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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.9 no.1 São Leopoldo jun. 2016

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2016.91.04 

ARTIGOS

 

Tecnoestresse e relação com a carreira, satisfação com a vida e interação trabalho-família: uma análise de gênero

 

Technostress and its relationships with career, life satisfaction, and work-family interaction: a gender analysis

 

 

Mary Sandra CarlottoI; Guilherme Welter WendtII

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos. Centro de Ciências da Saúde. Av. Unisinos, 950, 93022-750, São Leopoldo, RS, Brasil. mscarlotto@gmail.com
IIGoldsmiths, Universidade de Londres. Department of Psychology. Unit for School and Family Studies. The Bungalow, Room 4. Lewisham Way, SE14 6NW, London, UK. guilhermewwendt@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo buscou avaliar a diferença nas dimensões do tecnoestresse entre homens e mulheres, assim como possíveis associações de suas dimensões com a satisfação com a vida, com a carreira e com a interação trabalho-família. A amostra foi constituída por 247 sujeitos que utilizam tecnologias de informação e comunicação no trabalho, sendo a maioria deles mulheres (58,9%). Foram encontradas diferenças entre as dimensões de tecnoestresse em homens e mulheres, em que os homens relevaram maior descrença. Em relação à satisfação com a carreira, com a vida e com a interação entre trabalho e família, foram encontradas associações diferenciadas entre homens e mulheres. São discutidas as especificidades das variáveis associadas em relação aos dois grupos, bem como levantam-se hipóteses explicativas/elucidativas para os achados. Implicações para a prática e limitações da investigação são também apresentadas.

Palavras-chave: tecnoestresse, satisfação com a vida, interação trabalho-família, diferenças de gênero.


ABSTRACT

This study aimed to evaluate the differences between males and females on technostress dimensions, as well as possible associations with life and career satisfaction, and with work-family interaction. The sample comprised 247 users of information and communication technologies at work, and the majority of them were female (58.9%). Differences between technostress dimensions amongst males and females were found, whereas males showed greater disbelief. Regarding career and life satisfaction, and work-family interaction, different associations amongst males and females were also detected. We discuss the particularities of the variables in both groups, as well raise explanatory hypotheses for our findings. Implications for practice and limitations of the research are also presented.

Keywords: technostress, life satisfaction, work-family interaction, gender differences.


 

 

Introdução

As tecnologias de informação e comunicação (TICs), no século XXI, permeiam o trabalho e a vida pessoal (Ayyagari et al., 2011). Elas são definidas como um conjunto de equipamentos (computadores, dispositivos de armazenamento e de comunicação), de aplicações (sistemas), de serviços (help-desk, desenvolvimento de aplicações, metodologias) e de pessoas (analistas, programadores, gerentes) utilizados pelas organizações para tratamento de dados e informações (Luftman, 1996). O uso da Tecnologia de Informação (TI) gera benefícios operacionais e estratégicos às empresas de diferentes portes e setores, permitindo sua atuação nos complexos ambientes de negócio da atualidade (Siqueira et al., 2013).

A organização de trabalho tem, ao longo dos anos, incorporado pelo menos alguns dos elementos da interação virtual intermediada por e-mail, telefonia, chat e videoconferência, dentre outras formas de comunicação (Bejarano et al., 2006). Hoje, é difícil identificar algum ambiente laboral em países desenvolvidos no qual os trabalhadores não façam uso de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para executar suas tarefas - mesmo em ocupações de menor qualificação tem sido necessário o uso de dispositivos móveis como o telefone ou tablet (Al-Dabbagh et al., 2015).

O caráter universal e onipresente das tecnologias, juntamente com o crescente aumento das demandas e exigências do trabalho, tem ocasionado importantes mudanças no tempo dedicado ao trabalho. A sociedade e a economia em rede permite o trabalho 24 horas por dia nos 7 dias da semana (Hassan e Purser, 2007). Não é incomum, atualmente, o recebimento de mensagens eletrônicas relativas ao contexto organizacional após o horário formal de trabalho, durante as férias ou mesmo em períodos de licença.

