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Contextos Clínicos

versión impresa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.9 no.1 São Leopoldo jun. 2016

http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2016.91.10 

ARTIGOS

 

Fragilidade narcísica na adolescência: a caveira mexicana como paradoxo da vida e da morte

 

Fragility narcissistic in adolescence: the mexican skull as paradox of life and death

 

 

Alexandra Garcia Grigorieff

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, 6681, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil. alexandra.grigorieff@hotmail.com

 

 


RESUMO

A adolescência é um período do ciclo vital marcado pela administração de demandas pulsionais, biológicas e sociais, as quais exigem um intenso trabalho psíquico. A temática da identidade gera momentos instáveis, já que estão ocorrendo ressignificações da conflitiva edípica e é necessário o desprendimento do lugar de criança. Diante de tais considerações, é esperada a fragilidade do narcisismo do adolescente, já que o processo de constituição do ideal de Eu está se consolidando. É imprescindível considerar a linha tênue entre a fragilidade narcísica, inerente à adolescência, e o desamparo evidenciado pelo traumático. Assim, este artigo objetivou explorar o processo de constituição do Eu e as possíveis consequências de um Eu fragilizado na adolescência. Para tal, optou-se por um método qualitativo de revisão bibliográfica e de discussão de vinhetas clínicas, resultando em uma problematização teórico-clínica. Pode-se concluir que falhas ocorridas na constituição psíquica do sujeito adquirem um incremento na adolescência, exigindo um trabalho psíquico elaborativo nessa fase de vida. Dessa forma, a escuta psicanalítica apresenta-se como ferramenta de investigação de complexidades da adolescência, possibilitando a elaboração do traumático.

Palavras-chave: adolescência, narcisismo, psicanálise.


ABSTRACT

Adolescence is a life cycle's period marked by the management of instinctual, biological and social demands, which require an intense psychic work. The theme of identity generates unstable moments, as the reinterpretation of the Oedipal conflictive is taking place and the detachment of child's place is required. Given these considerations, the fragility of the adolescent's narcissism is expected, as the ideal maintenance process of the I is consolidating. It is essential to consider the fine line between narcissistic fragility, inherent to adolescence, and the helplessness shown by the traumatic. Thus, the aim of this article is to explore the psychic constitution process and the possible consequences of a weakened I in adolescence. To this end, a qual itative method of literature review and discussion of clinical vignettes was chosen, resulting in a theoretical and clinical questioning. It can be concluded that failures occurred in the psychic constitution of the subject acquire an increase in adolescence, requiring elaborative psychic work in this phase of life. Thus, the psychoanalytic listening is presented as teenage complexities research tool, enabling the development of the traumatic.

Keywords: adolescence, narcissism, psychoanalysis.


 

 

Introdução

A adolescência é um período do ciclo vital marcado pela administração de demandas pulsionais, biológicas e sociais muito intensas, as quais geram transformações tanto no mundo intrapsíquico do jovem como em seus processos inter-relacionais. Nessa etapa, em que o Eu ocupa o papel de protagonista e também de espectador, a tarefa principal enreda-se na questão da identidade. A busca por saber "quem sou" coloca o adolescente em momentos confusos e instáveis, de forma que ocorrem diversas identificações, na tentativa de uma aproximação de sua identidade, que se manifesta por meio da imagem corporal, da identificação com o masculino e/ou feminino e da alteridade (Domingues e Alvarenga, 1997).

Assim, o tema da identidade se faz constante nesse período de vida conturbado, em que estão ocorrendo ressignificações da conflitiva edípica. O jovem encontra-se enfrentando um mundo novo, com status e corpo diferentes, e com o remanejamento dos referencias identificatórios (Savietto e Cardoso, 2006). Dessa forma, depara-se com "a aceitação da nova configuração corporal, com mudanças que atestam a definição da sexualidade - logo, que atestam a capacidade de procriação e a possibilidade de busca de um parceiro" (Macedo et al., 2012, p. 60). Ou seja, é necessário que se desprenda do lugar de criança e da posição que ocupava na esfera familiar, ressignificando questões do infantil. Tais considerações colocam em cheque um intenso abalo das bases narcísicas (Savietto e Cardoso, 2006).

