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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.2 São Leopoldo Dec. 2015

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2015.82.05 

ARTIGOS

 

Clínica da cooperação: um caminho para a insurgência e a autonomia

 

Cooperation clinic: a way for the insurgency and the autonomy

 

 

Vanessa Ribeiro de Oliveira; João Batista Ferreira

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Pasteur, 250, 22290-240, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. vanessaribeiro.psy@gmail.com, ferreira.jb@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a clínica da cooperação, estratégia de intervenção baseada no referencial teórico-prático da psicodinâmica do trabalho, que se propõe a mapear as relações entre saúde mental e trabalho. Trata-se de um artigo teórico-conceitual, embasado pela experiência dos autores na clínica da cooperação. Inicialmente, contextualiza-se o mundo do trabalho e a abordagem desse estudo. Em seguida, aborda-se o espaço de discussão e outras condições importantes para a realização dessa proposta de clínica. A clínica da cooperação é entendida como forma de potencializar os processos de mobilização dos trabalhadores, para que possibilitem experiências de autonomia e de transformação da organização do trabalho. Nessa perspectiva, busca-se apresentá-la como estratégia de intervenção micropolítica.

Palavras-chave: cooperação, trabalho, saúde mental.


ABSTRACT

This article aims at reflecting about the cooperation clinic, intervention strategy based on the theoretical and practical reference from the psychodynamic of work, which aims at mapping the relationship between mental health and work. This is a theoretical-conceptual article, based by the authors' experience in cooperation clinic. In the beginning, it contextualizes the world of work and the approach of this study. Then the goal is to think over on the discussion space and other important conditions for the realization of this proposal clinic. Clinical cooperation is seen as a way to enhance the workers' mobilization processes that enable experiences of autonomy and transformation of the work organization. From this perspective, the article seeks to present it as micropolitic intervention strategy.

Keywords: cooperation, labor, mental health.


 

 

Introdução

Em uma era de fragmentação dos coletivos, na qual imperam individualismos, automatismos das formas de sentir, pensar e viver e, por consequência, é cada vez mais difícil pensar no trabalhador como sujeito, o que predomina é a produção do que Baremblitt (2002) denominou de subjetividades assujeitadas. O automatismo e a velocidade das lógicas produtivas contemporâneas intensificam a perda da capacidade de sensibilizar-se, que resultam em um viver anestesiado e na impossibilidade de mobilização coletiva para ações de transformação (Ferreira, 2014). Trata-se de um contexto no qual o trabalho se sobrepõe à vida das pessoas, pois "se vive para trabalhar e não mais se trabalha para viver", e o trabalho torna-se sinônimo de repetição e cumprimento dos mandamentos produtivistas das organizações. O trabalho torna-se, assim, apenas um meio de subsistência, embora seja vendido como forma de realização pessoal e, aos poucos, produz desmobilização coletiva, com toda passividade associada a esse processo (Rocha, 2008).

O presente artigo pretende refletir sobre as incidências desse contexto nas ações de mobilização e desmobilização dos trabalhadores. Para isso, apresentam-se considerações sobre a clínica da cooperação, estratégia de intervenção baseada no referencial teórico-prático da psicodinâmica do trabalho. Essa proposta clínica põe em análise o trabalhar, buscando a promoção do olhar para si mesmo, para a relação com o outro e as configurações do trabalho em que se inserem (Dejours, 2011).

Este trabalho surge como resultante da experiência dos autores em uma clínica da cooperação. Trata-se de um artigo teórico-conceitual que abrange as referências e os aspectos orientadores dessa prática. No primeiro momento, contextualiza-se o mundo do trabalho e a psicodinâmica do trabalho, abordagem norteadora deste estudo. Em seguida, expõem-se tópicos fundamentais para a realização dessa clínica, bem como o seu funcionamento. Por fim, aborda-se como considerações finais o caráter político desse processo e as implicações do pesquisador-clínico nesse contexto.

