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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.7 no.1 São Leopoldo jun. 2014

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2014.71.09 

ARTIGOS

 

Gestação decorrente de violência sexual: um estudo de caso à luz do modelo bioecológico1

 

Pregnancy as a result of sexual violence: a case study in light of the bioecological model

 

 

Sílvia Renata LordelloI; Liana Fortunato CostaII

IUniversidade Católica de Brasília. Campus I, QS 07 Lote 01, EPCT, Águas Claras, 71966-700, Taguatinga, DF, Brasil. srlordello@terra.com.br
IIUniversidade de Brasília. Instituto de Psicologia. Campus Darcy Ribeiro, L2 Norte, SQN 606, 70910-900, Brasília, DF, Brasil. lianaf@terra.com.br

 

 


RESUMO

A gravidez decorrente de violência sexual traz uma série de complexos impactos sobre a maternidade. Neste estudo, investigou-se uma mulher vítima de violência sexual com um filho recém-nascido, com o objetivo de identificar os principais impactos psicológicos no desenvolvimento da relação mãe/bebê nessa situação adversa. A participante, de 25 anos, era atendida em um programa voltado às vítimas de violência em hospital público de centro urbano. A pesquisa de natureza qualitativa teve como instrumento a entrevista com roteiro semiestruturado e a análise das informações foi realizada adotando-se como referencial teórico o modelo bioecológico de Urie Bronfenbrenner. Os resultados revelaram um sistema familiar com aspectos disfuncionais e a presença de atos de violência na dinâmica transgeracional. Embora tenha sido constatado esforço pessoal no estabelecimento da relação mãe e filho, a rede de apoio permaneceu frágil. Foram identificados sentimentos ambivalentes com relação ao agressor e uma necessidade de investir na redução de sintomas sugestivos do Transtorno do Estresse Pós-Traumático, representados por sentimentos persecutórios enfrentados pela vítima. Há, entretanto, projetos definidos de maternidade e atitudes da mãe que tornam clara sua trajetória de resiliência, ainda que embrionária. São reconhecidas as limitações do estudo e indicados estudos futuros que possam aprofundar o tema e abordar estratégias de intervenção psicológica junto a esse público.

Palavras-chave: modelo bioecológico, agressões sexuais, gravidez.


ABSTRACT

Motherhood is a process that brings numerous transformations and challenges to women, but when it comes from a pregnancy that is a result of sexual violence, it becomes even more complex. In this study, the development of motherhood in a woman victim of sexual violence with a newborn child was investigated. The 25 year-old patient participated in a program for victims of violence in a public hospital in an urban center. An interview was conducted with a semi-structured script, and the view of the bio-ecological model was used to analyze the information obtained. The results showed a family micro-system that was compromised and dysfunctional, and aspects of violence re-edited in the family's transgenerational dynamic. Proximal processes point to the personal effort in establishing a mother-child relationship, even if the support network remained fragile. Very intense feelings were identified regarding the aggressor as well as a need to invest in the reduction of suggestive symptoms of Post-Traumatic Stress that still perpetuate persecutory aspects faced by the victim. There are, however, defined maternity projects and actions of the mother that make her resilient trajectory clear, even if very small. Future studies are indicated, suggesting possible strategies and psychological interventions with this public.

Keywords: bio-ecological model, sexual aggression, pregnancy.


 

 

Introdução

A maternidade é compreendida como um desafio para a maior parte das mulheres, ainda que a cultura a interprete como inerente ao gênero. A construção da relação afetiva entre mãe e bebê é processual e leva em consideração vários aspectos, inclusive o fato de o bebê ser desejado. Situações adversas que resultam na gestação, como é o caso do estupro, afetam de forma indelével o projeto de maternidade. A violência sexual é um fenômeno que requer um olhar diferenciado e que merece ser compreendido à luz de modelos teóricos que captem sua complexidade.

Diante disso, o presente texto apresenta a história de Samira2, uma jovem de 25 anos, cuja gravidez fora decorrente de violência sexual praticada próxima a sua escola. Ela optou por ter o bebê, mas seu processo gravídico fora marcado por conflitos familiares, reedição da violência e outros impactos. A procura por auxílio em programa destinado a vítimas de violência em hospital público propiciou sua participação em grupo terapêutico no período gestacional e, após o nascimento do bebê, retornou ao serviço para acompanhamento. Nesse momento de retorno ao serviço, após Samira ter o bebê, foram coletadas informações sobre a história de vivência gestacional e de seus primeiros meses como mãe, que foram analisadas a partir de uma visão sistêmica do desenvolvimento.

O objetivo do texto é apresentar o processo de construção da maternidade em uma condição adversa de violência sexual, analisado à luz da teoria bioecológica do desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner, tomando-se como base a experiência de Samira.