As mudanças tecnológicas, por um lado, trazem benefícios econômicos para a organização como maior produtividade e eficiência (Ayyagari et al., 2011), por outro, podem produzir problemas humanos e sociais com sérias consequências à saúde mental do trabalhador (Carlotto, 2011; Chesley, 2014; Korunka, 2002). O tecnoestresse tem sido considerado como uma dessas prováveis consequências (Tarafdar et al., 2011).

O estresse decorrente de uma avaliação subjetiva negativa diante do uso das TICs é chamado de tecnoestresse. Esse ocorre quando há, por parte do trabalhador, uma percepção de desequilíbrio entre as demandas de trabalho e as habilidades para seu atendimento (Sellberg e Susi, 2014).

Esse fenômeno é composto por quatro dimensões: descrença em relação ao uso das TICs, fadiga decorrente do desgaste físico e cognitivo ao utilizar tais tecnologias, ansiedade perante as mesmas e, por fim, a percepção negativa diante das capacidades para o adequado manejo das TICs (ineficácia). A sobreposição desses fatores, por consequência, vem se associando a desfechos importantes no mercado de trabalho.

Por exemplo, quanto mais elevados os índices de tecnoestresse, menor a satisfação do próprio indivíduo, menor o desempenho e menor a produtividade (Ragu-Nathan et al., 2008; Tu et al., 2005). Para o trabalhador, o tecnoestresse encontra-se associado a diversos problemas relacionados a fadiga e a problemas de concentração (Sellberg e Susi, 2014).

Embora os profissionais envolvidos com TICs possam obter sucesso financeiro, podem sentir-se compelidos a abandonar precocemente sua carreira, devido ao elevado nível de estresse percebido no trabalho (Kilimnik et al., 2012). Logo, a compreensão desse fenômeno é necessária para o desenvolvimento de intervenções organizacionais eficazes (Fischer e Riedl, 2015).

A indefinição das fronteiras entre trabalho e vida familiar também tem um impacto significativo sobre a tensão. Como os recursos dos indivíduos, em termos de tempo e energia, são limitados, emerge o conflito entre essas duas esferas da sua vida. Indivíduos orientados para a carreira estão, cada vez mais, aumentando o tempo gasto para além do local de trabalho, realizando-o também em casa - hoje possível por meio dos diferentes dispositivos e aplicações das TICs (Ayyagari et al., 2011). Merece também atenção o fato de que é também presente o impacto do meio doméstico no contexto do trabalho, que se traduz pelo uso de TICs dentro da organização, com o propósito de interagir com a família (Wajcman et al., 2010).

O processo de inserção como a utilização das TICs se apresenta de forma desigual na sociedade em geral, no contexto de trabalho e em relação ao gênero (Lie, 2003; Powell et al., 2012; Zauchner et al., 2000). Embora seja crescente a inserção de mulheres nas atividades que envolvem tecnologias, o trabalho com TICs ainda tem sido associado à profissão masculina e considerado incompatível com a feminilidade (Corneliussen, 2014; Felisberto, 2012).

A categoria analítica gênero é entendida a partir da perspectiva de que estrutura o sistema perceptivo dos indivíduos e remete à organização concreta de toda a vida social (Tilly, 1994). Os sistemas de gênero são conjuntos de práticas, símbolos, representações, normas e valores sociais que as sociedades definem pela diferença sexual anatômico-fisiológica e que fornecem sentido à satisfação dos impulsos sexuais, à reprodução da espécie humana e ao relacionamento entre as pessoas (Barbieri, 1993).

A categoria trabalho incorpora, historicamente, visíveis relações de desigualdade e de poder assimétrico entre homens e mulheres (Cyrino, 2009). O trabalho de homens é geralmente associado aos ganhos e reconhecimentos que decorrem da assertividade e do foco no sucesso material. Já o trabalho feminino é associado a profissões delicadas, cooperativas e preocupadas com a qualidade de vida das outras pessoas, bem como pela necessidade de afiliação, sensibilidade e afetividade (Twengue, 1999). Na utilização de novas tecnologias, tanto as oportunidades como os tipos de uso são socialmente estratificados em função da idade, condições socioeconômicas e gênero (Simões et al., 2011).