 

Trabalho

A palavra trabalho origina-se do termo latim Tripallium, usado para nomear um instrumento de tortura. A partir dessa associação, surge o significado do trabalho como fardo, sacrifício, adotado na Grécia, através do desprezo por atividades entendidas como trabalho, por parte dos cidadãos livres e, posteriormente, pelo início do cristianismo, onde o trabalho passou a ser uma punição pelos pecados (Léda e Ribeiro, 2004).

Com o Renascimento, começou a surgir uma ressignificação do trabalho enquanto produtor de identidade e fonte de autorrealização. Essa nova concepção inaugura um olhar em que o trabalho é visto como condição necessária para a liberdade e o desenvolvimento humano. A produção artesanal constituiu a ampliação da autorrealização no trabalho, possibilitando efetiva participação do trabalhador em todas as etapas da produção (Léda e Ribeiro, 2004).

A partir do advento da Revolução Industrial, a programação, o controle e a cronometragem do tempo, trazida pelos modelos fordista e taylorista, atravessam a relação trabalhador-processo de produção, e novas formas de relação com o trabalho são criadas. Com isso, novas formas de produção passam a ser incorporadas pelas organizações, resultando em um controle mais assíduo da vida (monitoramento do tempo livre e das formas de lazer). Esse cenário se intensifica com o surgimento do toyotismo, na década de 1980, que produz a acumulação flexível, a fragmentação dos coletivos e dos processos produtivos e o regime das especializações (Léda e Ribeiro, 2004).

O novo contexto criado por esses modelos produtivos mantém a centralidade do trabalho, mas cambia o seu significado, pois o trabalho passa a ser instrumentalizado pela maior parte da sociedade, como um meio para se atingir um fim. Diante disso, a relação trabalho-remuração intensifica-se, e a lógica do consumo e do valor de troca passam a reger as relações humanas (Léda e Ribeiro, 2004).

 

A psicodinâmica do trabalho

A psicodinâmica do trabalho é uma abordagem que surgiu na França, por volta de 1990, com Christophe Dejours. De acordo com Mendes (2007), a trajetória dessa abordagem é marcada por três fases, que, embora caracterizem-se por publicações específicas, se complementam. A primeira fase, por volta de 1980, teve como foco principal o estudo da psicopatologia do trabalho, e é marcada pela publicação do livro traduzido para o Brasil como A loucura do trabalho: estudos de psicopatologia do trabalho. Na segunda fase, em 1990, fundou-se propriamente a disciplina psicodinâmica do trabalho, que se ocupou de problematizar o sofrimento produzido a partir da relação homem-trabalho, dando ênfase às vivências de prazer e sofrimento e à reestruturação da organização do trabalho. A terceira fase caracteriza-se pela consolidação e propagação da psicodinâmica enquanto modo de intervenção científica que explica os efeitos do trabalho nos processos de subjetivação, na emergência de patologias e na saúde dos trabalhadores.

Trata-se de uma clínica que toma a descrição da organização e das relações de trabalho como base do seu fazer, realizando um mapeamento da relação sujeito-trabalho dentro do contexto de trabalho e/ou durante a própria experiência do trabalhar (Dejours, 2004) e promovendo intervenções pautadas na perspectiva de reconstrução do equilíbrio entre o trabalho e a saúde mental a partir de um movimento do próprio sujeito (Ghizoni, 2013). Martins (2009) complementa essa definição ao ressaltar que a psicodinâmica aposta nos coletivos de trabalho, sem desconsiderar as singularidades envolvidas na relação entre o trabalhador e a organização do trabalho. A psicodinâmica entende que a relação estabelecida nos coletivos facilita o processo de elaboração1 e perlaboração2 do próprio sofrimento, bem como a criação de modos de transformação da realidade organizacional, ou pelo menos, a mudança nos modos de relação com essa realidade.

 

A clínica psicodinâmica do trabalho

A clínica psicodinâmica do trabalho é um método da clínica do trabalho proposto pela psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2008), definido por Araújo e Mendes (2012, p. 92) como:

[...] um espaço com o objetivo de investigar a relação do indivíduo com a atividade laboral através da fala dos sujeitos que executam as rotinas de trabalho em uma organização, onde pode expressar suas impressões, sentimentos e percepções relacionadas aos pares, superiores, subordinados, tarefas realizadas, resultado e sentido do que fazem.

