é, encarnando a personagem que seria amada por oferecer cuidados a este.

De acordo com as contribuições de Mayer (1989), o pai da histérica apresenta-se frágil no que concerne ao interdito do incesto ao mesmo tempo em que rechaça a filha por ela não ter vindo ao mundo dotada de sexo masculino como ele desejou, oferecendo-lhe o único lugar possível como sua companheira-cúmplice.

Um dos indícios de que Flaubert revela a rejeição do pai pela menina é quando escreve a respeito da razão central de Rouault sugerir o casamento de Emma com Charles, segundo narra: "o velho Rouault não desgostaria de o livrarem da filha, que de nada lhe servia em casa. Intimamente desculpava-a, concordando ter ela demasiada inteligência para a agricultura, mister amaldiçoado pelo céu, pois que nunca fizera enriquecer a ninguém" (Flaubert, 2005, p. 36).

Nesse sentido, é possível compreender em Emma um prejuízo no que diz respeito ao desejo e ao investimento paterno. Utilizando o referencial freudiano, pode-se pensar nas figuras parentais que contribuem para a etiologia da histeria, sendo que, particularmente, o rechaço paterno, mesmo que velado, pode trazer certos prejuízos identificatórios que conduzirão à neurose. Isso pode ser analisado diante da dificuldade de Emma em se constituir como um objeto plenamente desejável e também como um sujeito desejante.

Como qualquer mulher de sua época, Emma sonhava com seu casamento e, após conhecer Charles, passou a acreditar que afinal poderia realizar um desejo presente desde a sua estada no convento. As visitas constantes à fazenda dos Rouault a fez acreditar que enfim o médico poderia salvá-la de suas decepções, ele haveria de ser o príncipe que chegava para salvar a mocinha de sua vida entediante.

Assim, considerando a cultura burguesa da época na qual o romance se encontra inserido, o casamento e a maternidade eram as únicas realizações possíveis à mulher. É possível compreender que esse destino conferido às mulheres do século XIX é resultado de um discurso constituído - principalmente nas culturas europeia e americana - no século XVIII, sobre a diferenciação entre homens e mulheres.

Tanto a revolução francesa quanto a americana instituíram e justificaram as diferenças entre os direitos e os deveres dos homens e das mulheres e, mais especificamente, ao sexo feminino, reservando a elas apenas os papéis de esposa e mãe.

Dessa forma, nota-se que o lugar conferido à mulher, nesse contexto, somente torna-se possível de ser alcançado pelo auxílio do outro, mais especificamente, é tarefa compreendida ao homem, cuidar do destino feminino.

Com as reduzidas possibilidades de realização conferidas à mulher, a imutabilidade de papéis trouxe a crença de que a sensualidade feminina deveria ser abandonada em prol da maternidade, pois esta mesma, conforme Birman (1997) comenta, é entendida como um obstáculo à maternidade.

Sendo assim, o lugar permitido à mulher na sociedade do século XIX exigia como credencial a abdicação de sua própria sensualidade, caso contrário, o percurso reservado conduziria ao ostracismo e seu valor a aproximaria da figura da prostituta.

Emma Bovary, conforme é construída por seu autor, é polêmica desde os seus pressupostos. Ela não deseja casar-se para tornar-se mãe, mas sim para, enfim, conseguir realizar-se por meio do desejo masculino, que, segundo ela idealizava, poderia ter o poder mágico de transformá-la em uma heroína idêntica àquelas descritas nos romances.

Entretanto, o casamento de Emma não a aproxima dos ideais daquela paixão maravilhosa que havia sonhado viver desde a época em que esteve no convento, e ela se decepciona ao constatar que não viveria a felicidade e a paixão esperada principalmente porque o marido que escolheu para dar-lhe um destino heróico não podia corresponder a essa convocação. Embora Charles fosse um bom marido, gentil e atencioso com a esposa, não tinha ambições que pudessem ao menos se aproximar daquelas com que sonhava Madame Bovary.