A fragilidade do narcisismo é esperada na adolescência, na medida em que o desligamento das figuras parentais possibilita a subjetivação e o investimento em novas referências, consolidando o processo de constituição do ideal de Eu (Savietto e Cardoso, 2006). A noção de "transação narcísica", proposta por Marty (2002), refere-se à situação na qual o adolescente se encontra entre os registros narcísico e edipiano. Esse movimento apresenta a transformação do investimento narcísisco para possibilitar o sucesso no processo de adolescer.

Porém, a transição para o registro edipiano, que referencia a genitalidade, não é possível na ausência de um preâmbulo narcísico (Savietto e Cardoso, 2006). As autoras apontam que se a qualidade de investimento das figuras parentais em relação ao bebê não foi suficiente, devido a uma precariedade de recursos, "a continuidade do ser não estará assegurada no momento em que o remanejamento identificatório foi exigido, isto é, no momento da adolescência" (Savietto e Cardoso, 2006, p. 21). Tais falhas irão reaparecer no processo de adolescer, na medida em que é evidenciada a tensão entre dependência e autonomia, podendo, inclusive, desencadear patologias.

Assim, a partir das repercussões psíquicas geradas nessa fase de vida, é imprescindível considerar a linha tênue entre a fragilidade narcísica, inerente à adolescência, e o desamparo evidenciado pela incapacidade de metabolizar vivências excessivas para o adolescente, que, por meio de ato, manifesta seu sofrimento. Nesse sentido, torna-se fundamental explorar o processo de constituição do psiquismo para compreender a qualidade dos recursos psíquicos que estão sendo utilizados para sobreviver às complexidades do processo de adolescer.

Na medida em que se entende que a tônica está nas intensidades psíquicas despertadas nessa etapa, e não nos aspectos biológicos, a Psicanálise presta-se como ferramenta de investigação para compreensão e intervenção no processo de adolescer, já que enfatiza a singularidade e a história de vida do sujeito de Inconsciente. Por meio deste artigo, busca-se compreender o processo de constituição do Eu e as possíveis consequências de um Eu fragilizado na adolescência. Para tal, optou-se por um método qualitativo de revisão bibliográfica e de discussão de vinhetas clínicas, resultando em uma problematização teórico-clínica.

 

O processo de constituição do sujeito psíquico

A construção psíquica compreende um processo que leva à constituição de um sujeito, implicando o surgimento da pulsão sexual apoiada na autoconservação. A figura materna garante cuidados não apenas relacionados à sobrevivência do filho, mas também proporciona ao bebê a experiência de ser tomado como objeto de investimento amoroso. Segundo Bleichmar (2005), é estabelecido um paradoxo materno, na medida em que alivia a necessidade fisiológica do bebê e instaura a sexualidade. Logo, tais figuras desempenham a função de objeto absolutamente necessário, visto que "a sobrevivência da criança, por sua condição prematura, depende dos cuidados do objeto" (Hornstein, 2009, p. 41). Nesse sentido, o psiquismo do sujeito é marcado pela qualidade das vivências com as figuras parentais, que se apresentam para suprir a necessidade de cuidado que se impõe, estabelecendo um modo de encontro, que evidencia a condição de desamparo da criança (Macedo et al., 2012).

Na medida em que surge a pulsão sexual, o bebê passa a buscar satisfação por prazer idependentemente de ter um objeto externo e sem visar à sobrevivência, caracterizando a fase autoerótica, na qual o prazer se satisfaz no corpo (Mohr et al., 2009). "Trata-se de um estado anárquico da sexualidade, no qual as pulsões parciais procuram satisfação, no próprio corpo, uma satisfação não unificada, de sarticulada em relação às demais satisfações parciais, pura satisfação local" (Garcia-Roza, 1998, p. 42). Conforme as figuras parentais forem nomeando ao bebê suas sensações, é possível que se estabeleça a aquisição de contornos próprios.