A intervenção proposta pela clínica psicodinâmica se dá no próprio ambiente de trabalho, como um espaço de valorização da fala enquanto meio de compartilhamento de experiências, percepções e sentimentos. Contudo, é preciso sublinhar que a análise das situações de trabalho no contexto dessa clínica transcende o conteúdo expresso pela fala, porque, para além do que é dito, observa-se também o "não dito", isto é, as contradições existentes entre a fala oral e a fala corporal, a configuração do contexto de trabalho e a dinâmica das relações circunscritas na instituição. Desse modo, a clínica do trabalho visa prover uma análise das condições de trabalho e suas oscilações, que abarcam desde a relação subjetiva e intersubjetiva dos sujeitos e o processo de construção da identidade até a patologia (Dejours, 2011).

A proposta da clínica da psicodinâmica é embasada pela lógica relacional e inicia-se com questões amplas, que se delimitam a partir do processo de pesquisar. Essa clínica toma como base científica a chamada pesquisa ascendente, que indissocia o saber do fazer e, por esse motivo, entende que determinadas produções teóricas tornam-se possíveis apenas a partir de intervenções em determinadas situações de trabalho (Heloani e Lancman, 2004).

Dejours (2010) explicita que as transformações provocadas por esse tipo de clínica seguem o mesmo ritmo das mudanças administrativas, de gestão e da organização do trabalho.

A clínica psicodinâmica se subdivide em três tipos, de acordo com a situação de trabalho a ser pesquisada: a clínica da inclusão, clínica das patologias ou clínica da cooperação. A primeira é direcionada aos trabalhadores que vivenciam situações de exclusão, como desempregados e aposentados, e tem como aposta a construção do "trabalho como constituinte do sujeito em situação de não trabalho" (Martins e Mendes, 2012, p. 173). A segunda, a clínica das patologias, busca principalmente a reconstrução da história do adoecimento ou de violência e a produção de formas de mobilização dos participantes. E, por fim, a clínica da cooperação tem a mobilização coletiva e o resgate do sentido do trabalho como objetivos principais, e é realizada comumente com um coletivo que possui interseções no que tange ao trabalho diário (Martins e Mendes, 2012).

Destaca-se que o sentido do trabalho, um dos pilares da clínica da cooperação, faz alusão à representação do coletivo em relação ao ato de trabalhar, que tem como objetivo perpassar o sofrimento emergente da dimensão efetiva dessa atividade (Costa, 2013a).

Essas clínicas têm como princípio a promoção de espaços coletivos de discussão, possibilitando a construção de modos de resistência ao sofrimento e à doença produzidos na relação desse trabalhador com a organização do trabalho (Martins e Mendes, 2012). Nesse sentido, elas têm como base a noção de um sujeito potente, capaz de transformar o trabalho mortificado pelas inúmeras prescrições da organização em prol do que Dejours denomina "trabalho vivo" (Araújo e Mendes, 2012), uma experiência de trabalho que envolve sensações, pensamentos e a capacidade de criação do sujeito (Ferreira, 2014). Para Martins e Mendes (2012), nesses espaços, é preciso compreender o discurso de cada trabalhador como uma fala singular, já que apenas o próprio trabalhador tem o conhecimento do seu fazer e do seu sofrimento.

A respeito da escuta analítica, Mendes (2014) pontua a participação do clínico no coletivo de pesquisa e no coletivo de supervisão como condição essencial para esse processo. E apresenta como particularidades desse tipo de escuta: a análise da demanda que inicia o processo clínico e a compreensão da dinâmica do sofrimento como uma etapa fundamental para a escuta analítica.

Mendes (in Reis, 2015), em entrevista à revista en(cena), aponta que a escuta, para além de uma proposta metodológica, é também teórica, ao passo que é a partir dessa escuta que o clínico pode entender como os sintomas se alocam e de que forma a organização do trabalho acessa esse tipo de sintoma. Ela acrescenta que o processo de escuta analítica não inclui apenas o entendimento e a interpretação dos discursos, mas também a transformação do pesquisador em clínico, que precisará intervir no coletivo para tratar a "psicopatologia da posição subjetiva" - forma com que os trabalhadores têm se apegado a esses sintomas.

