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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.2 São Leopoldo dez. 2015

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2015.82.07 

ARTIGOS

 

Clínica intercultural: a escuta da diferença

 

Intercultural clinic: hearing the difference

 

 

Lucienne Martins-Borges; Marcio Jibrin; Allyne Fernandes Oliveira Barros

Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Psicologia. Campus Universitário Trindade. 88040-970, Florianópolis, SC, Brasil. lucienne.borges@ufsc.br, marciojibrin@gmail.com, allynefob@gmail.com

 

 


RESUMO

O processo migratório implica na experiência de passar a conviver com diferentes culturas e formas de compreender o mundo, indo além do deslocamento geográfico. Os refugiados e imigrantes pós-desastres naturais trazem consigo uma especificidade ainda maior de tal experiência, dado o caráter involuntário do deslocamento. As diversas mudanças geradas pelo processo migratório como um todo podem levar os imigrantes a um estado de vulnerabilidade psíquica. Com base no reconhecimento dessas questões, em 2012, o projeto de extensão universitária Clínica Intercultural iniciou suas atividades. Seu principal objetivo é oferecer atendimento psicológico a imigrantes e refugiados, por meio de uma escuta qualificada do sofrimento psíquico, levando em conta a dimensão cultural na busca do equilíbrio dinâmico da pessoa, por reconhecer seu papel na estruturação psíquica. Ao longo do tempo, o espaço de atuação do projeto ampliou-se, de forma a ultrapassar os limites da clínica psicológica, consolidando seu caráter social e político em relação às imigrações no contexto brasileiro. O presente artigo é um relato de experiência e objetiva apresentar o percurso da Clínica Intercultural com suas respectivas atividades, o perfil do público que atende e o dispositivo clínico. O trabalho vem alcançando resultados positivos no que diz respeito à ampliação do reconhecimento do trabalho da clínica na comunidade, à sensibilização sistemática de alguns serviços e ao espaço político ocupado em sua articulação com outras instituições, contribuindo para estratégias de acolhimento e integração de imigrantes e refugiados na região metropolitana de Florianópolis.

Palavras-chave: Psicologia Clínica Intercultural, imigrantes, refugiados, etnopsiquiatria.


ABSTRACT

The migration process involves the experience of living with different cultures and different world views, going beyond the geographical displacement. Given the involuntary nature of their displacement, refugees and immigrants post-natural disasters bring with them an even greater specificity of such experience. The various changes generated by the migration process as a whole can lead immigrants to a state of psychic vulnerability. Aware of these issues, in 2012 the university extension project Clínica Intercultural began its activities. The Center's main goal is to provide psychological care for immigrants and refugees through a qualified hearing of psychological distress. This is done by taking into account the cultural dimension in search of the person's dynamic equilibrium, by recognizing their role in the psychic structure. Over the time, the project sphere of action extended beyond the limits of clinical psychology, consolidating its political and social character in relation to immigration in the Brazilian context. This article is an experience report that presents the path of Clínica Intercultural with its respective activities, public profile and clinical devices. The work has achieved the following positive results: recognition expansion of the clinic work in the community; the systematic awareness of some services about the issue; and the political engagement with other institutions, contributing to hosts and integration strategies of immigrants and refugees in the metropolitan region of Florianópolis.

Keywords: Intercultural Clinic Psychology, immigrants, refugees, ethnopsychiatry.


 

 

A migração é caracterizada por um movimento de pessoas, de duração variada, com repercussões em várias dimensões do sujeito e de seu contexto. Além dos desdobramentos inerentes ao processo de deslocamento físico entre um lugar e outro, observam-se, igualmente, impactos de natureza psicológica, social, política e cultural. Entre os mais diferentes tipos de migração, pode-se falar em migrações internas - dentro das fronteiras de uma mesma nação - e as migrações internacionais, quando as pessoas atravessam as fronteiras de um país. Nas duas situações, o movimento dessas populações pode ser voluntário ou involuntário. Fala-se em migrações voluntárias quando a mudança decorre de uma decisão individual ou coletiva, na qual há, geralmente, um planejamento da partida e um projeto de vida no lugar de chegada; por outro lado, as migrações involuntárias caracterizam-se pelos deslocamentos impostos por perseguições religiosas, políticas e/ou ideológicas, graves violações de direitos humanos, efeitos de catástrofes naturais, entre outros, quando não resta escolha de permanência ou tal possibilidade representa risco à sobrevivência. Os refugiados e os migrantes com vistos humanitários após catástrofes naturais são exemplos de migrações involuntárias (Organização Internacional para as Migrações, 2009; Martins-Borges, 2013; Pacífico e Pinheiro, 2013).

