SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número1Processo psicoterapêutico: compreensão de momentos de mudança psicológica em uma sessão de psicoterapia psicanalíticaEstudo de caso sobre a revelação da violência sexual contra meninos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.1 São Leopoldo jun. 2015

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2015.81.04 

ARTIGOS

 

Papéis de gênero nas brincadeiras de faz-de-conta de crianças adotadas por casais do mesmo sexo1

 

Gender roles in make-believe play among children adopted by same-sex couples

 

 

Elder Cerqueira-SantosI; Justin BourneII

IUniversidade Federal de Sergipe. Departamento de Psicologia. Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze, 49100-000, São Cristovão, SE, Brasil. eldercerqueira@gmail.com, eldercerqueira@yahoo.com.br
IIUniversity of Toronto. 20 King's Circle, Toronto, ON, Canadá, M5S 2J7. j.bourne@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar os papéis de gênero durante as brincadeiras de faz-de-conta de crianças adotadas por casais do mesmo sexo. Analisaram-se estereotipia e segregação durante os episódios espontâneos de brincadeira de faz-de-conta. A hipótese geral era de que tanto estereotipia como segregação fossem mais flexíveis para este grupo, considerando o novo contexto familiar. Foram observadas 13 crianças de ambos os sexos (8 meninos e 5 meninas) com idades entre 3 e 7 anos. Nove episódios acima de cinco minutos foram analisados considerando um protocolo que leva em conta a organização social, o uso de objetos, o tipo e os temas de brincadeiras. Foi encontrada segregação por gênero na formação dos grupos de brinquedos, porém pouca estereotipia no desempenho dos papéis. Discutem-se práticas parentais e influências contextuais nas questões de gênero na infância.

Palavras-chave: homossexualidade, adoção, brincadeira, gênero.


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate the roles of gender during spontaneous make-believe play among children adopted by same-sex couples. We analyzed stereotyping and segregation during spontaneous episodes of make-believe play. The general hypothesis was that both stereotyping and segregation were more flexible for this group, considering the new family context. 13 children of both sexes (8 boys and 5 girls) aged 3 to 7 years were observed. Nine episodes over five minutes length were analyzed considering a protocol that takes into account the social organization, the use of objects, the type and themes of games. Children demonstrate segregation of groups but litt le stereotyping in performance was found by gender roles. The article discusses parenting and contextual influences on gender development during childhood.

Keywords: homosexuality, adoption, children's play, gender.


 

 

A parentalidade entre casais do mesmo sexo, chamada de homoparentalidade, vem sendo investigada em vários estudos internacionais recentes (Bergman et al., 2010; Murphy, 2013; Riggs e Due, 2010), revelando um aumento deste fenômeno na comunidade de gays e lésbicas e algumas das suas repercussões sobre o desenvolvimento infantil. Especificamente entre homens gays, estudos revelam uma representação dominante de papéis excludentes quando se fala em paternidade e homossexualidade masculina, principalmente pela impossibilidade do casal ter um filho biológico conjunto (Berkowitz, 2009). A adoção tem sido a forma mais comum de concretizar o desejo de parentalidade entre homens gays (Stacey, 2006).

No Brasil, os avanços legais que permitem a adoção por casais do mesmo sexo são recentes, sendo possível somente a partir de 2012, porém ainda com ampla discussão jurídica sobre este ponto. Estudos nacionais nesta temática ainda são escassos. Cecílio et al. (2013) apontam que, em uma década (2000-2010), apenas dez estudos sobre a adoção homoparental foram realizados e publicados nas principais bases de dados científicas do país, sendo somente três artigos empíricos e sete teóricos. Os autores destacam especialmente três tendências nos estudos sobre a temática: a preocupação com as consequências da adoção para as crianças (aspectos desenvolvimentais negativos e positivos); as alternativas na busca da parentalidade; e as questões ligadas à adoção em si (legislação, mudanças históricas, etc.).