 

O modelo bioecológico na compreensão do desenvolvimento humano

Bronfenbrenner (1996) enfatizou, em sua obra, a importância de uma visão sistêmica do desenvolvimento. Em sua última revisão, sistematizou a compreensão do desenvolvimento a partir de quatro aspectos inter-relacionados: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (Modelo PPCT). Para entendê-los, é importante esclarecer que processo figura como principal mecanismo de desenvolvimento, associando-o às interações recíprocas e complexas que um ser humano ativo estabelece com pessoas, objetos, símbolos presentes no ambiente imediato, considerando a evolução biopsicológica da pessoa em desenvolvimento.

Ao analisar os ambientes, o autor propõe que sejam considerados: o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema é o contexto no qual há um padrão de atividades, papéis sociais e relações interpessoais experienciados face a face pela pessoa em desenvolvimento. O mesossistema refere-se ao conjunto de microssistemas de que uma pessoa participa e às interações estabelecidas entre eles. O exossistema corresponde aos ambientes nos quais a pessoa não participa ativamente, mas que desempenham influência indireta sobre seu desenvolvimento, como o trabalho dos pais da pessoa em desenvolvimento, a rede de apoio social e a comunidade. O último e mais abrangente contexto é o macrossistema, que se refere ao conjunto de ideologias, valores, crenças, religiões, formas de governo, culturas e subculturas presentes no cotidiano da pessoa em desenvolvimento (Bronfenbrenner e Ceci, 1994; Bronfenbrenner e Morris, 1998).

Os processos vivenciados no ambiente imediato são denominados processos proximais e são considerados motores para o desenvolvimento. Algumas condições são necessárias para que ocorram, como engajamento, períodos estendidos de tempo e atividades progressivas quanto à complexidade. Os processos proximais variam em função das características da pessoa, dos contextos, dos resultados evolutivos e do período sociohistórico em que a pessoa está inserida e, por isso, não podem ser considerados estáticos ou determinantes (Bronfenbrenner, 1999; Bronfenbrenner e Evans, 2000).

Os processos proximais podem produzir efeitos de competência e efeitos de disfunção (Bronfenbrenner e Ceci, 1994; Bronfenbrenner e Morris, 1998; Bronfenbrenner, 1999; Bronfenbrenner e Evans, 2000). A competência corresponde à capacidade de a pessoa dirigir seu comportamento por meio de situações e domínios evolutivos, a partir da aquisição de conhecimentos e habilidades, fazendo uso de repertório construído nos campos intelectual, físico, socioemocional, motivacional e artístico, de forma coordenada ou isolada. A disfunção, ao contrário, corresponde à dificuldade manifestada pela pessoa para manter o controle e a integração do comportamento por meio de situações e diferentes domínios do desenvolvimento. A natureza dos ambientes afeta de forma indiscutível os efeitos produzidos pelo desenvolvimento. As heranças genéticas também devem ser consideradas, embora haja influência decisiva das condições e dos processos ambientais sobre o grau de herança e a efetividade dos processos proximais.

Com relação à pessoa, Bronfenbrenner e Morris (1998) propõem que sejam analisadas as características biopsicológicas, determinadas pela herança e aquelas construídas na interação com o ambiente. A capacidade de influenciar os processos proximais está diretamente ligada a três grupos de características pessoais, como disposições, recursos e demandas. As disposições dizem respeito às forças que impulsionam ou dificultam os processos proximais e podem apresentar-se em dois grupos: forças geradoras ou generativas e forças desorganizadoras ou inibidoras. Os recursos são aspectos biopsicológicos que englobam experiências, habilidades, conhecimentos e capacidades necessárias para o funcionamento eficaz dos processos proximais em um determinado estágio de desenvolvimento, e as demandas fazem menção aos aspectos que estimulam ou desencorajam as reações do ambiente social imediato, de maneira a manter ou romper as conexões com o processo proximal.

O tempo, também considerado cronossistema, é o quarto elemento da teoria do PPCT e identifica mudanças e permanências que ocorrem ao longo do ciclo vital, evidenciando-as em três níveis: o microtempo, mesotempo e macrotempo. O microtempo refere-se ao processo microgenético de interação entre a pessoa em desenvolvimento e aqueles que com ela convivem no dia a dia. O mesotempo corresponde à periodicidade de episódios dos processos proximais, através de intervalos maiores como dias e semanas, que produzem resultados sobre o desenvolvimento. Por fim, o macrotempo indica mudanças geracionais e transições históricas (Bronfenbrenner e Ceci, 1994).

Estudos brasileiros têm sido desenvolvidos com vistas a estudar o desenvolvimento em condições adversas, adotando-se o referencial bioecológico (Borges e Dell'Aglio, 2008; Hatzenberger et al., 2012). Embora temáticas que envolvam abuso sexual, fatores de proteção e risco, exploração sexual e tráfico de pessoas já tenham expressão na literatura, o tema da gravidez decorrente de violência sexual ainda carece de maior atenção no campo da produção de conhecimento científico que utilize a teoria bioecológica como referencial.