Emma, ao se casar, tentou pela única via permitida à mulher de seu tempo realizar seu projeto de vida ideal, que começou a compor no período em que passou pelo convento. Contudo, Charles, apesar de apaixonado e dedicado a ela, não conseguiu oferecer-lhe uma vida próxima a suas expectativas, e, à medida que os dias passavam, o cotidiano mostrava-lhe cada vez mais o desencanto pelo homem com quem tinha se casado.

Emma, então, arrepende-se da escolha que fez e se deprime. E é por essa característica que se pode pensar que Flaubert se instala como salvador da protagonista, já que, até o final do romance, em diversos momentos, cada vez que Emma torna-se deprimida, o autor insere na trama algum fato novo ou alguém que a tira desse estado e a faz constituir novos desejos.Pode-se compreender melhor o que foi escrito, acima na ocasião em que Emma, sentindo-se desgraçada pela escolha do casamento que fez, é convidada a acompanhar o marido em um baile oferecido pelo Marquês D'Andervilliers.

Esta é a nova situação promissora que tira a protagonista do estado deprimido: o baile oferecido pelo Marquês, que a deslumbrou. Enfim, Emma pôde se sentir como uma mulher aristocrata, valorizada por fazer parte de um grupo de bom reconhecimento social. Porém, compreende-se que a desmesura de Emma está localizada na insistência desse desejo de transformação, no inconformismo e na não aceitação de sua própria condição de mulher de província.

Ela facilmente se apóia nos fatos novos ou nas pessoas que aparecem e a deixam fantasiar que aqueles momentos indicam o resgate de um cotidiano sem sentido para uma vida de felicidade. Dessa forma, o príncipe, tão esperado que viria galopando em um cavalo preto, não deixou de existir, mas há a promessa de sua existência e de sua presença a cada fato promissor da história da personagem.

Nos dias seguintes ao baile, ela acreditou que enfim havia conseguido algo impossível a sua época: a mobilidade social. Sem levar em conta os aspectos da realidade, Madame Bovary esperou ser convidada a outro baile e, enquanto isso não acontecia, estabeleceu em seu cotidiano, um modo de vida próximo ao que pensou ser o da aristocracia: comprou vestidos, tecidos, objetos e revistas.

Então, à medida que o tempo passava e a outro baile não era convidada, Emma foi se sentindo, mais uma vez, deprimida e injustiçada com sua sorte. A desgraça novamente a visitava e ela não podia mais obter prazer com nada do que lhe era possível.

Assim, Flaubert evidencia em sua protagonista um aspecto muito peculiar de compreensão das situações que lhe ocorrem. Emma fantasiou quanto ao que poderia ser o seu casamento e quanto ao baile em Vaubyessard, porém, à medida que a realidade se lhe impôs, ela se deprimiu, ficando fixada no que não conseguiu obter em sua vida, impedindo-se de investir libidinalmente em algo diferente.

Nesse contexto, entendo existir, na personagem, aspectos relativos à organização histérica e ao seu viés depressivo. Acredito que o que faz com que a mulherzinha de Flaubert se deprima é a exigência da realidade, que pode ser sinônimo de aceitação de seus limites, de sua própria castração. Há, na histeria, a imposição constante de não lhe faltar qualquer coisa e Emma assim o faz, espera que os momentos de sua vida sejam perfeitos. Uma vez que percebe não os ter, deprime-se e vive em uma espécie de luto.

Esse aspecto de Emma Bovary também fornece indícios de outra face da histeria feminina, pois o modo pendular em que ocorrem momentos de triunfo alternados com momentos em que ela sente-se deprimida são constantes e podem indicar, a partir do entendimento psicanalítico, a dificuldade de sustentar seu narcisismo fálico que mascara a sensação de impotência, um outro extremo da psique na histeria.

Dessa forma, compreendo que a histérica vive nesta espécie de movimento de alternância, onde o prazer não pode ser vivido completamente. Há uma forte tendência de esforço para manter-se onipotente, mas logo há a quebra que a leva à impotência. É nesse sentido que os momentos de êxito são altamente valorizados e os de não êxito, vividos como resultado de uma castração, o que a faz deprimir e sentir-se injustiçada.