Apesar de avanços na área, poucos estudos internacionais e nenhum estudo brasileiro tratam do acompanhamento de crianças adotadas por casais gays com o objetivo de investigar aspectos desenvolvimentais nestas novas configurações familiares. Apesar disso, o senso comum já cria hipóteses que em geral esperam resultados negativos das formas familiares não dominantes. Os poucos achados até o momento revelam não haver diferenças significativas em ajustamento psicológico ou comportamento sexual e de gênero quando se comparam crianças em famílias heterossexuais e homossexuais (Goldberg, 2010; Patterson, 2009). Por outro lado, constata-se que crianças filhas de casais do mesmo sexo passam por mais situações de dificuldade em certas interações sociais, como preconceito na escola, instituições e família extensa (Golombok et al., 2014).

Com foco no desenvolvimento de gênero, Goldberg et al. (2012) levantam a hipótese de que casais homoparentais masculinos podem ter práticas educativas menos estereotipadas, uma vez que a ausência da figura feminina torna o arranjo familiar diferenciado em termos de modelos comportamentais. Assim, aliado aos novos papéis sociais da mulher e do homem, a família homoparental seria mais flexível quanto à formação de scripts de performances de gênero.

As diferenças/semelhanças de gênero vêm sendo investigadas com especial atenção aos componentes culturais envolvidos em tais performances comportamentais. Parte-se da premissa de que tais diferenças/semelhanças vão muito além da bipolaridade de sexos (macho versus fêmea) e adquirem contornos ao longo da vida dos indivíduos (Butler, 1990). Neste sentido, a socialização de crianças para papéis de gênero parece ser de fundamental importância como tema de investigação na interface de diversas áreas da Psicologia (Silva et al., 2006).

A estereotipia de gênero é encontrada no desenvolvimento infantil, apesar de uma série de mudanças nos papéis de gênero em diversas culturas (Lordelo, 1995). Crianças pré-escolares e em situações naturais apresentam comportamentos estereotipados e segregam seus estilos de brincadeira a partir de um critério de gênero (Beraldo, 1993; Eibl-Eibesfeldt, 1989; Harris, 1999; MacCoby, 1988). "O que estes estudos parecem indicar é que meninas e meninos nascem diferentes e tornam-se ainda mais diferentes no decorrer dos anos pré-escolares e escolares. Se a cultura adulta está mais igualitária, por que a segregação sexual continua sendo uma marca forte da infância?" (Silva et al., 2006, p. 115).

Duveen (1993) afirma que a representação social de gênero e a identidade de gênero têm um componente ontogenético que aparece logo cedo na infância. Tal componente parece ser expressado em diversas culturas e persiste ao longo do tempo e gerações (Carli e Bukatko, 2000).

Uma das hipóteses para tal segregação e estereotipia é a ideia de que as crianças transmitem regras culturais como uma microssociedade, na qual os elementos de diferenciação e papéis de gênero são mais rígidos do que no grupo cultural do mundo adulto (Carvalho e Pedrosa, 2002). Ou seja, a inspiração externa para a brincadeira infantil não se constitui como um modelo a ser seguido à risca, mas uma inspiração que pode ser recriada em forma de novos scripts que são compartilhados na microssociedade das crianças enquanto brincam. Os primeiros anos escolares parecem amplificar a estereotipia de gênero em crianças a partir de uma experimentação social que o ambiente grupal proporciona (Carvalho e Pedrosa, 2002).

Neste sentido, entende-se que as performances de gênero compartilhadas nos ambientes sociais das crianças tornam-se regulatórias de comportamentos que são apresentados pelas próprias crianças ou pelo menos sua maioria. Coloca-se assim o que é proposto por Butler (1990) como uma norma performativa que cria expectativas e reproduz a regra majoritária no grupo.

Conforme revisão realizada por Silva et al. (2006), pesquisas observacionais sobre a brincadeira entre crianças apontam uma grande influência da estereotipia de gênero em elementos do jogo lúdico, como preferência por temáticas, atitudes, comportamentos, percepções, escolha de parceiros, tamanho de grupos e uso de objetos/brinquedos. De modo geral, constata-se que meninos brincam em grupos maiores, em episódios mais curtos, com me-nos objetos e temáticas mais ativas (motoras e em ambientes mais amplos), enquanto meninas formam grupos menores, de episódios mais longos e com temáticas mais "intimistas" em ambientes menores. De forma semelhante, estudo de Menezes e Brito (2013) encontra maior tendência de estereotipia em crianças pequenas e amostra brasileira.

