SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue2Intercultural clinic: hearing the differenceMonogamy: winnicottian interpretations author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.2 São Leopoldo Dec. 2015

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2015.82.08 

ARTIGOS

 

Campo e função dos sentimentos da terapeuta na relação terapêutica

 

Scope and function of the therapist's feelings in the therapeutic relationship

 

 

Rosânia Ataíde Dourado SantoI; Luc VandenbergheII

ICentro de Referência Especializado em Assistência Social. Rua do Contorno, Qd 02, Lote 05, 75195-000, Bonfinópolis, GO, Brasil. rosaniadourado54@gmail.com
IIPontifícia Universidade Católica de Goiás. Rua 232, 128, 2º andar, Setor Leste Universitário, 74605-140, Goiânia, GO, Brasil. luc.m.vandenberghe@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo aborda o papel dos sentimentos do terapeuta e como estes podem ser relevantes no processo terapêutico. Pretende-se verificar como a consideração cuidadosa dos sentimentos do terapeuta ajuda a fazer opções terapêuticas bem direcionadas. Para isso, momentos específicos de dois casos conduzidos de acordo com a psicoterapia analítica funcional são discutidos. A análise se concentra nos conceitos de T1 e T2 que caracterizam os comportamentos do terapeuta no modelo teórico da psicoterapia analítica funcional. Fragmentos dos casos são analisados para verificar como comportamentos improdutivos da terapeuta (T1) e comportamentos terapêuticos efetivos (T2) se relacionam com a discriminação dos sentimentos da terapeuta. O material ilustra que a observação dos sentimentos da terapeuta pode ajudar a detectar contingências problemáticas no relacionamento com o cliente e prevenir condutas terapêuticos ineficientes. Além disso, a discriminação adequada dos sentimentos que o cliente evoca na terapeuta pode ajudar na escolha de intervenções terapêuticas mais produtivas. Conclui-se que terapeutas devem cultivar uma atenção especial aos seus sentimentos, porque estes podem conter dicas sobre os problemas do cliente, podem esclarecer o que está ocorrendo na sessão e podem ajudar a atuar com sensibilidade.

Palavras-chave: sentimentos, relação terapêutica, psicoterapia analítico funcional.


ABSTRACT

The present study deals with the role of the therapist's feelings and with how these can contribute to the therapeutic process. How can careful discrimination of the feelings of the therapist help make well-directed choices during treatment? With this aim, specific moments in two cases of functional analytic psychotherapy are discussed. The analysis concentrates on the concepts of T1 and T2 that characterize the behavior of the therapist in functional analytic psychotherapy's theoretical model. Fragments of the treatments analyzed show how counterproductive therapist behavior (T1) and effective therapist behavior (T2) relate to the discrimination of the therapist's feelings. The material shows that keen observation of the therapist's feelings can help detect tricky contingencies in the relationship with the client and thus prevent inefficient therapeutic conduct. Besides, the precise discrimination of the feelings the client evokes in the therapist can help choose interventions that are more productive. The article concludes that therapists need to develop definite attention to their feelings, because these contain clues concerning the client's problems, can clarify what is happening in session and can help conduct treatment in more sensitive ways.

Keywords: feelings, therapeutic relationship, functional analytic psychotherapy.


 

 

O presente artigo propõe reflexões sobre uma função particular que o sentimento de uma pessoa para outra pode assumir em um tipo de relacionamento muito peculiar, a saber, a relação terapêutica. O relacionamento entre cliente e terapeuta é elemento preditor dos resultados do tratamento, independente da modalidade da terapia (Norcross e Wampold, 2012). Na teorização da terapia comportamental, a reflexão sobre o impacto que a sessão tenha sobre o terapeuta não é nova (Banaco, 1993), e recebeu mais atenção na literatura comportamental recente (Kanter et al., 2011; Vandenberghe e Silveira, 2013).

Um sentimento é uma ação sensorial, como também ver ou ouvir. Discriminar aquilo que sentimos e falar sobre isso são comportamentos aprendidos, produtos da comunidade verbal que nos ensina a descrever nossa vivência interior (Rose, 1982). Assim como a importância de ver e ouvir o que ocorre em sessão, também é importante que o terapeuta possa usar seus sentimentos como uma maneira de perceber o que ocorre entre ele e o cliente. Porém, ele deve treinar-se na discriminação cuidadosa do que sente e na identificação das contingências que são responsáveis pelos sentimentos (Sousa e Vandenberghe, 2007). Não são os sentimentos em si, mas a detecção e análise das contingências que os evocaram que ajudarão o terapeuta na sua atuação.