Com a chegada do estado deprimido em Emma, Flaubert narra o que pode ser entendido como o adoecimento da protagonista com alguns sintomas que, à luz da psicanálise, permitem interpretá-los como sintomas histéricos conversivos. Flaubert escreve o seguinte sobre a personagem:

Empalidecia e tinha sobressaltos de coração. [...] Às vezes tagarelava com uma abundância febril; a estas exaltações sucediam torpores repentinos, em que permanecia sem falar e sem se mover. Para reanimar-se derramava então, nos braços, um frasco de água-de-colônia. [...] Desde então, Emma começou a beber vinagre para emagrecer, adquiriu uma tossezinha seca e perdeu totalmente o apetite (Flaubert, 2005, p. 85).

Interpreto essa passagem do romance como a descrição de sintomas de conversão, pois, a partir das postulações freudianas, há o entendimento de que os sintomas da histeria de conversão tornam-se presentes por falha no recalcamento do complexo de Édipo/complexo de castração e também que esses sintomas têm forte ligação com a identificação parental.

Ao analisar os sintomas histeroepléticos de Dostoiévsky (paralisias, desmaios, desfalecimentos entre outros), em Dostoiévsky e o parricídio (1928 [1927]), Freud postula que as crises que colocavam o escritor em sensações semelhantes à morte podem indicar um conflito nas identificações estabelecidas pela psique. O desejo de morte das figuras parentais, na crise, por falha do recalcamento, colocam o sujeito no lugar do ser morto, por punição.

Com a interpretação acima referida, não pretendo patologizar a protagonista, apenas tenho o intuito de expor os sintomas de crise descritos por Flaubert a respeito de sua mulherzinha e o quão realista é a descrição, a ponto de possibilitar uma leitura psicanalítica a partir do legado construído por Freud alguns anos mais tarde a respeito da histeria de conversão.

Conforme referido anteriormente, como em todas as situações em que a protagonista se deprime, Flaubert rapidamente cria um novo acontecimento promissor que a tira desse estado. Nessa ocasião, o outro que lhe ajuda é o marido Charles, que, preocupado, leva-a para se consultar com seu antigo mestre e resolve seguir sua orientação de mudar de cidade para haver melhora na doença "dos nervos" que apresentava. Além disso, um outro fato também a ajuda ser resgatada do estado deprimido: a gravidez. Sendo assim, as promessas decorrentes das mudanças, seja de cidade, seja por meio do nascimento de um bebê, possibilitam a ela a construção de fantasias novas.

Ao chegar à nova cidade (Yonville, um vilarejo perto de Rouen), apresentam-se os moradores que recebem o casal com um jantar. Nessa ocasião, destacam-se o farmacêutico Homais - que aparenta forte influência no local, além de procurar dominar sempre as conversas emitindo opiniões consideradas por ele como modernas - e o escrevente Léon, que é interessado em literatura e viagens a lugares distantes, tal como Emma.

A respeito de sua gravidez, Emma desejava que o filho fosse um menino, já havia escolhido previamente o nome, certa de que daria à luz um filho varão, que ela entendia ser como uma espécie de desforra a tudo o que havia vivido como impotência até então em sua vida.

Sobre o desejo feminino de realizar a maternidade com o nascimento de um filho do sexo masculino, Freud (1996, p. 132), em Feminilidade, postula que:

A diferença na reação da mãe ao nascimento de um filho ou de uma filha mostra que o velho fator representado pela falta de pênis não perdeu, até agora, a sua força. A mãe somente obtém satisfação sem limites na sua relação com seu filho menino; este é, sem exceção, o mais perfeito, o mais livre de ambivalência de todos os relacionamentos humanos.

Nessa citação, entendo que Freud se refere à satisfação substituta que um filho homem pode trazer ao antigo desejo feminino de possuir um pênis (próprio ao estádio da organização genital infantil). Sobre as razões de dar à luz um filho do sexo masculino, Flaubert descreve que sua personagem compreendia que aos homens é dada a possibilidade e a liberdade de experimentar todos os prazeres da vida. Nada impede o homem, ao passo que as mulheres são sempre rodeadas de inconveniências, proibições e da própria fraqueza que as constituem.