Os estudos relatados anteriormente anunciam uma combinação de elementos individuais, biológicos e sociais como influências no desenvolvimento dos papéis de gênero. Questionando-se a variável "socialização", um grupo específico e de bastante singularidade na sua forma de exposição aos papéis de gênero é o de crianças adotadas por casais homossexuais (homoparentais). Como tais crianças mantêm e/ou flexibilizam os papéis de gênero a partir dos novos modelos parentais? O objetivo geral deste estudo foi investigar a estereotipia e segregação de gênero nas brincadeiras de faz-de-conta de crianças filhas adotivas de casais homoparentais em uma situação de day care.

 

Método

Este estudo seguiu o modelo da microetnografia de Green e Wallat (1981), descrito no Brasil por Sager e Sperb (1998). Tal desenho utiliza técnica da observação naturalística com foco em padrões de participação em episódios de brincadeira num contexto específico e com pequenos grupos de participantes. Trata-se de um estudo descritivo exploratório.

 

Amostra

Este estudo trata de uma população de difícil acesso, especialmente na situação requerida de observação grupal. A dificuldade de coleta de dados no Brasil levou os autores a criar parceria em outro país, com mais tempo de legislação sobre adoção por casais do mesmo sexo e, consequentemente, mais possibilidades de encontrar grupos organizados com abertura para coleta de dados. As observações foram realizadas em um contexto de day care envolvendo 13 crianças de ambos os sexos (8 meninos e 5 meninas) com idades entre 3 e 7 anos. O day care escolhido para este estudo era uma associação de casais homoparentais (apenas homens gays) no Canadá. As crianças passavam somente um turno no serviço enquanto os pais estavam em uma reunião semanal da associação, que funcionava como um grupo de apoio anônimo. Foram realizadas 16 sessões de observação (quatro meses de coleta de dados), cada uma delas de 60 minutos. No total, foram contabilizados 123 episódios de brincadeira sem a participação de adultos cuidadores. Para este estudo foram selecionados os episódios com mais de cinco minutos de duração (sem interrupção e sem interferência de adultos).

 

Situação e procedimentos

O sistema de day care escolhido era um serviço semanal vinculado à uma reunião de pais. O espaço era constituído de uma sala equipada com brinquedos, colchonetes, vídeo e material educativo (livros e papelaria). Havia quatro monitores que cuidavam das crianças e sugeriam atividades. Para este estudo foram observadas atividades espontâneas das crianças com ou sem uso do material disponível.

Para a coleta de dados foi realizado registro cursivo e registro de episódios seguindo uma ficha a ser preenchida. Dois pesquisadores realizaram os registros (um para cada técnica).

Foi adotada a técnica do sujeito/grupo focal por amostragem de episódio. Um dos pesquisadores numerava mentalmente todas as crianças da sala, e o outro pesquisador escolhia um número. A criança selecionada pelo número escolhido era o foco da observação, tendo seu primeiro episódio iniciado após o sorteio descrito (o que envolveu a participação de outras crianças na maioria dos casos, sendo o grupo inteiro observado). Após o final do primeiro episódio, um novo número era escolhido e uma nova criança passava a ser o foco (de outro ou mesmo grupo).

 

Instrumento

Dois instrumentos foram utilizados. Uma folha de registro para anotações cursivas, que era utilizada por um dos pesquisadores; e um protocolo de registro de episódios baseado no estudo de Wanderlind et al. (2006), utilizado pelo segundo pesquisador. Tal protocolo seguia as categorias:

Tipo de interação: número de crianças no episódio: (a) sozinha; (b) díade ou (c) grupo.

Gênero: (a) homogêneo - criança foco brinca com parceiros do mesmo sexo; (b) Grupo misto - criança foco brinca com parceiros de sexo oposto ou de ambos os sexos.

Uso de objetos: (a) uso de brinquedo; (b) uso de objetos; (c) sem uso de brinquedos ou objetos.