Todavia, diferenças são presentes no uso de TICs em relação ao gênero, o que se traduz em uma menor representatividade de mulheres na área, acompanhada de uma menor remuneração, quando comparadas aos homens (Gillard et al., 2008). Os mesmos autores destacam que, no Brasil e em outras economias em desenvolvimento, ainda existe disparidade na remuneração de colaboradores homens e mulheres, e estas geralmente ocupam cargos que não requerem altas habilidades com TICs.

Apesar de os estudos demonstrarem avanço no conhecimento sobre o tecnoestresse, a questão gênero dos usuários de computadores tem sido largamente ignorada na pesquisa científica (Riedl et al., 2013). Pelo exposto, essa investigação buscou identificar se existe diferença nas dimensões do tecnoestresse entre homens e mulheres, assim como na sua relação com a carreira, satisfação com a vida e com a interação trabalho-família.

 

Método

Participantes

Trata-se de uma amostra não probabilística, constituída de 247 participantes - 145 mulheres (58,9 %) e 101 homens (41,1%) - que utilizam TICs no trabalho (computadores, tablets, internet, chat, smartphones e dispositivos de vídeoconferência, entre outros). Os trabalhadores são provenientes de organizações de trabalho (indústria, serviços, educação) localizadas em Porto Alegre (RS) e região metropolitana.

No grupo feminino, a maioria é solteira/separada/viúva (53,8%), sem filhos (54,9%), com idade média de 36 anos (DP=11) e 10 anos (DP=6,67) de trabalho com TIC. Em relação à escolaridade, 60,6% possuem pós-graduação. Quanto à função exercida, 58,9% dos sujeitos trabalham em funções administrativas e trabalham com TICs, em média, 7 horas diárias (DP=4). No grupo masculino, a maioria é solteiro/separado (63%), sem filhos (66%), tem, em média, 35 anos (DP=11) e 17 anos (DP=12) de trabalho com TIC. Em relação à escolaridade, 54% pós-graduação. Quanto à função exercida, 66,4% exercem funções administrativas. Utilizam, em média, 7 horas (DP=2) diárias de TICs.