A partir do entendimento da protagonista, interpreto que Flaubert tenha transmitido a mensagem de ser Emma uma mulher na qual a distinção entre os sexos seja vivida da seguinte maneira: ao homem seriam destinadas todas as possibilidades de autorrealização, enquanto que à mulher não seria oferecida nenhuma possibilidade. Suponho também que esse pensamento da protagonista evidencia a insatisfação quanto à sua condição feminina, insatisfação esta que a faz desejar ter nascido diferente, uma outra pessoa que não sofresse com a limitação que as exigências da realidade sempre lhe impuseram.

Neste ponto, é interessante notar o contexto social e cultural da segunda metade do século XIX, no qual Emma está inserida. Flaubert, em diversos momentos de suas cartas exemplares, tece comentários críticos ao que ele considerava ser a hipocrisia da sociedade pós revolução francesa. A protagonista construída por ele é, por vezes, a porta-voz do autor que anuncia as diferenças socioeconômicas e entre os sexos. Assim, as percepções da personagem (descritas pelo autor) do lugar reservado ao homem e das obrigações limitadoras à mulher sugerem uma insatisfação com o modo de organização da cultura europeia; o filho homem, para Emma, poderia também ser considerado uma forma de protesto contra as imposições morais que havia sofrido por ser mulher.

Entretanto, Emma não obteve a satisfação desejada, pois deu à luz uma menina e, em seguida, desmaiou, como se apagasse inteiramente, como reação frente ao desejo que antes fora criado, mas agora destruído de triunfar possuindo um filho homem (uma menina não lhe traria satisfação).

Após a decepção com o nascimento da filha, Emma deixa de lado qualquer cuidado possível com seu papel de mãe e esposa. Passa a investir na sedução de Léon. No entanto, ambos hesitam em dar o primeiro passo, e Léon resolve ir embora.

Com a partida do amigo para Rouen, Emma se deprime e sente-se profundamente abandonada, sem ter mais nada em que investir. Ela, que antes tentava seduzir o escrivão e até fantasiava em um dia pedir-lhe que fugissem juntos para viverem uma vida romanesca, viu-se sem referencial para se nortear.

Emma parece referendar a hipótese de delegar ao homem da relação amorosa sua pergunta identificatória à medida que compõe uma determinada personagem frente a cada homem que se aproxima. Porém, quando não consegue êxito em seus relacionamentos, deprime-se, tornando-se apática. E o autor, com sua generosidade, a permite tentar mais uma vez e, nesse sentido, é que ele escreve o aparecimento de Rodolphe Boulanger na trama.

O solteiro de 34 anos era também um bon vivant que se encantou com a beleza da esposa do médico. O autor é explicito ao mostrar que ambos os personagens não tinham o mesmo objetivo quanto ao caso amoroso que vieram a ter. Rodolphe queria uma amante jovem e bonita, ao passo que Emma sonhava em encarnar a personagem romanesca, de ideal fálico que construiu durante a estada no convento e nutria desde então.

Madame Bovary entendeu que, por meio do adultério, poderia constituir a personagem heroína que sempre desejou ser, e essa realização se dá pelo campo da busca pela satisfação sexual, um campo que, de acordo com o que foi explicitado no início deste artigo, aproxima a mulher (do século XIX) da figura da prostituta e a coloca distante, por conseguinte, da figura socialmente valorizada, a figura da mãe.

Emma caminha na contramão das imposições sociais e, sem se dar conta, tentou obter satisfação compondo uma personagem cuja tendência seria a da desvalorização por parte do outro da relação amorosa, bem como da sociedade em geral. Rodolphe parecia estar cônscio do lugar da amante, enquanto ela, em seu delírio bovarista, não conseguia se destituir da fantasia de tornar-se uma típica heroína dos romances baratos que lera.

Ela tentou, com todas as forças, salvar o caso amoroso, mas Rodolphe não queria uma esposa exigente e sim uma amante; por isso partiu, abandonando-a. Nessa ocasião, o tom irônico da linguagem do autor mostra-se presente, pois a carta em que o solteiro escreve é carregada de clichês, por meio dos quais ele tentou expor com seu discurso sedutor os motivos de tê-la abandonado.