Tipo de brincadeira (baseado em Morais e Otta, 2003): (a) fantasiosa - brincadeiras que incluem tratar os objetos como se fossem outros, atribuir a si e aos outros papéis diferentes dos habituais, criar cenas imaginárias e representá-las, como heróis, monstros, etc.; (b) realística - situações em que a criança utiliza o faz-de-conta replicando e transformando uma situação da vida cotidiana, como esportes, profissões, casinha; (c) turbulenta - ocorre quando a criança exibe movimentos bruscos, semelhantes aos de uma luta, porém manifestando expressão facial hilariante, ao mesmo tempo em que o oponente "atacado" não demonstra nenhuma expressão de ressentimento (atividades que envolvem luta, perseguição e fuga, provocação e zombaria, rolar em dupla no chão, encostar no colega de forma brusca); e (d) jogos - Incluem-se aí os jogos sociais de regras (envolvem a ritualização de papéis, um ciclo repetitivo de ações e, em geral, são competitivos).

Temas das brincadeiras: foram classificadas a partir dos temas mais recorrentes a posteriori, sendo estes: casinha, profissões, transportes, super-heróis, animais, monstros e esportes.

 

Análise de dados

Para este estudo foram selecionados os nove episódios que ultrapassaram cinco minutos de duração. Os dados foram analisados a partir da categorização dos episódios e análise do roteiro da brincadeira com foco no desempenho dos papéis e regras de gênero. Primeiramente, todos os episódios passaram por tratamento descritivo, conforme critérios descritos no instrumento. Posteriormente foram realizadas microanálises buscando-se elementos da caracterização de gênero nos enredos e papéis conforme a técnica da microetnografia.

 

Resultados e discussão

Para este estudo são apresentados nove episódios de brincadeira com ênfase nos papéis de gênero desempenhados pelas crianças envolvidas. Dos nove episódios, cinco foram protagonizados por meninas e quatro por meninos, que serviram como sujeito foco da observação. O Quadro 1 apresenta o panorama dos episódios com seus temas e configuração.

A maior parte dos episódios aconteceu em grupo ou díade, com apenas um episódio solitário de uma menina que brincava de casinha. Tal configuração pode ser esperada pelo fato de o ambiente ser fechado e pequeno, além da disponibilidade de brinquedos que podem ter induzido a formação de grupos. Do ponto de vista da formação de grupos por gênero, observou-se uma certa segregação entre meninos e meninas, conforme já indicado na literatura (Beraldo, 1993; Eibl-Eibesfeldt, 1989; Harris, 1999; MacCoby, 1988). Os grupos foram, na sua maioria, homogêneos, o que segue a tendência de estudos com crianças em diversos ambientes nesta mesma faixa de idade (Lordelo, 1995; Menezes e Brito, 2013).

O uso de brinquedos foi intensivo em oito de nove episódios e esteve presente em todas as formações de grupos (solitários, díade e grupos; mistos e homogêneos). O uso de brinquedos deve estar relacionado também à disponibilidade e ao ambiente limitador de outros tipos de atividades. No entanto, tal uso não aparece nos episódios registrados com um viés de gênero, sendo igual entre meninos e meninas. Neste sentido, a descrição deste estudo contraria o que coloca a maior parte da literatura, que afirma que o uso de brinquedos é mais frequente entre as meninas (Morais e Otta, 2003). Obviamente, este é um recorte muito pequeno de episódios e não pode ser considerado como padrão de interação para o grupo investigado. Uma análise qualitativa sobre o uso de brinquedos é apresentada a seguir.

Quanto aos tipos de brincadeiras de faz-de-conta, observou-se o que não era esperado de acordo com estudos anteriores que encontraram estereotipia (conforme revisão de Morais e Otta, 2003 e Silva et al., 2006). Não é possível fazer afirmações sobre a estereotipia quanto aos temas destes episódios observados, uma vez que os temas fantasiosos predominam entre os meninos e os temas realísticos entre as meninas. Percebe-se a ocorrência de temas não estereotipados por gênero, como profissões e jogos entre meninas. A seguir são apresentados os resultados das microanálises por temas buscando-se elementos da caracterização de gênero nos enredos e papéis.

O tema "profissão" aparece em dois episódios distintos e em grupos homogêneos. No grupo de meninos (Episódio 1), a profissão aparece de forma tradicional, como marcadamente masculina. Já na díade de meninas (Episódio 7), a profissão é desempenhada segundo papéis femininos contemporâneos, inclusive com uma delas como "chefe", e, no enredo, ela volta para casa sozinha e de carro.