A importância da relação terapêutica é consenso para os terapeutas comportamentais, porém, há diferenças quanto ao papel por ela desempenhado. Pode ser um meio para facilitar o uso ou aumentar a eficácia das técnicas terapêuticas, pode tornar o terapeuta mais reforçador, ou promover maior engajamento e motivação do cliente na terapia (Goldfried e Davison, 1994). O presente artigo aborda um outro lado da relação terapêutica, a saber, o envolvimento pessoal do terapeuta na relação com o cliente e a questão de como a subjetividade desse profissional influencia o processo clínico.

Várias terapias consideram a contratransferência1 como elemento capaz de alterar o curso da terapia. A exemplo, a terapia cognitiva descreve a contratransferência como uma forma irracional de o terapeuta responder ao cliente, baseado em crenças e expectativas truncadas ou demasiadamente generalizadas. Ela se mostra nas emoções, ações e pensamentos automáticos do terapeuta a respeito do cliente (Freeman et al., 1990). Apesar de expressar problemas do terapeuta, a contratransferência pode ser usada para examinar as idiossincrasias na relação terapeuta-cliente. Ela é, de acordo com o modelo cognitivo, resultado de esquemas mentais preexistentes do terapeuta, as quais são ativadas pelo cliente. Por isso, as reações de contratransferência podem ser usadas como pistas para detectar aspectos da problemática do cliente que ativam os esquemas do terapeuta (Layden et al., 1993).

Outros autores dispensam o conceito de contratransferência, para concentrarem-se na interação entre as duas pessoas envolvidas. Linehan (1988) entende o relacionamento como um processo transacional no qual o terapeuta e o cliente exercem e recebem influências recíprocas que podem ser carregados de sentido para ambos, além de promover mudanças, tanto no terapeuta quanto no cliente. A relação terapêutica é um relacionamento pessoal capaz de contribuir para a vida do cliente, independentemente das técnicas usadas no tratamento. Para cada díade terapeuta-cliente, esse relacionamento é singular, possui suas características únicas e se desenvolve espontaneamente, enquanto mudanças ocorrem nas vidas de ambos e na interação no seio da díade.

Diferentes vertentes da terapia comportamental (Swales e Heard, 2007; Tsai et al., 2011) e cognitivo-comportamental (Layden et al., 1993) enfatizam que a forma como o cliente se relaciona com o terapeuta reflete os padrões de interação do cliente nos seus relacionamentos significativos fora da terapia. Assim, o comportamento do cliente na sessão oferece oportunidades poderosas para trabalhar processos interpessoais de grande importância para a vida do cliente.

Essa visão foi elaborada em detalhes por Kohlenberg e Tsai (1987), que destacam que o relacionamento entre terapeuta e cliente é um ambiente social real no qual o cliente enfrenta as mesmas dificuldades que nos relacionamentos do seu cotidiano. Por isso, essas dificuldades podem ser trabalhadas diretamente no relacionamento com o terapeuta. O foco da mudança terapêutica são os comportamentos clinicamente relevantes (indicados pela sigla inglesa CRB - Clinically Relevant Behavior). Os CRB1 são comportamentos problema evocados na sessão. Os CRB2 são as melhorias do comportamento que ocorreram na sessão. A ênfase primordial é colocada na noção de que, quando uma melhora ocorre, a resposta genuína e espontânea do terapeuta, sendo a consequência natural dessa mudança, libera o reforço natural do novo comportamento do cliente. As consequências reforçadoras que ocorrem na sessão são válidas, do ponto de vista terapêutico, quando se assemelham funcionalmente àquelas que o cliente pode conseguir fora do consultório com a mesma classe de comportamentos. Assim, a resposta do terapeuta a um CRB é a oportunidade para produção de mudança, a qual deverá se generalizar para outros setores da vida do cliente (Tsai et al., 2011).