Entendo, assim, que o autor-narrador Flaubert compõe, para se relacionar com sua protagonista, uma personagem masculina que muito se assemelha a Emma no que se refere à dificuldade na utilização da linguagem; Emma utiliza as palavras para dar nome aos seus devaneios bovaristas e para explicar o sofrimento constituído pelas personagens que encarna ao passo que Rodolphe as utiliza de maneira sedutora para dissimular seus sentimentos. Sendo assim, ambos fazem uso da linguagem pronta, do clichê, porém, com objetivos muito distintos.

Emma, então, recebe do pai uma carta em que ele parece adivinhar que a filha estivesse vivendo feliz com o casamento; disse-lhe ainda supor que as finanças da família poderiam estar prosperando.

Ao ler a carta e perceber a incompatibilidade entre a vida que o pai lhe desejou e sua vida real, Emma sentiu-se triste e passou a cuidar da filha e a ocupar o lugar de esposa dedicada.

Nessa ocasião, Homais ofereceu a Charles a oportunidade de testar em Hippolyte (trabalhador pobre das redondezas) uma nova técnica de cirurgia para a cura de pés equinos.

O objetivo de Homais era ver o nome da cidade em destaque nas notícias e, por meio disso, obter autopromoção. Emma ajudou o farmacêutico, incentivando Charles a realizar tal operação, com o intuito de fazer do marido um herói, um homem admirável, que se destacasse por um feito inédito.

Devido à forte influência da esposa e do farmacêutico, Charles aceitou realizar a delicada cirurgia e acabou fracassando. Não obteve sucesso na operação e a perna do paciente teve que ser amputada por um famoso médico de uma cidade próxima.

Diante disso, a protagonista novamente deprime-se e volta a odiar Charles, sentindo-se, como relata Flaubert, enganada por depositar tantas expectativas em seu marido:

Emma, à sua frente, olhava-o. Não compartilhava da sua humilhação; experimentava outra: a de ter imaginado que semelhante homem pudesse valer alguma coisa, como se já vinte vezes ela não houvesse suficientemente percebido sua mediocridade [...]. Como pudera ela (tão inteligente!) enganar-se uma vez mais? Afinal, por que deplorável cegueira enterrara assim a existência em contínuos sacrifícios? Lembrou-se de todos os seus desejos de luxo, de todas as privações de sua alma, da abjeção do casamento, dos trabalhos domésticos, de seus sonhos caídos na lama como andorinhas feridas, de tudo o que desejara, de tudo de que se privara, de tudo que poderia ter obtido. E por quê? Por quê? (Flaubert, 2005, p. 215).

Emma havia investido em transformar o marido em um herói romanesco, como uma espécie de tentativa de salvar a si mesma por meio do sucesso do homem com quem se casou (ou talvez para reafirmar sua própria insatisfação). Charles não consegue corresponder a esse desejo, confirmando a impossibilidade de ser modificado e a mediocridade de seus anseios, que, de uma vez por todas, explicita a diferença entre os dois.

Como consolação, ela recorre mais uma vez ao amante, mas agora com uma espécie de voracidade, querendo transformá-lo com presentes caros como um chicote de cabo de prata dourada, um sinete e uma cigarreira parecida com a de um Visconde. Todos esses presentes aumentavam sua dívida com o comerciante L'Heureux e humilhavam o amante em um movimento que, a nosso ver, ultrapassa o limite de oferecer alguma gratificação para sustentar o romance, mas sim no intuito de transferir seu sentimento de impotência ao outro da relação amorosa.

Assim, uma das formas de a histérica se relacionar pode ser por meio de uma constante insatisfação endereçada ao homem; desse modo, ela tenta adquirir o lugar de mulher perfeita que necessita constantemente ser confirmada como objeto desejável, e o homem, por não conseguir satisfazê-la, sente-se impotente. E esta, segundo interpreto, pode ser a razão crucial que fez com que Rodolphe a deixasse. Ela pediu ao amante para que fugissem e, no dia em que a fuga se concretizaria, Rodolphe foi embora, deixando uma carta carregada de clichês românticos.