 

Construção de maternidade na gestação decorrente de violência sexual

O processo gestacional traz em si uma dinâmica específica que precisa ser considerada. Características diversas como conformidade, inadequação, estranhamento e intensificação de sentimentos se tornam presentes e evidenciam a importância desse período para o investimento e o reconhecimento das mães sobre a reorganização psíquica necessária à maternidade. A gravidez decorrente de violência sexual intensifica a vivência de sentimentos ambivalentes com relação ao bebê (Piccinini et al., 2004; Taquette, 2007).

Quando a gravidez é decorrente de estupro, as mulheres devem ser esclarecidas sobre as alternativas legais quanto ao destino da gestação e sobre as possibilidades de atenção nos serviços de saúde. Essas mulheres têm direito de serem informadas sobre a possibilidade de interrupção da gravidez, conforme Decreto-Lei n.º 2848, art. 128, inciso II, do Código Penal, bem como sobre o direito e a possibilidade de manterem a gestação até o seu término, garantindo-se os cuidados pré-natais apropriados para a situação. Devem, ainda, receber informações completas e precisas sobre as alternativas após o nascimento, que incluem a escolha entre permanecer com a criança e inseri-la na família, ou proceder com os mecanismos legais de doação. Nessa última hipótese, os serviços de saúde devem providenciar as medidas necessárias junto às autoridades que compõem a rede de atendimento para garantir o processo regular de adoção (Brasil, 1940; Faleiros, 2013; Taquette, 2007).

Quando decidem ter o filho, as mulheres se veem diante de um duplo desafio: prepararem-se para a maternagem e minimizar os efeitos das projeções nas quais os filhos podem se tornar depositários da violência sofrida, perpetuando-a por meio da transmissão geracional. O significado da gravidez, entretanto, é impactado por muitas variáveis e, ainda que sob condições que aparentemente representem risco, pode representar um organizador da vida psíquica ou mesmo, dar visibilidade e lugar social à grávida. Um efetivo trabalho para acolhimento desses significados, desprovidos da visão julgadora restritiva, é uma forma mais construtiva de intervenção psicológica possível nesses casos (Lucas d'Oliveira et al., 2009; Joffily e Costa, 2006).

A gravidez decorrente de estupro traz repercussões para a vida das gestantes em todos os sentidos. Após a descoberta da gravidez, procuram se afastar do local de moradia anterior, empreendendo, muitas vezes, uma migração para outras cidades ou bairros, por sentirem vergonha do ocorrido, ou por não se sentirem suficientemente protegidas de outras agressões. E, ainda, não apresentam queixa criminal para o questionamento da violência sofrida, já que não dão um significado à violência ou a naturalizam (Cantelmo et al., 2011; Castro et al., 2004; Faleiros, 2013; Monteiro et al., 2007; Nascimento e Cordeiro, 2011; Taquette, 2007).

Há, entretanto, algumas respostas não adaptativas e que podem sugerir a presença de sintomas psicopatológicos. No caso de violência sexual, há estudos que apontam o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) como principal patologia associada. O TEPT envolve a exposição a um estressor traumático, ao qual a vítima reage com intenso conteúdo emocional, relacionado à dor, ao pavor, ao medo e ao terror (Borges e Dell'Aglio, 2008; Habigzang et al., 2010; Habigzang e Koller, 2011; Hatzenberger et al., 2012; Porto e Bucher-Malusche, 2012).

Trata-se, portanto, de um texto que apresenta um estudo de caso de uma jovem mulher que engravidou em uma situação de estupro. Pretende-se abordar a questão pelo ângulo da Teoria Bioecológica de Brofenbrenner, ressaltando-se os vários contextos nos quais está inserida.

 

Método

Adotou-se a modalidade estudo de caso, por tratar-se de recurso da metodologia qualitativa que permite visibilidade ao fenômeno estudado, elegendo a situação real e preservando a dinamicidade a ela inerente. O estudo do abuso sexual tem se beneficiado dos recursos narrativos, por permitir que o entrevistado sinta-se acolhido no relato de sua história e por propiciar reflexividade notável na fala, quando verbaliza insights não revelados anteriormente para si.

Murray (2008) aponta a narrativa como uma ordenação da desordem. Para muitos informantes, este é o primeiro momento de tratar do assunto de forma a realizar uma organização de ideias a respeito do fato, que é muito desconfortável e para o qual têm condutas evitativas, defesas egóicas claras e compreensíveis, mas que mascaram a elaboração emocional do fenômeno e para a qual a narrativa pode ter o efeito de intervenção (Lordello e Lopes de Oliveira, 2012).

Participante

A participante é uma jovem de 25 anos, com ensino fundamental incompleto, que não trabalhava à época do estudo e que residia com seus pais, em um grande centro urbano. Voltando da escola, sofreu violência sexual por parte de um conhecido. Quando relatou aos pais, eles não acreditaram na ocorrência da violência. Após o estupro, abandonou a escola, e, em decorrência de relação conflituosa com os pais, foi desencorajada a prestar queixa na delegacia. Uma tia, ao vê-la abandonando a escola e a casa (Samira fugiu e foi morar com uma família que avaliava como amiga), buscou ajuda para a sobrinha. Levou-a ao hospital público onde havia um programa de atendimento a vítimas de violência. O programa contava com equipe multidisciplinar e oferecia modalidades de atendimento psicológico e psicossocial. Samira participou de grupo terapêutico no período gravídico e, após o nascimento do bebê, retornou ao serviço para acompanhamento, dessa vez, com sua mãe, com quem dividia os cuidados com o bebê. Essa reaproximação com a mãe permitiu que Samira buscasse uma escola para se profissionalizar, na qual parece ter reativado seu projeto de vida.