Os conceitos de T1 (comportamento problema do terapeuta) e T2 (comportamentos-alvo do terapeuta), descritos por Kanter et al. (2011), se assemelham à contratransferência conceituada pela terapia cognitiva. Porém, não são atribuídos a crenças do terapeuta. O comportamento problema do terapeuta consiste em ações que não ajudam o cliente e que podem prejudicar o progresso terapêutico. Um terapeuta pode, por exemplo, involuntariamente, limitar a autonomia do cliente, por ter aprendido que o terapeuta deve manter controle firme sobre o que ocorre na sessão. Ele pode dedicar tempo excessivo a questões pouco relevantes para o cliente, por se sentir perito nesses temas, ou evitar assuntos que são muito relevantes para o cliente, mas, em relação aos quais ele, o terapeuta, sente-se inseguro (Vandenberghe e Silveira, 2013). Reforçar comportamento do cliente que esteja de acordo com a ordem social estabelecida, que condiz com o papel de gênero ou com conceitos culturais provenientes do grupo do terapeuta, sem verificar se esse comportamento vai ajudar o cliente com seus problemas é outro exemplo de T1 (Fidelis e Vandenberghe, 2014).

Os comportamentos-alvo do terapeuta são ações que contribuem para o progresso do cliente na terapia. São diferentes para cada cliente, dependendo das necessidades e objetivos que levaram a pessoa a procurar terapia. Muitas vezes, o profissional precisa desenvolver T2s que ainda não fazem parte do seu repertório terapêutico, mas que são essenciais para que possa ajudar o cliente a progredir em busca de seus alvos. Nesses casos, o terapeuta precisa monitorar seus T2s ao observar a melhoria das suas contribuições nas sessões com o cliente. Um T2 pode exigir que o terapeuta enfrente sentimentos difíceis, decorrentes da sua história ou contexto de vida. Às vezes, trata-se de correr um risco, permitir-se ser vulnerável, revelar o que sente por um cliente (Kanter et al., 2011). O terapeuta deve estar aberto para seus sentimentos frente ao cliente e verificar como e com quais comportamentos o cliente os evoca. Fazer essas observações demanda que o terapeuta tome recuo, criando um distanciamento psicológico suficiente, a fim de poder situar suas respostas emocionais, no contexto do relacionamento, e entender o que os sentimentos que o cliente provoca revelam a respeito dos problemas do cliente (Vandenberghe e Silveira, 2013).

Considera-se que T1s são evocados por semelhanças entre a relação com o cliente e outras relações que o terapeuta tem com clientes, ou até com amigos, familiares e demais pessoas significativas, ou são influenciados por regras decorrentes da formação ou da cultura do terapeuta. São resultados da história de aprendizagem do terapeuta, portanto, decorrem das contingências e dos repertórios pessoais que o terapeuta leva para a sessão. Dessa forma, é primordial que o terapeuta tenha uma compreensão clara dos seus T1s e T2s que são relevantes para cada caso, a fim de poder interagir com os clientes de forma terapêutica (Kanter et al., 2011). Além disso, argumentamos que o terapeuta deve explorar sua própria história, suas convicções e suas feridas emocionais para poder entender o que seus T1s e T2s trazem para a relação terapêutica e quais podem ser as implicações disso para o cliente.

O objetivo deste estudo é refletir sobre como os sentimentos do terapeuta podem ajudar no manejo de T1s e T2s na condução do processo terapêutico. O propósito é o de alertar os clínicos para a importância de monitorar suas sensibilidades e seus sentimentos ao conduzir as terapias, como também para a contribuição importante que uma análise sistemática das sensibilidades e dos sentimentos do terapeuta pode trazer para o aprimoramento da prática clínica.

 

Método

Participantes

Esse estudo contou com a participação de duas clientes e uma terapeuta. A primeira cliente será identificada com o nome fictício de Lília e a segunda participante, com o nome de Elisa. A terapeuta é a primeira autora deste artigo.

Lília, 40 anos, casada, mãe de três filhos, procurou ajuda para aprender a lidar com o comodismo e a passividade do esposo. Tinha receio que, por conta dessa dificuldade dela, a relação entre os dois piorasse. Lília viveu sua infância e adolescência em uma cidade do interior do Nordeste. Era a penúltima filha de uma prole grande. O pai era alcoólatra, não tinha compromisso com a criação dos filhos e não se preocupava com as necessidades deles. Ela relatou que ele frequentemente agredia a mãe dela fisicamente. Casou-se antes dos seus 18 anos, e poucos anos depois, mudou-se para uma capital do Centro-Oeste.