Com a partida do amante, Emma sofre, mais uma vez, um forte golpe de seu destino e passa a viver um período de catatonia, de completa prostração. Esse estado vegetativo que tomou conta da protagonista, preocupando o marido por seus sintomas, é interpretado por Kehl (1998, p. 155) como decorrente do abandono vivido por Madame Bovary, que: "[...] destrói a personagem da amante romântica em torno da qual a feminilidade de Emma se estruturou - a morte de sua 'heroína' atinge Emma em pleno ser, quase causando sua própria morte."

Então, mais uma vez, Flaubert providencia alguém para tirá-la do estado depressivo. Nessa ocasião, o próprio Deus retorna, por meio da fé da protagonista, para fazê-la representar outro papel.

Emma volta-se à religiosidade, dedicando-se a Deus como se este fosse um amante. A narração de Flaubert, expondo que sua protagonista dirigia ao Senhor as mesmas palavras que dizia, outrora, a Rodolphe, causou escândalo e compôs um dos pontos do processo a que respondeu após a publicação do romance.

Porém, para Emma, a empreitada de voltar sua devoção à igreja e tomar Deus por seu amante não teve longa duração. Nas orações, tentava evocar a figura de Deus-pai, mas, aos poucos, percebeu que sua angústia não era aplacada, prazer algum conseguiria obter por meios das evocações ao pai celestial até que outro viesse, mais uma vez, para resgatá-la.

Homais sugeriu a Charles que levasse a esposa para assistir a uma apresentação de ópera que estava em cartaz na cidade de Rouen. Charles viu nessa saída do casal uma boa oportunidade de ajudar a esposa a superar a crise que atravessava.

Em um dos intervalos da Ópera, o casal reencontrou Léon; nessa ocasião, os velhos amigos acabaram ficando em Rouen sob o pretexto de assistirem à segunda parte da apresentação, já que Charles precisou retornar a Yonville para trabalhar.

Quando ficaram a sós, conversaram sobre diversos assuntos e Emma sentiu-se convocada a interpretar mais um papel, o de mulher experiente, conhecedora do amor. Flaubert (2005, p. 270) escreve sobre isso: ao ouvir Léon falar, "[...] a Sra. Bovary sentia-se admirada de ser tão velha; todas aquelas coisas, assim recordadas, lhe traziam a impressão de que sua existência se alargava, tinham o efeito de imensidades sentimentais a que ela se reportava."

Então, após um passeio de carruagem - narrado pelo autor em suas minúcias a partir da perspectiva de alguém que olha a situação do lado de fora - e, depois, por diversas vezes, em um hotel em Rouen, ela vive intensamente mais um adultério com um pequeno temor de que o caso se perdesse.

Assim prossegue o relacionamento dos dois. Emma, para ir a Rouen uma vez por semana para se encontrar com o novo amante, mente ao marido dizendo-lhe que ia tomar aulas de piano. As mentiras, nesse momento da trama, não se resumem às aulas, mas tornam-se, conforme Flaubert relata, uma necessidade entendida por Emma, para manter a salvo seu novo caso amoroso. Tornou-se um prazer a ela envolver-se completamente em uma história fantasiada.

Desse modo, compreendo estar evidenciado a tendência da personagem em perder-se ao nutrir seu falicismo, tornando-se delirante, bovarista. Conforme entende Kehl (1998), Emma compõe uma personagem diferente a cada situação de sua vida, e, assim como se pode entender, as personagens encarnadas por ela prendem-na em uma malha de mentiras, tornando-a prisioneira constante de uma encenação, uma farsa.

Durante esse período, Emma, que já estava afundada em dívidas feitas com o comerciante L'Heureux desde o início de seu casamento, fez mais algumas contas, comprando presentes também a Léon. Isso porque, desta vez, ela sentiu-se convocada a assumir mais uma personagem, que, como todas as outras, não poderia conviver com nada que lhe faltasse. Léon era seu salvador e ela estava liberada a desejar e conseguir realizar qualquer coisa.