Instrumento

Como instrumento recorreu-se à entrevista semiestruturada, por ser um dispositivo qualitativo que permite o acesso à produção de conteúdos dos sujeitos envolvidos no processo de forma colaborativa e voluntária. De acordo com Minayo (1996), a importância da entrevista está no fato de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos e, ao mesmo tempo, transmitir, por meio de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas.

Utilizou-se um roteiro que serviu de base para a direção dos objetivos, com os seguintes itens: Como chegou ao Programa de Atendimento a Vítimas de Violência? Como reagiu à descoberta da gravidez? E seus familiares? Como é (foi) estar grávida em sua situação? Que outros grupos ou ambientes frequenta e como estão acolhendo a gravidez? Como gostaria de ser ajudada neste momento? Como se vê no futuro? Quais os planos para a vida pessoal, criação do filho, profissão? Que outros fatos ou informações que não tenham sido questionadas você gostaria de compartilhar? A entrevista teve duração de uma hora. O local de realização da entrevista foi uma sala do hospital.

Procedimento

O primeiro momento de acesso ao campo foi a inserção da pesquisadora no serviço de atendimento a vítimas de violência, que ocorreu como atividade sistemática durante um ano e proporcionou à pesquisadora a experiência de realizar atendimentos psicológicos e conduzir grupos de pré-natal psicológico com adolescentes que tiveram suas gestações decorrentes de incesto ou violência sexual.

Após esse período, foi elaborado o projeto de pesquisa e apresentado à diretoria do hospital e ao Comitê de Ética do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, obtendo autorização por meio do protocolo 02/03. A análise das informações seguiu orientação de Minayo (1996) no que diz respeito à construção de núcleos de sentido referentes à pesquisa em saúde.

 

Discussão dos resultados

A discussão será apresentada com base na análise bioecológica realizada a partir das falas de Samira no contexto de entrevista. Os resultados serão apresentados de acordo com os elementos propostos por Bronfenbrenner, que se mostram presentes nos discursos da entrevistada, evidenciando: contextos, pessoa, processo e tempo. O engajamento na tarefa comum, a regularidade nos encontros, a progressão da complexidade nos conteúdos expressos e trabalhados e os processos proximais reconhecidos nas pesquisadoras e pesquisada são características de metodologias que vêm sendo desenvolvidas de forma compatível com o que é preconizado pela teoria bioecológica (Eschiletti Pratti et al., 2008).

 

Análise bioecológica dos sistemas em que Samira está inserida e que produzem impactos ao seu desenvolvimento

Os resultados do estudo apontaram que os microssistemas dos quais Samira participava eram principalmente a casa, a escola, a casa do amigo para a qual se muda, a igreja e o hospital público. Os microssistemas são os ambientes imediatos dos quais a pessoa em desenvolvimento participa e que permitem uma vivência de papéis, relações interpessoais e padrões de atividades. Como rede de apoio, esses sistemas atuam como transformadores potenciais.

O microssistema casa, onde Samira mais está presente, é revelado em seu discurso com várias ambivalências. Ela aponta o lar como lugar de segurança e afeto, mas revela medo diante da agressividade presente nesse ambiente. Samira avalia a sua permanência na casa como fator de risco. Posteriormente, operam-se mudanças, pois novos microssistemas se constituem e passam a fazer parte de seu cotidiano, como a casa do amigo para a qual se muda e a nova escola que passa a frequentar após o nascimento de seu filho (Bronfenbrenner, 1999).

O microssistema casa retrata um ambiente que apresenta pouca abertura ao diálogo e revela, por parte dos pais de Samira, uma naturalização da violência como estratégia decriação de filhos. É comum a prática da violência justificada como forma de disciplinar e educar os filhos, punindo-os pelos erros que cometem. A comunicação intrafamiliar precária e a posição hierarquicamente inferiorizada na configuração familiar são fatores de risco que o eu ecológico percebe de forma ameaçadora em seu desenvolvimento. Samira aponta vários indicadores dessa visão em suas falas:

Não tive coragem de falar com ninguém [...] é muito difícil a gente chegar em casa e falar que foi estuprada. A menstruação não estava vindo, minha mãe sempre ficava olhando.

E aí minha mãe foi e entrou na frente e não deixou mais ele me bater.

Cheguei a ir na delegacia denunciar ele mas eu tirei a queixa dele [...] ele poderia pegar meu filho.