Nos primeiros anos de casamento, ela agredia com frequência o esposo verbal e fisicamente. Entretanto, conforme os filhos foram crescendo, ela se esforçou para controlar sua impulsividade e agressividade, já que se preocupava com a imagem que poderia passar aos filhos. Aprendeu a guardar a ira e a frustração dela para si mesma, ficando "de cara virada" e conversando com o esposo apenas o indispensável. Supôs que o esposo sabia exatamente o que ela estava sentindo.

Sempre exerceu sua profissão e dividiu as despesas da casa com o esposo. Contudo, diz que esse não tinha planos em longo prazo e não se preocupava com a formação dos filhos. Descreve o esposo como trabalhador, companheiro e paciente. Essa paciência ora era vista por ela como uma característica boa - ela o preza por nunca ter revidado suas agressões - ora como característica ruim, sinônimo de passividade.

Elisa, 55 anos, casada, mãe de três filhos, procurou ajuda devido a medos de chuva e de dormir sozinha que datavam da sua adolescência. Afirma que as duas situações provocavam nela um sofrimento indescritível. Sentia-se dependente, fraca e incapacitada. A cliente é a filha caçula de cinco irmãos. Cresceu em uma capital onde continuou sua vida adulta. Durante a infância e a adolescência, recebeu muita proteção e cuidados. Apesar de nunca ter tido problemas de saúde, os pais e o irmão a viam como "fraquinha". Dividia a cama com a irmã, pois tinha medo de dormir sozinha até quando se casou, aos dezenove anos. A profissão do esposo demandava muitas viagens, e ele preferia que ela ficasse em casa, cuidando dos filhos. Ela o considera um ótimo companheiro, pois sempre procurou atender às suas necessidades.

Desde a adolescência, o medo da chuva a perturbava, fazendo com que ela chegasse a se esconder dentro do guarda-roupa. Afirma que se entristece quando ameaça chover, tranca todas as portas e não faz nada até a chuva acabar. Apenas uma única vez em sua vida teve ninguém para dormir com ela, e nessa noite não conseguiu fechar os olhos. Atualmente, o esposo está aposentado e costuma viajar com frequência para uma chácara do casal. Quando não pode acompanhá-lo, solicita a um filho, nora ou neto para passar a noite com ela.

Há uns anos recebeu o diagnóstico médico de síndrome do pânico. Sentiu-se melhor quando estava em tratamento medicamentoso, contudo, encerrou o tratamento por conta própria, já que temia ficar dependente do remédio.

Procedimentos

Os dados para esses estudos de caso foram colhidos por observação participante durante as sessões em que a primeira autora atuava como terapeuta. A observação participante é definida como o processo de aprender por meio de exposição e envolvimento rotineiro em atividades da vida real, envolvendo participantes no setting de pesquisa (Schensul et al., 1999). O pesquisador engaja-se inteiramente no ambiente ao observar as interações, dialogando com os participantes sobre o que está acontecendo. Inicia interações, com plena consciência que está gerando mudança nos processos que está observando, permitindo que essas mudanças ajudem a esclarecer os processos estudados (Schnell, 2001).

Na presente pesquisa, a observação participante ocorreu pela imersão pessoal da primeira autora na realidade da prática clínica e pela sua entrega na relação terapêutica, alternando com momentos de recuo que permitiram a reflexão teórica sobre as experiências relevantes. Para o segundo autor, o movimento de imersão-recuo se deu pelo seu envolvimento na supervisão dos casos que produziram o material com qual o presente estudo foi construído e pelo distanciamento temporário dessa vivência, com o intuito de analisar o que estava ocorrendo nos dados colhidos.