Instrumentos

Para atender aos objetivos do estudo foram utilizados os seguintes instrumentos autoa plicáveis: (1) Questionário sociodemográfico (sexo, idade, situação conjugal, filhos, escolaridade) e laboral (função, tempo de trabalho, tempo de trabalho com TICs, quantidade de horas de uso de TICs); (2) Escala de Tecnoestresse (RED/TIC) desenvolvida por Salanova et al. (2004) e adaptada para o Brasil por Carlotto e Câmara (2010). A escala consiste de dezesseis questões, subdivididas em quatro dimensões: (a) Descrença - sentimento que o uso de TIC não traz benefícios ao seu trabalho (quatro itens; α= 0,74; Tornei-me mais descrente sobre se as tecnologias contribuem para o meu trabalho); (b) Fadiga - avalia o cansaço mental e cognitivo pelo uso continuado de TICs (quatro itens; α= 0,89; Tenho dificuldade em relaxar depois de um dia de trabalho com a TIC); (c) Ansiedade - tensão frente ao uso de TICs (quatro itens; α= 0,77; Sinto-me tenso e ansioso ao trabalhar com tecnologias); e, (d) Ineficácia - sentimentos negativos sobre a própria capacidade e competência no uso de TICs (quatro itens; α= 0,80; Sinto-me ineficaz utilizando tecnologias no meu trabalho). Todos os itens são avaliados em escala tipo Likert de sete pontos, variando de 0 (nada/nunca) a 6 (sempre/todos os dias). O escore final de cada um dos atributos é dado pela média das respostas de seus itens, sendo que médias elevadas nas dimensões são indicadores de Tecnoestresse; (3) Escala de Comprometimento com a Carreira: Essa escala foi desenvolvida por Carson e Bedeian (1994), adaptada para o Brasil por Magalhães (2013), e possui 12 itens e três fatores: planejamento (quatro itens; α=0,75; Eu tenho uma estratégia para alcançar meus objetivos nesta linha de trabalho/campo de carreira); identidade (quatro itens; α=0,77; Eu estou fortemente identificado com a linha de trabalho/campo de carreira que escolhi); resiliência para com a carreira (quatro itens; α=0,72; Os problemas que eu encontro nesta linha de trabalho/campo de carreira às vezes me fazem questionar se os ganhos estão sendo compensadores). Os itens são frases que afirmam experiências relacionadas à carreira profissional. As respostas são assinaladas em uma escala Likert de 5 pontos, indicando graus diferentes de concordância com as afirmações 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente); (4) Escala de Satisfação com a Vida (ESV) de Diener et al. (1985), versão adaptada para o Brasil por Giacomoni e Hutz (1997). O instrumento é composto por uma única dimensão (cinco itens; α=0,86; Na maioria dos aspectos, minha vida é próxima ao meu ideal), que avalia o quanto as pessoas estão satisfeitas com sua vida por meio de uma escala tipo Likert de cinco pontos variando de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente). (5) Escala de Interação Trabalho-Família elaborada e validada por Paschoal et al. (2002). Compõe-se de 14 itens subdivididos em dois fatores: impacto da família (sete itens; α=0,80; Compromissos familiares fazem-me mudar os planos no trabalho) sobre o trabalho e o impacto do trabalho sobre a família (sete itens; α=0,81; Compromissos profissionais fazem-me mudar os planos com minha família), ambos enfocando as interferências de um sobre outro. Os itens são ancorados em uma escala de frequência, variando de 1 (nunca) a 5 (quase sempre).

Procedimentos

Os dados do estudo foram coletados por meio de pesquisa on-line mediante convite via e-mail no período de maio a junho de 2013. Os participantes foram recrutados pela técnica do Respondent Driven Sampling (RDS), na qual os primeiros participantes (1ª onda) repassaram o convite para novos participantes (2ª onda) até que se tenha atingido o tamanho desejado da amostra. Essa é uma técnica que permite o alcance de um número elevado de participantes com características semelhantes e que dispõem de tecnologia para acessar os instrumentos (Goel e Salganik, 2009).

O programa estatístico SPSS versão 17 (SPSS/PASW, Inc., Chicago, IL) foi utilizado para a análise de dados. Estatísticas descritivas foram realizadas para calcular as frequências, as médias e os desvios-padrão. O banco de dados foi digitado e posteriormente analisado no pacote estatístico SPSS. Primeiramente, foram realizadas análises descritivas de caráter exploratório, a fim de avaliar, no banco de dados, a distribuição dos itens, os casos omissos e a identificação de extremos. Posteriormente, foram calculadas frequências para variáveis categóricas e médias para variáveis contínuas. Para a relação entre variáveis, foram utilizadas as provas t de student e a correlação de Pear-son, adotando-se como significativo o valor de p<0,05. O tamanho do efeito foi calculado pela diferença média padronizada entre dois grupos (d de Cohen), conforme Cohen (1992). Na análise de correlação, o poder do efeito foi obtido pelos coeficientes de regressão padronizados calculados para cada modelo final, de acordo com Field (2009). O estudo possui aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil.

 

Resultados

Destaca-se que, para a constituição dos grupos de estudo, foi utilizada a variável sexo de acordo com o referido pelos participantes em instrumento de coleta de dados. Nesse sentido, foi baseada em características biológicas e objetivas. Assim, os resultados são apresentados a partir desse conceito, constando somente na discussão a análise na perspectiva de gênero.

Os resultados apontaram diferença entre as dimensões de tecnoestresse em homens e mulheres. Homens apresentam maior descrença com um poder de efeito médio (d=-0,29) (Tabela 1).