Episódio 1. Três meninos (5,5 e 6 anos) brincam com um caminhão de construção. O mais velho "dirige" o caminhão como se fosse o motorista enquanto o mais novo usa um acessório do caminhão (caçamba que se acopla). O mais velho dá instruções para as manobras verbalizando e emitindo sons do caminhão. O mais novo segue as instruções, mas em alguns momentos tenta fazer uma troca de papéis, sem sucesso.

Episódio 7. Duas meninas (8 e 7 anos) brincam de banco. As duas são caixa do banco e atendem clientes imaginários. Conversam entre elas enquanto contam dinheiro de brinquedo e digitam em um laptop de brinquedo.

A mais nova fala que vai trabalhar até tarde e que vai voltar para casa de carro. A mais velha, no papel de "chefe", diz que pode ir à hora que quiser.

Os temas monstro e herói aparecem em três episódios. Enquanto "monstro" é brincado apenas por meninos, o tema "heróis" acontece em um grupo misto. Tal relato já poderia indicar certa estereotipia de gênero, no entanto, o episódio de herói (Episódio 3) tem a menina como heroína, ao lado de meninos, desconstruindo o roteiro tradicional no qual as meninas atuariam como reféns vulneráveis que seriam salvas pelo herói masculino.

Episódio 3. Uma menina (8 anos) e dois meninos (7 anos) imaginam voar pela sala relatando situações de emergência em uma cidade fictícia construída anteriormente com carros e bonecos. As três crianças brincam em ação coordenada e em papéis paralelos (todos heróis aparentemente com os mesmos poderes). Ao final, todos retiram bonecos e carros de uma situação de desastre.

O tema "esporte" aparece em três situações diferentes, uma díade de meninos que joga baseball incorporando papéis de jogadores reais (Episódio 4); um grupo de meninas que representam patinadoras artísticas das olimpíadas (Episódio 8); e um grupo misto que brinca também de patinação artística (Episódio 9). O episódio 4 é um jogo com faz-de-conta realístico, uma vez que os meninos obedecem a re-gras do jogo real, incorporam nomes de jogadores reais e nomeiam também o estádio onde a competição acontece. Neste episódio há clara segregação por gênero, sendo verbalizado por um dos participantes, quando da tentativa de entrada de uma menina no episódio, que se trata do campeonato masculino. Já no episódio 8 não há referência ao gênero, apesar de haver somente três meninas brincando. O Episódio 9 parece ser uma continuidade do episódio 8 depois de uma breve interrupção, mas agora com a entrada de um menino, que faz dupla com uma das meninas na patinação artística.

Episódio 9. Duas meninas (7 anos) iniciam a preparação para uma competição de patinação artística nas olimpíadas de inverno. Vestem uma "capa" de tecido e usam maquiagem. O menino (5 anos) entra no episódio. As meninas botam um cinturão nele e o fazem aquecer para entrar no rinque de gelo. Fazem os trejeitos dos atletas e cantarolam para "patinar".

De modo geral, percebe-se que nestes episódios houve, sim, segregação por gênero, porém pouca estereotipia. Ou seja, os grupos foram formados em sua maioria conforme padrões observados em outros estudos em diversos contextos (Menezes e Brito, 2013; Silva et al., 2006); no entanto, os papéis desempenhados pelas crianças não apresentam forte estereotipia, contrariando o que apontam outros estudos (Morais e Otta, 2003; Patterson, 2009).

Destaca-se que, nos episódios mistos, os meninos eram mais novos do que as meninas, o que é relatado em estudos anteriores (Harris, 1999) e pode revelar certo padrão de estereotipia, uma vez que o papel de cuidado é mais atribuído às meninas (meninas mais velhas cuidam de meninos mais novos). No entanto, esta é uma característica pouco relevante dos achados deste estudo.