Assim, por meio deste novo caso amoroso que se consumava, Emma, apesar de constituir para si mesma e para o outro uma personagem diferente, faz uso de artifícios idênticos aos que utilizou com o primeiro amante; ela, por meio de presentes caros e de sua atitude, induzia Léon ao rebaixamento, criava um desejo impossível de ser satisfeito, tornando o homem na relação amorosa inferior e impotente para que ela pudesse, assim, manter vivo seu desejo inconsciente de completude. Ao mesmo tempo que ela o induzia a se sentir rebaixado, exigia que ele sempre a confirmasse como sendo um objeto fálico.

Neste momento da trama, Flaubert descreve Léon como um homem que se tornou adulto após a mudança de cidade. As exigências de Emma, conforme o autor descreve, acabam por asfixiar o novo amante da protagonista. Ele sentia-se exigido e não fazia exigências, por isso, começou a sentir como se sua personalidade se esvaisse.

Entendo ser o excesso de idealização e consequentemente de exigência depositada no outro que acabou levando a cabo os casos amorosos de Emma. Tanto o marido Charles, quanto os amantes Rodolphe e Léon eram convocados pela personagem a assumirem um papel impossível de se situar: o de portador da resposta a sua própria questão identificatória. Esse lugar delegado não se sustentava por muito tempo e logo Bovary se desgostava de todos eles, passando a sentir-se cada vez mais fraca a cada sofrimento vivido.

Com o fim do caso com Léon, Flaubert (2005, p. 324) expõe um pensamento interessante de sua protagonista a respeito da própria vida, que pode ser entendido como um indício ou um momento de questionamento acerca de seu próprio falicismo que não conseguia se sustentar. Escreve ele que Emma se perguntou: "de onde vinha pois, aquela insuficiência da vida, aquele apodrecimento instantâneo das coisas em que se apoiava?"

Assim, Emma cria uma espécie de questionamento momentâneo a respeito da insatisfação permanente que lhe acompanhava. Baseada na compreensão de que a insatisfação da histérica provém de sua consideração constante de que nada pode lhe faltar, já que ela imputa a si mesma a função de se estabelecer como o próprio falo, interpreto que desejar algo e ficar em vias de satisfazê-lo significa abdicar de outros desejos; e, como a histérica busca a perfeição (sustentar a posição de fálica), estar satisfeita com algo a remeteria à abdicação de conseguir outras coisas e consequentemente à aceitação de sua própria limitação, sua própria castração.

Uma vez que a possibilidade de manter o falicismo fracassa, Madame Bovary se deprime; mas antes que possa ser salva, desta vez, uma exigência da realidade se lhe impõe; o outro que, agora, aparece na trama é a dívida que passa a ser cobrada pelo comerciante L'Heureux.

Emma faz diversas tentativas para contornar a situação, pede ajuda a Léon, ao preceptor Binet, ao tabelião e a Rodolphe, mas nada consegue. Tenta durante todo o tempo esconder de Charles a derrocada financeira, com medo, como Flaubert escreve, de que o marido pudesse adquirir uma certa superioridade diante dela.

Mais uma vez, pensando nas questões relativas ao descaminho do feminino na psicopatologia histérica, posso supor que, para Emma, deparar-se com o seu fracasso diante do marido talvez fosse o equivalente a assumir sua própria limitação perante ao homem com quem se casou. Em outras palavras, o reconhecimento da derrocada financeira a colocaria na posição de uma pessoa limitada, que não consegue sustentar o ideal fálico que criou a si mesma, remetendo-a à condição que durante toda a trama tentou escapar. Emma buscou, ao longo de todo o romance, tornar Charles uma figura fracassada e, no entanto, as dívidas fizeram-na deparar-se com o seu próprio fracasso.

Assim, conforme Kehl (1998) comenta, é interessante observar que a mulherzinha de Flaubert não se arrepende do adultério - inclusive esse foi um dos pontos questionados no julgamento do autor -, mas o que a destrói é a derrocada financeira.

Esse fato é um golpe da realidade que, a nosso ver, coloca Emma de frente com a condição (o papel de mulher burguesa provinciana) que procurou escapar durante todo o romance. As dívidas são reais e, indiscutivelmente, deveriam ser pagas urgentemente sem que ninguém pudesse salvá-la desta vez.

Então, uma vez que lhe aparecia a impossibilidade de ser salva por alguém ou algo, Emma tenta, desta vez como derradeira tentativa, resolver por si mesma a situação que lhe gerava angústia.