As dimensões de carreira, satisfação com a vida e interação trabalho-família revelaram associações diferenciadas entre homens e mulheres. Verifica-se que, no grupo feminino, a identificação com o trabalho associou-se negativamente à dimensão de descrença e ao planejamento de carreira. A interferência do trabalho na família relacionou-se positivamente com a fadiga e a ineficácia, e a interferência da família no trabalho associou-se também de forma positiva à ansiedade, à fadiga e à ineficácia. Em homens, verifica-se associação negativa entre a satisfação com a vida e as dimensões de fadiga e ineficácia. As demais associações encontradas foram semelhantes para ambos os grupos.

Verifica-se que a relação entre as dimensões de planejamento de carreira associou-se negativamente à descrença e que a dimensão de resiliência se relacionou de forma positiva com as quatro dimensões do tecnoestresse. A satisfação com a vida evidenciou associação negativa com a fadiga. A interferência do trabalho na família associou-se positivamente com a descrença, fadiga e ansiedade (Tabela 2). Ainda, os resultados revelam um poder deefeito entre baixo (R2=0,02) - na relação entre a dimensão de identidade e descrença em mulheres - e elevado (R2=0,36) - na relação entre interferência trabalho-família e fadiga, de acordo com os parâmetros recomendados por Field (2009).

 

Discussão

O contexto de trabalho é um dos fatores que tem afetado a saúde física e mental dos indivíduos, devido as consideráveis e contínuas mudanças ocorridas nas últimas décadas. Constata-se, em especial, modificações na forma e nos processos de trabalho, na expansão do setor de serviços e no crescente aumento do uso de TICs nos contextos doméstico e organizacional (Carvalho et al., 2015; WHO, 2005).

As diferenças de sexo e de gênero determinam diferenças nos determinantes de saúde, na vulnerabilidade, na natureza, na severidade, na frequência dos problemas de saúde ena forma com que os sintomas são percebidos (Borrel e Artazcoz, 2008). Assim, considerando que a literatura aponta fatores de risco de adoecimento diferenciados entre homens e mulheres e que haja uma relação diferenciada no uso de tecnologias e gênero (Lie, 2003), o presente estudo visou a identificar a existência de diferenças na associação entre as dimensões do tecnoestresse, comprometimento com a carreira, satisfação com a vida e com a interação trabalho-família entre homens e mulheres que atuam com TICs.

Quanto às dimensões do tecnoestresse, os resultados indicam diferença somente na dimensão de descrença, sendo os homens os que apresentam maior índice médio nessa dimensão. Na presente amostra, os homens têm demonstrado maior sentimento de que o uso de TICs não traz benefícios ao seu trabalho. Com efeito, a constatação de maiores índices de tecnoestresse entre homens foi anteriormente relatada (Ragu-Nathan et al., 2008; Tarafdar et al., 2007; Tu et al., 2005). Ainda que o presente achado não possa ser generalizado, ele traz indícios e especificidades do impacto do tecnoestresse em homens e mulheres, o que pode ser importante tanto do ponto de vista de intervenções na organização como para corroboração, ou não, em futuras pesquisas sobre a temática. Também pode ser pensado que os homens, por terem maior e mais intenso envolvimento com TICs, têm uma visão específica quanto às limitações tecnológicas, o que pode explicar sua descrença.

Análise realizada entre as dimensões de tecnoestresse e dimensões de carreira, satisfação com a vida e com a interação trabalho família revelaram associações diferenciadas entre homens e mulheres. Em mulheres, na medida em que aumenta a identidade com a carreira, diminui o sentimento de descrença, bem como o aumento no planejamento da carreira diminui a crença de ineficácia.

A carreira de trabalhadores de tecnologias de informação envolve profissionais com diferentes cargos e funções, que fazem uso da tecnologia como meio de gerar produtos e/ou serviços, se enquadrando em um modelo de carreira autodirigida (Kilimnik et al., 2012). Considerando que, tradicionalmente, a carreira nesse campo tem sido associada ao universo masculino, assim como a questão de seu planejamento, pode-se pensar que as mulheres, ao romper com esse estereótipo, passam a ter maior domínio e controle, aumentando a crença de eficácia no uso de TICs.