As mudanças que usualmente ocorrem nesses tipos de migrações geram estranhamento naquele que chega, podendo levar ao estado de vulnerabilidade psíquica, principalmente nas migrações involuntárias (Martins-Borges e Pocreau, 2009). Por vulnerabilidade psíquica, entende-se, aqui, a baixa resistência - psíquica - do sujeito, quando confrontado às adversidades da vida (Anthony et al., 1982). No caso da vulnerabilidade psíquica, o sujeito, apesar de sua experiência existencial, dos recursos psicológicos, das forças pessoais e das redes sociais que lhe estão disponíveis, pode não conseguir enfrentar as dificuldades sem que o sofrimento psicológico entrave seu desenvolvimento.

Enquanto experiência inerente à condição humana, o sofrimento é universal; porém, sua estruturação e expressão são fundamentalmente culturais. É a cultura na qual o sujeito se constituiu que fornece os elementos, explícitos e implícitos, que podem dar sentido aos seus sentimentos, emoções e angústias. Assim, a cultura delimita o mundo de valores, códigos e crenças, que pode propiciar segurança, previsibilidade e, de certa forma, controle sobre experiências vividas ao longo da existência (Moro, 2008; Martins-Borges e Pocreau, 2009; Dantas et al., 2010). O sujeito em deslocamento, quando confrontado com situações adversas e com a diferença - alteridade -, pode enfrentá-las com dificuldade e padecer de diferentes tipos de sofrimento, devido à dificuldade e, por vezes, ausência de comunicação entre o mundo interno - mundo psíquico - e externo - ambiente cultural no qual esse sujeito se constituiu. O sofrimento pode ser desencadeado pela distância que os referenciais culturais de origem passam a ter em relação às lógicas da sociedade de acolhimento. Tais reflexões concernem tanto pessoas que imigraram para o Brasil de forma voluntária - estudo ou trabalho -, quanto os imigrantes involuntários - refugiados ou que aqui estão por razões humanitárias.

Os refugiados e os que imigram após catástrofes naturais trazem consigo uma especificidade ainda maior da experiência migratória, dado o caráter involuntário e imprevisível do deslocamento. Ao partir, levam consigo pouco daquilo que caracterizava sua identidade, como seus hábitos cotidianos, profissão e redes de apoio. Compreende-se aqui a identidade como arranjo psicossocial, sempre dinâmico, relacional e em constante construção. Trata-se de um enlace entre o subjetivo e o objetivo, uma complementaridade entre história do sujeito e a História (Erikson, 1968). Esse tipo de deslocamento geralmente é envolto por um sofrimento psicológico importante, que pode ser vivido como traumático, tendo em vista as situações de violência, de desastres naturais e mudanças abruptas às quais essas pessoas foram expostas, direta ou indiretamente, e que motivaram a partida dopaís de origem. É importante salientar a diferença entre os dois tipos de migração, uma vez que o planejamento da partida, a existência de períodos de transição e de projeção do futuro no novo país não pôde ocorrer nos casos de migração involuntária. Esses processos têm papel fundamental na elaboração das etapas - e das perdas respectivas - da migração e na adaptação ao país de acolhimento (Martins-Borges, 2013). Logo, a sensibilidade intercultural é imprescindível no acolhimento e na atenção a essas pessoas.

Entre 2005 e 2010, São Paulo, Goiás e Santa Catarina apresentaram, respectivamente, os maiores saldos migratórios entre os estados brasileiros (IBGE, 2010). Isso quer dizer que, em tais estados, o número de imigrações - pessoas que entraram - foi maior que o de emigração - pessoas que partiram. No que concerne a números, segundo o Censo IBGE 2010, Santa Catarina contava com aproximadamente 11.600 residentes estrangeiros, o que o configurava como o sexto estado brasileiro em número total de imigrantes. Destes, 3% eram imigrantes que frequentavam a Universidade Federal de Santa Catarina (Martins-Borges et al., 2012).

Ao levar em consideração o número crescente de pessoas que passam pela experiência migratória e se instalam na cidade de Florianópolis, bem como a ausência de políticas públicas e serviços destinados a essa população, tornou-se fundamental a criação de um espaço que desse visibilidade à problemática das migrações. Assim, a Clínica Intercultural foi fundada em 2012, na modalidade de projeto de extensão universitária. O projeto constitui uma das ações propostas pelo Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas (NEMPsiC) do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. O NEMPsiC busca apreender os impactos psicológicos decorrentes da imigração e sua relação com o processo de integração do sujeito no país de acolhimento. Nesse contexto, a proposta principal da Clínica Intercultural é a de possibilitar uma escuta qualificada, por meio de atendimentos psicológicos, a imigrantes internacionais e refugiados que atualmente residem na comunidade local. O presente relato de experiência ocupa-se das atividades desenvolvidas pela Clínica Intercultural, no período de 2012-2015.