Como última escolha, Madame Bovary, desesperada, conforme Flaubert expõe aos leitores neste momento da trama, procura o ajudante do farmacêutico Homais para lhe ajudar fazendo-lhe um pedido mentiroso (disse que queria veneno para matar os ratos que a impediam de dormir). Assim, consegue o arsênico e o ingere esperando a rápida morte.

No início, não dá valor ao poder do veneno, chegando a comentar que a morte era pouca coisa; mas se enganava e, ao se aproximar do fim, teve acesso a sua condição humana, o que a fez amaldiçoar o veneno e pedir que se apressasse o seu efeito.

Emma, que aparentou estar morta durante todo o romance, delegando seu desejo ao outro, desta vez se faz sujeito de sua própria história, mas não para empreender mudanças em sua vida e sim para se matar, para por um fim em sua própria existência.

Os efeitos do veneno mostraram a ela, por meio do sofrimento do corpo, que ela de fato existia e que a realidade era bem mais cruel que a fantasia, porém, já era tarde para esse tipo de constatação, pois a morte - como última e maior das buscas pela completude peculiar à realização do sujeito - já havia se aproximado.

Segundo Aulagnier (1990, p. 209), no caso da morte, "[...] pela segunda e última vez, será oferecido ao sujeito o que ele não sabia demandar." Em Madame Bovary, entendo que a demanda mal sucedida era do desejo do outro, de transformar-se em sujeito desejante a partir da colocação no lugar de objeto desejado. Emma não conseguiu ser amada por homem algum, nem ao menos por Charles, que apesar de atencioso e gentil, também não pôde ouvir o desespero da esposa.

Assim, de forma trágica, se dá a morte da mulherzinha de Flaubert, que embora tenha buscado, desde a época em que esteve no convento, a própria salvação, a satisfação do desejo, conseguiu, enfim, que o desejo se realizasse, mas pela via do não desejo, da morte.

Bloom (1995) compreende que o motivo central que levou Flaubert a matar sua protagonista foi a inveja da vitalidade de Emma, pois ela consegue, corajosamente, lutar pela realização de suas fantasias. Concordo com o entendimento de Bloom e acrescento que a morte de Emma era inevitável já que sua construção, pelo narrador Flaubert, traz consigo aspectos muito minuciosos do psiquismo humano, o que permite ao leitor, por diversas vezes, incorrer no erro de considerar a personagem como alguém viva. Emma Bovary, desta forma, teve que morrer para não sair da realidade literária, para permitir que seu criador recuperasse a maestria da composição do romance.

E assim éfeito; ela ultrapassa os limites, busca triunfar sobre todos ao preço de sua vida, morre e, como Flaubert relata, nada de consistente traz mudanças ao pequeno vilarejo de Yonville.

 

Referências

AULAGNIER, P. 1990. Um interprete em busca de sentido - I. São Paulo, Escuta, 365 p.         [ Links ]

BIRMAN, J. 1997. Se eu te amo, cuide-se. In: M. BERLINCK, Histeria. São Paulo, Escuta, 162 p.         [ Links ]

BLOOM, H. 1995. O assassinato de Madame Bovary. Caderno Mais!. Folha de São Paulo, 09 de abr.         [ Links ]

FLAUBERT, G. 2005. Madame Bovary. São Paulo, Martin Claret, 405 p.         [ Links ]

FREUD, S. 1996 [1927]. Dostoievsky e o parricidio. ESB, vol. XXII, Rio de Janeiro, Imago, 297 p.         [ Links ]

FREUD, S. 1996. [1932]. Feminilidade. ESB, vol. XXII. Rio de Janeiro, Imago, 283 p.         [ Links ]

KEHL, M.R. 1998. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro, Imago, 344 p.         [ Links ]

MAYER, H. 1989. Histeria. Porto Alegre, Artes Médicas, 111 p.         [ Links ]

 

 

Recebido: 01/12/2012
Aceito: 20/03/2013

 

 

1 Designação criada pelo autor para se referir à Emma Bovary em muitas cartas escritas durante a confecção da obra.