De acordo com Mendes (2014) a escuta analítica ocorre a partir de três dispositivos: a análise da demanda; a transferência e a interpretação. O primeiro dispositivo de ser articulado, a necessidade, queixa, sintoma e desejo do coletivo de pesquisa, deve orientar toda a prática clínica. A esse respeito, a autora alerta acercada importância da diferenciação entre a demanda institucional e a demanda do coletivo de pesquisa. Já a transferência acontece quando os participantes relatam o que está acontecendo com eles - Mendes (2014) aponta que, nesse momento, cabe ao clínico acolher os discursos e facilitar a nomeação dos afetos. Além disso, a autora expõe que, em situação de clínica coletiva, a transferência negativa é comum e, portanto, nesses casos,3 deve-se evitar a solução do problema, visto que a tensão é produtiva e tem um papel importante na criação de um cenário propício à nomeação dos afetos. Por fim, a interpretação, último dispositivo da escuta analítica, deve ter como foco as defesas coletivas, de forma a desmontar um sistema defensivo, ao mesmo tempo que autoriza a reorganização de uma nova defesa (Mendes, 2014).

Com base nessas considerações, pode-se perceber que tão importante quanto a criação desses espaços de escuta é a postura do clínico que o promoverá, pois ele possui a função de acolher as demandas que lhe são dirigidas através da palavra e que possibilitarão ao próprio grupo a construção de um percurso que possibilite trabalhar os sofrimentos. Com isso, o clínico busca ser um facilitador do processo de tornar público os incômodos e de questionar os movimentos que os produzem.

 

A clínica da cooperação como proposta de intervenção

No livro Trabalho vivo: trabalho e emancipação, Dejours (2012) toma como base os estudos da Escola de Frankfurt, que consideram o trabalho como mediador da autonomia, para nos apresentar a cooperação como dimensão efetiva do trabalho que possibilita um poder emancipatório ao coletivo.

A cooperação promove movimentos de resistência às diferentes formas de dominação, em buscada liberdade para a transformação da realidade de trabalho.

A cooperação fundada sobre acordos normativos e regras de trabalho passa por uma atividade deôntica cujos objetivos são de libertar-se, pelo menos de forma parcial, da dominação, para reapropriar-se individual e coletivamente de uma parte da autonomia, não apenas pelo gosto da liberdade, da transgressão ou da indisciplina, mas porque esta margem de autonomia é indispensável para o exercício da inteligência para a formação das habilidades e do prazer da subversão poiética (Dejours, 2012, p. 96).

Nesse fragmento, a autonomia emerge como o ideal da cooperação e fundamento do ser sujeito, que toma a liberdade de construção ou reconstrução da própria vida como base da sua constituição. Isso significa dizer que, à medida que a cooperação possibilita um caminhar em direção à autonomia, ela também legitima a busca pelo reconhecimento da própria humanidade, ao possibilitar a apropriação dos afetos e a utilização destes para a transformação da realidade (Siqueira, 2013).

A clínica da cooperação toma tal configuração como aposta no processo de intervenção e pretende, assim, fomentar desnaturalizações das condições e relações de trabalho, provocar estranhamentos que são essenciais para a mobilização do coletivo em direção à emancipação no trabalho (Siqueira, 2013). Com isso, destaca-se o caráter preventivo dessa clínica, que tende a colocar em questão e, eventualmente transformar, ambientes produtores do sofrimento patogênico por meio da mobilização do coletivo (Ghizoni, 2013).

 

As condições para a cooperação

Dejours (2012, p. 79) afirma que "todo trabalho enquanto trabalho vivo repousa na inteligência e na mobilização da inteligência". A partir disso, torna-se impossível pensar o trabalho vivo sem uma inteligência inventiva que implica, necessariamente, o que há de singular no ser humano.