O Eu irá se constituir por meio das vivências de satisfação e de dor e do movimento de presença e ausência das funções parentais. Na medida em que o bebê recebe uma resposta imediata, é estabelecida uma sensação de onipotência excessiva e, se o prazo é muito longo, inscreve-se uma experiência de dor e desespero. Logo, é fundamental que a figura materna oscile suas respostas, da mesma forma que oscila seu movimento de presença e ausência. Green (1993) afirma que, quando a figura materna cumpre suas funções de forma eficaz, a mesma é esquecida, já que a criança cria a representação da ausência do objeto, internalizando-a. Dessa forma, o Eu é unificado, de modo que os limites entre o mesmo e o outro estão delimitados.

No momento em que o Eu unifica-se, sendo diferente do não Eu, instala-se o narcisismo. Para que o Eu se constitua, é preciso considerar a disponibilidade afetiva das funções parentais, assim como o investimento narcisizante parental. Freud (1976 [1914], p. 98) referia à expressão "Sua Majestade o Bebê", a fim de enfatizar que o amor dos pais pelo filho é o narcisismo dos mesmos renascido. Ao reatualizar seu narcisismo por meio do filho, é proporcionado a este a possibilidade da unificação do Eu. A partir disso, a libido é investida em si mesmo, caracterizando uma sensação ilusória de completude, evidenciado pelo eu ideal. Ou seja, tudo de bom está no Eu e tudo de ruim está no outro, denunciando o imperativo da admiração do objeto (Bleichmar, 2005). Assim, a criança vivencia um momento em que se sente o centro do universo, na medida em que todos os olhares se voltam para si.

Posteriormente, a libido é dirigida aos objetos, embora seja fundamental que possa seguir investindo uma parcela de libido em si mesmo, caracterizando a autoestima (Mohr et al., 2009). Portanto, evidencia-se uma balança energética, na medida em que há o equilíbrio entre o investimento em si e no objeto. A estrutura edípica triangular é o que torna possível o investimento no outro, na medida em que se revela a incompletude, instalando a necessidade de buscá-la a partir do objeto. Violante (1994, p. 92-93) aponta que:

À função materna cabe instaurar o desejo, e à paterna, estruturá-lo, de acordo com a lei da filiação. A assunção jubilosa de si, bem como a assunção da castração, são operações psíquicas estruturantes do Eu: uma que vem permitir a idealização do Eu (nível imaginário) e outra que vem possibilitar sua desidealização (nível simbólico) simultaneamente à eleição de ideais.

Assim, a partir do Complexo de Édipo, o Eu ideal passa a ser ideal de Eu e o sujeito passa a tentar recuperar a perfeição narcisista da infância (Freud, 1976 [1914]). Conforme Hornstein (1989, p. 186), "a saída do circuito edípico faz-se mediante a identificação com o rival, pela dessexualização dos desejos destinados ao objeto de amor, pela inibição da agressividade, e pelo deslocamento libidinal para objetos exogâmicos". Portanto, ao abrir possibilidade para investimentos externos, é vivenciada a fase da latência, na qual ocorre uma preparação e aquisição de recursos para lidar com as conflitivas próprias da adolescência (Macedo et al., 2012).

 

O narcisismo na adolescência

Conforme o sujeito adquire certa maturidade, novas exigências de trabalho psíquico são enunciadas, de forma que a pulsão aponta para o campo da genitalidade (Macedo et al., 2012). O trabalho psíquico, na adolescência, opera na administração de transformações pulsionais, biológicas e sociais. Nessa etapa, as fases do desenvolvimento psicossexual são revividas, consolidando o processo de constituição do ideal de Eu. Assim, a adolescência é considerada como ressignificadora da conflitiva edípica e de questões do infantil. Porém, "diferentemente da primeira vivência edípica, o mesmo tem a possibilidade física real de consumação do incesto", gerando muita angústia e, para se defender, o jovem se afasta dos pais (Macedo et al., 2012, p. 29).