As participantes eram atendidas semanalmente em um consultório de uma clínica de psicologia comunitária. Foram realizadas sete sessões com a participante Lília e onze sessões com Elisa. Após cada sessão, a terapeuta registrou os momentos em que usou seus sentimentos para guiar o processo. Encontrou semanalmente com o segundo autor, em sessões de supervisão, nas quais, juntos, analisaram problemas (T1) e comportamentos-alvo (T2). Os conceitos sensibilizadores utilizados na análise do material foram encontrados no sistema conceitual da psicoterapia analítica funcional (Kanter et al., 2011). São eles: O1s: problemas da vida diária do cliente, pelos quais busca tratamento. O2s: comportamentos-alvo, que devem constituir melhoras na vida diária do cliente; CRB1s: problemas do cliente que ocorrem em sessão e que pertençam às mesmas classes de comportamento que os O1s do cliente. CRB2s: progressos clínicos que ocorrem na sessão, pertencendo às mesmas classes comportamentais que os O2s do cliente. T1s: comportamentos contraterapêuticos ou ineficientes do terapeuta. T2s: comportamentos que o terapeuta precisa desenvolver no tratamento de um dado cliente.

Logo, identificou-se momentos em que a terapeuta usou seus sentimentos como indícios para detectar T1s ou T2s. Esses momentos foram analisados em diálogo entre os autores, e seu significado foi buscado no contexto do que estava ocorrendo então na relação terapêutica. Entre os fragmentos de terapia assim analisados, os autores escolheram aqueles que podiam exemplificar formas de transformar os sentimentos do terapeuta em ferramentas produtivas para o trabalho terapêutico e que podem fomentar uma discussão mais aprofundada acerca da relevância desses sentimentos para a prática da terapia comportamental.

 

Resultados

Lília

Lília estava economizando para uma reforma da casa, quando o esposo fizera um financiamento pesado para troca de carro. Entretanto, ela guardava para si o que estava sentindo diante daquela situação (O1). Sempre que era questionada pela terapeuta sobre seus sentimentos, abaixava a cabeça e dizia não saber o que estava sentindo, às vezes manifestando um riso nervoso (CRB1). Diante dessa situação, a terapeuta sentiu-se sozinha e sem ajuda da cliente no processo terapêutico.

Lília, além de trabalhar fora, ficava encarregada dos serviços domésticos sozinha. A terapeuta combinou com Lília que elaborasse um esquema de divisão das tarefas entre as quatro pessoas que viviam na casa e que tivesse uma conversa franca com o esposo, na qual deixaria claro o que sentia. Na sessão seguinte (após um intervalo de duas semanas), Lília afirmou que não tinha tido a conversa (O1), pois ainda estava elaborando aquela situação. Isso provocou na terapeuta sentimento de raiva, porque parecia que a cliente estava agindo com descaso em relação ao que foi combinado. Preparou-se para ensinar para a cliente como sair da sua passividade.

Em supervisão, notou-se que o relato de "estar elaborando a situação" poderia ser um CRB2, já que a cliente estava se abrindo para a terapeuta, relatando algo da sua vivência interior. Invalidar esse passo feito pela cliente, apressando-a de implementar as mudanças combinadas, poderia ser um T1, sinalizado pelos sentimentos de solidão e raiva que acompanharam a determinação da terapeuta. Em vez disso, a terapeuta optou por desenvolver uma atitude de abertura recíproca e por expor mais sua visão sobre situações nas conversas com Lília (T2).

Lília se esqueceu da próxima sessão e não compareceu. A terapeuta se atentou para que esse esquecimento da cliente pudesse ser um CRB1, haja vista relatos que Lília se esquecia de compromissos com outras pessoas. Em muitos casos, o esquecimento ajudou a evitar situações aversivas. A falta de Lília provocou na terapeuta sentimento de frustração e o pensamento de que a cliente não estava levando a sério a terapia. Essa passividade aparentava ser um CRB1, e a terapeuta buscou estratégias para não reforçá-la. No entanto, na sessão seguinte, Lília atribuiu o esquecimento à alteração em sua rotina.

Ao estar atenta ao seu sentimento de frustração, ficou mais claro para a terapeuta que a inferência feita por ela resultava do seu plano de tratamento preconizado, e não das necessidades da cliente. Prestando atenção aos seus sentimentos, a terapeuta detectou que sua conclusão tinha sido influenciada pelo comportamento da cliente não se encaixar na estratégia clínica planejada pela terapeuta. Essa observação a ajudou a se desapegar do seu julgamento (T1) a respeito do envolvimento de Lília na terapia.