Verifica-se que, nas mulheres, na medida em que aumenta a interferência do trabalho na família, maiores são a ansiedade e o sentimento de ineficácia. A construção social do trabalho feminino é marcada pelo desenvolvimento das atividades profissionais que se prolongam nas funções desempenhadas no âmbito da família, como as atividades de cuidado (Araújo et al., 2006).

Uma das características do trabalho com TICs é a possibilidade de trabalhar em qualquer momento e espaço, potencializando a sobrecarga de trabalho, que, ainda, é mais pesada para as mulheres. Embora o mercado de trabalho se mostre mais ajustado em termos de capacidades físicas e intelectuais para alocação de homens e mulheres, a dupla jornada ainda é maior para as mulheres (Barham e Vanalli, 2012).

Mulheres, mesmo quando ultrapassam a barreira da aceitação social e atuam no mercado de trabalho, ainda assim mantêm em seu papel atribuições domésticas (Álvarez e Miles, 2006). Dados recentes do IBGE (2013) revelam que os afazeres domésticos permanecem como uma atividade predominantemente feminina.

Assim, pode-se pensar que essa interação de ambas instâncias - trabalho-família e família-trabalho - ocasione conflito de papel (Goyal e Arora, 2012) aumentando a ansiedade, a fadiga e a ineficácia. O resultado vai ao encontro do obtido em estudo longitudinal realizado (Chesley, 2005), que identificou que o uso da tecnologia pode romper as fronteiras trabalho/família, com consequências negativas para os trabalhadores.

A satisfação no trabalho é um dos componentes da satisfação com a vida (Georgellis e Lange, 2012). Em homens, verificou-se associação negativa entre a satisfação com a vida e as dimensões de ansiedade e ineficácia. De acordo com os papéis de gênero, que são estereótipos culturais presentes na sociedade, criam-se expectativas em relação a homens e mulheres. Nesse sentido, a masculinidade revela uma demanda por liderança, tomada de decisão e independência (Matud et al., 2014). Desse modo, não pode ser descartada a hipótese de que, por pressão social ou mesmo estereótipo de gênero, nos homens, um maior nível de ansiedade e senso de ineficácia seja associado a uma menor satisfação com a vida.

O estudo apresenta algumas limitações a serem consideradas na leitura de seus resultados: a primeira é o seu delineamento transversal, o que impossibilita a análise de relações causais; a segunda é o tipo de amostra não probabilística, que inviabiliza a realização de generalizações de seus resultados; a terceira refere-se ao "efeito do trabalhador sadio", questão peculiar em estudos transversais em epidemiologia ocupacional que, muitas vezes, exclui o possível doente (Mc-Michael, 1976). Essa é uma situação que pode subestimar o tamanho dos riscos identificados, uma vez que é possível que os profissionais mais afetados, no caso do presente estudo, não respondam a um instrumento on-line; a quarta diz respeito ao caráter regional da amostra investigada, pertencentes a uma região específica do Brasil; a quinta refere-se ao baixo poder de efeito encontrado em algumas relações entre variáveis.

Os resultados obtidos indicam a necessidade de estudos longitudinais e de estudos que avaliem diferenças de variáveis preditoras do tecnoestresse em homens e mulheres. Em relação a possíveis intervenções, sugere-se que sejam consideradas as peculiaridades de homens e mulheres, principalmente, aquelas decorrentes dos estereótipos sociais relacionados às profissões tipificadas como masculinas. Essas, tanto em nível de formação como no exercício profissional, devem focalizar o trabalho com base na identidade profissional que se consolida na ação cotidiana e no seu significado individual e social, exercida por pessoas, homens e mulheres.

 

Referências

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Submetido: 10/09/2015
Aceito: 21/01/2016

 

 

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