Ao desligar-se dos pais, a energia dirige-se ao Eu, engrandecendo-o a partir da supervalorização de si mesmo e de uma sensação de onipotência. Por outro lado, a busca por saber "quem sou" gera angústias, incertezas e inseguranças, colocando em evidência a fragilidade do Eu. Tal enfraquecimento narcísico é essencial, no sentido de permitir a subjetivação e o investimento em novas referências, a fim de consolidar o ideal de Eu. De acordo com Savietto e Cardoso (2006, p. 22), "para que este investimento seja possível, o Ego precisa desamarrar-se do passado e do presente, admitir transformações, admitir dúvidas, e, principalmente, admitir a existência de falhas no sujeito". Marty (2002) propõem a noção de "transação narcísica", referindo-se ao momento em que o jovem se encontra entre os registros narcísico e edipiano. Para que esse movimento ocorra, é necessário um suporte narcísico, que permitirá ao adolescente a apropriação de uma identidade.

Porém, se houve falhas na constituição psíquica do adolescente, em função de um investimento precário das figuras parentais, ocorre a revivência do desamparo agravada pelo ressurgimento das falhas narcísicas (Savietto e Cardoso, 2006). Ou seja, no momento em que as funções parentais não foram cumpridas de forma eficaz, não há a internalização do objeto primário, e a ausência das figuras parentais não é simbolizada. Haja vista que ocorreram fraturas no processo de constituição psíquica, surge um vazio interno, que almeja ser preenchido. Por vezes, tais faltas são levadas durante o período da pré-genitalidade, sem maiores conflitos.

Na medida em que, ao longo do tempo, o sujeito passa a deparar-se com as complexidades exigidas na adolescência, essas falhas decorrentes da impossibilidade de internalização dos objetos parentais são incrementadas e resultam na intensificação da angústia. Assim, o jovem não consegue estabelecer uma unidade do Eu autoinvestida, já que suas referências identificatórias foram confusas e os investimentos libidinais contraditórios, dificultando a organização do Eu diante dos ideais transmitidos pela realidade do sujeito, denunciando sua fragilidade (Zimmermann, 2007).

Este é o tema que o presente estudo objetiva problematizar, por meio de vinhetas do caso clínico de Gabriela, 15 anos. A mãe da paciente, toxicômana, deixou a filha aos cuidados da tia materna, de modo que esta foi responsável por sua criação e educação. O pai de Gabriela, também toxicômano, abandonou-a antes mesmo do nascimento. A paciente explicita a falta da figura materna, relatando que: "Sinto falta de ter uma mãe. Não da minha mãe em si, entende? Mas de ter uma mãe mesmo, que fosse mãe".

A partir da fala da paciente, percebe-se a alusão a algo que falta e que diz respeito à função materna. Percebe-se que a impossibilidade de receber o investimento parental gera parcas soluções para o Eu, que se encontra fragilizado e ameaçado pela situação de abandono que configura o primeiro tempo do trauma. Logo, o desamparo adquire uma marca de excesso e de intensidade, na medida em que "atualiza uma experiência infantil traumática, envolvendo, simultaneamente, a figura materna e a paterna" (Palmeira et al., 2011, p. 167). Assim, as frequentes situações de solidão referidas pela jovem denunciam a dramaticidade do que lhe faltou e lhe deixou sem recursos de enfrentamento de dor psíquica.