Observa-se que Samira ressalta a importância da mãe na proteção contra a punição, o que permite uma leitura de gênero que retoma o modelo patriarcal do pai corretor e responsável pela execução da punição. A construção social do gênero atribui papéis masculinos e femininos que vão sendo internalizados na cultura e na sociedade como modelos vigentes (Butler, 2008). Observa-se que a mãe é vista como protetora e apoiadora, mas, ao mesmo tempo, há uma tácita subestimação da autonomia da filha presente em suas atitudes, permitindo que experiencie o descrédito e a intrusão impedindo escolhas. Provavelmente, essa postura guarda relação com o fato de ver a filha pela lente de sua dificuldade de aprendizagem, mas também se associa a uma forma aceitável de violência psicológica.

Eu saí de casa [...] Meu pai me ofendeu muito. Além dele ter me batido no dia [...] eu me sentia muito humilhada [...] não era para ter feito isso comigo.

A família de Samira não conseguiu abordar com ela a questão da violência sexual. A gravidez acabou se sobressaindo à cena da violência, o que sugere ser algo tão mobilizador que paralisa e incapacita a família para falar do estupro, como proteção a um sofrimento insuportável. Compreendendo essa dificuldade, Samira adota uma posição de poupar sua família desse conteúdo.

A confiança no relato da vítima e a denúncia da violência sofrida são vistos como fatores de proteção (Habigzang et al., 2010). No caso de Samira, os pais, no momento da revelação, não conseguiram representar o apoio que ela esperava. A punição pela gestação e a solicitação para a retirada da denúncia pela família fizeram com que buscasse novos apoios em outros sistemas. Daí a procura por uma tia, que buscou o serviço de saúde e a fuga para uma casa de amigos que representou, na percepção de Samira, um ambiente com melhores recursos para lidar com sua gravidez. Os silenciamentos presentes no microssistema confirmam a presença de um alto grau de poder hierárquico entre os membros e a capacidade reduzida de diálogo em ambientes familiares em que o abuso sexual está presente, neste caso, de forma extrafamiliar. Mas a família, apesar de toda a ambivalência, não se esquiva de sua função protetora, e faz inúmeras intervenções (boas ou não) para resgatar Samira, o que mostra um movimento constante deste sistema em transformação.

Eu saí de casa a primeira vez, fui para casa de um amigo meu [...] por questão de humilhação [...] fiquei lá um bom tempo. [...] às vezes eu era bem cuidada lá, às vezes não.

Um microssistema é sempre caracterizado pela presença de um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais. Samira, ao mudar-se para a casa de outra família, percebe esse ambiente como integrante de sua rede de apoio social e afetiva, mas, por não ter tido a oportunidade de ressignificar a violência sofrida, naturaliza-a e a tolera na forma como internalizou papéis e o poder assimétrico em suas vivências. A violência familiar não é tão visível: a desigualdade e a submissão estão presentes nas relações interpessoais hierarquizadas, que se estabeleceram ao longo do tempo para aquele grupo familiar e que podem ser perpetuadas se não houver um trabalho voltado à conscientização sobre esse processo para poder rompê-lo (Habigzang e Koller, 2011; Pelisoli et al., 2007; Santos et al., 2012). As relações interpessoais marcadas neste contexto podem se tornar referenciais para outros ambientes. Samira apresenta sua relação amorosa com o amigo da nova casa que a acolheu de forma ambígua.

[...] Às vezes, ele tem outras mulheres. Mas sabendo que ele estava comigo, era o que importava.

Os indicadores presentes no discurso de Samira apontam novamente para uma questão de construção social de gênero internalizada, quando reproduz a visão patriarcal de submissão ao homem. Ela aceita passivamente a ideia de que desejos sexuais masculinos de seu amigo-parceiro são justificáveis para manter relação amorosa não exclusiva. Há ainda o agravante de que a naturalização percebida nos papéis e nas relações interpessoais desse microssistema perpetuava a posição silenciosa do abuso e da manutenção do fator de risco da violência embutida na nova relação familiar. A volta ao lar de origem não se dá por convicção pessoal ou escolha, mas por persuasão ou temor de ser responsabilizada por um mal maior como a piora do estado de saúde da mãe.

Para Bronfenbrenner (1996), os microssistemas atuam de forma inter-relacionada, e o autor denomina mesossistema o conjunto de microssistemas. Conforme o relato de Samira, é nítida a interface entre o ambiente de seu lar de origem e a criação do novo microssistema casa do amigo, que guardam relações entre si e afetam o desenvolvimento de Samira. Outros microssistemas são citados pela jovem, a começar por seu encaminhamento até a chegada ao hospital, onde passa a frequentar o acompanhamento multiprofissional e o grupo terapêutico, constituindo-se assim em um novo microssistema, que, na avaliação de Samira, atua de forma a potencializar os cuidados consigo e com seu bebê.

O pessoal do CRAS me encaminhou para cá. [...] eu fico desabafando [...] então o que eu tenho que falar é só agradecer. Em primeiro lugar, Deus e meu filho.