 

Considerações finais

O objetivo deste estudo foi investigar qualitativamente as questões de segregação e estereotipia de gênero durante as brincadeiras de crianças adotadas por casais homoparentais. Partiu-se de hipótese teórica e baseada nos poucos estudos empíricos de que estas crianças poderiam apresentar menor segregação e estereotipia na organização e representação de brincadeiras de faz-de-conta por influência do modelo parental ou cultural. De modo geral, o estudo não constatou padrões de estereotipia de gênero semelhantes aos encontrados em outros estudos com crianças educadas em ambientes familiares heterossexuais (Golombok et al., 2014; Menezes e Brito, 2013; Patterson, 2009, Silva et al., 2006). No entanto, houve certa segregação para alguns episódios, o que demonstra variabilidade.

Questiona-se o quanto da estereotipia de gênero depende do modelo parental (Carli e Bukatko, 2000; Duveen, 1993) ou pode estar relacionado à interação grupal e a aspectos da macrocultura. O fato de crianças educadas por dois pais e inseridas numa cultura mais igualitária em termos de gênero poderia contribuir como modelo de comportamento pouco estereotipado e menos segregado. De fato, tal influência pode acontecer, porém de forma generalizada para crianças inseridas no mesmo contexto, independentemente da orientação sexual dos pais (Silva et al., 2006). Ou seja, modelos adultos funcionariam trazendo elementos da macrocultura, o que pode ir além dos papéis desempenhados por pais e mães.

Além disso, conforme destacado por Lordelo (1995) e revisado por Menezes e Brito (2013) também não se pode deixar de considerar aspectos filogenéticos no surgimento de comportamentos diferenciados por sexo. Tal aspecto ainda é polêmico, mas não pode ser deixado de lado como variável a ser explorada. Silva et al. (2006, p. 114) ressaltam que "a base das diferenciações de gênero é biológica, mas as construções que se processam e a forma como se processam são simbólicas, são sociais". Em estudo brasileiro de Menezes e Brito (2013), há evidências de uma tendência à estereotipia, confirmando achados internacionais revisados pelos autores.

É importante destacar que os poucos achados na área têm apontado para pouca diferença em ajustamento psicológico e padrões comportamentais entre crianças criadas por casais homossexuais e heterossexuais (Golombok et al., 2014). Por outro lado, a pouca estereotipia encontrada neste estudo pode ser fruto de diferenças culturais nas quais as crianças daquele país estão inseridas. Estudos com crianças em geral no Canadá apontam para menor estereotipia com o passar dos anos, mesmo em crianças educadas em famílias conservadoras (Pyne, 2014). Resultados semelhantes foram encontrados por Goldberg et al. (2012) em ambientes de cidades pequenas e de tendência conservadora nos Estados Unidos. A hipótese de que tal efeito seja fruto de influência parental é fraca mesmo para casais heterossexuais. Além do mais, no caso de casais homossexuais, há uma ampla manifestação de papéis de gênero que podem se aproximar ou se afastar de estereótipos sociais de homem e mulher. Tais casais podem ter desempenhos de papéis de conformidade ou desconformidade de gênero muito diversos.

Dessa forma, é fundamental destacar que diferenças ou semelhanças em padrões de brincadeiras de crianças adotadas por homossexuais não podem ser julgadas como positivas ou negativas. Trata-se de entender reflexos de mudanças sociais e de como estes padrões são adaptados pelas crianças e investigar efeitos de variáveis diversas na construção do gênero. Em estudos comparativos em diferentes ambientes sociais, nos quais os papéis de gênero nos adultos diferem significativamente, já foram encontradas diferenças nas brincadeiras das crianças (inclusive filhos de heterossexuais) que "replicavam" tais mudanças (Goldberg et al., 2012).

As limitações deste estudo abrem possibilidades para uma série de novas investigações que têm sido realizadas pelos autores. Aspectos como a macrocultura de gênero devem ser melhor investigados, assim como as práticas parentais específicas na vida doméstica da família; isso requer outra metodologia. Também deve ser considerado o fato de os dados terem sidos coletados em outro país (Canadá), onde certas regras heteronormativas já são um pouco mais flexíveis do que no Brasil. O Canadá regulamentou em forma de lei o casamento gay desde 2005, ampliando direitos a estes casais, inclusive o de adoção. Desta forma, o país já passou por um processo de sensibilização e educação da população e instituições, como o sistema jurídico, a saúde e a educação, tornando mais natural a vivência de casais do mesmo sexo em ambientes heteronormativos. Além disso, a conquista de direitos e políticas igualitárias para as mulheres tem sido de fundamental importância nas mudanças observadas nas questões de gênero.