Nessa perspectiva, percebem-se também sentimentos de solidão, que não correspondem ao movimento introspectivo e criador próprio da fase adolescente. Trata-se, muitas vezes, de uma solidão real, na qual o adolescente, a fim de compensar uma falha mais arcaica, pode se isolar do outro, fechando-se em si mesmo (Palmeira et al., 2011). Assim, nesse tipo de relação narcísica, o adolescente se relaciona de modo indiferente com o objeto, visto que está aprisionado em seu mundo interno. Logo, é inquestionável o comprometimento da alteridade, que pode ser ilustrada na seguinte fala de Gabriela: "Em casa nunca tem nada. Nada pra fazer. É chato. Ninguém conversa. Isso que a casa é cheia, né. Nós somos cinco dentro de casa. Mas cada um tem sua vida".

Presentifica-se o nada da casa, o qual parece estar relacionado ao predomínio de ausências, as quais não se restringem a presenças físicas, mas sim à qualidade dos investimentos. Ou seja, apesar de a casa estar cheia, o vazio predomina na cena de convívio alteritário. Trata-se de ausências de cuidado, de assimetria, de diferenças e de alteridade. A partir disso, constata-se que a mobilidade da pulsão se movimenta onde for possível, de forma que, para escolher um objeto de amor, é necessário o investimento da figura materna e sua internalização. Dessa forma, o que é da ordem do autoconservativo se sobrepõem ao que é da ordem do pulsional, de forma que não há espaço para o prazer. Conforme exposto anteriormente,

Na adolescência, as bases narcísicas do sujeito encontram-se estremecidas; trata-se de um momento em que o sentimento de continuidade da existência revela-se ameaçado e, consequentemente, de um momento em que as falhas narcísicas desenvolvidas no início da subjetivação tendem a ressurgir (Savietto e Cardoso, 2006, p. 25-26).

Na medida em que há uma dificuldade de alcançar um equilíbrio de investimentos nesse importante momento de sua vida, devido às intensas e diversas transformações que estão ocorrendo, a tatuagem surge como uma tentativa de Gabriela para alcançar alguma forma de estabilidade. A tatuagem permeia o cenário atual, configurando uma modalidade de singularização buscada pelos adolescentes diante da invisibilidade identitária (Birman, 2011). Nesse sentido, na contemporaneidade, os jovens objetivam, por meio da tatuagem, adquirir alguma visibilidade, atrair o olhar do outro para que possam ser singularizados (Birman, 2011).

Porém, diante da temática da marca na pele, é fundamental considerar a serviço de que está a tatuagem para o sujeito em sua subjetividade. Em Gabriela, há o desejo de fazer a tatuagem de uma caveira mexicana. Tal figura diz respeito a uma caveira colorida, com desenhos de flores, muito utilizada no dia dos mortos. Essa representação origina-se nos povos indígenas do México e tem sua celebração no dia dos mortos, onde sua imagem está presente em pulseiras, doces e máscaras.

A temática da celebração da morte e da saudade pode remeter aos lutos vivenciados na adolescência. Assim, a caveira mexicana representa, por um lado, a finitude e, por outro, a continuidade por meio do culto da memória dos mortos. Logo, no caso de Gabriela, presentificam-se aqueles que, em alguma medida, fizeram-se morrer, na medida em que nunca mais voltaram. A tatuagem da caveira mexicana faz alusão às figuras parentais, que, apesar de ausentes, evidenciam-se por meio dos sintomas da paciente. Assim, pode-se considerar o ato de tatuar uma tentativa de simbolizar e significar algo da ordem do que não está representado.

Além disso, é possível observar o paradoxo entre a vida e a morte, uma vez que a caveira representa a morte e o seu colorido simboliza que há recursos da ordem da pulsão de vida. Considerando o desamparo que permeia a história de Gabriela, pode-se considerar a tatuagem da caveira mexicana como a marca do mortífero da ausência dos pais em um corpo que não foi investido. Nesse sentido, evidencia-se o desamparo que se apresenta, por meio da tatuagem, para denunciar sua condição psíquica fragilizada (Birman, 2011).