Tendo visto que a cooperação tem como norteador o coletivo de trabalho, não há como se pensar esse trabalho vivo e a inteligência singular que ele envolve fora do coletivo. As inteligências emergem no coletivo sob a marca da diversidade, que pode gerar divergências caracterizadas como desordem ou articuladas em uma dinâmica coletiva comum (Dejours, 2012). Nesse sentido, o processo de construção do coletivo e a cooperação encontram-se intimamente relacionados no que tange às suas condições primordiais (Lima, 2013) que, dentre outros fatores, abrangem: as regras de trabalho, a visibilidade, a confiança e a deliberação.

A psicodinâmica estabelece a produção das regras de trabalho como condição necessária à cooperação, como as regras que regulam a convivência (Dejours, 2011) e a relação com o real do trabalho. Essas prescrições atuam tanto no nível técnico, já que organizam e direcionam o fazer, quanto nos níveis moral e prático no âmbito social, coordenando o viver junto (Dejours, 2012). Todavia, para serem entendidas como regras favoráveis à cooperação, elas precisam se tornar tão dinâmicas quanto o contexto em que se inserem.

A visibilidade está relacionada ao espaço coletivo, que promove a partilha do conhecimento sobre o trabalho realizado por cada um dos seus componentes. Segundo Dejours (2012), só a partir desse conhecimento é possível haver um re-conhecimento, por parte do coletivo, do trabalho enquanto criação (poiésis), fator primordial para a apreensão do próprio saber-fazer.

A confiança está no seio da cooperação, pois é preciso que haja confiança para que as pessoas se mostrem, deem visibilidade ao seu trabalho. Por esse motivo, Dejours (2012) nos alerta sobre a necessidade de permitir o surgimento do processo de construção da confiança no espaço coletivo.

Contudo, dar visibilidade ao trabalho significa, também, tornar visível o real do trabalho4 e as diferenças que ele abarca. É a partir da necessidade de que essas diferenças sejam discutidas, admitidas ou rejeitadas pelo coletivo, de acordo com o teor de sua influência no processo de cooperação, que a deliberação ocorre.

Em suma, a clínica da cooperação é um modo de intervenção que permite reunir pesquisa e ação (Martins e Mendes, 2012). Ela potencializa os movimentos de fortalecimento dos coletivos, permite cartografar a situação de trabalho e vislumbrar novas formas de ser e estar no ambiente ocupacional, sem abdicar de si mesmo enquanto sujeito.

Trata-se de uma tentativa de promover, se não um encontro, pelo menos um movimento bidirecional entre as instâncias: sujeito desejante - aquele que evoca desejos, inconscientes de satisfação pulsional- e objetivos organizacionais, promovendo mudanças a partir da conscientização da própria situação de trabalho. Em última instância, esse tipo de clínica propõe, por meio do espaço coletivo, uma reconfiguração da relação sujeito-trabalho.

 

A clínica da cooperação e o espaço de discussão

Dejours (2004) propõe que uma configuração do trabalho que tenha como base a confiança, e a deliberação coletiva demanda espaços formais e informais de fala -estes funcionam como uma clínica da cooperação, à medida que possibilitam um discurso sobre a vivência subjetiva do trabalhador e possibilidades de transformação.

Nesses espaços públicos de discussão, é possível notar que o trabalho tanto é um elemento fundamental para a estruturação da identidade dos sujeitos - quando estes se sentem reconhecidos e confirmados no âmbito da singularidade do seu saber-fazer - quanto pode tornar-se uma fonte de sofrimento patogênico - quando a atividade realizada não tem sentido para o sujeito e nem é considerada importante pela organização ou meio social (Araújo e Mendes, 2012).

É nesse contexto de dualidade do trabalho que Lima (2013) destaca como dimensões importantes para a comunicação, por meio do espaço de discussão, a autenticidade e a inteligibilidade. O termo autenticidade faz referência ao ato de permitir-se sujeito, isto é, consentir a experimentação afetiva da situação (Ferreira, 2013). De acordo com Dejours (2004), a fala autêntica só se estabelece no espaço de discussão quando há, nesse ambiente, um tipo de relação que envolve a reciprocidade de riscos.