Observa-se a valorização do suporte afetivo e emocional que Samira encontra na rede, o que mostra a potencialidade das intervenções que possam de forma efetiva minimizar os efeitos da violência sexual. O suporte afetivo e o acompanhamento médico, social, psicológico e jurídico são medidas eficientes sobre as quais a rede de apoio social pode se responsabilizar. Uma das medidas de proteção reconhecidas como significativas pelas vítimas de violência sexual é o encaminhamento para atendimento psicológico, que, infelizmente, ainda não é ideal em termos de espera e recursos humanos disponíveis. Entretanto, a garantia de segurança e apoio emocional à vítima e ao cuidador não abusivo responsável é almejada como ação efetiva na proteção e na promoção da resiliência.

Outros microssistemas também são apontados no discurso de Samira, como escola, centro de ensino, sobre o qual ela destaca o apoio recebido, mas com o qual evita qualquer contato após o episódio, por acreditar que encontrará o autor da violência nesse ambiente e que pode vir a perder o controle. Menciona ainda o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) como ajuda especializada, que a leva ao conhecimento do Projeto que a acolhe. Mais uma vez, constata-se aqui a interface entre os sistemas, que trazem em sua potencialidade contextos de transformação para o sujeito.

No começo ninguém queria saber, mas depois que ficaram sabendo [...] que eu tava precisando de muita ajuda [...] minha professora [...] dando a maior força.

Embora a escola apareça com relativa ênfase como rede de apoio, a ameaça potencial do encontro com o agressor faz com que esse microssistema seja eliminado. Samira abandona a escola durante a gravidez e, só quando o filho está com três meses, procura uma nova escola, distante da anterior e com enfoque na profissionalização, para retomar seus projetos pessoais. Como se pode observar, os processos podem ser estimulados ou dificultados pelo microssistema, que é indubitavelmente um contexto transformador e que promove impactos inegáveis no desenvolvimento da pessoa que dele participa (Habigzang et al., 2010).

Não seria possível afirmar as mudanças observáveis nos microssistemas sem levar em conta as crenças, os valores e as ideologias que vigoram na cultura e no contexto sociohistórico vigente. Na entrevista de Samira, é possível identificar as representações sociais do estupro, carregadas por preconceito que ela enfrenta na pele. Os julgamentos sociais que envolvem a gestação também são estampados em seu discurso e apontam para a dualidade entre quem viveu estupro e os estereótipos sociais perversos que precisa enfrentar em sua condição.

E as pessoas que não, não são estupradas às vezes julgam você [...] A gente que foi estuprada, a gente sabe o que a gente passou, a gente foi forçada... apanhou.

As dimensões do sensacionalismo da mídia com a questão da violência e a indignação diante da impunidade para esse tipo de crime são outros aspectos macrossistêmicos presentes em seu discurso.

 

A pessoa Samira: suas forças, recursos e demandas

A pessoa em desenvolvimento apresenta grande destaque no modelo bioecológico. De acordo com Bronfenbrenner e Morris (1998), as características da pessoa não são estáticas e podem ser transformadas, ainda que esteja submetida a condições adversas. A capacidade de influenciar os processos proximais está diretamente ligada a três grupos de características pessoais, como disposição, recurso e demanda.

As disposições dizem respeito às forças que impulsionam ou dificultam os processos proximais e podem apresentar-se em dois grupos: forças geradoras ou generativas e forças desorganizadoras ou inibidoras. As características desorganizadoras, por sua vez, revelam dificuldades em manter o controle sobre seu comportamento e suas emoções, que se pronunciam sob a forma de impulsividade, esquecimento e dificuldade de memória e compreensão de comandos, revelados em alguns episódios de seu acompanhamento.

Os recursos são aspectos biopsicológicos que englobam experiências, habilidades, conhecimentos e capacidades necessárias para o funcionamento eficaz dos processos proximais em um determinado estágio de desenvolvimento. Samira os revela em sua deficiência de compreensão e no transtorno de aprendizagem constatado por suas reprovações, porém, ainda como parte desses recursos, aponta dotes psicológicos, como suas habilidades discursivas orais desenvolvidas, que influenciam o engajamento em processos proximais.

As demandas são o terceiro grupo de atributos da pessoa e fazem menção aos aspectos que estimulam ou desencorajam as reações do ambiente social imediato, de maneira a manter ou romper as conexões com o processo proximal. Samira mostra preocupações com isso ao receber críticas da mãe com relação à forma descuidada com que está se tratando. Estão presentes no discurso materno a maneira como se veste, o descuido consigo. Samira mostra-se ressentida com essas observações e relata que há períodos em que isso ocorre por desânimo e promove certo distanciamento e indisposição para a interação. Porém, em outros momentos, sua capacidade interativa é bem pronunciada, tornando-a assertiva em contatos sociais, a partir de suas iniciativas de aproximação com o outro.