Na semana seguinte, Lília tinha feito o esquema de divisão de tarefas e já estava se sentindo menos sobrecarregada e mais justa consigo (O2). A conversa que ia ter com o esposo sobre o financiamento, Lília disse ter adiado novamente. Diante disso, a terapeuta sentiu-se mais confortável na sessão para incentivar que a cliente continuasse agindo em busca de sua própria forma de mudança (T2). A terapeuta não fez julgamento sobre a atitude da cliente de continuar adiando a conversa. Em vez disso, abriu espaço para que a cliente falasse de si (T2). Indagou à cliente o que sentiu a respeito da conversa com o esposo. Lília disse que considerava a conversa importante, porque falaria das suas prioridades e se sentiria mais respeitada. Caso não tivesse a conversa, sentiria que sua opinião era indiferente para o esposo. Com relação ao objetivo de compartilhar seus sentimentos com o parceiro (O2), a discriminação dos seus sentimentos no diálogo com a terapeuta era um CRB2.

Na próxima sessão, a cliente relatou que a conversa ocorreu e que o esposo foi acolhedor e a pediu a fazer aquilo mais vezes, já que não podia adivinhar o que ela pensava e sentia. Combinaram de incorporar essa prática na sua vida de casal, tirando regularmente um tempo a sós para falarem de si (O2).

Elisa

Desde as sessões iniciais, Elisa se mostrou ansiosa para obter uma solução para seus temores. Embora a terapeuta tivesse falado, desde a primeira sessão, que os prováveis resultados seriam gradativos, a cliente sempre verbalizava (muito docilmente) que queria logo se livrar daqueles medos e que estava contando com a terapeuta (CRB1). Assim, a terapeuta passou a se sentir culpada, pois pensou que seu trabalho estava sendo ineficiente.

Na sexta sessão, a terapeuta ofereceu uma interpretação dos motivos pelos quais a cliente agia daquela forma. Verificou-se que, durante toda infância, adolescência e até agora, ela requeria que outros resolvessem seus problemas e assim ela não era obrigada a enfrentar situações aversivas (O1). A terapeuta percebeu que suas tentativas de tirar rapidamente os medos da cliente, a fim de cessar os sofrimentos dela e livrá-la de situações desagradáveis, se assemelhavam ao comportamento das pessoas em torno de Elisa. Os sentimentos de culpa alertaram a terapeuta para a necessidade de reconsiderar sua atuação. Percebeu-se agindo exatamente como as demais pessoas em volta da cliente, sendo apenas mais uma "cuidadora" que impedia Elisa de encarar seus problemas (T1).

Parecia que Elisa aceitava como evidente os esforços que as pessoas faziam para resolver os problemas dela (O1), sem se perguntar como se sentiam em relação a essa cobrança. Decidiu-se, na supervisão, que a terapeuta podia permitir que Elisa entrasse em contato com as consequências das suas demandas sobre os sentimentos das pessoas que queriam ajudá-la. Isso podia ser feito deixando claro como o CRB1 afetava a terapeuta. Na sétima sessão, a terapeuta compartilhou com a cliente seu sentimento de culpa por não conseguir oferecer uma técnica para livrar Elisa de seus medos (T2).

Na sessão posterior, Elisa apresentou uma postura mais questionadora e participativa. Disse ter pensado sobre a última sessão e estava determinada a conseguir enfrentar o medo usando seus próprios recursos (CRB2). A terapeuta não se preocupou mais em encontrar um método para resolver os problemas de Elisa. Em vez disso, procurou ajudá-la a entrar em contato com os recursos que Elisa tinha à disposição para enfrentá-los (T2). Por fim, a terapeuta percebeu que o processo estava mais completo e se sentiu menos pressionada.

Logo nessa semana, Elisa registrou o primeiro O2 importante: "À tardezinha o céu fechou. Eu o olhei e disse a mim mesma: parece que vai chover! E daí, o que posso fazer? Nada, a não ser esperar! Continuei trabalhando... Parei um pouco, tomei um banho e sentei na calçada para olhar o céu nublado. Não foi totalmente tranquilo, mas bem mais suportável, fiquei até escurecer." Não foi à procura de alguém que pudesse estar com ela caso chovesse.

Elisa disse que já não estava com tanta pressa para eliminar seus medos como quando começou a terapia, pois já descobriu que podia encará-los sozinha (CRB2). Precisava apenas se "fortalecer". A terapeuta entendeu o relato como uma afirmação que Elisa podia elaborar suas próprias soluções.