 

Atividades

As atividades da Clínica Intercultural foram iniciadas no primeiro semestre de 2012. Um levantamento preliminar demonstrou que 3% dos residentes migrantes em Santa Catarina pertenciam à comunidade acadêmica (Martins-Borges et al., 2012). Pelo fato de o projeto ter um caráter de extensão universitária, os primeiros abarcados pelas atividades desenvolvidas - em decorrência da proximidade física - foram estudantes estrangeiros dos programas de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina.

 

Mapeamento institucional

Na primeira etapa do projeto, estabeleceu-se contato com algumas instâncias da universidade de pertencimento: Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), Departamento de Administração Escolar (DAE) e a Secretaria de Relações Internacionais (SINTER), para a elaboração de um levantamento do número de estudantes estrangeiros ativos na universidade, bem como de suas nacionalidades. Com base em tal levantamento documental, realizado no primeiro semestre de 2012, foi possível delinear o perfil dos estudantes estrangeiros em cursos de graduação na universidade, o que trouxe maior visibilidade para essa população. Os dados mostraram um total de 360 estudantes, entre intercâmbio, convênio e ingresso por vestibular. Dos 37 países de origem registrados, Portugal, com 56, Haiti, com 31, e Cabo Verde, com 24 estudantes, são os três primeiros com maior representação, revelando uma importante diversidade cultural.

 

Formação teórica

Concomitante ao mapeamento, foram realizados, semanalmente, encontros preparatórios, levantamentos bibliográficos, leituras orientadas e discussões acerca da temática intercultural. Essas atividades, com o objetivo principal de sensibilizar, informar e capacitar, contaram com a presença de estudantes da graduação e pós-graduação e profissionais da rede de assistência social.

 

Apadrinhamento e acolhimento de estudantes estrangeiros

Em 2013, viabilizou-se o programa de "Apadrinhamento" e o "Grupo de Acolhimento", ambos direcionados, inicialmente, aos estudantes estrangeiros do curso de Psicologia. Por meio do "Apadrinhamento", os alunos estrangeiros, em mobilidade acadêmica, contaram com o apoio de integrantes do projeto de extensão nos primeiros trâmites de chegada no Brasil e na Universidade, como auxílio para encontrar moradia, informações sobre a cidade, sobre a vida estudantil em suas diversas esferas e informações referentes ao curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. O "Grupo de Acolhimento", um grupo aberto, constituído por alunos estrangeiros de variados cursos, realizou cinco encontros, mediados por dois integrantes da Clínica Intercultural. No Grupo, buscou-se acolher e trocar percepções e compreensões acerca das experiências de chegada, de adaptação e de estadia no Brasil.

 

Implicação social e política

No início de 2014, a Clínica Intercultural participou de um importante momento político nacional, a 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR), uma iniciativa inovadora organizada pelo Ministério da Justiça na abordagem da questão migratória no Brasil. Foi uma oportunidade de estabelecimento de parcerias, troca de experiências e debates acerca das políticas atuais sobre o acolhimento de imigrantes e refugiados. De modo geral, as proposições giraram em torno de ações de sensibilização de equipes de gestores e profissionais, principalmente das áreas da saúde, assistência social e educação, bem como da população em geral, sobre os processos de migração e refúgio; do aperfeiçoamento dos meios de informação e divulgação acerca do funcionamento dos sistemas de saúde (SUS) e social (SUAS) brasileiros; da criação de um banco de intérpretes, a fim de garantir a mediação linguística e cultural, entre outras. Em função de a Clínica Intercultural inserir-se no âmbito da atenção psicológica, as proposições e os debates são frequentemente atravessados pelas questões de saúde mental.