Ainda sobre a adequação de formas de parentalidade entre casais gays para melhor ajustamento social da criança, o estudo de Gianino (2008), realizado nos Estados Unidos, revela amostra de pais gays que buscam inserir seus filhos em ambientes de compartilhamento da macrocultura, tentando assim naturalizar as formas de relações sociais às quais as crianças são expostas, sem exclusividades ou preferências dirigidas pela orientação sexual dos pais.

Uma variável que não pode ser controlada é a de que casais gays passam por processo diferenciado de adoção, muitas vezes tornando o processo mais criterioso e mais lento. Como apontam Golombok et al. (2014), casais homossexuais adotam crianças mais velhas e estão todo o tempo sob a observação avaliativa externa sobre o ajustamento familiar e condições da criança, podendo apresentar práticas parentais conservadoras na tentativa de mostrar melhor ajustamento.

Este estudo se caracterizou como uma proposta inicial de uma linha de pesquisa em desenvolvimento em uma área de extrema dificuldade de coleta de dados (especialmente envolvendo as crianças). Trata-se do primeiro de uma série de três estudos num mesmo projeto. Tentou-se colaborar para a análise da questão unificando debates da psicologia do desenvolvimento e estudos de gênero, considerando aspectos sociais, individuais e biológicos. Conforme aponta Gianino (2008), casais gays ainda passam por uma série de barreiras na constituição e aceitação das suas famílias, além de serem questionados sobre aspectos da criação dos seus filhos com hipóteses negativas sem nenhuma evidência empírica. Estudos como este são relevantes e, mesmo sem achados definitivos, convidam ao debate sobre o tema e desenvolvimento de novos projetos que contribuam para o acúmulo de achados na área.

 

Referências

BERGMAN, K.; RUBIO, R.J.; GREEN, R.J.; PADRÓN, E. 2010. Gay man who become fathers via surrogacy: The transition to parenthood. Journal of GLBT Family Studies, 6(1):111-141. http://dx.doi.org/10.1080/15504281003704942        [ Links ]

BERALDO, K.E. 1993. O gênero de brincadeiras de crianças de 5 a 10 anos. São Paulo, SP. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 145 p.

BERKOWITZ, D. 2009. Theorizing lesbian and gay parenting: Past, present and future scholarship. Journal of Family Theory and Review, 1(3):117-132. http://dx.doi.org/10.1111/j.1756-2589.2009.00017.x        [ Links ]

BUTLER, J. 1990. Gender trouble. New York, Routledge, 147 p.         [ Links ]

CARLI, L.L.; BUKATKO, D. 2000. Gender, communication, and social influence. A developmental perspective. In: T. ECKES; H.M. TRAUTNER (eds.), The developmental social psychology of gender. Mahwah, Lawrence Erlbaum Associates, p. 295-331.         [ Links ]

CARVALHO, A.M.A.; PEDROSA, M.I. 2002. Cultura no grupo de brinquedo. Estudos de Psicologia, 7(1):181-188. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2002000100019        [ Links ]

CECÍLIO, M.S.; SCORSOLINI-COMIN, F.; SANTOS, M.A. 2013. Produção científica sobre adoção por casais homossexuais no contexto brasileiro. Estudos de Psicologia, 18(3):507-516. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2013000300011        [ Links ]

DUVEEN, G. 1993. The development of social representation of gender. Papers on Social Representations, 2(1):171-177.         [ Links ]

EIBL-EIBESFELDT, I. 1989. Human ethology. New York, Aldine de Gruyter, 346 p.         [ Links ]

GIANINO, M. 2008. Adaptation and transformation: The transition to adoptive parenthood for gay male couples. Journal of LGBT Families Studies, 4(2):205-243. http://dx.doi.org/10.1080/15504280802096872        [ Links ]

GOLDBERG, A. 2010. Lesbian and gay parents and their children: Research on the family life cycle. Washington, DC, APA, 235 p. http://dx.doi.org/10.1037/12055-000        [ Links ]