Na sessão posterior, Elisa manifestou preocupação, comparando a terapia aos efeitos do medicamento, caso fosse retirado, os sintomas voltariam. A terapeuta sentiu irritação, porque a cliente parecia assumir um papel de vítima, para evitar que a terapeuta a abandonasse. Assim, o sentimento da terapeuta a ajudou a identificar um CRB1. Ela explicou que Elisa - e não a terapeuta - era a responsável pelas mudanças obtidas. Na terapia, ela havia aprendido a discriminar as contingências envolvidas no padrão de comportamento problema, e também a como manejá-lo. Diferentemente da medicação, a terapeuta não era necessária para manter os ganhos que a cliente conquistou (T2). Na sessão posterior, Elisa relatou ter dormido sozinha e bem (O2).

 

Discussão

Ambas as clientes mostraram padrões de fuga-esquiva dos seus sentimentos difíceis. Nos dois casos descritos, a terapeuta foi a primeira a arriscar-se, expondo o que sentiu. Evidenciou-se que, ao mostrar para as clientes o impacto que os comportamentos delas tinham sobre a terapeuta, contribuiu-se para que elas começassem a detectar as consequências dos seus comportamentos nas situações do seu cotidiano. Porém, os sentimentos da terapeuta não tiveram só uma função importante quando foram expostos às clientes. Eles tiveram um papel mais específico na identificação de processos potencialmente prejudiciais e na escolha de melhores estratégias terapêuticas.

No caso Lília, a terapeuta identificou, com a ajuda dos seus sentimentos de raiva e frustração, um T1 importante: estava julgando a cliente como passiva e desmotivada porque não se comportava de acordo com o plano da terapeuta. A reação da terapeuta era decorrente de uma ruptura da "agenda" (ou a pauta) da terapeuta. Essa análise do que estava ocorrendo entre ela e a cliente possibilitou a terapeuta a optar por um T2: oferecer espaço para que a cliente se expressasse e aprendesse a falar de seus sentimentos, para poder entrar em contato com os benefícios que essa habilidade traz para a construção do tipo de relacionamento íntimo do qual ela carecia no seu dia a dia.

No caso Elisa, a terapeuta percebeu que seu sentimento de culpa acompanhava a intervenção planejada. Observou que a resposta emocional da terapeuta era similar às respostas das pessoas próximas da cliente, que se sentiam na obrigação de ajudá-la, mas assim, involuntariamente, reforçaram o O1 de Elisa. O sentimento de culpa sinalizou que se tratava de um T1. Se a terapeuta reagisse às necessidades da cliente de acordo com a culpa, iria reforçar um CRB1 da cliente. A opção foi feita por um T2: expressar os sentimentos da terapeuta para exemplificar os efeitos que os O1s da cliente têm sobre as pessoas próximas dela. Obtendo contato com sentimentos que evoca em outras pessoas, Elisa pôde identificar as contingências relevantes no cotidiano dela. Isso permitiu que ela se engajasse em busca de mudanças na sua forma de se relacionar com pessoas próximas.

Em ambos os casos, a interpretação dos sentimentos da terapeuta ajudou a entender as reações que as clientes provocavam em outras pessoas e as contingências interpessoais envolvidas nos seus problemas. Ao desvelar seus sentimentos, a terapeuta permitiu as clientes lidarem diretamente com os problemas interpessoais delas na sessão enquanto esses problemas estavam ocorrendo na relação com a terapeuta. Dessa forma, a análise dos sentimentos da terapeuta propiciou oportunidades de aprendizagem ao vivo para as clientes, no seio da relação. Porém, a contribuição mais importante dos sentimentos da terapeuta estava na ajuda em detectar comportamentos problema e comportamentos-alvo da terapeuta, providenciando dicas a respeito do caminho a seguir na condução do tratamento. Assim, a análise dos mesmos foi valiosa também quando a terapeuta não os revelava diretamente à cliente.

A compreensão dos CRBs do cliente não pode ser completa sem incluir os comportamentos do terapeuta na análise, já que os dois interagem. Os dois estudos de caso ilustraram o papel que os eventos privados do terapeuta assumem na sessão ao esclarecer embaraços no processo terapêutico e ao identificar oportunidades para tornar a terapia mais intensa e profunda.