Com o passar do tempo, além de dar continuidade às atividades em andamento, o projeto definiu novos objetivos, o que contribuiu para a expansão de seu campo de atuação e para o alcance de maior número de pessoas contempladas pelo trabalho realizado. Além do trabalho clínico, propriamente dito, a Clínica Intercultural pôde aumentar sua rede de parcerias, por exemplo, com a Pastoral do Migrante de Florianópolis e com o Grupo de Apoio aos Imigrantes e Refugiados em Florianópolis e região (GAIRF), grupos que se propõem a pensar e operacionalizar ações de acolhimento e acompanhamento aos refugiados e imigrantes, bem como solicitar o posicionamento do poder público sobre o tema. A participação no GAIRF resultou em parcerias com a Cáritas Regional Santa Catarina, a Ação Social Arquidiocesana (ASA), a Coordenação Arquidiocesana de Pastoral, a Câmara Municipal de Florianópolis, o Centro Islâmico de Florianópolis e a associação de haitianos em Florianópolis - Kay Pa Nou. Essas parcerias possibilitaram o estabelecimento de uma rede de atenção às demandas da população em questão, que não são exclusivamente psicológicas, certamente.

 

Implantação do dispositivo clínico de atendimento psicológico

As abordagens interculturais (psicologia clínica intercultural, etnopsiquiatria, etnopsicanálise) compõem o corpo teórico e prático utilizado na Clínica Intercultural, inspirados nos trabalhos de Devereux (1967, 1972), Nathan (1986, 1994) e Moro (1998). O modelo utilizado baseia-se no dispositivo clínico desenvolvido por Martins-Borges e Pocreau (2009) no Service d'Aide Psychologique Spécialisée aux Immigrants et Réfugiés (Sapsir©, Université Laval, Québec, Canadá); modelo que, atualmente, integra a rede de saúde pública de Québec, Canadá. O modelo de intervenção proposto é formado por um grupo de terapeutas, de profissões e origens culturais diferentes. O grupo é composto por um terapeuta principal, um coterapeuta principal, um mediador cultural/ intérprete (quando necessário), o profissional que encaminhou o paciente e outros coterapeutas. O grupo tem como funções principais o suporte psicológico e cultural e a restauração de importantes aspectos da identidade. Assim, o grupo funciona como "envelope cultural" - que protege, contém e evita o face a face - o dispositivo promove um espaço de transição entre dois mundos que se aproxime da representação cultural das pessoas que ali são atendidas (Pocreau e Martins-Borges, 2013).

A Clínica Intercultural, como o Sapsir©, no Canadá, objetiva oferecer atendimento especializado às pessoas que passaram pela experiência migratória e hoje necessitam de um acompanhamento psicológico. É um espaço de escuta sensível à diferença e destinado aos sujeitos cujos sintomas se manifestam por uma codificação da cultura de origem que causa distanciamento ou mal-estar nos profissionais do país de acolhimento. É justamente pela via dos elementos culturais fundantes que as intervenções na Clínica Intercultural partem (Martins-Borges e Pocreau, 2009).

Os atendimentos são oferecidos no Serviço de Atenção Psicológica (SAPSI) da Universidade Federal de Santa Catarina e iniciaram em outubro de 2012. O SAPSI é uma clínica-escola que acolhe estagiários e projetos de extensão do programa de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia. A Clínica Intercultural iniciou com 3 integrantes/terapeutas e, no ano de 2014/2015, conta com 9 membros, entre alunos de graduação, pós-graduação, profissionais da saúde do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) do município e professores, todos na área da Psicologia. O projeto não conta com recursos financeiros provenientes de qualquer instância governamental ou não governamental e a atuação dos profissionais é de natureza voluntária.

No que se refere aos atendimentos psicológicos, desde o seu início até março de 2015, foram atendidos 27 pacientes, de 16 diferentes nacionalidades, totalizando um número de aproximadamente 700 atendimentos. Os pacientes foram encaminhados pelas instituições parceiras ou chegaram por demanda espontânea. Cabe ressaltar que, por se tratar, em sua maioria, de alunos estrangeiros devidamente matriculados em alguns programas da universidade, os atendimentos puderam ser realizados em português. Apenas três atendimentos necessitaram da participação de um mediador cultural/intérprete. Quando a presença do mediador é necessária, espera-se dele não apenas a tradução da língua, mas, igualmente, a validação de fatos e práticas culturais, que escapam ao conhecimento dos terapeutas e que podem ocupar um lugar determinante no sintoma apresentado.

Aqueles que buscaram atendimento na Clínica Intercultural, via de regra, não são os alunos em condições privilegiadas de mobilidade (econômicas, familiares, com possibilidade de livre retorno à terra natal), mas sim imigrantes em situação de vulnerabilidade psicológica e de precariedade social, como, por exemplo, haitianos, que, em decorrência do terremoto de 2010, foram acolhidos pelo Brasil com visto por razões humanitárias ou que, após o ingresso como estudantes de mobilidade acadêmica, solicitaram a permanência motivados pela impossibilidade  ou dificuldades extremas  de um retorno ao país de origem. Atualmente, na medida em que a comunidade e outras organizações tomam conhecimento da existência da Clínica Intercultural, seu espectro de ação tem sido ampliado, o que pode ser verificado por meio do aumento da procura para atendimento psicológico oriundo de pessoas externas à comunidade universitária.