 

Os processos proximais e suas repercussões: a gravidez e a violência sexual

A maternidade pode ser considerada um processo proximal? Sim, a maternidade é um processo em construção. Os processos devem decorrer de experiências que sejam regulares no tempo e nos quais a pessoa se engaje. Deve haver interações progressivas e crescentes quanto à complexidade, e os objetos e os símbolos presentes no ambiente imediato devem estimular a atenção, a exploração, a manipulação e a imaginação da pessoa em desenvolvimento. A vivência gravídica, mesmo em condições adversas, reúne todos esses aspectos. É importante lembrar que os processos proximais variam sistematicamente em função das características da pessoa, dos contextos nos quais interagiu ou interage, da natureza dos resultados evolutivos, das mudanças e continuidades sociais do período sociohistórico em que a pessoa está inserida (Bronfenbrenner, 1999). Samira mostra, em seus relatos, inicialmente, o impacto da notícia que vai desencadear o processo, atribuindo a negação típica do diagnóstico reacional previsto.

[...] eu queria tirar meu filho... não queria isso para mim não [...] você ter um filho de um estupro é muito forte. Antes eu chamava ele de coisa, agora não, agora ele tem um nome.

É importante analisar os efeitos que os processos proximais podem produzir. De acordo com vários estudos, os processos proximais geram efeitos de competência e de disfunção. Samira retrata vários aspectos da experiência gravídica que, apesar do sofrimento e do aspecto doloroso da violência, puderam ser trabalhados e sofreram transformações ao longo dos atendimentos. Isso mostra o quanto se faz importante uma intervenção que permita a elaboração dos aspectos emocionais já intensos na gravidez desejada, e que, em princípio, se mostram disfuncionais na gestação decorrente de violência. Entretanto, as características da pessoa, acrescidas das potencialidades transformadoras dos ambientes, podem ser elementos decisivos na vivência dos processos (Bronfenbrenner, 1999; Bronfenbrenner e Ceci, 1994; Bronfenbrenner e Morris, 1998).

Há preocupações antecipadas com os processos proximais do filho. É comum neste tipo de quadro, uma impotência nominada pelas mães sobre o fato de como relatar para o filho a relação da qual foi fruto. Cientes de que conhecer o pai é uma curiosidade de todos os filhos, há uma ansiedade antecipatória quanto a esse conteúdo específico do desenvolvimento.

[...] porque eu falar para ele o que aconteceu é muito difícil, né, e também porque ele pode querer também procurar o pai, né.

Há mudanças apontadas por Samira no processo de rejeição/aceitação que ela empreendeu durante a gravidez para a vinculação com o bebê. Ela mostra-se otimista em relação às mudanças que operou, sobretudo a possibilidade de vê-lo separar o bebê do agressor, evitando reeditá-lo no filho.

Não tirei meu filho, teve várias pessoas que botaram remédio na minha mão para abortar [...]. E eu queria falar para as meninas que já passaram com isso, tentar esquecer um pouco disso, tentar curtir os filhos, tentar ter a família dela bem.

O projeto de vida de Samira, no momento, apresenta-se completamente articulado à criação do filho, que passa a ser a motivação para suas realizações. É preciso analisar os efeitos de competência e também os disfuncionais que podem estar contidos nessa relação. Há competência na dedicação ao filho e no atendimento de suas necessidades, pois desse vínculo inicial decorrerá a confiança básica tão necessária aos primeiros estágios do desenvolvimento afetivo. Entretanto, em longo prazo, pode haver uma sobrecarga do bebê se este passar a se configurar na identidade da mãe, o que pode trazer vários impactos ao seu desenvolvimento.

Começar a trabalhar, comprar as coisinhas dele. [...] Eu tenho fé em Deus, que eu vou criar meu filho bem.

A história de violência sexual também é tratada como efeito de disfunção de processos proximais. Samira aborda, em seu relato, muitos aspectos que retratam as sensações que acompanham a intrusão que o abuso sexual promove: a ideia constante de sujeira, de contaminação, as fantasias de perseguição, e as reações sentidas de reedição da cena. Além disso, a intensidade da experiência de estupro é tão significativa que é capaz de elaborar o discurso da cisão, atribuindo um significado à pessoa que era e a que se tornou após o fato. Tais fatores são sugestivos da presença de um possível transtorno. Embora não tenha sido objetivo do trabalho o diagnóstico, merece aqui uma breve menção ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático, conhecido por TEPT, por ser uma patologia com grande associação ao abuso sexual (Borges e Dell'Aglio, 2008; Hatzenberger et al., 2012).

Nos relatos de Samira, há presença de alguns marcadores que revelam a ansiedade após a exposição ao evento traumático, como as lembranças intrusivas, flashbacks, sensações corporais e comportamentos que interferem em sua vida diária. É importante citar que, atualmente, combate-se a visão determinista do transtorno, evitando-se relações de causa e efeito entre os sintomas de forma descontextualizada.

[...] É difícil a gente tentar ser feliz e ao mesmo tempo a gente tentar ser feliz e não ser feliz. [...]É difícil saber que você foi violentada. De noite, você sente a pessoa perto de você, eu sinto isso, à noite, sinto a voz dele falando comigo. [...] fico com nojo. Tenho revolta, às vezes dá vontade de ir lá e acabar com ele igual ele acabou com a minha vida.