 

Referências

BANACO, R. 1993. O impacto do atendimento sobre a pessoa do terapeuta. Temas em Psicologia, 1(2):71-79.         [ Links ]

FIDELIS, M.N.D.; VANDENBERGHE, L. 2014. Psicoterapia analítica funcional feminista: Possibilidades de um encontro. Psicologia: Teoria e Pratica, 16(3):18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29        [ Links ]

FREEMAN, A.; PRETZER, J.; FLEMING, B.; SIMON, K.M. 1990. Clinical Applications of Cognitive Therapy. New York, Editora Plenum Press, 437 p. http://dx.doi.org/10.1007/978-1-4684-0007-6        [ Links ]

GOLDFRIED, M.R.; DAVISON, G.C. 1994. Clinical Behavior Therapy. Londres, Wiley, 352 p.         [ Links ]

KANTER, J.W.; WEEKS, C.E.; BONOW, J.T.; LANDES, S.J.; CALLAGHAN, G.M.; FOLLETE, W.C. 2011. Avaliação e Formulação de Caso. In: M. TSAI; R.J. KOHLENBERG; J.W. KANTER; B. KOHLENBERG; W.C. FOLLETE; G.M CALLAGHAN (eds.), Um Guia para a Psicoterapia Analítica Funcional: Consciência, Coragem, Amor e Behaviorismo. Santo André, ESETec, p. 61-88.         [ Links ]

LAYDEN, M.A.; NEWMAN, C.F.; FREEMAN, A.; MORSE, S.B. 1993. Cognitive Therapy of Borderline Personality Disorder. Needham Heights, Allyn and Bacon 218 p.         [ Links ]

LINEHAN, M.M. 1988. Perspectives on the interpersonal relationship in behavior therapy. Journal of Integrative and Eclectic Psychotherapy, 7(3):278-290.         [ Links ]

NORCROSS, J.C.; WAMPOLD, B.E. 2011. Evidence-Based Therapy Relationships: Research Conclusions and Clinical Practices. Psychotherapy, 48(1):98-102. http://dx.doi.org/10.1037/a0022161        [ Links ]

DE ROSE, J.C. 1982. Consciência e propósito no behaviorismo radical. In: B. PRADO JR. (ed.), Filosofia e comportamento. São Paulo, Brasiliense, p. 67-91.         [ Links ]

SCHENSUL, S.L.; SCHENSUL, J.J.; LE COMPTE, M.D. 1999. Essential ethnographic methods: observations, interviews, and questionnaires. Walnut Creek, AltaMira Press, 344 p.         [ Links ]

SCHNELL, J.A. 2001. Qualitative method interpretation in communication studies. Lanham, Lexington Books, 192 p.         [ Links ]

SOUSA, A.C.A.; VANDENBERGHE, L. 2007. Possibilidades da FAP como método de supervisão de terapeutas com clientes Boderlines. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1):1-11.         [ Links ]

SWALES, M.A.; HEARD, H.L. 2007. The therapy relationship in dialectical behavior therapy. In: P. GILBERT; R.L. LEAHY (eds.), The therapeutic relationship in the cognitive-behavioral psychotherapies. Londres, Routledge, p. 185-204.         [ Links ]

TSAI, M.; KOHLENBERG, R.J.; KANTER, J.W.; PARKER, C.R. 2011. Técnica Terapêutica: As cinco regras. In: M. TSAI; R.J. KOHLENBERG; J.W. KANTER; B. KOHLENBERG; W.C. FOLLETE; G.M. CALLAGHAN (eds.), Um Guia para a Psicoterapia Analítica Funcional: Consciência, Coragem, Amor e Behaviorismo. Santo André, ESETec, p. 89-138.         [ Links ]

VANDENBERGHE, L.; SILVEIRA, J.M. 2013. Therapist Self-as-Context and the curative relationship. Journal of Contemporary Psychotherapy, 43(3):159-167. http://dx.doi.org/10.1007/s10879-012-9230-8        [ Links ]

 

 

Submetido: 13/03/2015
Aceito: 22/07/2015

 

 

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
1 O conceito de contratransferência, em psicoterapia, foi descrito primeiramente por Sigmund Freud, em 1913. Aaron T. Beck, que tinha formação psicanalítica, introduziu o conceito na Terapia Cognitiva.

Creative Commons License