A dimensão da inteligibilidade refere-se à capacidade criativa, à possibilidade de mobilização diante dos imprevistos que a clínica da cooperação envolve (Ghizoni, 2013). Também conhecida como inteligência prática, ela é envolta por inteligências singulares e coletivas que valorizam o trabalho enquanto poiésis e transformam a organização do trabalho em direção à saúde dos trabalhadores.

A inteligibilidade é também fruto de uma interseção entre o prescrito, o modo imperativo estabelecido pelas organizações para a execução das tarefas e o trabalho real, a maneira encontrada pelo sujeito para lidar com as situações que escapam ao prescrito (Costa, 2013b), entre as dimensões de coordenação e cooperação, na medida em que se utiliza da inventividade para flexibilizar as prescrições e traçar caminhos que possibilitem novos modos de relação entre o trabalhador e o seu trabalho (Ghizoni, 2013).

A clínica da cooperação é um espaço de criação de referências comuns e compartilhamento do real do trabalho (Dejours, 2012). Esse dispositivo aposta em uma construção coletiva, sem negar as singularidades de cada trabalhador. Tratamos do que Buber (in Holanda, 1999) denominou como relação dialógica, onde a criação e o afeto atravessam as singularidades e se estabelecem no espaço do "entre". Isso significa dizer que a produção de sentidos não são parte de um trabalhador ou de outro, e sim do encontro entre ambos. É nesse encontro que a ampliação da consciência acontece, dando origem a novos olhares sobre si na relação com o trabalho e com sua própria saúde (Martins e Mendes, 2012).

A partir dessa perspectiva, a clínica do trabalho pode ser entendida como um processo dialógico, um movimento coletivo que é construído e ressignificado cotidianamente. Por esse motivo, é entendida por Ghizoni (2013) como uma clínica sempre inacabada, que se transforma a cada momento.

 

O funcionamento da clínica da cooperação

A clínica da cooperação no contexto da pesquisa é composta por três etapas: a análise da demanda, as sessões coletivas e a validação dos resultados (Araújo e Mendes, 2012). A análise da demanda é também entendida como uma fase de pré-pesquisa, que deve ser revisitada ao longo de todo o estudo. As sessões coletivas constituem a pesquisa de fato, são os momentos nos quais ocorrem a coleta dos dados sobre a situação de trabalho e as vivências de prazer e sofrimento. A terceira etapa é o momento da validação dos resultados da pesquisa, no qual os trabalhadores revisitam os dados colhidos durante a pesquisa e discutem as hipóteses apresentadas pelos pesquisadores.

Alguns exemplos de experiências de intervenção com esse tipo de clínica são apresentados por Araújo e Mendes (2012), com práticas realizadas em instituições públicas e privadas. Ao relatar sobre os resultados dessas experiências, as autoras ressaltam que as principais questões trazidas nesses espaços de fala faziam referência à falta de reconhecimento simbólico, à precariedade das relações socio-profissionais e à comunicação sem transparência. Esses aspectos encontram-se intimamente relacionados ao que Martins (2009, p. 76) apresenta como "fontes de impedimento da transformação do sofrimento em prazer".

É importante ressaltar a dualidade dessa proposta clínica, que assim como pode fomentar o protagonismo do trabalhador em relação ao seu próprio fazer, também pode se articular como forma de manter tais trabalhadores engajados na lógica da produção. Por esse motivo, Araújo e Mendes (2012) explicitam a importância de uma postura crítica constante em relação à demanda pela clínica da cooperação e a sua prática, no momento em que ela acontece. É preciso pensar essa clínica como uma metodologia de orientação da prática do psicólogo nas organizações e como uma ação de resistência à reprodução das lógicas gestionárias, já que estas produzem a fragmentação dos coletivos, a exacerbação do individualismo e diversas formas de adoecimentos.

 

Considerações finais

O presente trabalho apresenta a clínica da cooperação como uma forma de intervenção no cenário atual do mundo do trabalho, destacando-a como uma estratégia de intervenção de caráter micropolítico, isto é, um pequeno acontecimento, mas de grande intensidade, responsável pela produção de subjetividades e o fomento à singularização (Guattari e Rolnik, 1986).