Outro aspecto presente é a nominação dos sentimentos de raiva e revolta contra o agressor, por quem passou a nutrir sentimentos paradoxais de vingança e justiça, sendo claro, no seu caso, que, desencorajada a permanecer com a denúncia, ela atribui a si a responsabilidade por um suposto acerto com o agressor.

[...] penso no que ele fez e no que ele tá fazendo com as outras meninas. [...] O meu medo é de ele vir buscar meu filho.

 

O cronossistema na história de Samira e a compreensão sobre seu desenvolvimento

De acordo com o modelo bioecológico, para avaliar uma mudança duradoura é fundamental a compreensão do tempo como um sistema que atua sobre os processos proximais (Bronfenbrenner e Morris, 1998). Ao conhecermos a trajetória de Samira ao longo de sua gestação e seu puerpério, conseguimos perceber o microtempo operando em seus microepisódios dos processos familiares e grupais. Cada aquisição de conhecimento, cada escuta de seus sentimentos e possibilidade de elaboração de sentimentos a respeito do estupro, o que não foi oportunizado no ambiente familiar, torna-se, para Samira, um novo recurso.

O mesotempo está presente nos intervalos regulares dos processos proximais, quando Samira é capaz de contabilizar mudanças a partir das suas interações constantes nos sistemas dos quais faz parte. Ela sinaliza o aprendizado familiar de aprendizagem dos cuidados de maternagem, exercida ao longo da criação de seus sobrinhos, e aponta as mudanças que operou sobre sua maternidade na participação dos grupos e no acompanhamento terapêutico.

[...] eu criei a experiência com os meus sobrinhos. Eu criei meus sobrinhos junto com minha mãe.

O macrotempo está presente na história de desenvolvimento de Samira por meio das mudanças geracionais que se manifestam em sua trajetória. Há vários aspectos transgeracionais de naturalização da violência como medida corretiva no comportamento dos pais de Samira, que podem ser consequências da reprodução dos aspectos de criação que tiveram e que repassam a seus filhos.

 

Considerações finais

O estudo de caso permitiu aproximar-se da complexidade que envolve a gravidez decorrente de violência sexual, mas as limitações do estudo devem ser consideradas no campo conceitual e metodológico. Quanto aos aspectos conceituais, os estudos em gravidez decorrente de violência sexual são escassos. A violência é um tema que tem encontrado crescente mobilização no cenário científico, mas carece de consistência a ser conquistada por trabalhos empíricos que promovam o avanço das ideias, como pretende ser fazer esse trabalho. No campo metodológico, podem-se citar limitações que a pesquisa qualitativa encontra nesse cenário, como intensa mobilização emocional, sobretudo na participante, que promove impactos ou imprecisões em sua narrativa e vieses interpretativos presentes no processo de análise.

A perspectiva bioecológica favoreceu o entendimento da trajetória de desenvolvimento de Samira como um ser ativo que recebe influências dos sistemas nos quais está inserida ao mesmo tempo em que neles determina também mudanças. Os resultados dessa interação permitem que Samira encare a gravidez e a maternidade sem desconsiderar sua história de violência, mas recorrendo à rede social e afetiva de forma a encontrar e potencializar seus recursos para lidar de forma mais saudável com os desafios e construir uma forma mais positiva de enfrentar as adversidades. A abordagem bioecológica escolhida viabilizou uma compreensão mais profunda da complexidade do fenômeno estudado.

A maternidade apresentou-se como um processo em construção, permeado de desafios, dentre eles, a separação emocional do agressor reeditado na imagem do bebê e mesmo as superações diárias para dispensar cuidados necessários aos filhos e conseguir atingir um projeto de criação do filho. Além disso, foram identificados, em Samira, recursos pessoais investigados como dispositivos para combater a revitimização bem como detectar respostas adaptativas aos quadros de risco e estresse relatados, abordando o processo de resiliência embrionariamente presente em seu repertório.

A realização do trabalho permitiu visualizar a magnitude do desafio que é adentrar neste cenário da gravidez decorrente de violência sexual. Não é o contexto que garante risco ou proteção, mas as interações estabelecidas entre esses contextos. Os pesquisadores precisam se deter sobre as possibilidades de tornar cada vez mais equilibradas, afetivas e recíprocas essas interações. Nesse sentido, estudos futuros são indicados para que propostas de intervenção psicológica sejam construídas nesse campo com vistas à promoção de resiliência. A relevância do estudo em questão está no fato de conseguir mostrar que a condição adversa não é impeditiva para o desenvolvimento saudável.

 

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Submetido: 04/12/2013
Aceito: 16/04/2014

 

 

1 Este artigo deriva da tese de doutorado da primeira autora, Menina, mulher, filha, mãe? A gravidez decorrente de violência sexual (Santos, 2013).
2 Nome fictício.

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