 

Considerações finais

Das reflexões acerca da adaptação das práticas de saúde para o acolhimento da população imigrante em Florianópolis, surge a Clínica Intercultural. No entanto, antes de intervir em busca de mudanças nessas práticas, percebeu-se importante a construção de um espaço físico e existencial para os imigrantes no presente contexto social e político. O foco da Clínica Intercultural passa a ser, nas primeiras etapas do processo de acolhimento, o de contribuir com o estabelecimento de redes sociais e de apoio, ofertar atendimento psicológico e organizar/participar de grupos de discussão sobre as dimensões psicológicas da imigração. Ao privilegiar tais atividades, a Clínica Intercultural contribui para a sensibilização à temática e para a construção de um espaço concreto - e no imaginário local - para os imigrantes e refugiados aqui acolhidos. À medida que o Brasil se apresenta, no plano internacional, como um país que deseja se tornar uma terra de acolhimento para imigrantes e refugiados, é fundamental que condições de acolhimento, de integração e de oferta de serviços sejam também pensadas e adaptadas.

Observa-se que a psicoterapia, em situações interculturais, cumpre sua função de auxílio no enfrentamento das dificuldades cotidianas, vivenciadas por essa população, além de um trabalho específico e mais elaborado no que diz respeito às questões de natureza psicológica (traumas, medos, inseguranças, etc.). O dispositivo clínico proposto ocupa o lugar privilegiado de escuta daquilo que remete ao país de origem, às lembranças traumáticas e, principalmente, aos elementos culturais constituintes da identidade e expressos no sintoma. É importante salientar que a preocupação central das reflexões aqui expostas está voltada para o percurso migratório de pessoas que, por força maior, tiveram que deixar seu país de origem.

A Clínica Intercultural compreende que a vulnerabilidade psíquica decorrente do processo migratório esbarra em questões da realidade, como condições de moradia, trabalho, educação, acesso à saúde e garantia de direitos. Nesse sentido, seu envolvimento com outras organizações, outros grupos, é fundamental para a efetividade de sua ação, pois muitos estrangeiros precisam de uma escuta qualificada para conseguirem enfrentar as dificuldades inerentes aos diversos âmbitos do processo migratório. Mas, para que possam investir em uma psicoterapia, é preciso que as condições mínimas de sobrevivência estejam contempladas.

Apesar de reconhecer os seus limites de intervenção - inerentes ao processo psicoterápico propriamente dito, às dificuldades com a língua, entre outras -, o fato de ser uma prática baseada em constante estudo, discussão, supervisão e trocas com equipes internacionais contribui para o seu desenvolvimento e sua implantação no contexto regional. Isso possibilita que a equipe esteja frequentemente se avaliando e buscando preencher as lacunas ao longo do percurso, ainda em construção.

O objetivo da Clínica Intercultural, em longo prazo, não é o de construir lugares específicos para o acolhimento das demandas em psicologia dos imigrantes e refugiados. Agir assim poderia levar ao aumento do isolamento social e à segregação ainda maior dessa população. A proposta é pensar em uma integração contínua, inclusive nos serviços públicos. Cabe ressaltar que, no Canadá, país no qual a questão migratória ocupa um lugar central nas preocupações políticas e sociais há décadas, a equipe do Sapsir©, modelo de referência da Clínica Intercultural, consagra-se, exclusivamente, às situações clínicas mais complexas, à formação de profissionais de saúde e da assistência social bem como às comissões institucionais. Esse é o caminho que a Clínica Intercultural espera percorrer, ou seja, o da sensibilização à integração de novas práticas em saúde; tal processo passará, com certeza, pela formação teórica e prática de novos profissionais, no meio acadêmico e na comunidade.

A Clínica Intercultural também se constitui como um espaço de formação de profissionais, não apenas teórica, mas principalmente prática, voltada especificamente para essa demanda. Assim, pelas características de suas atividades e parcerias, a Clínica Intercultural constitui um espaço de escuta qualificada para os imigrantes e refugiados, um espaço de formação acadêmica, de capacitação profissional e de sensibilização da problemática das imigrações contemporâneas no Brasil.

 

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Submetido: 30/04/2015
Aceito: 15/07/2015

 

 

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