Da mesma forma que o mortífero marca o corpo, percebe-se o prazer da jovem ao arriscar-se em diversas situações. É possível observar tal risco ao alcoolizar-se excessivamente em uma festa na casa de um estranho ou quando anda na rua à noite. Compreende-se que, diante do traumático que Gabriela não consegue metabolizar, ela recorre ao ato para dar vazão ao excesso que lhe ameaça. O predomínio do excesso situa essa adolescente em um confronto com demandas de trabalho psíquico para o qual parece possuir parcos recursos. Além disso, o fato de alcoolizar-se excessivamente remete à história de seus pais, denunciando a repetição de atos destrutivos, na medida em que essas intensidades parecem não terem sido passíveis de simbolização.

Nessa perspectiva, observa-se a urgência de uma escuta que possa oferecer meios para a elaboração do traumático e para novos investimentos. Assim, segundo Macedo e Werlang (2012), o espaço terapêutico pode propiciar ao paciente a possível metabolização do que é excesso por meio da construção de sentidos para o mortífero que marca sua história de vida. Conforme as autoras, "ao legitimar a dor frente ao excesso e oferecer, via palavra, a possibilidade de dar figurabilidade ao que ataca desde dentro, a análise surge como espaço inaugural de outra qualidade de encontro com o outro e consigo mesmo" (Macedo e Werlang, 2012, p. 180-181). Dessa forma, o espaço terapêutico apresenta-se como um lugar onde é estabelecida uma relação de amor e confiança, que possibilita a elaboração do traumático.

 

Considerações finais

A partir dos achados teóricos ilustrados pelas vinhetas do caso de Gabriela, pode-se concluir que falhas ocorridas na constituição psíquica do sujeito adquirem um incremento na adolescência. Faz-se fundamental considerar a adolescência não apenas como uma etapa do ciclo vital, mas como um período em que complexas exigências são direcionadas ao psiquismo, de modo que é preciso administrar diversas transformações.

A proposta da "transição narcísica" é válida para compreender a importância de um preâmbulo narcísico para que o jovem possa se apropriar de sua identidade. No momento em que houve a ausência de narcisização do bebê, ao deparar-se com a adolescência, o sujeito revive um desamparo agravado pelo ressurgimento das falhas narcísicas. Portanto, as problemáticas próprias da adolescência são incrementadas quando se trata de um narcisismo fraturado, sendo necessário considerar o desamparo de um Eu que não tem capacidade para representar o traumático. Ademais, são colocadas em pauta questões relativas à solidão, à assimetria, à alteridade e à identidade.

Além disso, percebe-se a presença do traumático registrada em diversos campos, como na marca da tatuagem e no prazer da exposição ao risco, denunciando uma inegável condição de desamparo e dor. Conforme ressalta André (2001, p. 30), "quando o mundo interno excede a capacidade de simbolização, denunciar o exterior passa a ser o único recurso. A invocação de fora permite desviar-se do lado de dentro".

Gabriela, na escolha pela tatuagem da Caveira Mexicana, denuncia seu aprisionamento no paradoxo entre a vida e a morte, na medida em que a caveira representa o mortífero do trauma e o seu colorido denuncia a existência de recursos do campo da pulsão de vida. A intensidade do excesso invade sua experiência de adolescer e desvela os frágeis recursos em uma fase de necessárias e vitais ressignificações.

A escuta psicanalítica, a partir da compreensão das complexidades psíquicas envolvidas na singularidade e na história de vida de cada sujeito, consolida-se como um recurso que permite dar uma nova vicissitude ao traumático. Assim, ao atualizar, por meio da transferência, suas conflitivas infantis, Gabriela tem experienciado a possibilidade de adentrar novos espaços de acolhimento e reconhecimento da dor psíquica, mas, também, de construir recursos para enfrentá-la.

 

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Submetido: 22/09/2015
Aceito: 02/02/2016

 

 

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