GOLDBERG, A.; KASHY, D.; SMITH, J.Z. 2012. Gender-typed play behavior in early childhood: Adopted children with lesbian, gay and heterosexual parents. Sex Roles, 67(1):503-515. http://dx.doi.org/10.1007/s11199-012-0198-3        [ Links ]

GOLOMBOK, S.; MELLISH, L.; JENNINGS, S.; CASEY, P.; TASKER, F.; LAMB, M. 2014. Adoptive gay father families: Parent-child relationships and children's psychological adjustment. Child Development, 85(2):456-468. http://dx.doi.org/10.1111/cdev.12155        [ Links ]

GREEN, J.L.; WALLAT, C. 1981. Mapping instructional conversations: A sociolinguistic ethnography. In: J.L. GREEN; C. WALLAT (eds.), Ethnography and language in educational settings. Norwood, Ablex, p. 161-205.         [ Links ]

HARRIS, J. 1999. Diga-me com quem anda... Rio de Janeiro, Objetiva, 109 p.         [ Links ]

LORDELO, E. 1995. Ambiente de desenvolvimento humano: uma análise a partir do contexto creche. São Paulo, SP. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 267 p.

MACCOBY, E. 1988. Gender as a social category. Developmental Psychology, 24(1):755-765. http://dx.doi.org/10.1037/0012-1649.24.6.755        [ Links ]

MENEZES, A.B. de C.; BRITO, R.C.S. 2013. Diferenças de gênero na preferência de pares e brincadeiras de crianças. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(1):193-201. http://dx.doi.org/10.1590/s0102-79722013000100021        [ Links ]

MORAIS, M.L.S.; OTTA, E. 2003. Entre a serra e o mar. In: A.M.A. CARVALHO; C.M.C. MAGALHÃES; F.A.R. PONTES; I.D. BICHARA (orgs.), Brincadeira e cultura: viajando pelo Brasil que brinca. São Paulo, Casa do Psicólogo, p. 127-157.         [ Links ]

MURPHY, D.A. 2013. The desire for parenthood: Gay men choosing to become parents through surrogacy. Journal of Family Issues, 34(8):1104-1124. http://dx.doi.org/10.1177/0192513X13484272        [ Links ]

PATTERSON, C. 2009. Children of lesbian and gay parents: Psychology, law, and policy. American Psychologist, 64(1):727-736. http://dx.doi.org/10.1037/0003-066X.64.8.727        [ Links ]

PYNE, J. 2014. Gender independent kids: A paradigm shift in approaches to gender non-conforming children. The Canadian Journal of Human Sexuality, 23(1):1-8 http://dx.doi.org/10.3138/cjhs.23.1.CO1        [ Links ]

RIGGS, D.W.; DUE, C. 2010. Gay men, race and surrogacy in India. Outskirts: feminisms along the edge, 22. Disponível em: http://www.outskirts.arts.uwa.edu.au/volumes/volume-22/riggs. Acesso em: 08/06/2015.         [ Links ]

SAGER, F.; SPERB, T.M. 1998. O brincar e os brinquedos nos conflitos entre crianças. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(2):309-326. http://dx.doi.org/10.1590/s0102-79721998000200010        [ Links ]

SILVA, L.I.C.; PONTES, F.A.R.; SILVA, S.B.; MAGALHÃES, C.M.C.; BICHARA, I.D. 2006. Diferenças de gêneros nos grupos de brincadeira na rua: A hipótese de aproximação unilateral. Psicologia, Reflexão e Crítica, 19(1):114-121. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722006000100016        [ Links ]

STACEY, J. 2006. Gay parenthood and the decline of paternity as we knew it. Sexualities, 9(1):27-55. http://dx.doi.org/10.1177/1363460706060687        [ Links ]

WANDERLIND, F.; MARTINS, G.D.F.; HANSEN, J.; MACARINI, S.M.; VIEIRA, M.L. 2006. Diferenças de gênero no brincar de crianças pré-escolares e escolares na brinquedoteca. Paidéia, 16(34):263-273. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2006000200014        [ Links ]

 

 

Submetido: 20/08/2014
Aceito: 14/01/2015

 

 

1 Apoio: CAPES.

Creative Commons License