A característica política dessa clínica se destaca na produção de um olhar consciente sobre as situações de trabalho, por meio do compartilhamento de experiências, do resgate da noção de coletivo e da possibilidade de transformação dessa realidade. Périlleux (2010) aponta o potencial crítico desse espaço, que coletiviza problemas inicialmente tidos como pessoais, sem negar a responsabilidade individual e coletiva na manutenção ou transformação dessa realidade.

Como apontado anteriormente, este tipo de clínica se configura como um movimento de resistência às lógicas alienantes que operam automatismos e a anestesia do viver, explicitando a necessidade da reconfiguração e construção do sentido do trabalho como resultante do reconhecimento do trabalhador-sujeito e da noção de trabalho como relação, como o "viver junto" apontado por Dejours (2012). Com isso, a clínica da cooperação provoca o fortalecimento dos coletivos e amplia as possibilidades de transformação do trabalho, por meio dos espaços de discussão, entendidos como lugares privilegiados para a nomeação dos afetos, para a desnaturalização de práticas alienantes e para o encontro dos afetos e das inteligências singulares em prol da criação de novos modos de ser, estar e experienciar o trabalhar e o viver no mundo.

Dejours (2004) sublinha nosso papel na reprodução do modo de funcionamento do mundo do trabalho, ao pontuar a transformação da organização do trabalho como resultante do zelo daqueles que a fazem funcionar, mas também ressalta a nossa capacidade de implicação com as possibilidades de transformação desse cenário. Esse olhar nos ajuda a pensar que o grande desafio dos psicólogos e dos demais profissionais que hoje se debruçam sobre essa área é conseguir intervir eticamente nesse contexto.

A clínica da cooperação, brevemente apresentada neste artigo, representa uma entre inúmeras possibilidades de intervenção no contexto do trabalho. As limitações desta pesquisa referem-se ao recorte que foi realizado a partir das experiências dos pesquisadores, necessariamente articulado a essas práticas, e que, portanto, podem ser amplificadas e reconfiguradas a partir de outras experiências do real do trabalho de pesquisa. Nesse sentido, o insipiente desenvolvimento teórico-metodológico da clínica da cooperação com base na psicodinâmica do trabalho poderá ser enriquecido com a continuidade das experiências do real do trabalho dos pesquisadores dessa abordagem, em contextos e com categorias diversas, nos setores públicos e privados, principalmente com as categorias que vêm enfrentando precarização ainda mais acentuada no que se refere aos processos de fragmentação dos coletivos, como os trabalhadores com atividades terceirizadas.

É importante destacar que os dados recolhidos em espaços como esse podem fornecer subsídios para a criação e aperfeiçoamento de políticas de prevenção da saúde mental no trabalho, por exemplo. Mas, para que estratégias como essa se tornem realidade, é necessário que os profissionais que atuam nessa área estejam atentos e em contato com a sua própria experiência do trabalhar, afim de que nossa atuação não se limite às prescrições que os subprocessos de gestão de pessoas produzem. É preciso transformar o nosso trabalho em um trabalho vivo, para que possamos promover espaços que possibilitem a produção da vivacidade e da saúde no trabalho pelos próprios trabalhadores.

 

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Submetido: 30/04/2015
Aceito: 24/08/2015

 

 

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1 O termo elaboração refere-se ao trabalho do inconsciente durante o tratamento psicanalítico (in Plon e Roudinesco, 1998, p. 174).
2 A perlaboração, é uma palavra usada para explicitar a possibilidade de integrar uma interpretação a esse trabalho inconsciente, bem como superar as resistências que emergem durante esse processo (in Plon e Roudinesco, 1998, p. 174).
3 A transferência negativa é identificada como um "vetor de sentimentos hostis e agressivos" que, segundo Freud, funciona como uma barreira que indica a proximidade com conteúdos recalcados e com o próprio desejo inconsciente (in Plon e Roudinesco, 1998, p. 767).
4 O conceito real do trabalho faz referência ao imprevisto, que transcende as prescrições do trabalho e desafia os saberes técnico e científico. Segundo Ferreira (2013), o conceito de real do trabalho torna visível a experiência de fracasso das prescrições e os limites do conhecimento.

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